RADOVAN IVŠIĆ, A
Tout Rompre
Como sua contraparte na ficção, o teatro
da estranheza existe nas margens da cultura mainstream,
onde sua precisão mortal ao visar os atavismos do consenso cultural pode ser amordaçada
antes que sua potência subversiva cause qualquer dano visível. Embora Antonin Artaud,
Alfred Jarry e Raymond Roussel sejam os mais reconhecidos criadores neste domínio,
suas raízes são profundas e este teatro tenaz inclui, também, obras de descontentes
pouco conhecidos como o blasfemo sarcástico Oscar Panizza, o “Shakespeare ébrio”
Christian Dietrich Grabbe e seus herdeiros no dadaísmo e no surrealismo. Embora
injustificavelmente desconsiderado fora da Europa, o teatro de Radovan Ivšić está
à altura do que seus pares têm de melhor a oferecer nesse campo.
Em
Radovan Ivšić temos um dos grandes rebeldes, les grands insoumis, do século
passado. Um indício de sua recusa em comprometer os ideais de sua juventude e fazer
concessões humilhantes ao poder está no fato de que os governos fascista e comunista
de sua Croácia natal ambos proibiram com igual prontidão e satisfação seu trabalho
poético e dramatúrgico.
Nascido
em Zagreb, capital da Croácia, em 1921, Radovan Ivšić descobriu ainda adolescente
a obra de Rimbaud, Lautréamont e Mallarmé e publicações dos surrealistas franceses
e iugoslavos, numa época em que as nuvens da guerra se formavam sobre a Europa.
Descreve a atmosfera da época como sendo de uma efervescência estonteante, mas carregada
de sombras lançadas pelo pressentimento obscuro do conflito que se aproximava. A
razão fracassara e as receitas radicais oferecidas por essas obras pareciam ser
a única reação legítima à crescente ameaça da violência tanto física quanto psicológica.
Foi
durante essa época que chegou à conclusão de que sua visão de uma poesia inseparável
da vida podia ser mais bem incorporada no teatro:
Embora a poesia continuasse, aos meus
olhos, a dar prova da insubmissão da mente à força das coisas, descobri que a poesia
também envolve corpo, espaço, cores, formas e natureza — ou seja, que a poesia
está essencial e concretamente ligada ao destino da liberdade humana.
Para
Ivšić, o espaço dramático oferece o local ideal para a abertura de um espaço interno
no espectador que permita experimentar a singularidade individual não como ruptura,
mas como uma diferença vitalmente essencial que permite ao mundo respirar. Ele enxergou
a peça teatral como o resultado de uma conspiração obscura entre o mundo e o indivíduo,
que se retira intencionalmente dessa relação para retornar através do cavalo de
Troia da ficção. Em sua obra teatral, procurou “abrir um espaço” análogo ao da tragédia
grega, nascido do intercâmbio entre a voz individual e a coletiva, dentro do qual
cada pessoa pode ser levada a se enxergar na violência daquilo que as liga entre
si e daquilo que as distingue do grupo e do mundo.
Em
sua primeira peça, Airia, já demonstra o uso radicalmente livre da linguagem
que viria a caracterizar todas as demais. Ivšić recorda que sua gênese foi inspirada
pela apresentação de uma peça de Strindberg cujos gritos e convulsões lhe pareceram
sobrepujantes, combinada com sua indiferença soberba e inata àquilo que se faz passar
por realidade. É aqui também que sugere a primeira aparição da significância primordial
do amor como agente transformador, mas ao mesmo tempo por demais sensível à opressão.
Seu
uso radical da linguagem se caracteriza por uma subversão da sintaxe rotineira e
pelo uso de monólogos paralelos que privilegiam a evocação em relação à descrição.
Isso cria uma conversa em que o senso de identidade de cada personagem se reduz,
ao invés de se reforçar no decorrer da peça. Em Airia, essa erosão da identidade
é exemplificada pelo nome de uma personagem, uma mulher conhecida apenas como!?…
Paradoxalmente, à medida em que a identidade das personagens assim se esvai,
se permite aparecer o espaço necessário para revelar aquilo que as torna de fato
singulares.
Crilice: Seria mais fácil se você tivesse
nome.
!?…: Mas é impossível.
Crilice: Sem seu nome, é como se eu a
continuasse a perder.
!?…: Fico mais despida assim. E se um
dia abandonar seu abraço, não a deixarei com um nome vazio.
Étienne-Alain
Hubert observou que a sintaxe esparsa que caracteriza a poesia de Radovan Ivšić
faz com que cada palavra pareça envolta em um vácuo, concedendo a cada uma delas
potência máxima para brilhar. Levando-a ao primeiro plano do palco, Ivšić a utiliza
para criar a “escrita corporal” que Mallarmé recomenda. Ao fornecer um espaço para
essa escrita corporal, Ivšić sente que o teatro pode oferecer à poesia um veículo
capaz de alargar horizontes, mas apenas sob a condição de rejeitar a fealdade cega
à influência realista que prevalece no teatro contemporâneo, favorecendo em seu
lugar uma veracidade iluminada pelo sonho.
Descartar
o diálogo e os estereótipos convencionais lhe permitiu imaginar um espaço livre
dessa seriedade realista ou barroca da língua, do gesto e da decoração. Somente
após libertar o palco desses elementos convencionais foi possível materializar sua
visão de uma união alquímica entre corpo e ideia, algo essencial para esse tipo
de escrita corporal. O poder primordial do teatro grego, exemplificado pelo coro,
lhe deu a arma de que necessitava “para ferir o coração do mundo”. Radovan Ivšić
enfatizou que a grandeza da tragédia grega está no momento crucial “em que o indivíduo
emerge do coro, quando a fala individual começa a se diferenciar da coletiva”.
Narcissus
foi apresentada clandestinamente duas vezes antes de ser proibida pela ditadura
fascista que tomara o poder na Croácia e colaborava ativamente com o nazismo. Não
só a edição limitada de 100 cópias, que ele mandou imprimir em 1942, foi arrestada
pelo governo por ser “arte degenerada”, como também circulavam por Zagreb boatos
de que o poema deixara o ditador Pavelic fora de si de tanta fúria. Dizia-se que
sua reação ao ler a obra fora lamentar o abismo a que descera a poesia croata. Isso
serviu apenas como confirmação para Ivšić e seus amigos de que estavam no caminho
certo.
A
próxima grande criação de Ivšić, a peça Rei Gordogan, reflete a atmosfera
homicida do tempo, transporta para um ambiente de conto de fadas em que prevalece
o mais profundo humor negro. Embora seja impossível deixar de perceber a influência
de Jarry sobre o soberano protagonista, Ivšić observa que Sade foi igualmente influente
— principalmente Aline
et Valcour ou Le Roman philosophique, uma vez que
era a única obra de Sade que lera até aquele ponto.
Na verdade, obteve sua cópia em troca de quase toda a biblioteca que tinha. Ao explicar
a gênese da peça a Charles Flamand em uma entrevista publicada na primeira edição
de Le Surréalisme même (1956), Ivšić recordou como em fevereiro de 1943,
durante a ocupação alemã, quando lhes era negado tudo, até mesmo a possibilidade
de “caminhar à luz da lua e tocar a noite nua”, ele se permitia a “atividade gratuita,
ou se preferir, a perversão monstruosa, que consiste em agrupar palavras”. Isso
abriu ao poeta um universo de maldições, imprecações e provérbios como “que uma
corcunda negra sobre as costas”, menos uma imitação da tradição folclórica dos Balcãs
do que uma nova maneira de enxergar a experiência passada.
A
prática proporcionou a Ivšić a chave para criar um núcleo poético em que a criação
de uma maldição ou uma jura era acompanhada do surgimento de uma imagem inesperada.
“Que lhe cavalgue a sarna, urso bicudo”. Ele acreditava que essas expressões se
prestariam admiravelmente ao diálogo teatral por causa da condensação extrema que
o palco exige. O diálogo assim inspirado se tornou a primeira cena de Rei Gordogan, um bufão tirânico e sedento
de sangue que corta as orelhas de seus súditos para saber que já pagaram seus impostos
e manda arrancar um olho dos que não pagam. Adiante, o vemos exultante frente ao
prospecto de enforcar seu filho único, que descreve como um de seus melhores momentos.
Um ex-cavalariço que usurpou o trono de seu provecto predecessor, o bom Rei Branco,
mantém a filha do rei prisioneira em uma torre branca à beira de uma floresta. Uma
indicação do quanto a peça de Ivšić nos afasta da moral convencional é o fato de
que a princesa não se ressente de seu captor e, pelo contrário, está agradecida
por ele ter assumido a difícil tarefa de governar:
Ele reina em meu lugar e — foi o que me disse — reinar não é tão fácil quanto no tempo de meu
pai, o Rei Branco. Hoje, para manter a ordem do reino, precisa esganar com as próprias
mãos uns dez mil súditos por dia. Imagine só que trabalheira seria isso se reinasse
eu! Depois de esganar uns cinco, minhas mãos pálidas estariam dormentes de cansaço.
E quantos ainda restariam para esganar? Dez mil menos cinco! Faça você mesmo as
contas, já não me lembro mais da aritmética (II, 4).
A
lógica do rei para eliminar a pobreza do reino combina com isso, uma vez que ele
irá taxar os pobres seis vezes mais, enquanto isenta os ricos de qualquer tributo.
Faz-se acompanhar do Arranca-Olhos Real e do Corta-Orelhas Real nas suas viagens
fiscais, que se tornaram muito menos frutíferas em moedas de ouro ou partes de corpos
já que, no momento em que se passa a peça (o tricentésimo dia de seu reinado), restaram
muito poucos súditos para fornecer umas ou outras, como lamenta o Arranca-Olhos
Real que o Rei lhe pergunta sobe a féria do dia:
Só doze, meu rei, valha-me minha pobre
mãezinha! Cinco cegos, cinco caolhos e um par de vesgos.
A
única ameaça ao reinado de Gordogan é um estranho cavaleiro que chegou recentemente
ao reino e que Gordogan acredita ter sido previsto em profecia como um encrenqueiro
em potencial. A situação se complica pelo fato de que o jovem cavaleiro só pode
ser morto por alguém que nunca tenha matado, o que, como diz o Bobo da Corte de
Gordogan, o deixa em perfeita segurança naquelas terras. Gordogan escapa da ameaça
dando ao cavaleiro uma bebida feita com a erva do esquecimento. Sem a distração
do dever, o cavaleiro se apaixona pela mulher selvagem da floresta, que aterroriza
os moradores restantes. Espreita invisível à noite, sua presença revelada apenas
por sua gargalhada louca (que Radovan via como uma resposta violenta ao riso dos
criados arrogantes de Molière, que, em sua opinião, desde o momento em que pisam
sobre o palco, ocupam espaço demais no teatro com seu bom senso sadio e sua mediocridade
triunfante).
Enquanto
Gordogan se prepara para enforcar o filho, a quem logo se une no cadafalso a Princesa
Branca, o Bobo da Corte varre o horizonte com os olhos em busca frenética pelo cavaleiro
— a única chance de resgate do casal. Sua felicidade ao ver o cavaleiro e Joline
surgindo ao longe o faz cair do telhado, quebrando o pescoço; o carrasco cumpre
sua função e o cavaleiro se vai com Joline, completamente esquecido de seu propósito
original e desesperadamente apaixonado. Agora a sós no reino depois de matar o último
de seus súditos, Gordogan contempla o futuro: “Que me nasça uma cauda na testa se
sei o que fazer agora”. Ele logo tem uma ideia e vai em direção à floresta para
derrubar as árvores uma a uma.
Vale
notar que a peça não é uma alegoria política como a que encontramos no teatro engajado
de autores como Brecht. Para Ivšić, era de suprema importância que a dimensão crítica
— eliminada pelas necessidades da ideologia — pudesse emergir, sem o quê não seria
possível qualquer inovação da dramaturgia. Ivšić observa
que é por isso que peças escritas em nome de uma ideia ou uma ideologia não valem
nada — elas estreitam horizontes em vez de abri-los
para a magia da coincidência e do inesperado.
Gordogan
somente seria apresentada ao vivo em uma transmissão de rádio francesa de 18 de
abril de 1956. E quando foi levada ao palco pela primeira vez por uma companhia
de teatro francesa, foi por mera coincidência que a estreia se deu no castelo ancestral
de Sade, o Chateau La Coste.
Em
1954, Radovan Ivšić finalmente conseguiu fugir de Zagreb e migrou para Paris, aos
33 anos de idade. Poucos dias depois de sua chegada, já havia conhecido o poeta
surrealista Benjamin Péret e, pouco mais tarde, encontrou André Breton. Este, impressionado
com sua leitura de King Gordogan, que descreveu como uma obra ímpar, “forrada
do orvalho da inocência primordial”, logo convidou Ivšić a participar das reuniões
diárias do grupo surrealista francês que se realizavam no café Le Musset. Dali até
a dissolução formal do grupo em 1969, Ivšić teve participação proeminente em todas
as suas atividades. Embora seus textos e fotografias surgissem em todas as publicações
do grupo, ele também ficou conhecido por seu trabalho de sonorização. O sistema
sonoro que instalou na galeria que abrigou a exposição surrealista internacional
de 1959 sobre Eros criou tumulto por seu uso sem precedente dos sons do sexo. Como
recordou Ivšić, ao contrário da maioria das aberturas, aquela foi caracteristicamente
silenciosa, com os convidados mesmerizados pelos suspiros e murmúrios gravados que
preenchiam a galeria.
