quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

CONEXÃO HISPÂNICA | Enrique Lihn

PEDRO LASTRA | Primeira notícia sobre um livro de amor de Enrique Lihn

 


Al bello aparecer de este lucero é, em um certo sentido, um primeiro livro de Enrique Lihn. Afirmação desconcertante para seus leitores da América Hispânica que leram muitos outros do autor em seus lugares próprios, mas na qual devo insistir porque este livro é o primeiro nas condições atuais: as do ingresso deste poeta no âmbito hispano-falante dos Estados Unidos, quase outro país cujas proximidades e diferenças são sem dúvida algo mais do que a soma ou o resto das proximidades e diferenças que tornam possível o diálogo de um espaço e de um texto, em um lugar e em um tempo específicos.

Há também outras razões para reduzir a afirmação inicial. Deixa intocada esta evidência: Enrique Lihn é conhecido nos Estados Unidos através de numerosas traduções em revistas e livros, o último dos quais – e o mais abarcador – é The dark room and other poems, editado por New Directions em 1978. Mas não é esse o tipo de difusão ao qual me refiro no parágrafo anterior.

Em 1966, Enrique Lihn obteve o prêmio Casa das Américas por Poesía de paso, um livro escrito quando era bolsista da UNESCO. Em uma ordem parecida de acasos favoráveis, uma nova estadia do poeta de passagem por Nova York como bolsista da Guggenheim Foundation coincidiu com a edição antológica de New Directions. Nesse ano escreve A partir de Manhattan, um volume com o qual a Editorial Ganymedes se associou no ano seguinte à celebração do cinquentenário de Enrique Lihn. Os testemunhos deste sucesso do exílio interior foram recolhidos em Derechos de autor (1981), um livro manufaturado de consideráveis proporções, simultâneo em sua aparição e desaparição (a tiragem de oitenta exemplares estava destinada aos amigos literários de Enrique Lihn).

Quanto às antologias, não é fácil nomear uma que omita a presença de Enrique Lihn: os leitores avisados da poesia hispano-americana teriam um fundado direito a dissentir de tal improvável omissão. E entre as compilações significativas em outras línguas deve–se mencionar aqui 16 poetas hispanoamericanos, publicada em Atenas por Rigas Kappatos (1980).

Como narrador, o contista de Agua de arroz (1964) retornou à prosa na década passada com novelas decididamente experimentais, nas quais a linguagem representa a si mesma distribuindo os róis que a tradição atribuiu aos personagens e aos acontecimentos. Define–os bem o título da última: El arte de la palabra (1980).

Como ensaísta sobre temas literários não somente interessam os artigos e notas que Enrique Lihn publica com frequência na América Hispânica e nos Estados Unidos. Considero legítimo incorporar nesta epígrafe o conversador e remeter a um livro que o confirma: minhas Conversaciones con Enrique Lihn (1980).

A esquemática figuração do afazer de Enrique Lihn, que tentei esboçar para os leitores de Ediciones del Norte, deve ser completada com outras observações. Elas me são sugeridas pela própria disposição do diário de poemas que é Al bello aparecer de este lucero. Os dias intercambiáveis que o conformam induzem–me à anotação marginal, assistemática. Um resumo da ideia motivada pelo diário: leitura em movimento suscitada por um conjunto de textos que neste caso não poderá deter a materialidade do livro que o contém.

Enrique Lihn começou a familiarizar–se com estes procedimentos desde Poesía de paso, diário de viagem ou registro de situações que, ao verbalizar–se como respostas fragmentárias e imediatas aos estímulos e provocações do desconhecido abriam o espaço de um paradoxal reconhecimento: o que alcança um olhar oblíquo, distanciado e alheio, para o qual a percepção de um lugar produz a memória do mesmo. Uma primeira volta do parafuso, na qual se revela então uma diferença: as fascinações do viajante encobrem as tentações de uma instalação impossível fundada em um saber negado de antemão. Porque o poeta de passagem não conhecerá nunca os lugares de que fala: limitar-se-á a percorrê-los. Suas andanças “dão conta bem mais de um certo desenraizar–se, que se estende à própria existência sentida como uma viagem” (E.L., Conversaciones).

“A viagem é uma mudança de cenário que corrobora a persistência do sujeito que viaja”, agrega Enrique Lihn. E assim o sentimos nos variados espaços que seus livros parecem escrever, porém nos quais surpreendemos de imediato a um sujeito que é escrito por eles, circunstância insinuada nos títulos ao determinar as menções espaciais com certas marcas – ambíguas – de ruptura da univocidade: Escrito en Cuba (1969); París, situación irregular (1977); A partir de Manhattan (1979); Estación de los desamparados (1982).

Creio que París, situación irregular ilustra com plenitude a eficácia destes modos escriturais de Enrique Lihn e as projeções obtidas. Carmen Foxley descreveu em sua oportunidade essa escritura em um estudo exemplar, modestamente intitulado “Prólogo”, e ao qual deverá regressar sem demora o leitor cuidadoso. Porque mudando o que tenha que mudar (atitude que esse tipo de leitor sempre está disposto a assumir), advertirá que o desenho do diário de viagem, desenhado com tanta precisão por Carmen Foxley em sua leitura daquele livro, traça também algumas linhas aplicáveis ao desenho deste diário de poemas. Outro desenho, desde já, porém de um sujeito igualmente “em situação irregular” acerca do assunto que gera o discurso de Al bello aparecer de este lucero.

Resumo os avatares da escritura de Enrique Lihn nos últimos vinte anos, tomando lá detrás a corrida.

La pieza oscura (1963) explora centralmente “a relação entre a memória e a linguagem poética, algo assim como uma mesma atividade que se desenvolve em planos homólogos” (E.L., Conversaciones). Em particular o poema que dá título ao livro e os da série que se desdobra ali como uma constelação, manifestam uma impossibilidade do sujeito remanescente ou evocador em busca de um tempo perdido: a infância somente existe graças à memória em um presente que é o texto. Essa viagem é ilusória: não há mais infância nem mais tempo passado do que aqueles que produz a memória na linguagem. Comprovação sombria, mas que tem sua contrapartida no mesmo caráter ilusório do resgate: uma forma do desejo, um desquite contra a desventura do real.

De modo semelhante, ou melhor, homólogo, se constitui o viajante intrépido que percorre por Poesía de paso e os outros livros (cenários) desse gênero. Seus deslocamentos se resolvem como desencontros que originam um discurso ante–utópico, corrosivo, crítico de si mesmo e do contorno que registra sem a menor complacência.

Uma imagem une, para mim, a figura desse viajante com a do personagem que fala em La musiquilla de las pobres esferas (1969): a morte dos coribantes e o eco – agora somente um ruído – da música a cujo som realizavam seus movimentos “descompostos e extraordinários”. Esse ruído é o sonsonete vácuo, a lira envilecida que Waldo Rojas sentiu fluir pela única e desvencilhada janela que acaso persiste da luminosa caverna de Blake (“Nota preliminar” a La musiquilla…).

Al bello aparecer de este lucero pode ser lido como um vigamento das várias direções percorridas por Enrique Lihn até chegar a este ponto. Mas como um vigamento não é uma soma, trata-se aqui de uma resultante singular e extrema a respeito de alguns procedimentos postos em prática nos livros mencionados, e não somente de poesia (tenha-se presente uma vez mais El arte de la palabra).

Recorrências e ressonâncias de diversas linguagens – prestigiosas e planas – sustentam a escritura de um emissor supostamente instalado em uma segurança. Este falante crê ou simula crer enquanto escreve sua paixão que isso e não outra coisa é a escritura. Dupla sedução: a de um referente (possível) que o atrai até à borda de um vazio que desejaria encher, e a de um distanciamento que o nega mediante o reenvio irônico à literatura. Daí o jogo de intertextualidades (o título do livro procede de um poema de Fernando de Herrera), ao qual não é alheia a obra anterior de Enrique Lihn: como um eco do verso “uma jovem caiu, em outro mundo, a meus pés” (de La musiquilla…) surge esta anotação em um poema presente: “essa mesma jovem a quem amei / em silêncio há coisa de cem anos”. De maneira parecida: “Um grande amor, a pérola de seu bairro / rouba–lhe o coração alegremente / para com ela jogar bola” (de La pieza oscura) prefigura ou recorda prospectivamente estes versos atuais: “O coração partido em dois por uma mordida / palpitava melancolicamente por ti e alegre…”. Intertextualidades reflexivas.

Ao longo do livro, o sujeito que descreve este cortejo erótico compara sua experiência com a de outros sujeitos textuais (desde a poesia medieval até Neruda, passando por Sade e Masoch), sem advertir que estes sujeitos, anacronicamente, também poderiam reconhecer a sua em Al bello aparecer de este lucero. No círculo (descentrado) que é o ato literário encenado neste livro, o falante distancia a experiência própria remetendo-a a textos alheios que o devolvem a ela e o inscrevem na dilatada escritura da poesia amorosa. O leitor descobre que – como ocorre amiúde neste gênero – essa comunicação privada com uma destinatária única dissimulada no artifício das atribuições, citações e referências que se entrançam às vezes com o impropério, é, em última instância, a alegação de álibi consubstancial à arte da palavra:

 

Tudo está feito de palavras

não te assustes: são tropos: jactâncias de nada.

Por ti e não de ti está feito o poema.


§§§§§

 


 


 





 


 


 





 


 


 




 


 

§ Conexão Hispânica §

Curadoria & design: Floriano Martins

ARC Edições | Agulha Revista de Cultura

Fortaleza CE Brasil 2021



 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário