domingo, 9 de janeiro de 2022

JON GRAHAM | Radovan Ivšić e o teatro da estranheza

 


A peste toma imagens adormecidas e a desordem latente e as impulsiona subitamente nos mais extremos movimentos. Também o teatro toma gestos e os leva ao extremo, reforja a cadeia entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e aquilo que se materializou na natureza (…)

RADOVAN IVŠIĆ, A Tout Rompre

 

Como sua contraparte na ficção, o teatro da estranheza existe nas margens da cultura mainstream, onde sua precisão mortal ao visar os atavismos do consenso cultural pode ser amordaçada antes que sua potência subversiva cause qualquer dano visível. Embora Antonin Artaud, Alfred Jarry e Raymond Roussel sejam os mais reconhecidos criadores neste domínio, suas raízes são profundas e este teatro tenaz inclui, também, obras de descontentes pouco conhecidos como o blasfemo sarcástico Oscar Panizza, o “Shakespeare ébrio” Christian Dietrich Grabbe e seus herdeiros no dadaísmo e no surrealismo. Embora injustificavelmente desconsiderado fora da Europa, o teatro de Radovan Ivšić está à altura do que seus pares têm de melhor a oferecer nesse campo.

Em Radovan Ivšić temos um dos grandes rebeldes, les grands insoumis, do século passado. Um indício de sua recusa em comprometer os ideais de sua juventude e fazer concessões humilhantes ao poder está no fato de que os governos fascista e comunista de sua Croácia natal ambos proibiram com igual prontidão e satisfação seu trabalho poético e dramatúrgico.

Nascido em Zagreb, capital da Croácia, em 1921, Radovan Ivšić descobriu ainda adolescente a obra de Rimbaud, Lautréamont e Mallarmé e publicações dos surrealistas franceses e iugoslavos, numa época em que as nuvens da guerra se formavam sobre a Europa. Descreve a atmosfera da época como sendo de uma efervescência estonteante, mas carregada de sombras lançadas pelo pressentimento obscuro do conflito que se aproximava. A razão fracassara e as receitas radicais oferecidas por essas obras pareciam ser a única reação legítima à crescente ameaça da violência tanto física quanto psicológica.

Foi durante essa época que chegou à conclusão de que sua visão de uma poesia inseparável da vida podia ser mais bem incorporada no teatro:

 

Embora a poesia continuasse, aos meus olhos, a dar prova da insubmissão da mente à força das coisas, descobri que a poesia também envolve corpo, espaço, cores, formas e natureza  ou seja, que a poesia está essencial e concretamente ligada ao destino da liberdade humana.

 

Para Ivšić, o espaço dramático oferece o local ideal para a abertura de um espaço interno no espectador que permita experimentar a singularidade individual não como ruptura, mas como uma diferença vitalmente essencial que permite ao mundo respirar. Ele enxergou a peça teatral como o resultado de uma conspiração obscura entre o mundo e o indivíduo, que se retira intencionalmente dessa relação para retornar através do cavalo de Troia da ficção. Em sua obra teatral, procurou “abrir um espaço” análogo ao da tragédia grega, nascido do intercâmbio entre a voz individual e a coletiva, dentro do qual cada pessoa pode ser levada a se enxergar na violência daquilo que as liga entre si e daquilo que as distingue do grupo e do mundo.

Em sua primeira peça, Airia, já demonstra o uso radicalmente livre da linguagem que viria a caracterizar todas as demais. Ivšić recorda que sua gênese foi inspirada pela apresentação de uma peça de Strindberg cujos gritos e convulsões lhe pareceram sobrepujantes, combinada com sua indiferença soberba e inata àquilo que se faz passar por realidade. É aqui também que sugere a primeira aparição da significância primordial do amor como agente transformador, mas ao mesmo tempo por demais sensível à opressão.

Seu uso radical da linguagem se caracteriza por uma subversão da sintaxe rotineira e pelo uso de monólogos paralelos que privilegiam a evocação em relação à descrição. Isso cria uma conversa em que o senso de identidade de cada personagem se reduz, ao invés de se reforçar no decorrer da peça. Em Airia, essa erosão da identidade é exemplificada pelo nome de uma personagem, uma mulher conhecida apenas como!?… Paradoxalmente, à medida em que a identidade das personagens assim se esvai, se permite aparecer o espaço necessário para revelar aquilo que as torna de fato singulares.

