O importante lugar de Medková na história do surrealismo
tcheco do pós-guerra também se reflete na sua posição naquilo que pode ser corretamente
chamado de tradição tcheca da fotografia surrealista, que abrange não menos que
setenta anos (até os dias de hoje, com o ainda ativo grupo surrealista tcheco e
eslovaco) e muitas de cujas atitudes e cujos temas ela exemplifica. Embora informações
sobre esse campo tenham se tornado mais facilmente acessadas depois da Revolução
de Veludo de 1989, essa intrigante história permanece quase totalmente desconhecida
do público para além da Europa Central e uma inspeção mais detida revela ricos contrastes
com a fotografia surrealista do Norte europeu (o que costuma significar baseado
em Paris), com que o público e os leitores estão familiarizados. É fácil mencionar
mais de uma dúzia de fotógrafos surrealistas tchecos (e um número significativamente
maior, se incluirmos aqueles que utilizam suporte ocasionalmente), todos eles com
ligações diretas com grupos surrealistas e muitos – ao contrário dos “astros” da
fotografia surrealista francesa, como Brassaï, ou Boiffard – fortemente comprometidos
com posicionamentos surrealistas. Se, na França, a importância do surrealismo para
o grupo parece ter diminuído depois da Segunda Guerra Mundial, na Tchecoslováquia
a fotografia se desenvolveu lado a lado com os debates críticos do movimento; e,
a todo tempo, surge de grande parte das imagens um senso notável de continuidade
e comunidade, parcialmente alimentado pela geografia político-cultural altamente
específica para a qual suas lentes se voltaram. [1]
Talvez não surpreenda que as primeiras fotografias de
Medková, como Cascata de Cabelos, de 1949,
pareçam uma espécie de sumário do uso que o surrealismo pré-guerra fez da fotografia
construída e do objeto surrealista tipificado pela obra de Man Ray. Tendo estudado na juventude com Josef Ehm, no departamento
de fotografia da Escola de Artes Gráficas de Praga, ela ali teria conhecido outras
figuras proeminentes da fotografia vanguardista, como Jaromír Funke e Eugen Wiškowský,
e é mais do que provável que em seus corredores fosse corrente uma consciência viva
e informada da prática visual surrealista tanto tcheca quanto internacional. [2] Formado em Praga em 1934 e em vários
sentidos uma decorrência lógica da vanguarda tcheca da década anterior, o grupo
surrealista tcheco gozou de alta visibilidade pública antes que a guerra levasse
ao seu apagamento temporário, estabelecendo ligações internacionais e uma credibilidade
intelectual que mantinha diálogo com seus pares em Paris e, ao mesmo tempo, deles
facilmente se distinguia. Durante esse período, embora Medková provavelmente fosse
jovem demais para tê-los visto em primeira mão, lugares como a Galeria Mánes apresentaram
grandes exposições tanto do surrealismo internacional quanto da fotografia de vanguarda
em sentido mais amplo vinda da Alemanha e da França, e as imagens também estavam
prontamente disponíveis em versões impressas. De certa forma, apesar da guerra,
o surrealismo ainda permaneceu em grande medida “no ar” na Praga da década de 1940,
e nessa época se formou mais de um grupo de jovens artistas plásticos, escritores
e fotógrafos declarando-se simpatizantes da causa surrealista.
Cascata de Cabelos, como muitas das imagens que compõem o ciclo Jogo de Sombras de Medková, do final da década
de 1940, apresenta aparições incômodas, a migração de significados entre objetos
(ovo/olho, água/cabelos), e o vaguear desgovernado entre os mundos natural e humano,
presente em grande parte da pintura surrealista da década de 1930. Fortes contrastes
dão às sombras uma qualidade densa e oblíqua que contém tanta verdade quanto o objeto
“real” que as lança – como que para sugerir o status da imagem fotográfica surrealista
com algo que, por mais deslocado que pareça, ainda assim insiste em igualdade de
condições com o mundo que a projeta; uma sombra feminina menos definida – imagina-se
que da própria fotógrafa, o único “objeto” ausente – encara a cena com um gesto
hesitante, sua presença enquanto pessoa menos certa do que a estranheza das sobreposições
contra uma parede luminosa e imaterial como um espelho. A referência externa mais
direta da fotografia, de fato, é a pintura O Mito da Luz, realizada pela pintora surrealista
tcheca Toyen (uma personagem importante do grupo pré-guerra) em 1946, o ano anterior
da partida definitiva de Medková para Paris: no quadro, a sombra de uma figura masculina
lançada sobre uma porta parece segurar uma planta cujas raízes finas caem como tranças,
acompanhada de mãos femininas calçando luvas, imitando a sombra de um cão de guarda.
