segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

CONEXÃO HISPÂNICA | Manuel Ramos Otero

JOSÉ LUIS VEGA | Manuel Ramos Otero: a urna cinerária

 


Uma das escassas conversas que mantive com Manuel Ramos Otero teve lugar na cafeteria de um hotel de Rutgers em uma dessas ocasiões quase folclóricas em que os porto-riquenhos nos reunimos para falar de nossa identidade graças aos fundos aportados pelo império. A perguntas suas disse que não, que não escrevia contos e, mais ainda, que pensava que ser poeta e ser narrador requeria estruturas mensais muito diversas. Manuel argumentou contrariamente à minha opinião. Então entendi que tínhamos duas concepções muito diferentes da poesia e, em geral, da literatura. E com efeito, falar da poesia de Ramos Otero resulta um tanto arbitrário pois se trata de um autor que questionou profundamente a noção tradicional de gênero literário. Sua poesia transborda o leito do vero e irrompe, com maior ou menor fortuna, no território de uma prosa narrativa invadida também pelas formas da escritura ensaística. Agora me limito, no entanto, a falar da poesia em um sentido mais estrito e formal, entendendo-a como a língua do verso.

Manuel Ramos Otero nos legou dois livros de poemas: El libro de la muerte, publicado em 1985, e Invitación al polvo, que apareceu postumamente, em 1991. Embora seja certo que ninguém concede a Manuel Ramos Otero um lugar notável na promoção de contistas que surge em Porto Rico ali pela década de 70, a verdade é que El libro de la muerte, por si só, não lhe assegurava um posto semelhante entre os poetas do mesmo período. Invitación al polvo, no entanto, o converte em um poeta destacado. Em suas páginas encontramos alguns dos poemas mais belos e comovedores da recente poesia porto-riquenha.

A poesia de Manuel Ramos Otero poderia ser catalogada como um discurso lírico-dramático de amor, morte e solidão. Nestes poemas, a solidão é a consequência de um amor sempre precário e fugaz cujas implicações sentimentais nunca estão em harmonia com a agressividade ideológica e moral de seu discurso. Se, como expressão ideológica, esta poesia é uma vigorosa reivindicação dos direitos amatórios da homossexualidade, como voz pessoal é quase sempre a comunicação dolorida e melodramática de uma pena de amor fundada na precariedade da experiência amorosa e no abandono da amante. O poeta assume a solidão como a condição de sua voz; fala a partir da solidão, recorda e recrimina, com nostalgia, um amor já fracassado. Também a partir da solidão pratica uma figuração da morte. Na poesia de Ramos Otero, a morte ocupa duas dimensões fundamentais: é, por um lado, a metáfora do amor defunto; mas é também certeza literal, pressentimento e anunciação.

Em El libro da la muerte, o falante solitário se instala em uma casa de balaústres frente ao mar da rua Norzagaray e a partir dali contempla os cortejos fúnebres e carnavalescos que se dirigem ao cemitério de mármore italiano da Velha San Juan. Nessa sacada da Norzagaray, o poeta encarna uma Penélope que aguarda pelo regresso de Ulisses enquanto tece em suas veias a heroína do poema. Ou em Tsuchigumo, o japonês coxo e suicida que comparece a seu próprio enterro vestido com um kimono de bromélias. Ou na Mulher do Mar, a mítica Clara Gardenia Otero do conto homônimo. Ou no vampiro Nechodoma que ama a estátua de Palmira Parés em pleno panteão. São máscaras do poeta que compartilham o espaço carnavalizado de um texto que celebra, ante a ausência do amor, a metáfora da morte. Por isso Tsuchigumo é o marido de sua imagem.

El libro de la muerte está organizado em torno do binômio recorrente da morte e da vida. O movimento cíclico de ambos extremos gera versos como: “Tsuchigumo morreu novamente à tarde” ou “Estou a um ano exato de minha primeira morte” ou “Por vezes me enterrando em diferentes tumbas”. Essas ressurreições não remetem, no entanto, à morte alegre do carnaval, mas sim a uma visão desolada do amor; evento irremediavelmente finito e falido que ressuscita sem castigo após cada desencanto. Assim entendidos, Eros e Morte são os protagonistas da poesia de Ramos Otero. Da cópula desta parelha semântica nascem expressões como: “…vão crescendo tumbas no leito” ou “queimando-se o que manda seu sêmen sobre o féretro” ou “meu noivo não retornou de sua tumba”. A parelha de Eros e Morte também fundamenta o imaginário grotesco do livro que se manifesta em enterros festivos, macabras festas patronais, danças mortuárias e cenas funéreas. No entanto, a dissimulação, a teatralização e o contínuo disfarce do discurso lírico em El libro de la muerte conduz a uma escritura, senão hermética, ao menos de muito difícil leitura e, talvez, pouco gratificante para muitos leitores.

Invitación ao polvo, obra póstuma de Ramos Otero, surpreende de maneira muito distinta. Mesmo que a coerência deste livro se articule sobre os mesmos elementos de Amor, Morte e Solidão que sustentam o anterior, os procedimentos expressivos e os conteúdos semânticos em um e outro livro variam significativamente. Invitación al polvo está estruturado de conformidade com duas vertentes do significado da palavra polvo, a que remete ao destino da carne após a morte e, em sua acepção popular, a que remete ao coito. Resulta então atinado o emprego, à maneira de epígrafe, do terceto final do famoso soneto de Quevedo: “Seu corpo deixará, não seu cuidado; / serão cinza, mas terá sentido; / pó serão, porém pó enamorado.”

A primeira parte do livro se intitula, precisamente, De polvo enamorado. Integram-na vinte e nove poemas que contam e cantam uma história de amor. Os detalhes, ainda que dispersos, são explícitos: é a história do amor entre o emissor do texto, um poeta porto-riquenho, e o receptor da mensagem poética, um pintor (de paredes) cubano, chamado José. Trata-se do clássico esquema comunicativo da poesia amorosa onde um emissor apaixonado celebra a plenitude da experiência erótica passada, reflete sobre a cruel natureza do amor e recrimina ao receptor seu abandono. Este esquema clássico, no entanto, subverte-se pela condição homossexual dos protagonistas.

A história de amor se apoia na alegoria antilhana configurada pela décima de Lola Rodríguez de Tió que começa: “Cuba e Porto Rico são de um pássaro as duas asas”; apoia-se também em um texto epígrafe de Luis Cernuda: “…unidos vais, / formando um único ser de dois impulsos, / como o pássaro feito por suas asas”. O primeiro poema do livro inaugura a alegoria com estes versos: “Cuba e Porto Rico são / as duas efêmeras asas do anjo do amor. / Cuba e Porto Rico são / dois homens suados exilados ao sol. / Cuba é todo infância / todo sonho do que já não é. / Porto Rico é o barco sempre ancorado ao contrário”. A metonímia converte os amantes em Antilhas, a metáfora transforma seus corpos em ilhas, suas vidas em veleiros, sua existência em mar, seu amor em périplo e seu fracasso em naufrágio. Um fundo de boleros tropicais musicaliza a história de orlas melodramáticas: “…Éramos boleristas do mesmo ardil: vereda tropical / e névoa do riacho, um desvelo de amor sob / Vênus, ondas e areias de uma nave sem rumo, beijos / de fogo para uma canção desesperada, eu era uma / flor e tu meu próprio eu. Com lágrimas de sangue / quis escrever a história que agora escrevo com / sangue, com tinta de sangue do coração…”

O poeta apresenta-se como um gozoso reincidente na cruel experiência do amor: “Torno a cantar – diz – deixando para trás a morte / somando-me à horrível ternura do amor”… Assim inaugura, outra vez, o ciclo fatal, o trânsito até a metáfora da morte do amor ou, como diz o poeta lindamente, o lento funeral da fortuna. Em um verso conceituoso, que é um dos melhores do livro, o falante abandonado se indaga, referindo-se aos estragos espirituais que o amor produz no indivíduo: “Por que é que alguém se perde para ir de dois em dois…?” Já conhecemos as conotações morais, escatológicas e sentimentais do verbo perder-se em espanhol. Este perder-se, no entanto, somente acontece no plano do estritamente pessoal. No plano, digamos, ideológico e social, o poeta entende que a prática do proibido pela maioria moral não é uma perda, mas sim uma ganância da liberdade humana. Assim, no poema 25, um dos melhores do livro, distingue claramente entre seu discurso e o da normalidade moral que cataloga o homossexualismo como traição à família, loucura antinatural e violação das leis divinas. Em outra parte, o emissor recrimina ao receptor sua falta de valor para viver desveladamente:

 

Onde vais, havanense, vestido de anjo sincero?

[…]

 

Tens mais cara de aguaceiro do que ganas de livre voo

e mais de operário conformado do que de emplumado guerreiro.

Qual liberdade arrebata tua pomba da paz, se ser

um pato selvagem não é digno de teu disfarce? Para onde

vais, havanense, que a vida não é o mar nem tua vida é

um veleiro? Que mais vale para mim ser barquinho de valeta

do que ser metal de cata-vento fugindo de sua própria sombra.

Ser homem não é vestimenta nem gesto que se elabora

porque o ser não se evapora com o que diz a gente.

[…]

 

Este livro, portanto, reitera o duplo testemunho de um discurso moralmente agressivo misturado com um intimismo confessional e dolorido. Porém é, precisamente, a construção desse falante sofredor e contraditório o que salva esta poesia do discurso leviano e panfletário de muita literatura que assume, por ofício de moda, a defesa da marginalidade.

Digo construção para destacar o caráter de artifício literário, de máscara, do falante sofredor e abandonado na poesia de Ramos Otero. No poema intitulado “La caixa chinesa” o falante se refere a seus sucessivos amantes e imagina o amor como um sistema de caixas em cujo receptáculo final “vive, escreve e sonha / um escaravelho cínico, o monólogo da solidão. / …” Esse escaravelho é o poeta, mais exatamente, o personagem que o poeta já se sabe de memória: “o solitário / o desamado / o venenoso escorpião / que suga em sua peçonha / o jugo magistral de seu teatro.” A consciência da escritura – com suas múltiplas máscaras e seus gestos teatrais – é o único remédio para a solidão: “Amar-te apenas me envenena / antídoto de luz é minha poesia”. O discurso poético põe em cena um espaço utópico onde o amor alcança, finalmente, a perfeição e onde os prejuízos sociais não prevalecem: “Quando tiveres ido sem cheia nem bolero / quando regressares ao silêncio de outra sinfonia / quando te tornares um homem de papel / um espírito apanhado no poema / …recordaremos o que nunca ocorreu / nos amaremos como nunca nos amamos / remexeremos em tumbas de tristezas / até encontrarmos a liberdade intacta / para que o tempo restaure o perdido.” A poesia é a urna cinerária do amor e a casa da fênix.

Por este caminho, Ramos Otero chega à revalorização das formas poéticas tradicionais. Surpreende gratamente descobrir que em seu último livro o romance tropical dos amantes está contato, em boa parte, em fluidos octossílabos rimados que o poeta dissimula com hemistíquios e enjambement. Além do mais, o espaço fechado do soneto, escrito com fortuna vária e com ressonâncias clássicas, serve de cripta e mortalha aos ossos do amor. O número 29 de Invitación al polvo é, conforme meu gosto particular, o melhor poema escrito por Ramos Otero. É um poema de plenitude e madurez, monólogo do solitário que discorre pelas ruas de Nova York e da memória em busca do amante e do sentido. Este último o encontra, não no amor, mas sim na escritura e na prova irrefutável do poema: “O presente é perfeito. – diz o final do poema – É tudo o que tens. / descobriste a ponte que dá sentido ao tempo / que pensavas perdido. A prova é o poema / que escreveste.” É um poema de contidos versos livres que fluem moderados pela precisão sintática. Este retorno aos módulos rítmicos tradicionais é duplamente significativo em um escritor que por ocasiões vangloriou-se do desenfreio expressivo e da anarquia formal. Parece-me que se trata de um reconhecimento do rigor específico da poesia. Ao final de sua carreira literária, Manuel Ramos Otero quis declarar-se, antes de tudo, poeta.