Foi
pouco depois de sua chegada à França que Ivšić escreveu Aquarium, um pesadelo sem fim nem divisão em atos,
inspirado por um sonho que teve enquanto ainda vivia em Zagreb. O sonho teve
tal impacto sobre ele que imediatamente o anotou sob o cabeçalho: “Nos é permitido
sonhar?”.
Aquarium
se dá em um campo de concentração, um dos muitos moedores de carne claustrofóbicos
da época, para o qual um jornalista é enviado para escrever um artigo contrário
às mentiras espalhadas por elementos hostis, falando “das atrocidades supostamente
cometidas em nossos campos exemplares”. A personagem logo se vê enredada na linguagem
dupla das autoridades do campo. Questionam a validade dos documentos que o protagonista
revela e buscam provas de que ele tem más intenções e deveria ser preso como inimigo
do estado. Ele, por sua vez, permanece inconsciente da hostilidade que segue cada
movimento seu por causa da chegada de Plume, uma ex-amante que ainda é dona de seu
coração. Aqui, a violência não é causada por um tirano sanguinário e se apresenta
de natureza mais psicológica: seu alvo principal é a mente. Muitos dos oficiais
do campo são incapazes de falar com lucidez por estarem permanentemente imersos
na linguagem dupla. Todo o diálogo se dá em círculos viciosos, assim esvaziando
e encapsulando o espaço dramático em uma prisão absurda e inexpugnável. A peça termina
com os soldados arrastando Plume e o jornalista para fora do palco em direções opostas
depois que a única defesa de que ele dispunha contra a autoridade, sua cédula de
identidade, voa para fora de seu sapato e cai sobre o palco. Antes que ele a possa
recuperar, a Orelha de Casaco de Couro, representante da polícia secreta na prisão,
a guarda no bolso, entregando-o assim em definitivo ao mundo do campo na qualidade
de prisioneiro.
Jean-Paul
Goujon, em seu prefácio da obra teatral completa de Radovan Ivšić publicada pela
Gallimard em 2005, descreve Aquarium como uma peça que incorpora a tensão
e a ansiedade inerentes à vida em um país desprovido de esperança, onde até os sonhos
são perseguidos como animais selvagens. Radovan, contudo, não imita a dupla linguagem
usada por carcereiros de todos os tipos. Em vez disso, a substitui por um balbuciar
vazio sobre temas diversos, do oferecer dentes de alho como se fossem cigarros à
filatelia, sem jamais omitir o fato de que todas essas conversas são alimentadas
pelos horrores dos atos dos falantes, mas apenas evidenciando isto abertamente quando
uma jovem que tenta fugir do campo é morta a tiros e arrastada para longe com a
cerimônia que se daria a uma galinha do abatedouro. Aqui, Ivšić usa a subversão
poética para realizar aquilo que Péret chamou de “retificação do universo”, escancarar
os horizontes que uma representação meramente realista da situação deixaria deprimentemente
estreitos.
Se
Aquarium pode ser encarada como uma espécie de antítese de Rei Gordogan
em relação aos horrores que definem a modernidade, Ajaxaja combina elementos das duas peças e acaba
por concluir onde tudo começou, num espetáculo sangrento que se revelou profético
da carnificina que iria desmembrar a Iugoslávia pouco mais de uma década depois
da estreia da peça em Belgrado (ficando em cartaz por uma semana antes de
fechar em definitivo por “dificuldades técnicas”).