Já naquela altura, a oferta de respostas fotográficas aos enigmas criados pela pintura
se tornara um tema para Medková, e a obra de Toyen em especial (outra grande surrealista
tcheca cuja relevância nos guias oficiais deveria ser revista) permaneceria uma
referência importante para ela, ainda que com resultados muito diferentes.
Ainda que um tanto forçadas em suas dramatizações, as
fotografias montadas desse período trazem a atmosfera de passatempos um tanto febris,
como se produzidas enquanto se aguardava por alguma outra coisa. Muitas foram realizadas
em parceira com o pintor Mikulás Medek, que ela conheceu na Escola de Artes Gráficas
em 1942. Juntos, e do final da década de 1940 até o falecimento de Medek em 1974,
os dois formaram um casal cuja parceria parece ter sido uma fonte fértil de intercâmbio
criativo e intelectual, operando em um jogo complexo claramente produtivo para as
obras de ambos (embora o desfavor de Medek perante as autoridades tchecas durante
a década de 1950 tenha tido impacto significativo sobre a maneira como Medková pôde
levar adiante sua carreira, obrigando-a a trabalhar como fotógrafa técnica enquanto
o marido ficava em casa para cuidar da filha que tiveram). O ano de 1951, em que
os Medeks se casaram, também foi aquele em que o casal se uniu às atividades revividas
do grupo surrealista tcheco formado em torno do escritor, artista plástico e designer
Karel Teige. Teige, já uma figura proeminente da vanguarda tcheca no começo da década
de 1930, fora o principal teórico do surrealismo tcheco pré-guerra, mas as fugas,
mortes e migrações que levaram ao desmantelamento do grupo durante a ocupação fizeram
dele um sobrevivente solitário. Foi muito gradualmente que uma geração mais jovem
de escritores e artistas plásticos se reuniu ao seu redor na virada da década.
É significativo que, justamente nessa época, o trabalho
de Medková tenha passado por uma mudança importante, afastando-se das fotografias
montadas que tanto lembravam o auge do surrealismo francês pré-guerra em direção
a um modo documental mais duro e crítico. Embora imagens desse tipo já estivessem
presentes no portfólio de Medková desde os anos 1940, daquele ponto em diante ela
abandonou totalmente os retratos e os elementos interiores e construídos, passando
sua obra a consistir inteiramente de imagens descobertas no mundo exterior das ruas,
dos subúrbios e dos ermos; os processos lúdicos de suas primeiras obras foram abandonados
em troca da realização direta de imagens. Restaurante, de 1956, parte do ciclo Registros, é um caso típico do contexto urbano, da frontalidade, do
detalhamento médio ou em close, e da aparente
austeridade de muitas de suas fotografias. Imponente e formal, um edifício se ergue
sobre uma esquina e anuncia seu convite em maiúsculas garrafais: Restaurace.
Mas, ao baixar os olhos, o viajante faminto depara apenas com a negativa fantasmagórica
de uma porta de entrada: a não ser pelo lintel, por intervalos intermitentes no
estuque e a reveladora palidez da massa corrida na parte inferior da parede, a entrada
foi completa e obsessivamente encoberta, como se fosse uma foto censurada para apagar
um membro do partido que caiu em desgraça. Uma placa menor e borrada dizendo “bilhar”
e restos de um pôster também evidenciam um esforço deliberado para legar o que tão
desbragadamente anuncia a placa – assim como o teimoso título da foto. Minúsculos
remanescentes de graffiti a giz, na altura de uma criança, são as únicas coisas
que escapam à censura.
Dadas as condições socioculturais da Tchecoslováquia
no pós-guerra, seria muito difícil não interpretar a imagem como uma declaração
crítica e p0litizada. Os temas de bloqueio e de comunicação cancelada ou impedida
nela encontrados são, com efeito, características de muitas das fotografias de Medková
nos anos 1950 e começo dos 1960 (e, aliás, de muitos outros fotógrafos surrealistas
tchecos daquele período). Dois de seus principais ciclos, agrupando imagens com
temática comum, foram intitulados Fechado e Sinais. Essa tendência
de conceber de sua prática em termos de ciclos, e não de fotografias isoladas, é
típico da fotografia surrealista tcheca e dá peso à interpretação de que as imagens
devem ser interpretadas como partes de um debate ativo – evidência de uma vigilância
constante sobre o mundo do dia a dia – e não como tentativas autônomas de capturar
momentos, ou encontrar formas definitivas. Embora os limites entre os ciclos muitas
vezes pareçam flexíveis no caso de Medková e cada ciclo em aberto possa sinalizar
uma categoria de preocupações abrangendo diversos anos, também tiveram o efeito
de conferir à prática da fotógrafa de maneira geral dinamismo e mobilidade para
combater o rigor aparentemente estático de muitas obras individuais, de tal maneira
que, como sugere Petr Král, “fotografias separadas tendem a desaparecer para dar
lugar a uma ‘trajetória’”. [4] É nesse
sentido que, tomadas como declarações encadeadas, as obras de Medková podem ser
consideradas como uma tentativa de gerar uma linguagem nova, porém coerente, articulando
a perversidade e a decadência do significado e das ideais sob controle estatal,
de uma maneira capaz de escapar das amarras segundo as quais toda forma de linguagem
era quase universalmente considerada falida. Um grande tema dos debates internos
do grupo surrealista tcheco nos anos 1950 e 1960, articulado com máxima clareza
na declaração conjunta dos surrealistas tchecos e franceses de 1968, a Plataforma de
Praga, era a crítica da linguagem manipulada e reduzida por sistemas
repressivos, paralisando as estruturas tanto de significado quanto de pensamento.
[5] O foco repetido de Medková sobre
sinais e símbolos – e sobre seu par clandestino, o graffiti – muitas vezes tendia
a revelar os meios pelos quais o bloqueio físico do espaço politizado na Europa
Central do pós-guerra era também acompanhado de novos impasses mentais, do desvio
ou impedimento de canais de comunicação.
Imagens como Explosão, por outro lado, sugeriam que a
própria tessitura do ambiente urbano começava a se transformar simpaticamente com
a modificação da morfologia mental ao seu redor. Diferente da “Praga mágica” que
hoje atrai turistas, em 1959 uma casa poderia ser um calabouço, uma porta poderia
ser uma mandíbula, o monocromático capturando o câncer a corroer superfícies e expor
fissuras. [6] Para muitos dos surrealistas
que enfrentavam o clima político da Tchecoslováquia dos anos 1950, onde a vida rotineira
podia ser dominada por reversões absurdas de valores e significados, o mundo real
dos objetos e espaços físicos – e não o da imaginação ou do inconsciente – era o
único palco válido e relevante para agir. Os Medeks ofereceram uma resposta conjunta
à Segunda
Investigação sobre o Surrealismo, deixando esse posicionamento muito
claro. Ainda que parte da terminologia possa ter ecoado os textos surrealistas franceses
da década de 1930, o argumento era usado em um contexto muito diferente:
Acreditamos que a irracionalidade concreta e o concreto
irracional sejam os pré-requisitos da poesia moderna autêntica e de um sentimento
moderno quanto à vida. (…) Esta realidade [a de 1953] é um espaço dentro do qual
se reflete o todo do caos sistematizado do mundo; não é possível negociar com tal
realidade.
Qualquer poesia que negocie e regateie com essa realidade,
seja em nome da humanidade, seja em nome da beleza, não é poesia de autenticidade
plena. [7]
Os habitats que a obra de Medková documentou e a realidade
social que confrontou eram o verdadeiro aqui-e-agora do ambiente que a cercava.
Desde o começo dos anos 1950, ela começara a frequentar bairros específicos de Praga
como o Libeň e o Karlín, concentrando-se, por exemplo, em ruas como a Kotce, com
suas lojas populares. Ainda que, nos anos 1960, o tema específico das fotografias
produzidas frequentemente se tornasse de mais difícil leitura, as obras continuavam
a insistir no fático, sempre exibindo objetos reais e concretos (e normalmente estáticos).
[8]
Fotografias como Explosão insinuam um humor seco e amargo,
típico dos poemas e das pinturas do surrealismo tcheco no pós-guerra, mas não de
forma a se enquadrar facilmente nas características de “humor negro” de André Breton
no surrealismo francês dos anos 1930 e após. Na verdade, como já reconheciam os
tchecos, as condições para o riso eram radicalmente diferentes. Vratislav Effenberger,
que assumira a liderança de fato do grupo depois da morte de Teige, observou essa
mudança e como sua natureza onipresente e concreta fez da fotografia a testemunha
natural:
Debates internos do grupo de 1951 em diante não só destacaram
a insistência em uma atitude concreta e crítica decididamente oposta às novas condições
materiais encontradas com também exigiram a necessidade de repensar e criticar os
princípios e a mitologia do próprio surrealismo. Evidências obtidas das investigações
internas, diversas das quais com participação de Medková, demonstraram que uma prontidão
franca para contestar e rever o surrealismo tanto francês quanto tcheco do entre
guerras – uma atitude autocrítica e reformista que parece ter sido bem mais tímida
no grupo que se reconstruiu em torno de Breton na Paris pós-guerra. [10] Tendo surgido do movimento Devětsil
dos anos 1920, com um otimismo caloroso quanto ao mundo moderno e sua promessa de
uma nova sociedade tcheca, o surrealismo tcheco dos anos 1930 também continha elementos
que, posteriormente, pareciam desavergonhadamente positivos. Se seu poeta maior,
Vítěslav Nezval, pôde escrever
Amo a magia do desespero
Mais tímida do que o pássaro macio
Jamais a subscreverei, mas ainda assim
Adeus ou passar bem, coisinha de nada [11],
parecia, em retrospecto expressar uma inquietude lúdica
de plumagem muito diferente da negação e do pessimismo posteriormente exigidos.
Com efeito, Effenberger chegou até a ter sérias dúvidas sobre a relevância continuada
do termo “surrealismo”, preferindo, em seu lugar, “poesia objetiva” para enfatizar
a determinação coletiva de abandono do ímpeto utópico e de forte imaginação do surrealismo
dos anos 1930, que, sob a luz inclemente da Praga dos anos 1950 agora parecia não
só desalinhado com os novos tempos, mas, também, de um idealismo suspeito. [12]
Os registros que Medková fez de fantasmas urbanos, como
Torso,
de 1965, parecem, dessa forma, flutuar entre a reflexão e o repensar das possibilidades
da produção surrealista de imagens. Frequentemente despojadas, resultado de um olhar
fixo, e não de um relance afortunado, parecem por vezes ter muito mais em comum
com as correntes mais tardias e conceituais da fotografia documental europeia do
que com os jogos de estranheza típicos das artes plásticas e da fotografia surrealistas.
Ainda assim, essas imagens muitas vezes também lembram muito a pintura surrealista
tcheca com que Medková decerto estava muito familiarizada: os torsos esquálidos
em tons ocre encontrados nas obras de Medek desde o começo dos anos 1950, ou as
formas semelhantes na obra de Josef Istler, e, em especial, a série assombrosa e
ambígua de Espectros de Toyen, realizada a partir de 1934, caracterizada
por textura e coloração que implicam superfícies de estuque, o que sugere fortemente
que a motivação de Medková é, em parte, o desejo de encontrar e fixar evidências
físicas capazes de “comprovar” a pintura surrealista. Em outro plano, a situação
das operações de Medková na busca pelo maravilhoso urbano – ainda que sob a forma
da poesia sinistra da nova república e não da efervescência romântica que seus antecessores
encontraram – tanto enquadram sua obra em uma tradição surrealista bem estabelecida
quanto a fazem (como a tantos outros fotógrafos surrealistas tchecos) herdeira de
uma linhagem estabelecida por Jindřich Štyrský em sua breve, porém influente, fotografia
urbana de 1934-1935. [13] Como Štyrský,
o tema de Medková tendia para objetos e espaços em vez de pessoas. Bastante carente
das táticas de choque ou da insinuação libidinosa da arte surrealista “clássica”,
negando quaisquer sonhos utópicos de desejo incorporado, ainda assim corpos e identidades
estão por toda a parte das fotografias de Medková, descobertos e frequentemente
reconhecidos (uma vez que por vezes têm nomes). Como observou Alena Nádvorníková,
o antropomorfismo começava a se tornar a principal ferramenta de interpretação de
Medková, um instrumento ainda mais eficaz por evitar representação verídica, frequentemente
com o título despojadamente conferido pela fotógrafa assistindo em sua função como
uma fração de frêmito entre os estados subjetivo e objetivo. [14] Torso é desprovida de sentimentalismo em
seu registro de um anjo de estuque cuja cabeça deixou um buraco na parede, como
que, arrancado da tessitura do edifício, permanecesse apenas uma impressão por flash nuclear de uma meia forma em dança,
clara como o dia, mas ao mesmo tempo ausente. Novamente, como os anéis que mostram
o crescimento das árvores, as paredes contam das vidas que testemunharam, ainda
que seus prazeres e desejos já devam permanecer petrificados.
De fato, desde seus estágios iniciais, o escopo da obra
de Medková já abrangia imagens ainda mais esparsas em sua relutância em romantizar
a forma e sua fascinação obsessiva com o detalhe. Muro, de 1951, não traz nada
além de uma superfície plana ocupando o quadro todo, menos sua parte inferior e
uma faixa de um dos lados. À primeira vista uma representação de praticamente nada,
como na parede apócrifa de Leonardo tão frequentemente citada como ancestral das
técnicas surrealistas do automatismo, os detalhes surgem gradualmente perante o
espectador, que se vê atraído e por fim sobrepujado pela riqueza do incidente: cada
fissura ínfima e cada fragmento de cascalho começam a parecer fascinantes e deliberados,
uma evocação de mapas ou da pele. Estrias e marcas suaves sobre a superfície de
estuque flutuam incertas entre o acidental e o intencional, e a aparente suspensão
do plano de estuque sobre a parte superior da superfície de pedra da parede, parecendo
flutuar logo acima do solo, fazem da parede uma tela presenteada seja às aranhas,
seja aos artistas. O foco de Medková sobre o rotineiro – o maravilhoso arrancado
à força dos lugares mais estéreis, e não simplesmente descoberto à espreita [15] – fica evidenciado em imagens como esta,
que focam os lugares mais aparentemente banais e esquecidos, carentes de acontecimentos.
Reconstruídos como um todo, esses ciclos de trabalho podem ser encarados como uma
documentação meticulosa do mundo, assemelhada à cuidadosa preservação fotográfica
que Eugene Atget realizou de uma Paris que desaparecia meio século antes. [16] De certa forma, nestas imagens Medková
se apresenta como uma Atget dos detalhes do dia a dia, registrando desapaixonadamente
a vida de cada superfície. Ao seu redor, contudo, fotografias que evocavam “o poético
dos dias comuns” viriam a se tornar clichês monótonos nas revistas e exposições
tchecas dos anos 1960, muitas vezes sugerindo um surrealismo diluído ao nível da
surpresa moderada e do sentimentalismo. [17]
Medková, pelo contrário, ao preservar seu senso de pessimismo e o contexto crítico,
compartilhados com o grupo surrealista da época, agia de maneira eficaz para impedir
que suas fotografias se tornassem preciosistas, ou cativas da imagem.
Aqui, mais do que nunca, a frontalidade que caracteriza
Medková é enfatizada. Seu uso do formato 6x6, além de permitir alto nível de detalhe
e resultar em quadros que, antes do corte, são quadrados e não retangulares, também
deve ter determinado uma atitude específica perante cada objeto: ao se apresentar
ao objeto com a câmera não ao nível dos olhos, mas abaixo do peito (uma extensão
do corpo e não da cabeça), o fotógrafo olha para baixo para enxergar o visor: um
jogo triangulado de visão entre o olho, a lente e o objeto, que tem o efeito de
distanciar e formalizar a relação entre o fotógrafo e o mundo. O resultado são imagens
que parecem ao mesmo tempo manter rigor formal (e, por implicação, moral) e em que
o olhar e a subjetividade da fotógrafa parecem consideravelmente distanciados, uma
sugestão enfatizada pelo aparente desinteresse de Medková pela técnica e sua relutância
em manipular o processamento das fotografias para além do corte e da ocasional inversão
em 90 ou 180 graus. Não obstante, a questão da presença da autora, aqui, não é de
simples descaracterização. “Fotografo para documentar situações objetivas e subjetivas
que considero significativas”, escreveu, em resposta a uma pergunta sobre os motivos
da criação no ano em que Parede foi capturada.
Ao comentar sobre uma entrevista feita com ela em 1976, Aleš Kuneš sugere que o
seu trabalho represente “uma tentativa de encontrar a própria identidade no mundo”.
[18] De certa forma, se o sujeito por
detrás da câmera se retira, é para que outra subjetividade possa ser encontrada
nos objetos mais concretos perante si. [19]
Medková continuou por toda a sua carreira a buscar imagens
baseadas em paredes e muros (que eram, assim, literalmente confrontos com obstáculos
físicos que podem ser lidos como códigos para a contenção hostil e becos-sem-saída
políticos). Nos anos 1960, especialmente, fotos como Rachadura, de 1961 (parte de todo
um ciclo de Rachaduras), se debruçaram
sobre superfícies feitas em parte de traços e em parte de decomposição que ofereciam
um paralelo marcante com o desdobramento da pintura abstrata tcheca. Como no Ocidente,
essa tendência para o Informel tinha raízes na arte surrealista
e Mikuláš Medek foi um dos principais participantes do seu desenvolvimento. Embora
muitas de suas telas se assemelhem a correspondentes luminosos e de coloração brilhante
das fotografias de paredes feitas por Medková, quer parecer que ela lhe deve ter
proporcionado uma fonte essencial de inspiração para esse aspecto de sua obra, que
somente se afastou definitivamente do figurativismo no final da década de 1950.
[20] Assim como se dá com a pintura não
figurativista, como observaram diversos comentaristas, o observador das imagens
mais abstratas de Medková e dos ciclos que elas constituem se vê obrigado a construir
para si o significado, de maneira a dar sentido ao mundo físico e reconfigurá-lo
na mente. Embora a função primária aparente da fotografia – oferecer representações
reconhecíveis que reproduzam o mundo em vez de apenas o imaginar – pareça aqui suspensa,
o espectador na verdade adquire controle, sugere Effenberger, à medida que a fotógrafa
o cede. [21] A função crítica dessas
obras, assim, permanece na desconstrução e reconstrução imaginárias das estruturas
de autoridade e significado.
Arcimboldo I
1978, encontra os retratos do pintor maneirista em uma pilha de lixo, como se até
mesmo o imperador Rodolfo II pudesse, hoje, não ser nada além da soma de bens de
consumo gastos jogados no lixão, ou apenas mais um acidente de trânsito envolvendo
celebridades. [23] A um só tempo inteligente
e desencorajadora, a fotografia também fala da lenta agonia do objeto moderno, de
sua promessa de um futuro racionalizado descartado com lixo na farsa definitiva
dos valores utilitaristas. Ferrugem, Poluição e Colapso parecem prefigurados em
todos os pontos desse ciclo. Effenberger escreveu em 1974:
A vida contemporânea representa o fim de uma civilização,
um final que não pode conter o estoque de tragicomédia que se debate nas profundezas
do ser.
Como nos revela a experiência histórica, as civilizações
não morrem em decorrência de seu colapso econômico, mas porque os valores funcionais
e de uso desses sistemas se esvaem à medida que evoluem, até que perdem qualquer
conteúdo real. [24]
Não há como não indagar a respeito de como Medková teria
documentado as mudanças radicais sob a nova República Tcheca, onde, ainda assim,
parece não haver sinal de diminuição da promessa desesperada do objeto na anexação
ruidosa da linguagem e na construção de novos edifícios de concreto e vidro em toda
esquina. Mas é possível um exercício de adivinhação informada, uma vez que a influência
de Medková e a tradição que ela representa permanecem visíveis na obra de diversos
jovens fotógrafos do grupo surrealista tcheco e eslovaco que até hoje persiste,
mantendo sua atitude crítica e seu foco sobre o irracional concreto cotidiano, documentando
a magia e o desespero de um novo milênio. [25]
NOTAS
Tradução
de Allan Vidigal.
1. Obviamente, este artigo não tem esperanças de oferecer um panorama da fotografia
surrealista tcheca, nem muito menos da complexa história do surrealismo tcheco e
eslovaco. Curadores e historiadores da República Tcheca produziram um número impressionante
de importantes publicações nos últimos 15 anos, mas essa produção acadêmica permanece
em grande parte inacessível aos leitores em outras línguas porque é raramente distribuída
no exterior e, em sua maior parte, contém apenas textos em tcheco.
Dois recentes artigos que procuram dar uma visão geral
da fotografia surrealista tcheca são os de Ian Walker, ‘On the Needles of These
Days: Czech Surrealism and Documentary Photography’, Third Text,
vol.18, no.2, 2004, e o meu ‘Objective Poetry: Post-War Czech Surrealist Photography
and the Everyday’, History of Photography, vol.29, no.2, verão de 2005 (em que diversos
dos temas e posicionamentos discutidos adiantes são aplicados a uma gama maior de
fotógrafos).
Para uma introdução ao surrealismo tcheco, ver, por exemplo,
Krzysztof Fijałkowski e Michael Richardson, ‘Years of Long Days: Surrealism in Czechoslovakia’,
Third
Text 36 (Autumn 1996); artigos da conferência internacinoal do AHRB Surrealism Centre’s Platform to Prague (Universidade de Essex
setembro-outubro de 2004) podem ser consultados no periódico Papers of Surrealism
# 3, primavera de 2005, 2005.
2. Informações biográficas podem ser encontradas traduzidas em Alena Nádvorníková
e Aleš Kuneš, Emila Medková, catálogo de exposição, Pražský Dům Fotografie,
Praga, 1995, ou (em tcheco) mais detalhadamente na importante monografia de Lenka
Bydžovská e Karel Srp, Emila Medková, Praga, 2001.
3. “INvestigação sobre o Surrealismo” (1951), republicado em Analogon,
2003, apêndice; ‘”Segunda Investigação sobre o Surrealismo” (1953), republicado
em Analogon,
2003, apêndice.
4. Petr Král,
‘La Photographie dans le surréalisme Tchèque’, in Edouard Jaguer, Les Mystères de la chambre noire: Le Surréalisme et
la photographie, Paris 1982. Jindřich Štyrský, na década de 1930,
e Vilém Reichmann e Alois Nožička, dos anos 1950 em diante, por exemplo, usaram
o formato do ciclo para moldar seu trabalho fotográfico.
5. Os grupos surrealistas tchecoslovaco e francês, The
Platform
of Prague (1968), republicado em Michael Richardson e Krzysztof Fijałkowski,
orgs., Surrealism Against the Current: Tracts and Declarations, Londres,
2001. Também pode ser relevante o fato de que o pai de Medková era tipógrafo.
6. O tema de edifícios que refletem estados mentais de angústia ou ansiedade,
frequente na obra de Medková e também encontrado em fotografias de surrealistas
anteriores, como Miroslav Hák, ou contemporâneos, como Vilém Reichmann, também é
um fio contudor importante na obra do cineasta surrealista tcheco de hoje Jan Švankmajer.
Švankmajer reconheceu sua dívida com a obra de Medková’s, visível, por exemplo,
em seu fascínio pela textura e pelos detalhes das superfícies de paredes e muros
(Walker, ‘On the Needles of These Days’). Explosão poderia ser um still de seu filme Queda da Casa
de Usher (1980). Não surpreende que outro ponto de referência para Medková
e o grupo como um todo na década de 1950 tenha sido a obra de Kafka (Král, ‘Photographie
dans le surréalisme Tchèque’).
7. Emila Medková e Mikuláš Medek, resposta á “Segunda Investigação sobre o Surrealismio”
(1953), republicado em Analogon, 2003.
8. Bydžovská e Srp, Emila Medková.
9. Vratislav
Effenberger, ‘The Negation of Negation is not Negativism’ (1975), republicado em
Analogon,
37, 2003, apêndice.