Em La víspera del polvo, segunda parte do livro póstumo, o signo da morte sofre uma transformação dramática. A morte perde seu anterior sentido figurado. Já não se trata da metáfora do amor defunto, mas sim de um signo inaugural que, marcado pela enfermidade, expressa o espanto dariano de amanhã estar morto. Entre os treze poemas que conformam esta seção do livro há alguns verdadeiramente comovedores, escritos a partir da terrível lucidez da iminência de uma morte que chega pelo correio: “Esta manhã chegaram os resultados / de minha morte e ainda não abro / o envelope (o ataúde, deveria dizer).” Ramos Otero assume a consciência da literalidade da morte antes e sobretudo como escritor: “Os escritores – diz – morremos todos / em um féretro de carvalho forrado / de tela, como um museu de fumaça / habitado por dragões de papel / com rosto de bicha caribenha”. A morte, além do temor a uma insônia infinita ou à possibilidade de uma viagem a uma superpopulação do quarto mundo, significa o máximo de consciência possível para o escritor. A morte é agora o signo final e contagioso, símil cósmico inscrito desde sempre na constelação de Câncer. A partir de sua certeza, o poeta escreve suas cartas finais cabais aos amigos e, sobretudo, essa comovente missiva a Deus que é o poema “Nobreza de sangue”, cuja ironia de conteúdo subverte os ecos da “Oração por Marylin Monroe”, de Ernesto Cardenal. Também a partir dessa certeza o poeta assume a representação em sua própria carne das mais escarnecidas minorias: os drogados, os homossexuais, os heterossexuais da África Central, os pacientes de AIDS. A consciência da morte é a situação limite que permite ao escritor, ao homem de papel que não é leviano, reafirmar-se no credo estético e moral que animou sua escritura: “Quero que saibam que estou desorbitado, / que sempre sigo sentado no balcão do sonho / cuspindo no deus da pureza…” Morrer como escritor entranha também um acerto de contas com o leitor e a visão da posteridade através da poesia: “Que mais querem de mim senão este livro aberto / que a todos assegura o clímax de seus penas” … É também a ocasião de prever com lucidez irônica as homenagens póstumas: “Na próxima terça-feira vou de viagem. / Não é necessário falar de mal agouro. / Regresso ao pão, ao mar e ao aguaceiro. / Para umedecer com pós minha homenagem.” “…Eu que provei as uvas negras do delírio / … jamais pensei em chegar ao templo roído / dos bons costumes, nem à glória de andar / de boca em boca apodrecido e respeitado por jograis / que alteram a seu capricho o melodrama.”

Em vida e em verso Manuel Ramos Otero trabalhou na fundação de um cemitério de poetas, um Hades textual povoado pelos escritores que lhe foram afins. Em El libro de la muertegravou os epitáfios compostos para as tumbas de Lorca, Oscar Wilde, Tennesse Williams, Yukio Mishima, Rimbaud, Verlaine, Lezama Lima, Pessoa, Huysmans, Kaváfis e René Marqués. Em Invitación al polvo Ramos Otero continuou a construção desta biblioteca de ossos acrescentando os de Quevedo, Bécquer, Cernuda, Palés Matos, César Vallejo, Julia de Burgos, Poe e Jorge Manrique. Aqueles que amam a poesia poderão ver como este cemitério flutua, na hora do crepúsculo, sobre o sonoro mar de Manatí. Ali, na indócil paz dos poetas, Manuel Ramos Otero descansa.

 


§§§§§

 


 


 





 


 


 





 


 


 




 


 

§ Conexão Hispânica §

Curadoria & design: Floriano Martins

ARC Edições | Agulha Revista de Cultura

Fortaleza CE Brasil 2021



 

  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário