CARLOS ALEXANDRE BAUMGARTEN | Las Otras, de Aimée Bolaños, e a viagem em direção ao outro
É precisamente
nesse âmbito que se situa a poesia de Aimée Bolaños, poeta cubana, residente no
Brasil há dez anos aproximadamente, onde exerce as funções de professora de Literatura
Hispano-Americana, nos cursos de Graduação em Letras da Fundação Universidade Federal
do Rio Grande. Atua, além disso, no Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma
Universidade, especialmente na disciplina de Tópicos Avançados de História da Literatura,
onde focaliza a literatura latino-americana, aí incluída a Literatura Brasileira.
Antes de sua vinda para o Brasil, Aimée Bolaños esteve, como professora visitante,
por várias vezes, fora de seu país natal. Tal circunstância permitiu não só que
entrasse em contato, intensa e diretamente, com outras culturas, mas que também
vivenciasse a condição do constante deslocamento e do enfrentamento da diferença.
Desde sua estada
no Brasil, Aimée Bolaños, além de publicações de ordem teórico-crítica, produziu
dois livros de poemas: El libro de Maat (2002), publicado no Brasil, e Las
Otras (Antología mínima del Silencio)[1], editado na Espanha,
no ano de 2004. O exame do conjunto de textos que integram as duas publicações referidas
revela a presença de um discurso atravessado por múltiplas tradições/identidades
culturais e, sobretudo, aberto a um permanente diálogo com o outro/diferente que,
ao ser incorporado, torna-se responsável pela afirmação de uma linguagem poética
híbrida e multicultural. Nesse movimento, a poeta torna-se agente de uma escritura
que se caracteriza por uma prática intertextual, construída semelhantemente a um
mosaico de citações, que promove a absorção e a transformação de outros textos,
comprovando, em certa medida, comentário feito por Roland Barthes, em S/Z,
de que le texte unique vaut pour tous les textes de la littérature non en ce
que’il les represente (les abstrait et les égalise), mais en ce que la littérature
elle-même n’est jamais qu’un seul texte (BARTHES, 1971). A mesma ideia será
retomada por Barthes, em O prazer do texto, quando, ao comentar passagem
de autoria de Stendhal, conclui: E é isto o intertexto: a impossibilidade de
viver fora do texto infinito – quer esse texto seja de Proust, ou o jornal diário,
ou o écran da televisão (BARTHES, 1983).
É provável, contudo,
que Aimée Bolaños tenha buscado inspiração não em Barthes, mas em Jorge Luis Borges,
de cuja obra é atenta estudiosa, para desenvolver uma produção poética que se insere
afirmativamente no âmbito da tradição literária ocidental, com a qual dialoga. Por
essa razão, a autora do prólogo de Las Otras afirma que sua ‘antologia’,
cumple dos funciones legitimantes o, al menos, de atenuación: estremece, no importa
cuán levemente, el atribulado canon de la historia de la literatura occidental patrilineal
y metropolitana [...] y a la vez nos depara algunos placeres sorprendentes.
Mais do que isso, parece que Aimée Bolaños vale-se de sugestão de Borges, presente
em La Biblioteca de Babel, segundo a qual haveria uma biblioteca infinita
que, percorrida por um viajante, revelaria a presença dos mesmos volumes a se repetirem
em igual desordem. Veja-se o que diz Borges sobre
a biblioteca imaginária, ao final de seu texto antes referido: Si un eterno viajero
la atravesara em cualquier dirección, comprobaría al cabo de los siglos que los
mismos volúmenes se repitem en el mismo desorden (que, repetido, sería un orden:
el Orden) (BORGES, 1989, t. I).