 

Crilice: Seria mais fácil se você tivesse nome.

!?…: Mas é impossível.

Crilice: Sem seu nome, é como se eu a continuasse a perder.

!?…: Fico mais despida assim. E se um dia abandonar seu abraço, não a deixarei com um nome vazio.

 

Étienne-Alain Hubert observou que a sintaxe esparsa que caracteriza a poesia de Radovan Ivšić faz com que cada palavra pareça envolta em um vácuo, concedendo a cada uma delas potência máxima para brilhar. Levando-a ao primeiro plano do palco, Ivšić a utiliza para criar a “escrita corporal” que Mallarmé recomenda. Ao fornecer um espaço para essa escrita corporal, Ivšić sente que o teatro pode oferecer à poesia um veículo capaz de alargar horizontes, mas apenas sob a condição de rejeitar a fealdade cega à influência realista que prevalece no teatro contemporâneo, favorecendo em seu lugar uma veracidade iluminada pelo sonho.

Descartar o diálogo e os estereótipos convencionais lhe permitiu imaginar um espaço livre dessa seriedade realista ou barroca da língua, do gesto e da decoração. Somente após libertar o palco desses elementos convencionais foi possível materializar sua visão de uma união alquímica entre corpo e ideia, algo essencial para esse tipo de escrita corporal. O poder primordial do teatro grego, exemplificado pelo coro, lhe deu a arma de que necessitava “para ferir o coração do mundo”. Radovan Ivšić enfatizou que a grandeza da tragédia grega está no momento crucial “em que o indivíduo emerge do coro, quando a fala individual começa a se diferenciar da coletiva”.


A restauração do coro foi o ímpeto da criação de Narcissus, que Ivšić encarava como um complemento de Airia: ”Se Airia era o espaço, Narcissus era o batimento cardíaco que dava vida a esse espaço”. A récita coral foi inteiramente construída em torno das diferentes qualidades das vozes envolvidas, de tal maneira que, enquanto o grupo era capturado como o eco da voz individual, a voz individual, por sua vez, retornava como eco do grupo. O autor descreveu esse recurso não como um problema não só poético, mas significativamente político. Como exemplo fundamental, Ivšić indica os corais das sociedades totalitárias, em que a voz individual é aniquilada pelo cantochão do grupo em seu elogio do ditador.

Narcissus foi apresentada clandestinamente duas vezes antes de ser proibida pela ditadura fascista que tomara o poder na Croácia e colaborava ativamente com o nazismo. Não só a edição limitada de 100 cópias, que ele mandou imprimir em 1942, foi arrestada pelo governo por ser “arte degenerada”, como também circulavam por Zagreb boatos de que o poema deixara o ditador Pavelic fora de si de tanta fúria. Dizia-se que sua reação ao ler a obra fora lamentar o abismo a que descera a poesia croata. Isso serviu apenas como confirmação para Ivšić e seus amigos de que estavam no caminho certo.

A próxima grande criação de Ivšić, a peça Rei Gordogan, reflete a atmosfera homicida do tempo, transporta para um ambiente de conto de fadas em que prevalece o mais profundo humor negro. Embora seja impossível deixar de perceber a influência de Jarry sobre o soberano protagonista, Ivšić observa que Sade foi igualmente influente  principalmente Aline et Valcour ou Le Roman philosophique, uma vez que era a única obra de Sade que lera até aquele ponto. Na verdade, obteve sua cópia em troca de quase toda a biblioteca que tinha. Ao explicar a gênese da peça a Charles Flamand em uma entrevista publicada na primeira edição de Le Surréalisme même (1956), Ivšić recordou como em fevereiro de 1943, durante a ocupação alemã, quando lhes era negado tudo, até mesmo a possibilidade de “caminhar à luz da lua e tocar a noite nua”, ele se permitia a “atividade gratuita, ou se preferir, a perversão monstruosa, que consiste em agrupar palavras”. Isso abriu ao poeta um universo de maldições, imprecações e provérbios como “que uma corcunda negra sobre as costas”, menos uma imitação da tradição folclórica dos Balcãs do que uma nova maneira de enxergar a experiência passada.

A prática proporcionou a Ivšić a chave para criar um núcleo poético em que a criação de uma maldição ou uma jura era acompanhada do surgimento de uma imagem inesperada. “Que lhe cavalgue a sarna, urso bicudo”. Ele acreditava que essas expressões se prestariam admiravelmente ao diálogo teatral por causa da condensação extrema que o palco exige. O diálogo assim inspirado se tornou a primeira cena de Rei Gordogan, um bufão tirânico e sedento de sangue que corta as orelhas de seus súditos para saber que já pagaram seus impostos e manda arrancar um olho dos que não pagam. Adiante, o vemos exultante frente ao prospecto de enforcar seu filho único, que descreve como um de seus melhores momentos. Um ex-cavalariço que usurpou o trono de seu provecto predecessor, o bom Rei Branco, mantém a filha do rei prisioneira em uma torre branca à beira de uma floresta. Uma indicação do quanto a peça de Ivšić nos afasta da moral convencional é o fato de que a princesa não se ressente de seu captor e, pelo contrário, está agradecida por ele ter assumido a difícil tarefa de governar:

 

Ele reina em meu lugar e foi o que me disse reinar não é tão fácil quanto no tempo de meu pai, o Rei Branco. Hoje, para manter a ordem do reino, precisa esganar com as próprias mãos uns dez mil súditos por dia. Imagine só que trabalheira seria isso se reinasse eu! Depois de esganar uns cinco, minhas mãos pálidas estariam dormentes de cansaço. E quantos ainda restariam para esganar? Dez mil menos cinco! Faça você mesmo as contas, já não me lembro mais da aritmética (II, 4).

 

A lógica do rei para eliminar a pobreza do reino combina com isso, uma vez que ele irá taxar os pobres seis vezes mais, enquanto isenta os ricos de qualquer tributo. Faz-se acompanhar do Arranca-Olhos Real e do Corta-Orelhas Real nas suas viagens fiscais, que se tornaram muito menos frutíferas em moedas de ouro ou partes de corpos já que, no momento em que se passa a peça (o tricentésimo dia de seu reinado), restaram muito poucos súditos para fornecer umas ou outras, como lamenta o Arranca-Olhos Real que o Rei lhe pergunta sobe a féria do dia:

 

Só doze, meu rei, valha-me minha pobre mãezinha! Cinco cegos, cinco caolhos e um par de vesgos.

 

A única ameaça ao reinado de Gordogan é um estranho cavaleiro que chegou recentemente ao reino e que Gordogan acredita ter sido previsto em profecia como um encrenqueiro em potencial. A situação se complica pelo fato de que o jovem cavaleiro só pode ser morto por alguém que nunca tenha matado, o que, como diz o Bobo da Corte de Gordogan, o deixa em perfeita segurança naquelas terras. Gordogan escapa da ameaça dando ao cavaleiro uma bebida feita com a erva do esquecimento. Sem a distração do dever, o cavaleiro se apaixona pela mulher selvagem da floresta, que aterroriza os moradores restantes. Espreita invisível à noite, sua presença revelada apenas por sua gargalhada louca (que Radovan via como uma resposta violenta ao riso dos criados arrogantes de Molière, que, em sua opinião, desde o momento em que pisam sobre o palco, ocupam espaço demais no teatro com seu bom senso sadio e sua mediocridade triunfante).

Enquanto Gordogan se prepara para enforcar o filho, a quem logo se une no cadafalso a Princesa Branca, o Bobo da Corte varre o horizonte com os olhos em busca frenética pelo cavaleiro — a única chance de resgate do casal. Sua felicidade ao ver o cavaleiro e Joline surgindo ao longe o faz cair do telhado, quebrando o pescoço; o carrasco cumpre sua função e o cavaleiro se vai com Joline, completamente esquecido de seu propósito original e desesperadamente apaixonado. Agora a sós no reino depois de matar o último de seus súditos, Gordogan contempla o futuro: “Que me nasça uma cauda na testa se sei o que fazer agora”. Ele logo tem uma ideia e vai em direção à floresta para derrubar as árvores uma a uma.

Vale notar que a peça não é uma alegoria política como a que encontramos no teatro engajado de autores como Brecht. Para Ivšić, era de suprema importância que a dimensão crítica — eliminada pelas necessidades da ideologia — pudesse emergir, sem o quê não seria possível qualquer inovação da dramaturgia. Ivšić observa que é por isso que peças escritas em nome de uma ideia ou uma ideologia não valem nada elas estreitam horizontes em vez de abri-los para a magia da coincidência e do inesperado.

Gordogan somente seria apresentada ao vivo em uma transmissão de rádio francesa de 18 de abril de 1956. E quando foi levada ao palco pela primeira vez por uma companhia de teatro francesa, foi por mera coincidência que a estreia se deu no castelo ancestral de Sade, o Chateau La Coste.


Ao contrário das expectativas, as coisas só pioraram quando o governo comunista de Tito libertou a Croácia dos nazistas e assumiu o controle sobre a Iugoslávia. A repressão continuada de seu trabalho pelo novo governo, sob os mesmos pretextos do anterior, veio como um choque para Ivšić e seus companheiros poetas. Ficou estupefato ao descobrir que as autoridades comunistas usavam as mesmas justificativas para proibir sua obra que os fascistas recém-vencidos. Ele relata como, a certa altura, imaginou se estava enlouquecendo, ou se apenas era burro demais para entender a sutileza da política cultural do novo governo. Logo ficou claro que, para as autoridades, não existia atividade artística legítima além das fronteiras do realismo socialista. E tudo era complicado pelo grande número de artistas, inclusive amigos e pessoas que ele admirava, que tinham facilidade para dar de costas para o passado e assumir cargos na nova ordem que se instalara. Uma de suas mais cruéis decepções foi ver o iugoslavo Marco Ristic, antes ativo na animação surrealista, converter-se em porta-voz do novo regime. Ele, que fora companheiro de André Breton, renunciou inteiramente às suas atividades passadas e foi nomeado embaixador em Paris. Incapaz de fazer concessões assim, Ivšić viu-se impossibilitado de montar suas peças ou publicar seus poemas. Procurou manter vivo seu trabalho na dramaturgia com o uso de fantoches e marionetes, mas apesar de alguns resultados positivos, a situação se revelou por demais frustrante para que ele persistisse. Voltou-se para a tradução para pagar as contas. Entre os autores que traduziu do francês estavam Maeterlinck, Molière, Rousseau, Proust, Apollinaire, Ionesco e Breton.

Em 1954, Radovan Ivšić finalmente conseguiu fugir de Zagreb e migrou para Paris, aos 33 anos de idade. Poucos dias depois de sua chegada, já havia conhecido o poeta surrealista Benjamin Péret e, pouco mais tarde, encontrou André Breton. Este, impressionado com sua leitura de King Gordogan, que descreveu como uma obra ímpar, “forrada do orvalho da inocência primordial”, logo convidou Ivšić a participar das reuniões diárias do grupo surrealista francês que se realizavam no café Le Musset. Dali até a dissolução formal do grupo em 1969, Ivšić teve participação proeminente em todas as suas atividades. Embora seus textos e fotografias surgissem em todas as publicações do grupo, ele também ficou conhecido por seu trabalho de sonorização. O sistema sonoro que instalou na galeria que abrigou a exposição surrealista internacional de 1959 sobre Eros criou tumulto por seu uso sem precedente dos sons do sexo. Como recordou Ivšić, ao contrário da maioria das aberturas, aquela foi caracteristicamente silenciosa, com os convidados mesmerizados pelos suspiros e murmúrios gravados que preenchiam a galeria.

Foi pouco depois de sua chegada à França que Ivšić escreveu Aquarium, um pesadelo sem fim nem divisão em atos, inspirado por um sonho que teve enquanto ainda vivia em Zagreb. O sonho teve tal impacto sobre ele que imediatamente o anotou sob o cabeçalho: “Nos é permitido sonhar?”.

Aquarium se dá em um campo de concentração, um dos muitos moedores de carne claustrofóbicos da época, para o qual um jornalista é enviado para escrever um artigo contrário às mentiras espalhadas por elementos hostis, falando “das atrocidades supostamente cometidas em nossos campos exemplares”. A personagem logo se vê enredada na linguagem dupla das autoridades do campo. Questionam a validade dos documentos que o protagonista revela e buscam provas de que ele tem más intenções e deveria ser preso como inimigo do estado. Ele, por sua vez, permanece inconsciente da hostilidade que segue cada movimento seu por causa da chegada de Plume, uma ex-amante que ainda é dona de seu coração. Aqui, a violência não é causada por um tirano sanguinário e se apresenta de natureza mais psicológica: seu alvo principal é a mente. Muitos dos oficiais do campo são incapazes de falar com lucidez por estarem permanentemente imersos na linguagem dupla. Todo o diálogo se dá em círculos viciosos, assim esvaziando e encapsulando o espaço dramático em uma prisão absurda e inexpugnável. A peça termina com os soldados arrastando Plume e o jornalista para fora do palco em direções opostas depois que a única defesa de que ele dispunha contra a autoridade, sua cédula de identidade, voa para fora de seu sapato e cai sobre o palco. Antes que ele a possa recuperar, a Orelha de Casaco de Couro, representante da polícia secreta na prisão, a guarda no bolso, entregando-o assim em definitivo ao mundo do campo na qualidade de prisioneiro.

Jean-Paul Goujon, em seu prefácio da obra teatral completa de Radovan Ivšić publicada pela Gallimard em 2005, descreve Aquarium como uma peça que incorpora a tensão e a ansiedade inerentes à vida em um país desprovido de esperança, onde até os sonhos são perseguidos como animais selvagens. Radovan, contudo, não imita a dupla linguagem usada por carcereiros de todos os tipos. Em vez disso, a substitui por um balbuciar vazio sobre temas diversos, do oferecer dentes de alho como se fossem cigarros à filatelia, sem jamais omitir o fato de que todas essas conversas são alimentadas pelos horrores dos atos dos falantes, mas apenas evidenciando isto abertamente quando uma jovem que tenta fugir do campo é morta a tiros e arrastada para longe com a cerimônia que se daria a uma galinha do abatedouro. Aqui, Ivšić usa a subversão poética para realizar aquilo que Péret chamou de “retificação do universo”, escancarar os horizontes que uma representação meramente realista da situação deixaria deprimentemente estreitos.

Se Aquarium pode ser encarada como uma espécie de antítese de Rei Gordogan em relação aos horrores que definem a modernidade, Ajaxaja combina elementos das duas peças e acaba por concluir onde tudo começou, num espetáculo sangrento que se revelou profético da carnificina que iria desmembrar a Iugoslávia pouco mais de uma década depois da estreia da peça em Belgrado (ficando em cartaz por uma semana antes de fechar em definitivo por “dificuldades técnicas”).

Em Ajaxaja, nos vemos em um mundo onde é moralmente impossível respirar porque as palavras que nos dão fôlego foram envenenadas. Como observou Goujon, a língua dos assassinos é incessantemente reproduzida em segundo plano, como “uma litania homicida”. A tensão da peça é prenunciada em seu subtítulo, il moci reci [pouvoir dire em francês], que significa tanto o poder de falar quanto a fala do poder o “decreto” [diktat]. A capacidade de falar é implacavelmente combatida por aquilo que o poder diz, criando o eixo sobre o qual gira a liberdade. Esse poder é inicialmente demonstrado na personagem do diretor, que é o ditador do teatro, mas um lacaio servil dos detentores do poder. Essas Autoridades, a Obra Completa (surgem no palco como uma estante de livros móvel, cheia de antigos volumes), o encara como um animal de estimação útil para o qual podem jogar um osso de quando em quando, sob a forma de um patrocínio, ou de uma medalha cultural. Aqui, o extermínio mental que opera em Aquarium evoluiu radicalmente para um mundo dominado pela lavagem cerebral e por slogans de servidão: “Se és pelo progresso, que sejas pelo progresso. Todo o poder cabe ao poder”. O último poeta, vestindo um escafandro, é ouvido em um sussurro silencioso constantemente interrompido pelos rugidos dos capangas que protegem as autoridades. Incapaz de sequer imitar a dupla linguagem de seus senhores, na qual um veneno invisível destruiu as palavras, invertendo seu significado, os mottorrors falam apenas em rosnados truncados que soam mais como as máquinas que montam do que como uma língua. O solilóquio final do mergulhador sobre a morte da linguagem é abruptamente interrompido quando os motorrors cortam seu duto de ar.


O papel do teatro como máscara cultural de uma autoridade opressora é abalado e por fim derrubado com a aparição de Ajax, vindo do antigo teatro grego, e de Xaja, que vem de um futuro distante. O improvável amor entre os dois abala a própria fundação do mundo e artista e ditador são consumidos quando a violência cultivada dos guardiões da ordem rompe suas amarras em um derradeiro frenesi que ataca a todos indiscriminadamente. Como em Rei Gordogan, na última cena todos estão mortos, exceto Ajax e Xaja, que desaparecem no horizonte como seus equivalentes, o Cavaleiro e Joline, deixando apenas uma figura sanguinária a contemplar a carnificina. Concluindo a evolução iniciada em Rei Gordogan, Ajaxaja se encerra com a personagem de um mensageiro, que ao longo de toda a peça surgiu apenas como observador, dizendo a única fala que tem em toda a obra. Observando calmamente os destroços das Obras Completas e os capangas que se mataram a todos num frenesi sangrento, o mensageiro – um jovem angelical – encara a plateia de frente e diz, numa previsão amarga do porvir: “Não foi sangue o bastante para o meu gosto. Quando eu crescer, vocês irão ver o que é sangue”.

A obra de Radovan Ivšić gira em torno de diversos elementos-chave que podem ser reduzidos a Amor, Liberdade e Linguagem. São intimamente interdependentes e, como se dá com a peste, a infecção de um elemento rapidamente se alastra para os demais. Por outro lado, como observa Annie Le Brun, a saúde radical de um pode rapidamente recuperar os outros. Nessas peças, é nas figuras de amantes Joline e o cavaleiro Knight, Plume e o Jornalista, Ajax e Xaja, que reside o poder. Eles podem não vencer os horrores que os cercam, mas a paixão incondicional que compartilham lhes dá forças para desertar, preservando sua liberdade (Plume e o Jornalista têm a chance de fugir, mas esta se perde quando ele se volta para recuperar a cédula de identidade, assim demonstrando sua incapacidade de abrir mão de tudo em nome do amor).

Para Radovan Ivšić, a liberdade é impossível num mundo onde o amor é impossibilitado — e, ao mesmo tempo, o amor que abandona “as fórmulas pré-fabricadas esculpidas para canalizá-lo em um formato aceitável” tem o condão de fazer ruir em torno de si esses sistemas (como mostra Ajaxaja). Mas apenas uma língua vital que contenha “as palavras vivas da memória, o sol, a lua, as estrelas, os animais (...)”, como escreveu Annie Le Brun, terá a faculdade de trazer consigo as repercussões reais que dão à poesia sua presença formidável. A dupla linguagem que tem a palavra em todas as sociedades modernas, sejam elas totalitárias ou neoliberais, é por demais flácida e asséptica para dar às palavras tal força. Aliás, o propósito da dupla linguagem é garantir que as palavras sejam incapazes de nutrir qualquer coisa além das atividades que sustentam a existência dos donos do poder. É por isso que Radovan Ivšić afirma:

 

A questão central que hoje se coloca é: como impedir o estabelecimento de uma relação coercitiva com a linguagem? Termos sucesso em dominar a linguagem, ou seja, domá-la, domesticá-la e, por fim, escravizá-la da mesma forma que tentamos escravizar a natureza?

 

Isso se repete com implicações ainda mais aterradoras na pergunta que a companheira de Ivšić, Annie Le Brun, faz em seu livro A Sobrecarga de Realidade:

 

Da mesma forma que grãos e verduras passam por interferências sob o pretexto de deixá-los mais resistentes a pragas (…), entre as palavras que, somos levados a crer, ainda são capazes de provocar excitação, não há mais nenhuma que não opere ativamente contra as ideias que dizem exprimir.

 

Para Ivšić e outros que clamam pela saúde insolente do pensamento surrealista, o único espaço capaz de conferir ao indivíduo a força necessária para recusar o mundo tal como se nos apresenta — dedicado a reforçar tudo que há de inaceitável na condição humana — é a presença material do espaço imaginário. Quando reconhecemos que as palavras vivem em nós assim como nelas vivemos, podemos conquistar acesso àquilo que Ivšić chama de “uma liberdade e uma gravidade estranhas”. Ele prossegue, dizendo:

 

A poesia não é mais o domínio de especialistas ou estetas: é a vida submetida à prova pelo pensamento, é o pensamento submetido à prova pela vida; é o corpo interrogando a imaginação; e a imaginação interrogando o corpo.

 

Como apontou Alain Joubert,

 

Para Ivšić, é de fundamental importância “restituir à língua sua verdadeira vida […], chegando de um salto só ao nascimento do significante”, algo que Breton recomendou há tempos. O autor, assim, se coloca na posição de inspirar a imagem por meio de indução para que se forme ou não na mente do leitor, em vez de ser a ele fornecida irrevogavelmente impressa sobre o papel. Uma imagem latente então surge a jusante da linguagem, permitindo que o leitor a crie, em parte, pessoalmente, enriquecendo-a através do aclaramento, fazendo com que se desloque magicamente do estado de evocação para o de revelação.

 

Como escrevi no começo deste texto [redigido para a apresentação de Rei Gordogan em Nova York, em 1997], a verdadeira importância da obra de Radovan Ivšić está no fato de que “o desejo jamais faz uma caricatura de si; de que a infelicidade que há no mundo não se confunde como mundo; e de que a inaceitável condição humana não é fruto de maldição divina, mas uma subordinação dos ritmos do desejo às forças que apenas procuram extinguir a paixão em prol do próprio bom funcionamento”.

É que a poesia ou é sempre essencialmente diferente, ou não existe... jamais segue as próprias pegadas e sempre diverge da expressão dominante de seu tempo. É por isso, talvez, que Saint-John Perse se referiu ao poeta como a “consciência pesada” de seu tempo.

As autoridades em Ajaxaja prometeram erguer “estádios trovejantes sobre as ruínas do teatro”. Numa época em que se promove o medo e se promete uma segurança impossível em troca da liberdade de pensar e amar como se deseja, Radovan Ivšić nos lembra que o teatro é perigoso, mas apenas o será

 

Uma vez que se recuse a servir

Uma vez que não mais cante loas aos poderosos

Uma vez que não mais se curve ao ouro

Uma vez que cante o amor

Uma vez que cante a vida.

 

NOTA

Tradução de Allan Vidigal.

 


JON GRAHAM
| Escritor e artista gráfico, vive atualmente em Vermont. Foi membro do Grupo Hydra na década de 1980. Trabalha como editor de aquisições para a editora Inner Traditions desde 1996. Ele também é tradutor do francês para o inglês, especializado em livros sobre surrealismo, tradições esotéricas e folclore. Os livros que traduziu incluem A Imaculada Conceição de André Breton e Paul Éluard, Pequena Anatomia do Inconsciente Físico de Hans Bellmer, A Sobrecarga da Realidade de Annie Le Brun, Ajaxaja de Radovan Ivsic, Os Illuminati da Baviera, de René Le Forestier, e Demônios e Espíritos da Terra, de Claude Lecouteux.

 


ANA SABIÁ
| Artista visual e pesquisadora independente. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), mestra em Psicologia Social (UFSC) e graduada em artes visuais pela FAAP (SP). Participa ativamente da cena fotográfica contemporânea de exposições, palestras, mostras e festivais em todo o território nacional. Em 2017 foi premiada com o 1° lugar (categoria foto única) no 13° Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco (RJ); com o 2° lugar do júri oficial do Prix Photo Web Aliança Francesa e selecionada em convocatória do SESC Galerias, para a mostra individual “Do porão ao sótão” itinerante em três cidades catarinenses. Em 2019 foi selecionada para a mostra coletiva “Vento Sul” no 9° Foto em Pauta Festival de Fotografia de Tiradentes (MG) e convidada pela curadoria da 14ª Bienal Internacional de Curitiba para integrar a programação com a mostra individual “Panorâmicas do Desejo”. Em 2020 foi selecionada no edital “Arte como respiro” do Itaú Cultural (SP); também selecionada no 25° Salão Anapolino de Arte (GO) e, neste mesmo ano, na leitura de portfólio do FESTFOTO (POA), obteve o Prêmio Aquisição do Museu da Fotografia de Fortaleza.
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 01

Número 200 | janeiro de 2022

Artista convidada: Ana Sabiá (Brasil, 1978)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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