JOYCE LUCIANE CORREIA MUZI | Lourdes Espínola e a poesia paraguaia contemporânea
Estamos diante de uma sociedade que
ficou despedaçada após uma grande guerra na segunda metade do século XIX – na
opinião de muitos, a maior e mais triste de todos os tempos – e que só se
levantou graças à ação das mulheres, que atuaram como agricultoras,
comerciantes, industriais, enfim, que tomaram a linha de frente da sociedade
paraguaia pósguerra – os homens que restaram, um número irrisório, eram meninos
e anciãos. As mulheres paraguaias tiveram a triste empresa de ressuscitar uma
nação despedaçada. Após décadas do início deste recomeço, vemos que a força
feminina permanece. Na política, na educação, na literatura são vários os nomes
que se destacam – elas são herdeiras de uma luta coletiva pela reconstrução de
um país. É sobre a trajetória de uma dessas mulheres que já não precisa lutar
com armas que trataremos neste artigo.
1. A poesia paraguaia em foco: Lourdes Espínola
Muito
se ouve a respeito de nosso vizinho. Especialmente os que vivemos ao lado, no
Paraná, ouvimos muito sobre sua economia, seus acordos políticos, enfim, o que
a mídia nos oferece. Mas, em se tratando de nomes da literatura paraguaia,
mesmo nós, profissionais e estudantes das Letras, saberíamos citar um ou dois,
e talvez nenhum deles seja do sexo feminino.
Quando se fala de literatura paraguaia
alguns poucos nomes nos vêm à mente, ainda que seja um país vizinho – Augusto
Roa Bastos é o mais famoso deles. O que Miguel Ángel Fernández Argüello chamou
“omissões, equívocos e ocultações” acabou por determinar o que se conhece por
literatura feita no Paraguai: muito pouco, quase nada.
Infelizmente são raros os esforços em
favor dos que ainda estão entre nós. Na maioria das vezes, o esforço é um pouco
maior para recuperar e valorizar personalidades que já morreram, como é o caso
de Rafael Barrett, recuperado por Argüello (2008). O escritor, ainda que
espanhol de nascimento, foi nome importante no início do século XX como
retratista literário das agruras de um povo que foi escravizado no campo, com
sua obra El dolor paraguayo. Além dele, Argüello (2008) “recupera” o nome de
uma mulher – Carmen Soler. Segundo ele, ela teria sofrido, devido à
desinformação de alguns, a exclusão do cânone: sua poesia social e política não
teve ecos retumbantes. O valor de Carmen Soler e Rafael Barrett, na história
mais recente do Paraguai, está sendo aos poucos recuperado, entretanto outros
tantos ficaram para trás. Escritores, jornalistas, narradores, enfim, vozes de
inspiração ímpar permanecem esquecidas ou pouco lembradas. É claro que isso não
é um privilégio do Paraguai, já que isso pode acontecer em quaisquer outros
países do mundo. No entanto, aqui nos preocuparemos em trazer ao público a obra
de uma mulher de bastante força e valor literário, justamente por entendermos
como indispensável tratar de registrar os nomes contemporâneos da literatura
latino-americana.
Mar Langa Pizarro escreveu que uma das
formas de conhecer o imaginário de um povo é aproximar-se de suas expressões
artísticas. Por isso apresentamos um nome que se destaca na expressão poética
contemporânea nas terras paraguaias: Lourdes Espínola. Diplomata, professora
universitária, crítica literária e jornalista cultural, poeta, mas, antes de
tudo, mulher. E, apesar de toda formação e bagagem cultural, o que nos salta
aos olhos quando lemos um de seus poemas é o ser mulher, pela condição
declarada de voz engajada que fala de dentro da situação: é uma mulher que
viveu e vive dentro de uma sociedade que, após um longo período ditatorial e
patriarcal, que só se equilibrou graças ao trabalho das mulheres, soube se
mostrar parte de um todo que representa muito da identidade da mulher paraguaia
atual. Por meio de seu discurso literário e crítico, Lourdes Espínola demonstra
sua consciência histórica da condição da mulher durante os anos de
reestabelecimento do país, após sua derrota na Guerra da Tríplice Aliança até
os dias atuais, estabelecendo-se como um nome que merece ser lembrado.
A trajetória de vida assim como da
poesia de Lourdes Espínola é bastante interessante e nos incita a questionar:
quantos e quantas estarão também “escondidos” dos holofotes, ofuscados e
velados, longe dos olhos dos grandes públicos?
