domingo, 20 de dezembro de 2020

CONEXÃO HISPÂNICA | Aimée Bolaños

CARLOS ALEXANDRE BAUMGARTEN | Las Otras, de Aimée Bolaños, e a viagem em direção ao outro

 


O tema da imigração tem se revelado, no âmbito da escrita literária e das reflexões teórico-críticas, recorrente nas últimas décadas. Contudo, mais do que a temática da imigração, o que tem chamado a atenção dos estudiosos é a questão relativa à produção literária de emigrantes cujo número, em tempos de globalização, só tem aumentado, contribuindo para a diluição das fronteiras nacionais, obrigando a que se pense a literatura segundo outros parâmetros que não aqueles estabelecidos a partir do conceito de estado-nação. Tal circunstância está, também, intimamente vinculada ao conceito de identidade que, igualmente, precisa ser redimensionado para que possam ser abarcados os aspectos que envolvem a literatura produzida por emigrantes. Stuart Hall, refletindo sobre a questão, registra que, numa época de sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente” (HALL, 1999). Nessa perspectiva, afirmam-se noções como as de literatura do exílio, voluntário ou não, de desenraizamento, de desterritorialização, de transculturalismo, entre outros, cujo objetivo é a explicação da produção literária de emigrantes que, quantitativa e qualitativamente, tem se revelado uma das mais significativas ocorrências no campo da literatura contemporânea.

É precisamente nesse âmbito que se situa a poesia de Aimée Bolaños, poeta cubana, residente no Brasil há dez anos aproximadamente, onde exerce as funções de professora de Literatura Hispano-Americana, nos cursos de Graduação em Letras da Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Atua, além disso, no Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma Universidade, especialmente na disciplina de Tópicos Avançados de História da Literatura, onde focaliza a literatura latino-americana, aí incluída a Literatura Brasileira. Antes de sua vinda para o Brasil, Aimée Bolaños esteve, como professora visitante, por várias vezes, fora de seu país natal. Tal circunstância permitiu não só que entrasse em contato, intensa e diretamente, com outras culturas, mas que também vivenciasse a condição do constante deslocamento e do enfrentamento da diferença.

Desde sua estada no Brasil, Aimée Bolaños, além de publicações de ordem teórico-crítica, produziu dois livros de poemas: El libro de Maat (2002), publicado no Brasil, e Las Otras (Antología mínima del Silencio)[1], editado na Espanha, no ano de 2004. O exame do conjunto de textos que integram as duas publicações referidas revela a presença de um discurso atravessado por múltiplas tradições/identidades culturais e, sobretudo, aberto a um permanente diálogo com o outro/diferente que, ao ser incorporado, torna-se responsável pela afirmação de uma linguagem poética híbrida e multicultural. Nesse movimento, a poeta torna-se agente de uma escritura que se caracteriza por uma prática intertextual, construída semelhantemente a um mosaico de citações, que promove a absorção e a transformação de outros textos, comprovando, em certa medida, comentário feito por Roland Barthes, em S/Z, de que le texte unique vaut pour tous les textes de la littérature non en ce que’il les represente (les abstrait et les égalise), mais en ce que la littérature elle-même n’est jamais qu’un seul texte (BARTHES, 1971). A mesma ideia será retomada por Barthes, em O prazer do texto, quando, ao comentar passagem de autoria de Stendhal, conclui: E é isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito – quer esse texto seja de Proust, ou o jornal diário, ou o écran da televisão (BARTHES, 1983).