Las Otras (Antología mínima del Silencio),
así com mayúsculas para que alcanzara alguna notoriedad, nas palavras da
autora, apresenta um prólogo, “Palabras al lector”, e vinte e quatro poemas, cuja
autoria, a partir de um jogo de natureza puramente ficcional, é creditada a mulheres
poetas das mais diversas nacionalidades e temporalidades, num esforço de dar visibilidade
a vozes pretensamente esquecidas, pois desenterrar poesía viva, develar escrituras
ocultas, despertar del sueño a veces milenario, devolver voz y visibilidad, es ocasión
jubilosa. Nessa perspectiva, surgem Cleis e Athil, de Lesbos, representando poetas
da Antiguidade Clássica; Sor Filomena da Eucaristia, oriunda de Portugal; Sor Clara
de la Gracia, da Colômbia, ambas do século XVIII; Carla Terezinha de Souza e Denise
Ieda Alves, brasileiras, respectivamente dos séculos XIX e XX; María de los Ángeles
Cela, Calixta Rey, Adriana Sentmanat, todas cubanas do século XX, entre outras tantas
vozes femininas, provenientes de países como o Japão, a China, a Itália, a Alemanha
e Porto Rico.
As criações da
Autora permitem que evoque poetas de existência histórica comprovada, como é o caso
de Safo, representada no livro por sua filha Cleis; o mesmo se pode dizer de Delfina
Benigna da Cunha[2], poeta sul-rio-grandense
da primeira metade do século XIX, que aparece em Las Otras na pele de Carla
Terezinha de Souza. Delfina Benigna, cega desde os dois anos de idade, publicou
três livros de poemas, entre os quais destaca-se Poesias oferecidas às senhoras
rio-grandenses (1834), primeiro livro publicado no Rio Grande do Sul. Nele,
faz-se presente uma poesia em que se manifesta a influência da Arcádia Lusitana
associada a traços pré-românticos, notadamente quando a escritora gaúcha explora
temas relativos à sua própria condição existencial. Aimée Bolaños, ao remeter
à poesia de Delfina Benigna, não apenas faz referência à condição de cega da poeta
sulina, como se vale de sugestões buscadas em sua própria obra, em que as oitavas
são reiteradamente utilizadas:
Prospera com
luces propias tu poesia
porque humilde fluyes de lo profundo.
Hecha a tientas com calma armonía,
nacida del mar oscuro que circundo,
hoy te escucho, amiga delicada y pía,
en tu habitado claustro del mundo
sintiendo que el estro es punta fina
y tus cuitas, ciega voz que imagina.
O universo sul-rio-grandense
comparece em outro texto, assinado por Gertrudes de Veiga. Fundado na literatura
de teor nativista, o poema é constituído por sete quadras, de versos predominantemente
em redondilha maior, onde a poeta, focaliza, simultaneamente, o espaço rural sulino
e a região litorânea do Rio Grande do Sul. Com relação ao primeiro, estabelece um
diálogo com a poesia gauchesca, de larga tradição, não só no Rio Grande do Sul,
mas também no âmbito da literatura hispano-americana, como bem anotou Jesús Barquet,
ao afirmar: El poema de da Veiga remeda, curiosa pero justificadamente, los temas
de la poesía decimonónica hispánica[3]:
Después de la noche fría
y de tanta pena soñada,
el sol campero hace el día
como una luz recobrada.
.....................................
Sea el sonido trovado
en la faena rural sencilla
cuando el baquiano ensilla
y el cantor canta callado.
As poetas religiosas,
Sor Filomena de Eucaristia e Sor Clara de la Gracia, são inspiradas, respectivamente,
em Sóror Mariana Alcoforado e Sóror Juana Inés de la Cruz, como sublinhado no “Palabras
al lector”. Além disso, quando consideradas as alusões constantes dos textos, como
as presentes no poema de Sor Filomena de Eucaristia, percebe-se a reinvenção da
paixão solitária de Mariana Alcoforado, aqui assumida, em verdade, pela poeta:
A mi lado en la hoguera
te invoco y no respondes.
Arden los leños ciegos
y como el humo
tú escapas.
Huyes del dolor
o del cansancio
que en mi era
pasión solitaria.
Las Otras, para além das
poetas criadas por Aimée Bolaños, traz igualmente mulheres de existência histórica
e real comprovada, como ocorre no poema atribuído a Artemísia Gentileschi, pintora
do barroco italiano, cuja vida foi marcada por um processo escandaloso, na medida
em que teria sido violentada por Agostinho Tassi, seu professor de pintura e amigo
de seu pai. O poema, revestido de imagens de intensa plasticidade, vem marcado por
um profundo erotismo que, de resto, pode ser encontrado em muitos outros textos
constantes do livro:
Nada sé de tu Ser
cuando te das en el sexo.
Una esfinge parecería más abierta.
Sólo sé que te transformas.
Tus músculos estallan en tensión,
La delicada curva de las caderas,
Tan tuya como de Praxiteles,
se asemeja entonces
a un círculo en llamas
y como una cinta roja
se adelgaza tu figura.
...........................................
Te miro y solo así te detengo
en tu estampida de animal de fuego.
Entras en la eternidad del boceto
infinitamente carnal
divinizado tu cuerpo de la vida
que dibujo.
Nesse mesmo âmbito,
o das mulheres de existência histórica e real comprovada, encontra-se a própria
Aimée G. Bolaños que, no livro, além de metamorfosear-se nas múltiplas vozes femininas
que o povoam, assume uma tríplice condição: a de responsável pela organização da
“antologia”, que se identifica como Aimée G. Bolaños; a que assina o prólogo como
Autora e, por fim, a que se coloca como autora do penúltimo poema constante da publicação.
Trata-se, em verdade, de um jogo extremamente inventivo, a partir do qual Aimée
Bolaños, ao mesmo tempo em que explica o processo de construção de sua ‘antologia’,
reflete sobre sua própria condição existencial de exilada. Nesse sentido, os quatro
poemas que encerram o livro, assumem um teor essencialmente autobiográfico, a despeito
de serem creditados a distintas vozes, ora cubanas, ora brasileiras. O primeiro
desses poemas, tendo por título “Epitafio”, vem assinado por Vivien Liaños, cuja
data de nascimento e morte está marcada pelos anos de 1943 e 1997, respectivamente.
Tais datas, não por acaso, remetem para o ano de nascimento da própria Aimée Bolaños
(1943) e para o ano em que deixou Cuba (1997), para residir no Brasil. O poema,
extremamente curto, contempla a ideia de morte, de transformação, uma vez que a
saída do país natal representa uma fissura em sua configuração identitária e abarca,
como assinalou Jesús Barquet, un comentario doloroso sobre la condición del desterrado,
comentario que resulta ser común a cierta literatura cubana de destierro (José Marti,
Reinaldo Arenas): presentar el abandono del país natal como el final de una existência
física, lo qual se evidencia, desde el título, en el poema “Epitáfio”, de la finada
Liaños, poema este de clara intertextualidad con La isla en peso, de Virgilio Piñera
(BARQUET, 2005):
Epitafio
Isla infinita,
Dame tu piedra quieta,
devuélveme el peso.
A leitura de
“Epitafio” ganha maior significação quando relacionada ao poema creditado, na “antologia”,
a própria Aimée G. Bolaños. O poema, sem título, traz um sujeito lírico que, transmutado,
apresenta-se como resultado da confluência de múltiplos discursos: Me hago de
retazos/ de innumerables trajes/ vestida [...] todas las letras me habitan.
Colocado no final do livro, o poema afirma de modo definitivo uma outra identidade,
consciente de sua condição diaspórica, de emigrante. Por essa razão, o eu lírico afirma categoricamente: no me busco/ en la
historia/ telón de fondo/ patético/ me busco en el trasiego. O texto estabelece,
além disso, um diálogo entre um passado não mais existente – ya fui hija/ de
una isla/ mediterránea – e um presente, no qual mi discurso es una
ráfaga/ que me deshace/ en infinitos fuegos.
O percurso desenvolvido
a partir de “Epitafio” completa-se com os dois últimos poemas: o primeiro “Yo/Iansã”,
atribuído à brasileira Denise Ieda Alves; o segundo, “Declaración de amor al país
natal”, da cubana Alina César. No primeiro, mais uma vez, a referência a Cuba é
explicitada através da imagem da ilha, colocada, via de regra, no passado – Nací
en una isla/ y a ella volvi dividida. A ilha, retida pela memória, permanece
a mesma, ao passo que o sujeito lírico revela-se outro, aberto à vida, pois arrasante
y rasgada/ traigo la renovación sin fin.
O último poema,
“Delaración de amor al país natal”, assume, como “Yo/Iansã”, um tom autobiográfico,
em que a evocação do país de origem, fruto da (des)memória, abre-se para um processo
de idealização, em que se manifesta uma Jubilosa saudade de ti/ como eres/ como has sido
nunca. Mais do que isso, o país natal perde sua concretude, para afirmar-se
como discurso poético: Innombrable y fijo/ como una imagen/ imposible de sueño
borrada,/ te amo en cada signo. Além disso, a utilização de saudade, palavra
da língua portuguesa, revela não só a apropriação do discurso do outro, como também
a afirmação de uma nova identidade, já não mais definida pelos limites espaciais
e temporais estabelecidos pelo critério da nacionalidade, mas pela condição diaspórica.
Dessa condição, surge um sujeito que é o resultado do cruzamento de múltiplos discursos
e, nessa medida, simultaneamente, singular e plural: o emigrante.
A análise dos
dois últimos poemas - “Yo/Iansã” e “Declaración de amor al país natal” -assinados,
respectivamente, pela brasileira Denise Almeida Alves e pela cubana Alina César,
sugere ainda uma outra possibilidade de leitura, da qual emerge um eu lírico produto
da comunhão que se estabelece entre o universos hispano-americano e brasileiro:
uma identidade que, ao se construir pela ação da diáspora e do desenraizamento,
configura-se como híbrida, multicultural e, por consequência, fragmentada, tal como
já confessara a poeta Aimée G. Bolaños, no texto que antecede aos dois últimos da
antologia: Me hago de retazos [...] estoy partiendo/ y partida/ los trozos que soy/ me navegan.
Las Otras apresenta, além
disso, um conjunto de poetas mulheres que teriam gravitado em torno de autores consagrados.
Incluem-se, nesse caso, Ulrica von Lebentzow, vinculada a Johann Wolfgang Goethe,
Kiria Hafis, ligada a Konstantinos Kavafis, e Jeanne Duval, a Charles Baudelaire.
Ao dar voz a essas mulheres, Aimée Bolaños permite-lhes o estabelecimento de um
contraponto entre a sua própria escrita/poesia e aquela produzida pelos poetas a
que estiveram relacionadas. Assim, Ulrica von Lebentzow, afirma: Como a tu amada
Ifigenia/ me diste la inocencia/ para sufrirme/hasta descubrir/ tu forma más exacta;
contudo, ao mesmo tempo, sente-se alijada e distante do mundo construído literariamente
por Goethe e, pelo exercício da poesia se auto-define, revelando sua verdadeira
identidade e lugar no mundo, já que En el mar gélido/de la emoción escrita/ me
limito a esta menuda letra/ porque en tu mundo elocuente/ no tengo nada que decir.
Jeanne Duval,
musa inspiradora de Baudelaire, aparece como autora de um poema, em que refuta sua
imagem, tal como concebida pelo autor de Flores do mal. Assim, dirigindo-se
ao poeta, refere a forma como ele a percebeu: Pero tú me transformaste/ en ágata
y metal/ en tabaco y benjuí/ bajo tu mirada./ Desde los tibios pies/hasta mi sexo desolado/ me cubriste con palabras; para, a seguir, declarar: Tus palabras/ no eran yo./ Ya fui todas tus
metáforas/ y me perdi en algunas./ Intenté parecerme a ellas/ pero tenían fondo./
Nunca me viste como imaginabas. O poema funciona como uma crítica à representação da
figura feminina através do olhar masculino, incapaz de apreender a verdadeira face
da mulher, que Sacramente/ me rehago en el silencio./ Me devuelvo/ a mi irradiante
Nada.
Kiria Hafis completa
o conjunto de poetas que, presumidamente, teriam vivido em torno um grande autor
canônico da literatura ocidental. Contudo, diferentemente do de Ulrica Lebentzow
e, sobretudo, do de Jeanne Duval, o poema de sua autoria, ao invés de contrapor-se
a qualquer imagem feminina criada por Konstantinos Kavavis, funciona como um canto
elegíaco à figura e à poesia do poeta grego:
Eres en este mar alejandrino
inhóspito, radiante, rebelde
como el mundo
que miras desde tu ventana.
........................................
Muere mi corazón
y la lengua se trastorna
cuando te nombro.
No volverá mi mirada a fijarte:
belleza que te escapas,
de este amor inmenso
e incapaz.
Há, em Las
Otras, um grupo de poemas, cuja autoria é distribuída entre poetas cubanas e
porto-riquenhas, em que a temática do exílio e do desterro, tal como ocorre nos
textos poéticos colocados no final do livro, ganha força, vindo associada normalmente
à ideia da viagem e do deslocamento. Incluem-se, nesse caso, os trabalhos apresentados
como de Loriana Menéndez de Ayala e Inés María Sepúlveda, de Porto Rico, Calixta
Rey, María de los Ángeles Cela e Adriana Sentmanat, todas cubanas. No texto “Quasisoneto”,
de Calixta Rey, a questão da diáspora e da desterritorialização ganha relevo nas
palavras da poeta:
Sueño velado: destierro,
ceiba que cobijas calma.
Halle reposo el viajero
solo a la sombra del ala.
O problema da
diáspora tem marcado profunda e historicamente a vida de autores cubanos, anteriores
e posteriores à Revolução comandada por Fidel Castro, daí ser o mesmo uma recorrência
temática em suas obras. Nessa perspectiva, a autora do prólogo “Palabras al lector”
anota ser sua intenção, a partir da reunião das várias vozes femininas constantes
da “antologia”, realizar la celebración de identidades en tránsito, asumidas
sin limites terriotriales y esperanzado amor que, contribuyendo a un movimiento
excéntrico a partir de los propios orígenes, apuntam hacia lo que quizás un día
llamaremos poética de la errancia.
No mesmo texto
antes referido, Calixta Rey materializa os sentimentos de errância e orfandade,
vividos pelo desterrado/exilado, tal como anunciado no prólogo: Huérfanos de
la tierra amada/ sin el signo y la mandala./ De la infinita luz refractada,/ apenas la sombra del ala. Tal circunstância, ao mesmo tempo em que subtrai uma identidade original,
abre portas para a afirmação de um novo rosto multifacetado e transcultural, já
que No nos engane el camino/ que la errancia es partida/ pero también llegada./
Ítaca fulgura dividida/ en cien cristales de fuego./
Y solo la sombra nos salva.
A reflexão em
torno da diáspora é igualmente desenvolvida no poema atribuído a Adriana Sentmanat.
O poema, sem título e constituído por vinte e oito versos, é construído sem nenhum
sinal de pontuação, a exceção da interrogação final. A poeta, valendo-se de um processo
muito semelhante ao do fluxo de consciência, declara sua condição de exilada, de
sem pátria: Son las cuatro de la noche/ de la noche despatriada/ indiferente/
inconmensurable/ en la que llegamos/ y nos vamos. Definida sua condição de expatriada,
parte em busca de si mesma até perceber-se outra: otra/ desconocida/ otra/ extranjera/.
A situação de exilada/desterrada configura-se, no curso do poema, como um sonho/sono
no qual o sujeito lírico encontra-se aprisionado e do qual duvida poder libertar-se,
como atesta a interrogação final: ¿ despertaremos, acaso? O uso da primeira
pessoa do plural por parte do sujeito lírico, ao longo de todo poema, não apenas
revela sua condição anímica particular, como serve de veículo para a inclusão de
todos aqueles que vivenciam e compartilham a mesma situação imposta pelo exílio.
Las Otras, no âmbito do
jogo ficcional que propõe, apresenta também um possível heterônimo feminino de Fernando
Pessoa na figura da poeta, supostamente portuguesa, Ana Teresa Ayres. No texto apresentado
como de sua autoria, Ana Tereza Ayres apropria-se da ideia do poeta como um fingidor,
presente na produção poética pessoana: Locas de melancolía/ tus palabras/ fingen/
disfrazadas/ de muda sombra/ jugando a ser otras/ las de la felicidad sonora.
O poema, que tem por título “Requiem”, alude, ainda, à personalidade poética proposta
por Fernando Pessoa, através de seus heterônimos, ao registrar seu caráter fragmentado:
Allí te descubro,/ hermano,/ de ti partido/ en una infancia sin fin. Nessa
perspectiva, a heteronímia pessoana, ao se configurar pela fragmentação identitária,
funciona como um espelho no qual se encontra e se mira um sujeito poético também
dividido e fragmentado: a poeta emigrante, a poeta em situação de diáspora.
O exame do conjunto
de textos constante de Las Otras, de Aimée G. Bolaños, revela que a poeta,
a partir de um criativo jogo estabelecido com o leitor, desenvolve profunda reflexão
a respeito da condição do emigrante, daquele cuja identidade se faz no trânsito
entre culturas de distintas procedências e tradições. Nesse sentido, realiza um
movimento que, ao se apropriar do mundo, é responsável pela afirmação do que poderia
ser chamado de uma literatura transnacional e, portanto, desterritorializada. Além
disso, formula, tal como anunciado no prólogo, uma poética da errância que, estabelecida
na confluência entre o próprio e o alheio[4], configura-se
como a expressão de significativa parcela da produção literária contemporânea.
Finalmente, por
sua engenhosa arquitetura, Las Otras contempla a possibilidade de uma releitura
da própria história da literatura, que passa a ser pensada não mais como um discurso
de pretensão totalizadora e de caráter excludente, mas como um discurso que, a despeito
de seu caráter fragmentado, mantém-se aberto ao outro. Em outras palavras, uma história
da literatura que se queira nova e capaz de abarcar as questões trazidas pela contemporaneidade
deve, necessariamente, abandonar o pressuposto da uniformidade identitária, para
afirmar-se pelo princípio da diferença. É para esse caminho que aponta o discurso
poético de Aimée Bolaños, ao realizar, sem preconceito, uma viagem em direção ao
outro.
NOTAS
[1] Todas as citações da obra remetem a esta edição, pelo
que passaremos a indicar apenas o número da página entre parênteses, juntamente
com a citação.
[2] Sobre Delfina Benigna da Cunha, consultar: SILVA, Joaquim
Norberto de Sousa e. Brasileiras célebres. Rio de Janeiro: Garnier, 1862.
Ver, também: CESAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Globo, 1971.
[3] Jesús J. Barquet, em leitura de Las Otras chama
atenção para a vinculação entre as quadras nativistas constantes do texto com a
tradição da poesia hispânica, referindo explicitamente os Versos sencillos,
de José Martí. V. a propósito: BARQUET, Jesús
J. Las Otras, no la misma: Aimée G. Bolaños y la tra(d)ición poética femenina.
Alhucema, nº 14, Granada, Espanha, 2005.
[4] A expressão “o próprio e o alheio” foi originalmente
utilizada por Tânia Franco Carvalhal como título da seguinte obra de sua autoria:
CARVALHAL, Tânia Franco. O próprio e o alheio. Ensaios de literatura comparada.
São Leopoldo: UNISINOS, 2003.
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§ Conexão Hispânica §
Curadoria & design: Floriano Martins
ARC Edições | Agulha Revista de Cultura
Fortaleza CE Brasil 2021
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