Lourdes Espínola nasceu em Assunção em 9
de fevereiro de 1954. Formou-se em Odontologia, Biologia e Letras, além de ter
obtido vários títulos em instituições nos Estados Unidos e Europa. Ainda que
sua formação surpreenda pelo número de títulos obtidos (vários “Masters”, que
correspondem ao nosso Mestrado, e Doutoramentos), o que chama atenção em sua
obra é a simplicidade de expressão de seu ser mulher e da sua necessidade de
exprimir-se pela poesia: “Y ser y no. Ser mujer,/ con manuscritos de
internas visiones/ nombrando la experiencia.” [1] E essa
experiência vemos refletida no uso dos símbolos que ela naturalmente empresta
da biologia, sua primeira formação. Seria esta a explicação para sua atração
por corpos que veremos em sua produção mais recente? Atrevemo-nos a dizer que
não.
Filha de Elsa Wiezell, também poeta,
Lourdes começou sua trajetória cedo, escrevendo ensaios e contos sobre aspectos
sociais, direitos humanos e a situação da mulher, mas foi com a poesia que
encontrou seu ponto alto. Em 1973 ela lança o livro de poemas Visión del
Arcángel en once puertas, inspirado na inefável A Divina Comédia, de Dante
Alighieri. Segundo a própria autora, sua preocupação era pela forma e cada
porta vai representar “[…] una diferente devastación social y humana que se
abre, casi como un paralelo a los círculos del infierno de Dante” (ESPÍNOLA,
2004). O Arcanjo: o poeta humano e espiritual. Nos versos finais:
Es necesario que me envuelva,
Que me entregue al abismo
De ilimitado horizonte
Ajeno como la lluvia,
Volcán enmarañado y transparente.
Importa servir,
De último y mutilado estandarte…
Para comprender,
La callada, perfecta y cerrada,
Redondez
de las lágrimas.
Não é possível ler seus poemas sem
considerar que as imagens e os símbolos têm presença constante. Nesse sentido
interessam-nos algumas considerações. Para Alfredo Bosi é próprio da poesia a
capacidade de suscitar imagens, que mantêm relação com a sensação visual. Para
o autor “A imagem nunca é um ‘elemento’: tem um passado que a constitui; e um
presente que a mantém viva e que permite a sua recorrência” (BOSI, 1990). Além
disso, para ele a imagem é resultado de forças instintivas transformadas.
Interessa-nos o seu questionamento: “O que é uma imagem-no-poema? Já não é,
evidentemente, um ícone do objeto que se fixou na retina; nem um fantasma
produzido na hora do devaneio: é uma palavra articulada” (BOSI, 1990). Esta
palavra recupera elementos essenciais à significação – os símbolos, e sua
função simbólica (CIRLOT, 2007). No dicionário, símbolo aparece como aquilo
que, por princípio de analogia, representa ou substitui algo ou ainda aquilo
que evoca, representa ou mesmo substitui algo vago ou mesmo ausente (FERREIRA,
1999). Juan-Eduardo Cirlot (2005) nos sugere que os símbolos não se encontram
isolados, eles buscam unir-se, e representam de tal maneira aquilo que o/a
poeta busca exprimir que chegam a criar uma mitologia. É nesse sentido que
podemos tratar a obra de Lourdes Espínola como um emaranhado de símbolos que
apontam para sentidos em torno do seu ser mulher no mundo, como mulher,
escritora, representante de uma geração oriunda de lutas e mudanças em todos os
âmbitos.
Com base no exposto, podemos citar o
segundo livro da poeta. Em Monocorde
amarillo (1976), os símbolos são mais fortes que no primeiro e já
transmitem o que está por vir. Um poema longo, dividido dessa vez em acordes
para tratar da criação – um só Criador, representado pelo Monocorde, e o Sol,
astro máximo que gera a vida. A referência ao sol, nas palavras de Diel (apud
CIRLOT, 2007), recupera o espiritual, já tratado nas referências à tríade
dantesca, e o intuitivo e com isso aquilo ela pretende fazer com que voltemos
nosso olhar para um determinado lugar e vejamos possibilidades: “Para que
nazcas y renazcas para volver a conocer”, [2]
“Apúrate, no hay tiempo […]”, [3]
num esforço em abrir nossos olhos, ouvidos, corpos para os acordes de sua
poesia.
Também em seu terceiro livro, de um ano
depois, Almenas del Silencio, ela
está preocupada com o ser e a essência. Para tratar do tema, divide o livro em
quatro partes: Conhecimento, Descobrimento, Criação, Verbo. Segundo a autora,
neste começará a desenvolver uma combinação que chegará até os livros mais
recentes: a paixão e o ofício de escrever.
Acepto como don natural
Esa coordenada de imágenes.
Esta desaforada
Rima verbal de símbolos de verso.
Este desenfreno de nacer jadeante
En la inutilidad de lo bellamente sonoro.
En la transfiguración
Del absurdo de vida
Por creer aún
Que vale la pena ser poeta.
As imagens lhe surgem naturalmente num
dos momentos mais “metalinguísticos” de sua produção poética.
Em 1985 acontece um fato bastante
importante em sua trajetória – seu livro seguinte sai em edição bilíngue nos
Estados Unidos: Ser mulher y otras desventuras/womanhood and other misfortunes.
Esse é um livro importante porque neste momento sua voz começa a se configurar.
Ela diz sentir “[…] el encuentro de una voz muy propia y personal”
(ESPÍNOLA, 2004). Sua
perspectiva vai sofrer modificações, já que não está em sua terra natal quando
o escreve, e essa distância, cultural e linguística, transforma sua escritura;
ela fala de limpeza, ficar com o essencial, não se deixar levar pela forma
(ESPÍNOLA, 2004). É um momento decisivo, pois ela descobre um território seguro
ao qual ela pode recorrer em todos os momentos: o corpo. Neste momento a
simbologia ligada ao corpo e seu aspecto externo, representado pelas
vestimentas, ou seu aspecto fisiológico, representado por exemplo pelos tímpanos
e pela boca, vão se cruzar e se unir para que as imagens surtam um efeito de
unidade do corpo de uma mulher (o interno e o externo).
O estar longe de casa, o encontrar-se em
si mesma e o contato com o pensamento feminista dos anos 80 serão elementos
essenciais para a seleção dos símbolos nessa nova fase. Além disso, sua
preocupação se voltará para destacar-se como parte de uma cultura marcadamente
feminina:
La alternativa:
Saltar del balcón, despedazarlo.
Faldas, abanico, hilo, aguja:
Me desnudo y rebelo.
¡Basta de mirar la vida
desde este balcón!
Cárcel
semicircular
Tímpano
sordo, sorda boca
Digo y grito
Del solitario oficio de escribir.
Manuscrito de internas visiones
Espejos de mujer abriéndose.
Nazco Rompiendo venenosos manantiales.
Delmira
A Delmira Agustini
Contradicción o ser mujer
Es todo uno,
Arder
Fingir pudor
Callar, cantar
Adorar el propio cuerpo
Engañarlo con trajes
Potes, perfumes y artificios
Todo envuelto en la pretendida modestia.
(…) [4]
Percebe-se que ela aproveita o momento
para desgarrar-se, para sair de um estado de letargia e assumir o controle de
suas ações – e escrevendo ela estaria renascendo, e nesse sentido ela
representa outras mulheres. É o que sugere Sharon Keefe Ugalde, crítica
norteamericana responsável pelo prólogo desse livro: “Muchos poemas están
enraizados, no en las circunstancias de la historia individual de la existencia
de la poeta, sino en la situación colectiva de la mujer en una sociedad
dominada por el hombre” (ESPÍNOLA, 2004). O
destaque da crítica vai para o seu engajamento e para o silêncio da poeta:
silêncio que ilustra anos de silenciamento de milhares de mulheres.
Ser mulher e outras desventuras é
sinônimo de descobrir-se dentro de si própria como um novo ser, uma nova
mulher, já que a anterior não serve mais:
Romper la antigua coraza
Y poder en toda la expresión de mi presencia
Desgarrar las viejas vestiduras
Y ver el propio yo desnudo
El cascarón de inutilidad abierto
Tan amado por todos
Y de mí tan odiado.
A temática é retomada no livro de 1986 –
Tímpano y Silencio: o conflito entre
o que ela é e o que ela parece ser. Os símbolos emprestados da natureza de novo
lhe servem para criar as imagens: “Desde el útero grito”, “Con pequeñas uñas
trate / De rasgar el útero, / Desbordar el agua protectora y tibia”. Segundo
Cirlot (2005) nestes versos podemos ver uma série: uma combinação que objetiva
“uma mitologia que tende para o símbolo principal”, que neste caso é o corpo
feminino. Útero, unhas, “água” que protege o feto representam o corpo feminino.
Essa representação do útero, como espaço de falsa proteção que se pretende por
analogia do universo doméstico reservado às mulheres, é derivada de sua
influência do feminismo francês. É possível encontrarmos alguns poemas, dentre
os seus quase 50, que remetem a conceitos de O segundo sexo de Simone de Beauvoir.
Outro símbolo importante nessa obra é o
espelho. Segundo Cirlot (2005), tal como a água que pode refletir imagens,
assim como no mito de Narciso, pelo espelho é possível que se veja um reflexo
de uma mulher que por ser mulher, durante centenas de anos, foi representada
pelo olhar do outro. A mulher representada seria uma imagem “[…] afogada y
amortajada con igualdad escondida desde siglos” (ESPÍNOLA, 2004).
Já nos anos 90, Lourdes lança Partidas y Regresos que tem o privilégio
de ser prologado por Augusto Roa Bastos, que diz:
De esta ausencia-presencia brota la melodía vital y
elegíaca de estos poemas. Acaso el triunfo de lo erótico en esta poesía lúcida
y despojada consiste en afirmarse en la deseada como imposible conciencia de
eternidad de lo efímero. Hacer voz y canción del amor que resucita su propia
resurrección a cada partida, a cada regreso (ESPÍNOLA, 2004).
Seu compromisso com a poesia se pode
notar em trechos como:
Mi destino está echado,
Cartas lanzadas, marcadas, determinan
Y todo apunto a lo irreversible
Del cual no se regresa.
Lo que me cura, me envenena;
Lo que me alimenta, me drena.
En círculos de fuego
Me regalas, soledad, silencio,
Noches desveladas, angustiosas
Y calma de fiel bálsamo a mis manos.
Mi destino está en ti
Marcado por tu verbo:
Escribo, luego existo. [5]
E o espelho reaparece para construir uma
nova imagem; ao lado de máscaras que, ao contrário do espelho que revela,
escondem, camuflam, escamoteiam – real e irreal, claro e escuro, aquilo que ela
imagina e o que ela esconde, frente a frente:
Hay máscaras y espejos,
Máscaras para el amante de paso
Que deseamos no se quede,
Máscaras que dan poder
Y nos defienden.
Pero están los espejos
Que devuelven al otro en el salto,
Espejos para el amor esperanzado
Y para ocultar la muerte. [6]
Em La
estrategia del caracol, de 1995, os símbolos continuam a ser evocados;
permanecem numa linha mais imaginativa e contemplativa, daquilo que Rubén
Bareiro Saguier, no Prólogo, vai chamar de “dimensión de la plenitud
femenina”:
Siempre dije […] que Lourdes es una de nuestras escritoras
que, en forma coherente, asume la feminidad, no como reivindicación feminista -
o no solamente -, sino como una manifestación sincera del impulso amoroso, del
fuego sensual, trasvasados con honda y precisa intensidad en su poesía (ESPÍNOLA,
1995).
Mas sua força se faz mais presente
quando utiliza elementos como em “Y ellos estaban también allí”, em que sua voz
é a voz de vários ao mesmo tempo. Seu discurso está mais dinâmico, com imagens
que se complementam, como flashes de um filme só. Um encadeamento invocado pela
imagem de um caracol, cuja representação remete a uma espiral, que para Bosi
(1977) representa a regularidade de um poema, e Lourdes Espínola utiliza para
chamar atenção a um tema central para o qual se volta: a mulher.
A presença de títulos, fato inusual,
está neste campo semântico: “Escribo letra de mujer”, “Escribo vida de mujer”,
“Ser mujer”, “Destino de Poeta”, “Soy mujer, desobedezco”.
O livro que sairá dois anos depois já é
o oitavo de sua trajetória. Também em edição bilíngue, mas agora em
espanhol/francês Encre de femme/Tinta de
mujer. Lourdes adentra a Europa “pela porta da frente”. [7]
Palavras
del Cuerpo, de 2001,
traz como símbolo a água que, por seu caráter natural circular indo do céu à
terra via precipitação (CIRLOT, 2005), serve tanto para sugerir movimento como
a umidade aos corpos – corpos de homens e de mulheres apaixonados. Essa
representação e seu tom passional podem ser vistos nos versos abaixo:
Me desnudé entera
ante tu espejo, reflejo de universo,
me recibió
tu humedad, la blanda forma de amoldarte a mi cuerpo
[…]
No necesitaste desnudarte,
Lo estabas desde siempre,
Los lagos nos preceden a las hembras,
Están allí esperando
Ser penetrados
Y que nos sumerjamos. [8]
Para o professor Marini Palmieri, o
simbolismo explorado pela poeta põe em destaque “el rito místico que reúne Eros
y poesia […]” (MARINI apud ESPÍNOLA, 2004).
Ainda que de maneira breve, evidencia-se
que sua trajetória já pode ser chamada longa. Poderíamos resumi-la com duas
palavras: verdade e força. A verdade se manifesta a partir dos símbolos que são
capazes de despertar comoção. Mais do que representações, são traduções de tudo
o que nos rodeia silenciosamente. A força dos elementos utilizados podemos
encontrar em textos como “La vida es una metáfora”, em que um certo pessimismo
tenta emergir, mas que acaba sufocado por um cenário de segurança: “[…] vuelvo
al mapa seguro de tu mano”. [9]
Ainda citaremos um último título que
acreditamos ser o fechamento de um ciclo. Em As núpcias silenciosas (2006),
surge a força a que nos referimos; neste a poeta apresenta uma coletânea de
seus símbolos cada vez mais sutis e mais instigantes. O livro, em edição
portuguesa, está estruturado a partir do título de cinco de seus livros
anteriores: Ser mulher e outras desventuras, Tímpano e silêncio, Partidas e
regressos, A estratégia do caracol e As palavras do corpo.
É um retorno a todas as imagens já
exploradas. Mas não é um mero dizer de novo: é fazer-se mais forte pela
repetição e a possibilidade de dar impulso novamente à comoção. Toda sua obra
aponta para uma divisão em dois que sempre esteve em seus textos: a
representação de dicotomias (partidas e regressos, a linearidade e o
“caracol”), a representação dos corpos por dentro e por fora, realidade e
ilusão, espelhos e máscaras e metapoesia.
DE COMO AS MULHERES ESCREVEM POEMAS
ERÓTICOS
Se
escrevesse um poema sobre nós,
seria
censurada.
Deixa-me
então contar-te
como
o junco se faz cana
e
espalha lá dentro o seu mel oculto.
Ou
falar-te daquela orquídea violeta
de
pétalas e pétalas que navegam em seiva,
ou
de como ela se abre
e
entram estrelas
que
iluminam o sangue,
esse
que estava adormecido.
E
de como os olhos bebem
o
dicionário todo.
Mas
façamos um contrato:
a
ninguém o contemos
para
que este poema não morra censurado.
I
A
viagem da minha vida:
suficientemente
fechada
para
me proteger,
suficientemente
porosa
para
que tu penetres…
II
A
minha roupa virada do avesso,
com
as costuras à mostra:
pequenas
cicatrizes do meu corpo.
Procurar
equilibrar um anjo
nas
tuas longas pernas,
é
assim que me tens…
e
manténs.
III
A
lua foi um presente poeirento
–
perfeito e único –
que
tinha que devolver no dia seguinte:
dependurei-a,
pontual,
polida,
clara,
dançando
na ponta dum fio transparente.
Este último poema é um exemplo de como
seus poemas representam a poesia paraguaia contemporânea. O que nos reserva sua
obra: restaurar a literatura – é disso que precisamos. E se ainda restar uma
última pergunta a respeito do símbolo mais evocado por ela: por que falar do
corpo a partir de seu próprio corpo? A resposta pode ser dada por Carla Fernandes,
professora e crítica francesa:
El punto de confluencia entre la teoría y la estética
inherentes a la obra de Lourdes Espínola es el cuerpo, este espacio todavía no
contaminado por la estética patriarcal. En ambos elementos radica la base
social y comprometida de su poesía que se transforma en estética y poética de
la creación, de la producción en verso mediante una reapropiación del cuerpo.
Los medios de dominación (que tienen siempre que ver con el cuerpo femenino)
pasan a ser en su obra medios de expresión (FERNÁNDES apud
ESPÍNOLA, 2004).
Este espaço ora dominado por outrem é
reapropriado e ressurge como espaço de manifestação criativa e única de
milhares de silenciadas, pela veia poética e criativa de Lourdes Espínola.