Em
Ajaxaja, nos vemos em um mundo onde é moralmente impossível respirar porque
as palavras que nos dão fôlego foram envenenadas. Como observou Goujon, a língua
dos assassinos é incessantemente reproduzida em segundo plano, como “uma litania
homicida”. A tensão da peça é prenunciada em seu subtítulo, il moci reci
[pouvoir dire em francês], que significa tanto o poder de falar quanto a
fala do poder — o
“decreto” [diktat]. A capacidade de falar
é implacavelmente combatida por aquilo que o poder diz, criando o eixo sobre o qual
gira a liberdade. Esse poder é inicialmente demonstrado na personagem do diretor,
que é o ditador do teatro, mas um lacaio servil dos detentores do poder. Essas Autoridades,
a Obra Completa (surgem no palco como uma estante de livros móvel, cheia de antigos
volumes), o encara como um animal de estimação útil para o qual podem jogar um osso
de quando em quando, sob a forma de um patrocínio, ou de uma medalha cultural. Aqui,
o extermínio mental que opera em Aquarium evoluiu radicalmente para um mundo
dominado pela lavagem cerebral e por slogans
de servidão: “Se és pelo progresso, que sejas pelo progresso. Todo o poder cabe
ao poder”. O último poeta, vestindo um escafandro, é ouvido em um sussurro silencioso
constantemente interrompido pelos rugidos dos capangas que protegem as autoridades.
Incapaz de sequer imitar a dupla linguagem de seus senhores, na qual um veneno invisível
destruiu as palavras, invertendo seu significado, os mottorrors falam apenas
em rosnados truncados que soam mais como as máquinas que montam do que como uma
língua. O solilóquio final do mergulhador sobre a morte da linguagem é abruptamente
interrompido quando os motorrors cortam seu duto de ar.
A
obra de Radovan Ivšić gira em torno de diversos elementos-chave que podem ser reduzidos
a Amor, Liberdade e Linguagem. São intimamente interdependentes e, como se dá com
a peste, a infecção de um elemento rapidamente se alastra para os demais. Por outro
lado, como observa Annie Le Brun, a saúde radical de um pode rapidamente recuperar
os outros. Nessas peças, é nas figuras de amantes — Joline e o cavaleiro
Knight, Plume e o Jornalista, Ajax e Xaja, que reside o poder. Eles podem não vencer
os horrores que os cercam, mas a paixão incondicional que compartilham lhes dá forças
para desertar, preservando sua liberdade (Plume e o Jornalista têm a chance de fugir,
mas esta se perde quando ele se volta para recuperar a cédula de identidade, assim
demonstrando sua incapacidade de abrir mão de tudo em nome do amor).
Para
Radovan Ivšić, a liberdade é impossível num mundo onde o amor é impossibilitado
— e, ao mesmo tempo, o amor que abandona “as fórmulas pré-fabricadas esculpidas
para canalizá-lo em um formato aceitável” tem o condão de fazer ruir em torno de
si esses sistemas (como mostra Ajaxaja).
Mas apenas uma língua vital que contenha “as palavras vivas da memória, o sol, a
lua, as estrelas, os animais (...)”, como escreveu Annie Le Brun, terá a faculdade
de trazer consigo as repercussões reais que dão à poesia sua presença formidável.
A dupla linguagem que tem a palavra em todas as sociedades modernas, sejam elas
totalitárias ou neoliberais, é por demais flácida e asséptica para dar às palavras
tal força. Aliás, o propósito da dupla linguagem é garantir que as palavras sejam
incapazes de nutrir qualquer coisa além das atividades que sustentam a existência
dos donos do poder. É por isso que Radovan Ivšić afirma:
A questão central que hoje se coloca é:
como impedir o estabelecimento de uma relação coercitiva com a linguagem? Termos
sucesso em dominar a linguagem, ou seja, domá-la, domesticá-la e, por fim, escravizá-la
da mesma forma que tentamos escravizar a natureza?
Isso
se repete com implicações ainda mais aterradoras na pergunta que a companheira de
Ivšić, Annie Le Brun, faz em seu livro A Sobrecarga de Realidade:
Da mesma forma que grãos e verduras passam
por interferências sob o pretexto de deixá-los mais resistentes a pragas (…), entre
as palavras que, somos levados a crer, ainda são capazes de provocar excitação,
não há mais nenhuma que não opere ativamente contra as ideias que dizem exprimir.
Para
Ivšić e outros que clamam pela saúde insolente do pensamento surrealista, o único
espaço capaz de conferir ao indivíduo a força necessária para recusar o mundo tal
como se nos apresenta — dedicado a reforçar tudo que há de inaceitável na condição
humana — é a presença material do espaço imaginário. Quando reconhecemos que as
palavras vivem em nós assim como nelas vivemos, podemos conquistar acesso àquilo
que Ivšić chama de “uma liberdade
e uma gravidade estranhas”. Ele prossegue, dizendo:
A poesia não é mais o domínio de especialistas
ou estetas: é a vida submetida à prova pelo pensamento, é o pensamento submetido
à prova pela vida; é o corpo interrogando a imaginação; e a imaginação interrogando
o corpo.
Como
apontou Alain Joubert,
Para Ivšić, é de fundamental importância
“restituir à língua sua verdadeira vida […], chegando de um salto só ao nascimento
do significante”, algo que Breton recomendou há tempos. O autor, assim, se coloca
na posição de inspirar a imagem por meio de indução para que se forme — ou não — na mente do leitor, em vez de ser a ele fornecida irrevogavelmente impressa
sobre o papel. Uma imagem latente então surge a jusante da linguagem, permitindo
que o leitor a crie, em parte, pessoalmente, enriquecendo-a através do aclaramento,
fazendo com que se desloque magicamente do estado de evocação para o de revelação.
Como
escrevi no começo deste texto [redigido para a apresentação de Rei Gordogan
em Nova York, em 1997], a verdadeira importância da obra de Radovan Ivšić está no
fato de que “o desejo jamais faz uma caricatura de si; de que a infelicidade que
há no mundo não se confunde como mundo; e de que a inaceitável condição humana não
é fruto de maldição divina, mas uma subordinação dos ritmos do desejo às forças
que apenas procuram extinguir a paixão em prol do próprio bom funcionamento”.
É
que a poesia ou é sempre essencialmente diferente, ou não existe... jamais segue
as próprias pegadas e sempre diverge da expressão dominante de seu tempo. É por
isso, talvez, que Saint-John Perse se referiu ao poeta como a “consciência pesada”
de seu tempo.
As
autoridades em Ajaxaja prometeram erguer
“estádios trovejantes sobre as ruínas do teatro”. Numa época em que se promove o
medo e se promete uma segurança impossível em troca da liberdade de pensar e amar
como se deseja, Radovan Ivšić nos lembra que o teatro é perigoso, mas apenas o será
Uma vez que se recuse a servir
Uma vez que não mais cante loas aos poderosos
Uma vez que não mais se curve ao ouro
Uma vez que cante o amor
Uma vez que cante a vida.
NOTA
Tradução
de Allan Vidigal.
JON GRAHAM | Escritor e artista gráfico, vive atualmente em Vermont. Foi membro do Grupo Hydra na década de 1980. Trabalha como editor de aquisições para a editora Inner Traditions desde 1996. Ele também é tradutor do francês para o inglês, especializado em livros sobre surrealismo, tradições esotéricas e folclore. Os livros que traduziu incluem A Imaculada Conceição de André Breton e Paul Éluard, Pequena Anatomia do Inconsciente Físico de Hans Bellmer, A Sobrecarga da Realidade de Annie Le Brun, Ajaxaja de Radovan Ivsic, Os Illuminati da Baviera, de René Le Forestier, e Demônios e Espíritos da Terra, de Claude Lecouteux.
ANA SABIÁ | Artista visual e pesquisadora independente. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), mestra em Psicologia Social (UFSC) e graduada em artes visuais pela FAAP (SP). Participa ativamente da cena fotográfica contemporânea de exposições, palestras, mostras e festivais em todo o território nacional. Em 2017 foi premiada com o 1° lugar (categoria foto única) no 13° Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco (RJ); com o 2° lugar do júri oficial do Prix Photo Web Aliança Francesa e selecionada em convocatória do SESC Galerias, para a mostra individual “Do porão ao sótão” itinerante em três cidades catarinenses. Em 2019 foi selecionada para a mostra coletiva “Vento Sul” no 9° Foto em Pauta Festival de Fotografia de Tiradentes (MG) e convidada pela curadoria da 14ª Bienal Internacional de Curitiba para integrar a programação com a mostra individual “Panorâmicas do Desejo”. Em 2020 foi selecionada no edital “Arte como respiro” do Itaú Cultural (SP); também selecionada no 25° Salão Anapolino de Arte (GO) e, neste mesmo ano, na leitura de portfólio do FESTFOTO (POA), obteve o Prêmio Aquisição do Museu da Fotografia de Fortaleza.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 01
Número 200 | janeiro de 2022
Artista convidada: Ana Sabiá (Brasil, 1978)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
ARC Edições © 2022
∞ contatos
Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL
https://www.instagram.com/floriano.agulha/
https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/
Nenhum comentário:
Postar um comentário