PEDRO LASTRA | Primeira notícia sobre um livro de amor de Enrique Lihn
Há também outras razões
para reduzir a afirmação inicial. Deixa intocada esta evidência: Enrique Lihn é
conhecido nos Estados Unidos através de numerosas traduções em revistas e livros,
o último dos quais – e o mais abarcador – é The dark room and other poems,
editado por New Directions em 1978. Mas não é esse o tipo de difusão ao qual me
refiro no parágrafo anterior.
Em 1966, Enrique Lihn obteve
o prêmio Casa das Américas por Poesía de paso, um livro escrito quando era
bolsista da UNESCO. Em uma ordem parecida de acasos favoráveis, uma nova estadia
do poeta de passagem por Nova York como bolsista da Guggenheim Foundation coincidiu
com a edição antológica de New Directions. Nesse ano escreve A partir de Manhattan,
um volume com o qual a Editorial Ganymedes se associou no ano seguinte à celebração
do cinquentenário de Enrique Lihn. Os testemunhos deste sucesso do exílio interior
foram recolhidos em Derechos de autor (1981), um livro manufaturado de consideráveis
proporções, simultâneo em sua aparição e desaparição (a tiragem de oitenta exemplares
estava destinada aos amigos literários de Enrique Lihn).
Quanto às antologias, não
é fácil nomear uma que omita a presença de Enrique Lihn: os leitores avisados da
poesia hispano-americana teriam um fundado direito a dissentir de tal improvável
omissão. E entre as compilações significativas em outras línguas deve–se mencionar
aqui 16 poetas hispanoamericanos, publicada em Atenas por Rigas Kappatos
(1980).
Como narrador, o contista
de Agua de arroz (1964) retornou à prosa na década passada com novelas decididamente
experimentais, nas quais a linguagem representa a si mesma distribuindo os róis
que a tradição atribuiu aos personagens e aos acontecimentos. Define–os bem o título
da última: El arte de la palabra (1980).
Como ensaísta sobre temas
literários não somente interessam os artigos e notas que Enrique Lihn publica com
frequência na América Hispânica e nos Estados Unidos. Considero legítimo incorporar
nesta epígrafe o conversador e remeter a um livro que o confirma: minhas Conversaciones
con Enrique Lihn (1980).
A esquemática figuração
do afazer de Enrique Lihn, que tentei esboçar para os leitores de Ediciones del
Norte, deve ser completada com outras observações. Elas me são sugeridas pela própria
disposição do diário de poemas que é Al bello aparecer de este lucero. Os
dias intercambiáveis que o conformam induzem–me à anotação marginal, assistemática.
Um resumo da ideia motivada pelo diário: leitura em movimento suscitada por um conjunto
de textos que neste caso não poderá deter a materialidade do livro que o contém.
Enrique Lihn começou a familiarizar–se
com estes procedimentos desde Poesía de paso, diário de viagem ou registro
de situações que, ao verbalizar–se como respostas fragmentárias e imediatas aos
estímulos e provocações do desconhecido abriam o espaço de um paradoxal reconhecimento:
o que alcança um olhar oblíquo, distanciado e alheio, para o qual a percepção de
um lugar produz a memória do mesmo. Uma primeira volta do parafuso, na qual se revela
então uma diferença: as fascinações do viajante encobrem as tentações de uma instalação
impossível fundada em um saber negado de antemão. Porque o poeta de passagem não
conhecerá nunca os lugares de que fala: limitar-se-á a percorrê-los. Suas andanças
“dão conta bem mais de um certo desenraizar–se, que se estende à própria existência
sentida como uma viagem” (E.L., Conversaciones).
“A viagem é uma mudança
de cenário que corrobora a persistência do sujeito que viaja”, agrega Enrique Lihn.
E assim o sentimos nos variados espaços que seus livros parecem escrever, porém
nos quais surpreendemos de imediato a um sujeito que é escrito por eles, circunstância
insinuada nos títulos ao determinar as menções espaciais com certas marcas – ambíguas
– de ruptura da univocidade: Escrito en Cuba (1969); París, situación
irregular (1977); A partir de Manhattan (1979); Estación de los desamparados
(1982).
Creio que París, situación
irregular ilustra com plenitude a eficácia destes modos escriturais de Enrique Lihn
e as projeções obtidas. Carmen Foxley descreveu em sua oportunidade essa escritura
em um estudo exemplar, modestamente intitulado “Prólogo”, e ao qual deverá regressar
sem demora o leitor cuidadoso. Porque mudando o que tenha que mudar (atitude que
esse tipo de leitor sempre está disposto a assumir), advertirá que o desenho do
diário de viagem, desenhado com tanta precisão por Carmen Foxley em sua leitura
daquele livro, traça também algumas linhas aplicáveis ao desenho deste diário de
poemas. Outro desenho, desde já, porém de um sujeito igualmente “em situação irregular”
acerca do assunto que gera o discurso de Al bello aparecer de este lucero.
Resumo os avatares da escritura
de Enrique Lihn nos últimos vinte anos, tomando lá detrás a corrida.
La pieza oscura (1963) explora centralmente
“a relação entre a memória e a linguagem poética, algo assim como uma mesma atividade
que se desenvolve em planos homólogos” (E.L., Conversaciones). Em particular
o poema que dá título ao livro e os da série que se desdobra ali como uma constelação,
manifestam uma impossibilidade do sujeito remanescente ou evocador em busca de um
tempo perdido: a infância somente existe graças à memória em um presente que é o
texto. Essa viagem é ilusória: não há mais infância nem mais tempo passado do que
aqueles que produz a memória na linguagem. Comprovação sombria, mas que tem sua
contrapartida no mesmo caráter ilusório do resgate: uma forma do desejo, um desquite
contra a desventura do real.
De modo semelhante, ou melhor,
homólogo, se constitui o viajante intrépido que percorre por Poesía de paso
e os outros livros (cenários) desse gênero. Seus deslocamentos se resolvem como
desencontros que originam um discurso ante–utópico, corrosivo, crítico de si mesmo
e do contorno que registra sem a menor complacência.
Uma imagem une, para mim,
a figura desse viajante com a do personagem que fala em La musiquilla de las
pobres esferas (1969): a morte dos coribantes e o eco – agora somente um ruído
– da música a cujo som realizavam seus movimentos “descompostos e extraordinários”.
Esse ruído é o sonsonete vácuo, a lira envilecida que Waldo Rojas sentiu fluir pela
única e desvencilhada janela que acaso persiste da luminosa caverna de Blake (“Nota
preliminar” a La musiquilla…).
Al bello aparecer de este
lucero
pode ser lido como um vigamento das várias direções percorridas por Enrique Lihn
até chegar a este ponto. Mas como um vigamento não é uma soma, trata-se aqui de
uma resultante singular e extrema a respeito de alguns procedimentos postos em prática
nos livros mencionados, e não somente de poesia (tenha-se presente uma vez mais
El arte de la palabra).
Recorrências e ressonâncias
de diversas linguagens – prestigiosas e planas – sustentam a escritura de um emissor
supostamente instalado em uma segurança. Este falante crê ou simula crer enquanto
escreve sua paixão que isso e não outra coisa é a escritura. Dupla sedução: a de
um referente (possível) que o atrai até à borda de um vazio que desejaria encher,
e a de um distanciamento que o nega mediante o reenvio irônico à literatura. Daí
o jogo de intertextualidades (o título do livro procede de um poema de Fernando
de Herrera), ao qual não é alheia a obra anterior de Enrique Lihn: como um eco do
verso “uma jovem caiu, em outro mundo, a meus pés” (de La musiquilla…) surge
esta anotação em um poema presente: “essa mesma jovem a quem amei / em silêncio
há coisa de cem anos”. De maneira parecida: “Um grande amor, a pérola de seu bairro
/ rouba–lhe o coração alegremente / para com ela jogar bola” (de La pieza oscura)
prefigura ou recorda prospectivamente estes versos atuais: “O coração partido em
dois por uma mordida / palpitava melancolicamente por ti e alegre…”. Intertextualidades
reflexivas.
Ao longo do livro, o sujeito
que descreve este cortejo erótico compara sua experiência com a de outros sujeitos
textuais (desde a poesia medieval até Neruda, passando por Sade e Masoch), sem advertir
que estes sujeitos, anacronicamente, também poderiam reconhecer a sua em Al bello
aparecer de este lucero. No círculo (descentrado) que é o ato literário encenado
neste livro, o falante distancia a experiência própria remetendo-a a textos alheios
que o devolvem a ela e o inscrevem na dilatada escritura da poesia amorosa. O leitor
descobre que – como ocorre amiúde neste gênero – essa comunicação privada com uma
destinatária única dissimulada no artifício das atribuições, citações e referências
que se entrançam às vezes com o impropério, é, em última instância, a alegação de
álibi consubstancial à arte da palavra:
Tudo está feito de palavras
não te assustes: são tropos:
jactâncias de nada.
Por ti e não de ti está feito o poema.
§§§§§
|
| |
|
|
|
§ Conexão Hispânica §
Curadoria & design: Floriano Martins
ARC Edições | Agulha Revista de Cultura
Fortaleza CE Brasil 2021
Nenhum comentário:
Postar um comentário