Algumas
considerações
É
interessante que tenhamos a oportunidade de conhecer a obra da poeta paraguaia
Lourdes Espínola, já que muito pouco da literatura daquele país chega até nós.
Entendemos que muitos dos sentimentos expressos em seus versos representam mais
do que sentimentos individuais. Ela própria, quando questionada a respeito de
sua regionalidade, assume manter a capital Assunção e o país em muitos de seus
poemas e especialmente em seu coração, mas ela está aberta ao universal – quer
representar muito mais e alcançar outros corações além dos paraguaios: “a minha
poesia é extra-territorial, universal”. [10]
Já é possível encontrar em sites
destinados à divulgação da poesia ibero-americana ou latino-americana inúmeros
poemas da autora, bem como breves biografias para justificar sua trajetória
literária.
Atualmente, além de catedrática na
Universidad del Norte, uma das instituições privadas mais conceituadas do
Paraguai, com sede em Assunção, ela é correspondente da revista Nuestra
América, presidenta da Escritoras Paraguaias Associadas (EPA), e membro da
Comissão Nacional Bicentenário.
Por fim, destacamos
as palabras de Heléne Cixous, importante nome da literatura feminista, para
quem “La mujer debe inscribirse, debe escribir acerca de la mujer y traer a la
mujer a la escritura, de donde le han echado tan violentamente como de su
propio cuerpo” (CIXOUS apud ESPÍNOLA, 2004). Nesse momento esperamos ter cumprido esse papel de tratar
da escritura de uma mulher que ao propagar suas ideias e pensamentos revela sua
imensidão íntima e busca representar ideias e pensamentos de muitas outras
mulheres, sejam quais forem suas nacionalidades.
NOTAS
1. Do
poema In Memorian
a Sor Juana Inés de la Cruz.
2. Do poema Monocorde, 1976.
3. Do poema Acorde segundo, 1976.
4. Do poema Nacer mujer-poeta, 1985.
5. Do poema Poesía, 1990.
6. Do poema Hay máscaras y
espejos, 1990.
7. Ela afirma que
esta foi uma grande entrada “por la puerta grande” (ESPÍNOLA, 2004).
8. Do poema Me desnudé entera, 2001.
9. Do poema El dolor es un mal
pasajero, 1995.
10. Em entrevista à Inês
Braga da Universidade Fernando Pessoa em Portugal, ela assume que quer que sua
obra permaneça, por acreditar que “a palavra sobrevive ao poeta” (Partidas y regresos, 1990).
REFERÊNCIAS
ARGÜELLO, Miguel Ángel. Ocultaciones,
omisiones y equívocos en la historia de la literatura paraguaya. Raído, Dourados, MS, v. 2, n. 3, p.
53-64, jan./jun. 2008.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo:
Cultrix; Ed. USP, 1977.
CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo:
Centauro, 2005.
ESPÍNOLA, Lourdes. Monocorde amarillo.
Ocara Poty Cue Mí: Asunción, 1976.
____. As núpcias silenciosas. Seleção e tradução de Albano Martins. Vila
Nova de Famalicão – PT : Edições Quasi, 2006.
____. Encre de Femme/Tinta de Mujer. Paris: Indigo
Editions, 1997.
____. La estrategia del caracol.
Asunción: Arandurá Editorial, 1995.
____. Las palabras del cuerpo.
BAY, Carmen Alemany; JUAN, Eva Maria Valero (Ed.). In: CONGRESO INTERNACIONAL
DEL CELCIRP, 9, Río de la Plata 29, 30. Actas…
Relaciones culturales y literarias entre los países del Río de la Plata.
Universidad de Alicante, 2004. p. 605-620.
____. Les Mots du Corps/Las Palabras
del Cuerpo. Paris: Indigo Cote Femmes, 2001.
____. Ser mujer y otras
desventuras/Womanhood and Other Misfortunes. EUA: Latitudes Press, U.S.A., 1985.
FERREIRA, Aurélio Buarque
de H. Novo Dicionário Aurélio Digital.
[S.l.] : Nova Fronteira, 1999.
PIZARRO, Mar Langa. La imagen del Paraguay a través
de sus escritores. BAY, Carmen Alemany; JUAN, Eva Maria Valero (Ed.). CONGRESO
INTERNACIONAL DEL CELCIRP, 9, RÍO DE LA PLATa 29, 30. Actas del … Relaciones culturales y literarias entre los países del Río
de la Plata. Universidad
de Alicante, 2004.
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