JOSÉ LUIS VEGA | Manuel Ramos Otero: a urna cinerária
Manuel Ramos
Otero nos legou dois livros de poemas: El libro de la muerte, publicado em
1985, e Invitación al polvo, que apareceu postumamente, em 1991. Embora seja
certo que ninguém concede a Manuel Ramos Otero um lugar notável na promoção de contistas
que surge em Porto Rico ali pela década de 70, a verdade é que El libro de la
muerte, por si só, não lhe assegurava um posto semelhante entre os poetas do
mesmo período. Invitación al polvo, no entanto, o converte em um poeta destacado.
Em suas páginas encontramos alguns dos poemas mais belos e comovedores da recente
poesia porto-riquenha.
A poesia de Manuel
Ramos Otero poderia ser catalogada como um discurso lírico-dramático de amor, morte
e solidão. Nestes poemas, a solidão é a consequência de um amor sempre precário
e fugaz cujas implicações sentimentais nunca estão em harmonia com a agressividade
ideológica e moral de seu discurso. Se, como expressão ideológica, esta poesia é
uma vigorosa reivindicação dos direitos amatórios da homossexualidade, como voz
pessoal é quase sempre a comunicação dolorida e melodramática de uma pena de amor
fundada na precariedade da experiência amorosa e no abandono da amante. O poeta
assume a solidão como a condição de sua voz; fala a partir da solidão, recorda e
recrimina, com nostalgia, um amor já fracassado. Também a partir da solidão
pratica uma figuração da morte. Na poesia de Ramos Otero, a morte ocupa duas dimensões
fundamentais: é, por um lado, a metáfora do amor defunto; mas é também certeza literal,
pressentimento e anunciação.
Em El libro
da la muerte, o falante solitário se instala em uma casa de balaústres frente
ao mar da rua Norzagaray e a partir dali contempla os cortejos fúnebres e carnavalescos
que se dirigem ao cemitério de mármore italiano da Velha San Juan. Nessa sacada
da Norzagaray, o poeta encarna uma Penélope que aguarda pelo regresso de Ulisses
enquanto tece em suas veias a heroína do poema. Ou em Tsuchigumo, o japonês coxo
e suicida que comparece a seu próprio enterro vestido com um kimono de bromélias.
Ou na Mulher do Mar, a mítica Clara Gardenia Otero do conto homônimo. Ou no vampiro
Nechodoma que ama a estátua de Palmira Parés em pleno panteão. São máscaras do poeta
que compartilham o espaço carnavalizado de um texto que celebra, ante a ausência
do amor, a metáfora da morte. Por isso Tsuchigumo é o marido de sua imagem.
El libro de la
muerte está organizado em torno do binômio recorrente da morte e da vida. O movimento
cíclico de ambos extremos gera versos como: “Tsuchigumo morreu novamente à tarde”
ou “Estou a um ano exato de minha primeira morte” ou “Por vezes me enterrando em
diferentes tumbas”. Essas ressurreições não remetem, no entanto, à morte alegre
do carnaval, mas sim a uma visão desolada do amor; evento irremediavelmente finito
e falido que ressuscita sem castigo após cada desencanto. Assim entendidos, Eros
e Morte são os protagonistas da poesia de Ramos Otero. Da cópula desta parelha semântica
nascem expressões como: “…vão crescendo tumbas no leito” ou “queimando-se o que
manda seu sêmen sobre o féretro” ou “meu noivo não retornou de sua tumba”. A parelha
de Eros e Morte também fundamenta o imaginário grotesco do livro que se manifesta
em enterros festivos, macabras festas patronais, danças mortuárias e cenas funéreas.
No entanto, a dissimulação, a teatralização e o contínuo disfarce do discurso lírico
em El libro de la muerte conduz a uma escritura, senão hermética, ao menos
de muito difícil leitura e, talvez, pouco gratificante para muitos leitores.
Invitación ao
polvo, obra póstuma de Ramos Otero, surpreende de maneira muito distinta. Mesmo
que a coerência deste livro se articule sobre os mesmos elementos de Amor, Morte
e Solidão que sustentam o anterior, os procedimentos expressivos e os conteúdos
semânticos em um e outro livro variam significativamente. Invitación al polvo
está estruturado de conformidade com duas vertentes do significado da palavra polvo,
a que remete ao destino da carne após a morte e, em sua acepção popular, a que remete
ao coito. Resulta então atinado o emprego, à maneira de epígrafe, do terceto final
do famoso soneto de Quevedo: “Seu corpo deixará, não seu cuidado; / serão cinza,
mas terá sentido; / pó serão, porém pó enamorado.”
A primeira parte
do livro se intitula, precisamente, De polvo enamorado. Integram-na vinte
e nove poemas que contam e cantam uma história de amor. Os detalhes, ainda que dispersos,
são explícitos: é a história do amor entre o emissor do texto, um poeta porto-riquenho,
e o receptor da mensagem poética, um pintor (de paredes) cubano, chamado José. Trata-se
do clássico esquema comunicativo da poesia amorosa onde um emissor apaixonado celebra
a plenitude da experiência erótica passada, reflete sobre a cruel natureza do amor
e recrimina ao receptor seu abandono. Este esquema clássico, no entanto, subverte-se
pela condição homossexual dos protagonistas.
A história de
amor se apoia na alegoria antilhana configurada pela décima de Lola Rodríguez de
Tió que começa: “Cuba e Porto Rico são de um pássaro as duas asas”; apoia-se também
em um texto epígrafe de Luis Cernuda: “…unidos vais, / formando um único ser de
dois impulsos, / como o pássaro feito por suas asas”. O primeiro poema do livro
inaugura a alegoria com estes versos: “Cuba e Porto Rico são / as duas efêmeras
asas do anjo do amor. / Cuba e Porto Rico são / dois homens suados exilados ao sol.
/ Cuba é todo infância / todo sonho do que já não é. / Porto Rico é o barco sempre
ancorado ao contrário”. A metonímia converte os amantes em Antilhas, a metáfora
transforma seus corpos em ilhas, suas vidas em veleiros, sua existência em mar,
seu amor em périplo e seu fracasso em naufrágio. Um fundo de boleros tropicais musicaliza
a história de orlas melodramáticas: “…Éramos boleristas do mesmo ardil: vereda tropical
/ e névoa do riacho, um desvelo de amor sob / Vênus, ondas e areias de uma nave
sem rumo, beijos / de fogo para uma canção desesperada, eu era uma / flor e tu meu
próprio eu. Com lágrimas de sangue / quis escrever a história que agora escrevo
com / sangue, com tinta de sangue do coração…”
O poeta apresenta-se
como um gozoso reincidente na cruel experiência do amor: “Torno a cantar – diz –
deixando para trás a morte / somando-me à horrível ternura do amor”… Assim inaugura,
outra vez, o ciclo fatal, o trânsito até a metáfora da morte do amor ou, como diz
o poeta lindamente, o lento funeral da fortuna. Em um verso conceituoso, que é um
dos melhores do livro, o falante abandonado se indaga, referindo-se aos estragos
espirituais que o amor produz no indivíduo: “Por que é que alguém se perde para
ir de dois em dois…?” Já conhecemos as conotações morais, escatológicas e sentimentais
do verbo perder-se em espanhol. Este perder-se, no entanto, somente acontece no
plano do estritamente pessoal. No plano, digamos, ideológico e social, o poeta entende
que a prática do proibido pela maioria moral não é uma perda, mas sim uma ganância
da liberdade humana. Assim, no poema 25, um dos melhores do livro, distingue claramente
entre seu discurso e o da normalidade moral que cataloga o homossexualismo como
traição à família, loucura antinatural e violação das leis divinas. Em outra parte,
o emissor recrimina ao receptor sua falta de valor para viver desveladamente:
Onde vais, havanense,
vestido de anjo sincero?
[…]
Tens mais cara
de aguaceiro do que ganas de livre voo
e mais de operário
conformado do que de emplumado guerreiro.
Qual liberdade
arrebata tua pomba da paz, se ser
um pato selvagem
não é digno de teu disfarce? Para onde
vais, havanense,
que a vida não é o mar nem tua vida é
um veleiro? Que
mais vale para mim ser barquinho de valeta
do que ser metal
de cata-vento fugindo de sua própria sombra.
Ser homem não
é vestimenta nem gesto que se elabora
porque o ser
não se evapora com o que diz a gente.
[…]
Este livro, portanto,
reitera o duplo testemunho de um discurso moralmente agressivo misturado com um
intimismo confessional e dolorido. Porém é, precisamente, a construção desse falante
sofredor e contraditório o que salva esta poesia do discurso leviano e panfletário
de muita literatura que assume, por ofício de moda, a defesa da marginalidade.
Digo construção
para destacar o caráter de artifício literário, de máscara, do falante sofredor
e abandonado na poesia de Ramos Otero. No poema intitulado “La caixa chinesa” o
falante se refere a seus sucessivos amantes e imagina o amor como um sistema de
caixas em cujo receptáculo final “vive, escreve e sonha / um escaravelho cínico,
o monólogo da solidão. / …” Esse escaravelho é o poeta, mais exatamente, o personagem
que o poeta já se sabe de memória: “o solitário / o desamado / o venenoso escorpião
/ que suga em sua peçonha / o jugo magistral de seu teatro.” A consciência da escritura
– com suas múltiplas máscaras e seus gestos teatrais – é o único remédio para a
solidão: “Amar-te apenas me envenena / antídoto de luz é minha poesia”. O discurso
poético põe em cena um espaço utópico onde o amor alcança, finalmente, a perfeição
e onde os prejuízos sociais não prevalecem: “Quando tiveres ido sem cheia nem bolero
/ quando regressares ao silêncio de outra sinfonia / quando te tornares um homem
de papel / um espírito apanhado no poema / …recordaremos o que nunca ocorreu / nos
amaremos como nunca nos amamos / remexeremos em tumbas de tristezas / até encontrarmos
a liberdade intacta / para que o tempo restaure o perdido.” A poesia é a urna cinerária
do amor e a casa da fênix.
Por este caminho,
Ramos Otero chega à revalorização das formas poéticas tradicionais. Surpreende gratamente
descobrir que em seu último livro o romance tropical dos amantes está contato, em
boa parte, em fluidos octossílabos rimados que o poeta dissimula com hemistíquios
e enjambement. Além do mais, o espaço fechado do soneto, escrito com fortuna
vária e com ressonâncias clássicas, serve de cripta e mortalha aos ossos do amor.
O número 29 de Invitación al polvo é, conforme meu gosto particular, o melhor
poema escrito por Ramos Otero. É um poema de plenitude e madurez, monólogo do solitário
que discorre pelas ruas de Nova York e da memória em busca do amante e do sentido.
Este último o encontra, não no amor, mas sim na escritura e na prova irrefutável
do poema: “O presente é perfeito. – diz o final do poema – É tudo o que tens. /
descobriste a ponte que dá sentido ao tempo / que pensavas perdido. A prova é o
poema / que escreveste.” É um poema de contidos versos livres que fluem moderados
pela precisão sintática. Este retorno aos módulos rítmicos tradicionais é duplamente
significativo em um escritor que por ocasiões vangloriou-se do desenfreio expressivo
e da anarquia formal. Parece-me que se trata de um reconhecimento do rigor específico
da poesia. Ao final de sua carreira literária, Manuel Ramos Otero quis declarar-se,
antes de tudo, poeta.
Em La víspera
del polvo, segunda parte do livro póstumo, o signo da morte sofre uma transformação
dramática. A morte perde seu anterior sentido figurado. Já não se trata da metáfora
do amor defunto, mas sim de um signo inaugural que, marcado pela enfermidade, expressa
o espanto dariano de amanhã estar morto. Entre os treze poemas que conformam esta
seção do livro há alguns verdadeiramente comovedores, escritos a partir da terrível
lucidez da iminência de uma morte que chega pelo correio: “Esta manhã chegaram os
resultados / de minha morte e ainda não abro / o envelope (o ataúde, deveria dizer).”
Ramos Otero assume a consciência da literalidade da morte antes e sobretudo como
escritor: “Os escritores – diz – morremos todos / em um féretro de carvalho forrado
/ de tela, como um museu de fumaça / habitado por dragões de papel / com rosto de
bicha caribenha”. A morte, além do temor a uma insônia infinita ou à possibilidade
de uma viagem a uma superpopulação do quarto mundo, significa o máximo de consciência
possível para o escritor. A morte é agora o signo final e contagioso, símil cósmico
inscrito desde sempre na constelação de Câncer. A partir de sua certeza, o poeta
escreve suas cartas finais cabais aos amigos e, sobretudo, essa comovente missiva
a Deus que é o poema “Nobreza de sangue”, cuja ironia de conteúdo subverte os ecos
da “Oração por Marylin Monroe”, de Ernesto Cardenal. Também a partir dessa certeza
o poeta assume a representação em sua própria carne das mais escarnecidas minorias:
os drogados, os homossexuais, os heterossexuais da África Central, os pacientes
de AIDS. A consciência da morte é a situação limite que permite ao escritor, ao
homem de papel que não é leviano, reafirmar-se no credo estético e moral que animou
sua escritura: “Quero que saibam que estou desorbitado, / que sempre sigo sentado
no balcão do sonho / cuspindo no deus da pureza…” Morrer como escritor entranha
também um acerto de contas com o leitor e a visão da posteridade através da poesia:
“Que mais querem de mim senão este livro aberto / que a todos assegura o clímax
de seus penas” … É também a ocasião de prever com lucidez irônica as homenagens
póstumas: “Na próxima terça-feira vou de viagem. / Não é necessário falar de mal
agouro. / Regresso ao pão, ao mar e ao aguaceiro. / Para umedecer com pós minha
homenagem.” “…Eu que provei as uvas negras do delírio / … jamais pensei em chegar
ao templo roído / dos bons costumes, nem à glória de andar / de boca em boca apodrecido
e respeitado por jograis / que alteram a seu capricho o melodrama.”
Em vida e em
verso Manuel Ramos Otero trabalhou na fundação de um cemitério de poetas, um Hades
textual povoado pelos escritores que lhe foram afins. Em El libro de la muertegravou
os epitáfios compostos para as tumbas de Lorca, Oscar Wilde, Tennesse Williams,
Yukio Mishima, Rimbaud, Verlaine, Lezama Lima, Pessoa, Huysmans, Kaváfis e René
Marqués. Em Invitación al polvo Ramos Otero continuou a construção desta
biblioteca de ossos acrescentando os de Quevedo, Bécquer, Cernuda, Palés Matos,
César Vallejo, Julia de Burgos, Poe e Jorge Manrique. Aqueles que amam a poesia
poderão ver como este cemitério flutua, na hora do crepúsculo, sobre o sonoro mar
de Manatí. Ali, na indócil paz dos poetas, Manuel Ramos Otero descansa.
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§ Conexão Hispânica §
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