É provável, contudo, que Aimée Bolaños tenha buscado inspiração não em Barthes, mas em Jorge Luis Borges, de cuja obra é atenta estudiosa, para desenvolver uma produção poética que se insere afirmativamente no âmbito da tradição literária ocidental, com a qual dialoga. Por essa razão, a autora do prólogo de Las Otras afirma que sua ‘antologia’, cumple dos funciones legitimantes o, al menos, de atenuación: estremece, no importa cuán levemente, el atribulado canon de la historia de la literatura occidental patrilineal y metropolitana [...] y a la vez nos depara algunos placeres sorprendentes. Mais do que isso, parece que Aimée Bolaños vale-se de sugestão de Borges, presente em La Biblioteca de Babel, segundo a qual haveria uma biblioteca infinita que, percorrida por um viajante, revelaria a presença dos mesmos volumes a se repetirem em igual desordem. Veja-se o que diz Borges sobre a biblioteca imaginária, ao final de seu texto antes referido: Si un eterno viajero la atravesara em cualquier dirección, comprobaría al cabo de los siglos que los mismos volúmenes se repitem en el mismo desorden (que, repetido, sería un orden: el Orden) (BORGES, 1989, t. I).

Las Otras (Antología mínima del Silencio), así com mayúsculas para que alcanzara alguna notoriedad, nas palavras da autora, apresenta um prólogo, “Palabras al lector”, e vinte e quatro poemas, cuja autoria, a partir de um jogo de natureza puramente ficcional, é creditada a mulheres poetas das mais diversas nacionalidades e temporalidades, num esforço de dar visibilidade a vozes pretensamente esquecidas, pois desenterrar poesía viva, develar escrituras ocultas, despertar del sueño a veces milenario, devolver voz y visibilidad, es ocasión jubilosa. Nessa perspectiva, surgem Cleis e Athil, de Lesbos, representando poetas da Antiguidade Clássica; Sor Filomena da Eucaristia, oriunda de Portugal; Sor Clara de la Gracia, da Colômbia, ambas do século XVIII; Carla Terezinha de Souza e Denise Ieda Alves, brasileiras, respectivamente dos séculos XIX e XX; María de los Ángeles Cela, Calixta Rey, Adriana Sentmanat, todas cubanas do século XX, entre outras tantas vozes femininas, provenientes de países como o Japão, a China, a Itália, a Alemanha e Porto Rico.

As criações da Autora permitem que evoque poetas de existência histórica comprovada, como é o caso de Safo, representada no livro por sua filha Cleis; o mesmo se pode dizer de Delfina Benigna da Cunha[2], poeta sul-rio-grandense da primeira metade do século XIX, que aparece em Las Otras na pele de Carla Terezinha de Souza. Delfina Benigna, cega desde os dois anos de idade, publicou três livros de poemas, entre os quais destaca-se Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses (1834), primeiro livro publicado no Rio Grande do Sul. Nele, faz-se presente uma poesia em que se manifesta a influência da Arcádia Lusitana associada a traços pré-românticos, notadamente quando a escritora gaúcha explora temas relativos à sua própria condição existencial. Aimée Bolaños, ao remeter à poesia de Delfina Benigna, não apenas faz referência à condição de cega da poeta sulina, como se vale de sugestões buscadas em sua própria obra, em que as oitavas são reiteradamente utilizadas:

 

Prospera com luces propias tu poesia

porque humilde fluyes de lo profundo.

Hecha a tientas com calma armonía,

nacida del mar oscuro que circundo,

hoy te escucho, amiga delicada y pía,

en tu habitado claustro del mundo

sintiendo que el estro es punta fina

y tus cuitas, ciega voz que imagina.

 

O universo sul-rio-grandense comparece em outro texto, assinado por Gertrudes de Veiga. Fundado na literatura de teor nativista, o poema é constituído por sete quadras, de versos predominantemente em redondilha maior, onde a poeta, focaliza, simultaneamente, o espaço rural sulino e a região litorânea do Rio Grande do Sul. Com relação ao primeiro, estabelece um diálogo com a poesia gauchesca, de larga tradição, não só no Rio Grande do Sul, mas também no âmbito da literatura hispano-americana, como bem anotou Jesús Barquet, ao afirmar: El poema de da Veiga remeda, curiosa pero justificadamente, los temas de la poesía decimonónica hispánica[3]:

 

Después de la noche fría

y de tanta pena soñada,

el sol campero hace el día

como una luz recobrada.

.....................................

Sea el sonido trovado

en la faena rural sencilla

cuando el baquiano ensilla

y el cantor canta callado.

 

As poetas religiosas, Sor Filomena de Eucaristia e Sor Clara de la Gracia, são inspiradas, respectivamente, em Sóror Mariana Alcoforado e Sóror Juana Inés de la Cruz, como sublinhado no “Palabras al lector”. Além disso, quando consideradas as alusões constantes dos textos, como as presentes no poema de Sor Filomena de Eucaristia, percebe-se a reinvenção da paixão solitária de Mariana Alcoforado, aqui assumida, em verdade, pela poeta:

 

A mi lado en la hoguera

te invoco y no respondes.

Arden los leños ciegos

y como el humo

tú escapas.

Huyes del dolor

o del cansancio

que en mi era

pasión solitaria.

 

Las Otras, para além das poetas criadas por Aimée Bolaños, traz igualmente mulheres de existência histórica e real comprovada, como ocorre no poema atribuído a Artemísia Gentileschi, pintora do barroco italiano, cuja vida foi marcada por um processo escandaloso, na medida em que teria sido violentada por Agostinho Tassi, seu professor de pintura e amigo de seu pai. O poema, revestido de imagens de intensa plasticidade, vem marcado por um profundo erotismo que, de resto, pode ser encontrado em muitos outros textos constantes do livro:

 

Nada sé de tu Ser

cuando te das en el sexo.

Una esfinge parecería más abierta.

Sólo sé que te transformas.

Tus músculos estallan en tensión,

La delicada curva de las caderas,

Tan tuya como de Praxiteles,

se asemeja entonces

a un círculo en llamas

y como una cinta roja

se adelgaza tu figura.

...........................................

Te miro y solo así te detengo

en tu estampida de animal de fuego.

Entras en la eternidad del boceto

infinitamente carnal

divinizado tu cuerpo de la vida

que dibujo.

 

Nesse mesmo âmbito, o das mulheres de existência histórica e real comprovada, encontra-se a própria Aimée G. Bolaños que, no livro, além de metamorfosear-se nas múltiplas vozes femininas que o povoam, assume uma tríplice condição: a de responsável pela organização da “antologia”, que se identifica como Aimée G. Bolaños; a que assina o prólogo como Autora e, por fim, a que se coloca como autora do penúltimo poema constante da publicação. Trata-se, em verdade, de um jogo extremamente inventivo, a partir do qual Aimée Bolaños, ao mesmo tempo em que explica o processo de construção de sua ‘antologia’, reflete sobre sua própria condição existencial de exilada. Nesse sentido, os quatro poemas que encerram o livro, assumem um teor essencialmente autobiográfico, a despeito de serem creditados a distintas vozes, ora cubanas, ora brasileiras. O primeiro desses poemas, tendo por título “Epitafio”, vem assinado por Vivien Liaños, cuja data de nascimento e morte está marcada pelos anos de 1943 e 1997, respectivamente. Tais datas, não por acaso, remetem para o ano de nascimento da própria Aimée Bolaños (1943) e para o ano em que deixou Cuba (1997), para residir no Brasil. O poema, extremamente curto, contempla a ideia de morte, de transformação, uma vez que a saída do país natal representa uma fissura em sua configuração identitária e abarca, como assinalou Jesús Barquet, un comentario doloroso sobre la condición del desterrado, comentario que resulta ser común a cierta literatura cubana de destierro (José Marti, Reinaldo Arenas): presentar el abandono del país natal como el final de una existência física, lo qual se evidencia, desde el título, en el poema “Epitáfio”, de la finada Liaños, poema este de clara intertextualidad con La isla en peso, de Virgilio Piñera (BARQUET, 2005): 

 

Epitafio

 

Isla infinita,

Dame tu piedra quieta,

devuélveme el peso.

 

A leitura de “Epitafio” ganha maior significação quando relacionada ao poema creditado, na “antologia”, a própria Aimée G. Bolaños. O poema, sem título, traz um sujeito lírico que, transmutado, apresenta-se como resultado da confluência de múltiplos discursos: Me hago de retazos/ de innumerables trajes/ vestida [...] todas las letras me habitan. Colocado no final do livro, o poema afirma de modo definitivo uma outra identidade, consciente de sua condição diaspórica, de emigrante. Por essa razão, o eu lírico afirma categoricamente: no me busco/ en la historia/ telón de fondo/ patético/ me busco en el trasiego. O texto estabelece, além disso, um diálogo entre um passado não mais existente – ya fui hija/ de una isla/ mediterránea e um presente, no qual mi discurso es una ráfaga/ que me deshace/ en infinitos fuegos.

O percurso desenvolvido a partir de “Epitafio” completa-se com os dois últimos poemas: o primeiro “Yo/Iansã”, atribuído à brasileira Denise Ieda Alves; o segundo, “Declaración de amor al país natal”, da cubana Alina César. No primeiro, mais uma vez, a referência a Cuba é explicitada através da imagem da ilha, colocada, via de regra, no passado – Nací en una isla/ y a ella volvi dividida. A ilha, retida pela memória, permanece a mesma, ao passo que o sujeito lírico revela-se outro, aberto à vida, pois arrasante y rasgada/ traigo la renovación sin fin.

O último poema, “Delaración de amor al país natal”, assume, como “Yo/Iansã”, um tom autobiográfico, em que a evocação do país de origem, fruto da (des)memória, abre-se para um processo de idealização, em que se manifesta uma Jubilosa saudade de ti/ como eres/ como has sido nunca. Mais do que isso, o país natal perde sua concretude, para afirmar-se como discurso poético: Innombrable y fijo/ como una imagen/ imposible de sueño borrada,/ te amo en cada signo. Além disso, a utilização de saudade, palavra da língua portuguesa, revela não só a apropriação do discurso do outro, como também a afirmação de uma nova identidade, já não mais definida pelos limites espaciais e temporais estabelecidos pelo critério da nacionalidade, mas pela condição diaspórica. Dessa condição, surge um sujeito que é o resultado do cruzamento de múltiplos discursos e, nessa medida, simultaneamente, singular e plural: o emigrante.

A análise dos dois últimos poemas - “Yo/Iansã” e “Declaración de amor al país natal” -assinados, respectivamente, pela brasileira Denise Almeida Alves e pela cubana Alina César, sugere ainda uma outra possibilidade de leitura, da qual emerge um eu lírico produto da comunhão que se estabelece entre o universos hispano-americano e brasileiro: uma identidade que, ao se construir pela ação da diáspora e do desenraizamento, configura-se como híbrida, multicultural e, por consequência, fragmentada, tal como já confessara a poeta Aimée G. Bolaños, no texto que antecede aos dois últimos da antologia: Me hago de retazos [...] estoy partiendo/ y partida/ los trozos que soy/ me navegan.

Las Otras apresenta, além disso, um conjunto de poetas mulheres que teriam gravitado em torno de autores consagrados. Incluem-se, nesse caso, Ulrica von Lebentzow, vinculada a Johann Wolfgang Goethe, Kiria Hafis, ligada a Konstantinos Kavafis, e Jeanne Duval, a Charles Baudelaire. Ao dar voz a essas mulheres, Aimée Bolaños permite-lhes o estabelecimento de um contraponto entre a sua própria escrita/poesia e aquela produzida pelos poetas a que estiveram relacionadas. Assim, Ulrica von Lebentzow, afirma: Como a tu amada Ifigenia/ me diste la inocencia/ para sufrirme/hasta descubrir/ tu forma más exacta; contudo, ao mesmo tempo, sente-se alijada e distante do mundo construído literariamente por Goethe e, pelo exercício da poesia se auto-define, revelando sua verdadeira identidade e lugar no mundo, já que En el mar gélido/de la emoción escrita/ me limito a esta menuda letra/ porque en tu mundo elocuente/ no tengo nada que decir.

Jeanne Duval, musa inspiradora de Baudelaire, aparece como autora de um poema, em que refuta sua imagem, tal como concebida pelo autor de Flores do mal. Assim, dirigindo-se ao poeta, refere a forma como ele a percebeu: Pero tú me transformaste/ en ágata y metal/ en tabaco y benjuí/ bajo tu mirada./ Desde los tibios pies/hasta mi sexo desolado/ me cubriste con palabras; para, a seguir, declarar: Tus palabras/ no eran yo./ Ya fui todas tus metáforas/ y me perdi en algunas./ Intenté parecerme a ellas/ pero tenían fondo./ Nunca me viste como imaginabas. O poema funciona como uma crítica à representação da figura feminina através do olhar masculino, incapaz de apreender a verdadeira face da mulher, que Sacramente/ me rehago en el silencio./ Me devuelvo/ a mi irradiante Nada.

Kiria Hafis completa o conjunto de poetas que, presumidamente, teriam vivido em torno um grande autor canônico da literatura ocidental. Contudo, diferentemente do de Ulrica Lebentzow e, sobretudo, do de Jeanne Duval, o poema de sua autoria, ao invés de contrapor-se a qualquer imagem feminina criada por Konstantinos Kavavis, funciona como um canto elegíaco à figura e à poesia do poeta grego:

 

Eres en este mar alejandrino

inhóspito, radiante, rebelde

como el mundo

que miras desde tu ventana.

........................................

Muere mi corazón

y la lengua se trastorna

cuando te nombro.

No volverá mi mirada a fijarte:

belleza que te escapas,

de este amor inmenso

e incapaz.

 

Há, em Las Otras, um grupo de poemas, cuja autoria é distribuída entre poetas cubanas e porto-riquenhas, em que a temática do exílio e do desterro, tal como ocorre nos textos poéticos colocados no final do livro, ganha força, vindo associada normalmente à ideia da viagem e do deslocamento. Incluem-se, nesse caso, os trabalhos apresentados como de Loriana Menéndez de Ayala e Inés María Sepúlveda, de Porto Rico, Calixta Rey, María de los Ángeles Cela e Adriana Sentmanat, todas cubanas. No texto “Quasisoneto”, de Calixta Rey, a questão da diáspora e da desterritorialização ganha relevo nas palavras da poeta:

 

Sueño velado: destierro,

ceiba que cobijas calma.

Halle reposo el viajero

solo a la sombra del ala.

 

O problema da diáspora tem marcado profunda e historicamente a vida de autores cubanos, anteriores e posteriores à Revolução comandada por Fidel Castro, daí ser o mesmo uma recorrência temática em suas obras. Nessa perspectiva, a autora do prólogo “Palabras al lector” anota ser sua intenção, a partir da reunião das várias vozes femininas constantes da “antologia”, realizar la celebración de identidades en tránsito, asumidas sin limites terriotriales y esperanzado amor que, contribuyendo a un movimiento excéntrico a partir de los propios orígenes, apuntam hacia lo que quizás un día llamaremos poética de la errancia.

No mesmo texto antes referido, Calixta Rey materializa os sentimentos de errância e orfandade, vividos pelo desterrado/exilado, tal como anunciado no prólogo: Huérfanos de la tierra amada/ sin el signo y la mandala./ De la infinita luz refractada,/ apenas la sombra del ala. Tal circunstância, ao mesmo tempo em que subtrai uma identidade original, abre portas para a afirmação de um novo rosto multifacetado e transcultural, já que No nos engane el camino/ que la errancia es partida/ pero también llegada./ Ítaca fulgura dividida/ en cien cristales de fuego./ Y solo la sombra nos salva.

A reflexão em torno da diáspora é igualmente desenvolvida no poema atribuído a Adriana Sentmanat. O poema, sem título e constituído por vinte e oito versos, é construído sem nenhum sinal de pontuação, a exceção da interrogação final. A poeta, valendo-se de um processo muito semelhante ao do fluxo de consciência, declara sua condição de exilada, de sem pátria: Son las cuatro de la noche/ de la noche despatriada/ indiferente/ inconmensurable/ en la que llegamos/ y nos vamos. Definida sua condição de expatriada, parte em busca de si mesma até perceber-se outra: otra/ desconocida/ otra/ extranjera/. A situação de exilada/desterrada configura-se, no curso do poema, como um sonho/sono no qual o sujeito lírico encontra-se aprisionado e do qual duvida poder libertar-se, como atesta a interrogação final: ¿ despertaremos, acaso? O uso da primeira pessoa do plural por parte do sujeito lírico, ao longo de todo poema, não apenas revela sua condição anímica particular, como serve de veículo para a inclusão de todos aqueles que vivenciam e compartilham a mesma situação imposta pelo exílio.

Las Otras, no âmbito do jogo ficcional que propõe, apresenta também um possível heterônimo feminino de Fernando Pessoa na figura da poeta, supostamente portuguesa, Ana Teresa Ayres. No texto apresentado como de sua autoria, Ana Tereza Ayres apropria-se da ideia do poeta como um fingidor, presente na produção poética pessoana: Locas de melancolía/ tus palabras/ fingen/ disfrazadas/ de muda sombra/ jugando a ser otras/ las de la felicidad sonora. O poema, que tem por título “Requiem”, alude, ainda, à personalidade poética proposta por Fernando Pessoa, através de seus heterônimos, ao registrar seu caráter fragmentado: Allí te descubro,/ hermano,/ de ti partido/ en una infancia sin fin. Nessa perspectiva, a heteronímia pessoana, ao se configurar pela fragmentação identitária, funciona como um espelho no qual se encontra e se mira um sujeito poético também dividido e fragmentado: a poeta emigrante, a poeta em situação de diáspora.

O exame do conjunto de textos constante de Las Otras, de Aimée G. Bolaños, revela que a poeta, a partir de um criativo jogo estabelecido com o leitor, desenvolve profunda reflexão a respeito da condição do emigrante, daquele cuja identidade se faz no trânsito entre culturas de distintas procedências e tradições. Nesse sentido, realiza um movimento que, ao se apropriar do mundo, é responsável pela afirmação do que poderia ser chamado de uma literatura transnacional e, portanto, desterritorializada. Além disso, formula, tal como anunciado no prólogo, uma poética da errância que, estabelecida na confluência entre o próprio e o alheio[4], configura-se como a expressão de significativa parcela da produção literária contemporânea.

Finalmente, por sua engenhosa arquitetura, Las Otras contempla a possibilidade de uma releitura da própria história da literatura, que passa a ser pensada não mais como um discurso de pretensão totalizadora e de caráter excludente, mas como um discurso que, a despeito de seu caráter fragmentado, mantém-se aberto ao outro. Em outras palavras, uma história da literatura que se queira nova e capaz de abarcar as questões trazidas pela contemporaneidade deve, necessariamente, abandonar o pressuposto da uniformidade identitária, para afirmar-se pelo princípio da diferença. É para esse caminho que aponta o discurso poético de Aimée Bolaños, ao realizar, sem preconceito, uma viagem em direção ao outro.

 

NOTAS 

[1] Todas as citações da obra remetem a esta edição, pelo que passaremos a indicar apenas o número da página entre parênteses, juntamente com a citação.

[2] Sobre Delfina Benigna da Cunha, consultar: SILVA, Joaquim Norberto de Sousa e. Brasileiras célebres. Rio de Janeiro: Garnier, 1862. Ver, também: CESAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1971.

[3] Jesús J. Barquet, em leitura de Las Otras chama atenção para a vinculação entre as quadras nativistas constantes do texto com a tradição da poesia hispânica, referindo explicitamente os Versos sencillos, de José Martí. V. a propósito: BARQUET, Jesús J. Las Otras, no la misma: Aimée G. Bolaños y la tra(d)ición poética femenina. Alhucema, nº 14, Granada, Espanha, 2005.

[4] A expressão “o próprio e o alheio” foi originalmente utilizada por Tânia Franco Carvalhal como título da seguinte obra de sua autoria: CARVALHAL, Tânia Franco. O próprio e o alheio. Ensaios de literatura comparada. São Leopoldo: UNISINOS, 2003.



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§ Conexão Hispânica §

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