10. “Investigação sobre o Surrealismo” (1951), republicado em Analogon,
37, 2003 e “Segunda Investigação sobre o Surrealismo” (1953), republicado em Analogon,
2003; “The Position of the Stick” (1965-66), republicado em Analogon,
40, 2004, apêndice. Muitos dos textos coletivos e individuais do grupo, especialmente
da segunda metade dos anos 1960 em diante, contêm autoexames francos de posicionamentos
anteriores, e parece haver poucos indícios da reverência avençada entre os membros
mais jovens do grupo parisiense em relação a Breton e à história do passado surrealista.
11. Vítěslav Nezval, “Tarde sem Memória”, de Mulher no Plural (1936), in
Petr Král, Le Surréalisme en Tchécoslovaquie, Paris, 1983.
12. Vratislav Effenberger, resposta à “Investigação sobre o Surrealismo”. A crítica
surrealista tcheca do pós-guerra das linhas utópicas, imaginárias e subjetivas do
surrealismo pré-guerra, assim como sua determinação de operar uma crítica radical
do concreto e do cotidiano, são abordadas sucintamente em Petr Král, “D’un imaginaire
a l’autre”, in Švankmajer E &
J: Bouche à bouche, Montreuil, 2002.
13. Sobre a importante contribuição de Štyrský para a fotografia surrealista,
ver, por exemplo, Karel Srp, Jindřich Štyrský, Praga, 2001, e Walker,
‘On the Needles of These Days’, op. cit. As práticas de Hák, Reichmann, Jiří Sever
e Alois Nožička registram dívida com a obra de Štyrský’s work, uma linha gem também
visivelmente continuada entre surrealistas tchecos e eslovacos contemporâneos.
14. Alena Nádvorníková,
‘Les Photographies d’Emila Medková et l’anthropomorphisation du détail’, Surréalisme,
nº 1, 1977.
15. Para a fotografia surrealista tcheca, como sugere Petr Král, “o ‘maravilhoso’
não é algo a priori, mas um resultado: ir além das contradições deste mundo por
meio dessas mesmas contradições como etapa final de seu aguçamento” (‘Photographie
dans le surréalisme Tchèque’).
16. Foi justamente Atget, e não Man Ray ou qualquer outro fotógrafo surrealista,
que proporcionou o principal ponto de referência para a obra de Štyrský. Outra fonte
mais específica, como sugerem Bydžovská e Srp, poderia estar no manual de fotografia
de Ladislav Sutnar e Jaromír Funke Photography Sees the Surface (1935), explorando
a capacidade do meio para apresentar detalhes em close de uma gama de superfícies (Bydžovská and Srp, Emila Medková).
17. Ver Antonín Dufek, Vilém Reichmann, Česke Budějovice 1994,
Encarte em inglês sem paginação.
18. Emila Medková, resposta à “Investigação sobre o Surrealismo” (1951); Aleš
Kuneš, comentário sobre uma entrevista com Anna Fárová para Ceskoslovenska
fotografie (1976), republicado em Nádvorníková e Kunes, Emila Medková.
19. Věra Linhartová esdcreve, por exemplo, sobre os “vestígios de um sujeito
ativo fora da imagem (…) por meio de uma personificação indireta do objeto”, citada
em Nádvorníková e Kunes, Emila Medková.
20. Ver catálogo de Antonín Hartmann et al., Mikuláš Medek, Galerie
Rudolfinum, Praga, 2002.
21. Vratislav Effenberger, ‘Emila Medková’, in Analogon, 38-39 (2003), apêndice. Ver, também, Nádvorníková e
Kunes, Emila Medková.
22. Entrevista com Anna Fárová, in
Nádvorníková e Kunes, Emila Medková.
23. Mais uma vez, isso prenuncia fortemente uma animação de Jan Švankmajer, Dimensões do Diálogo,
1982. O tema do lixo e dos detritos já era, nesta altura, uma característica central
da obra ácida de outro fotógrafo surrealista tcheco, Alois Nožička, cuja obra Medková
certamente conhecia bem.
24. Vratislav
Effenberger, ‘Le Surréalisme et la civilisation contemporaine’, Change Mondial
II, Change, nº 25, dezembro
de 1975.
25. Imagens de uma nova geração de fotógrafos – para muitos dos quais a fotografia
é apenas um dos elementos de sua prática – podem ser vistas, por exemplo, nas páginas
da impressionante revista do grupo surrealista Tcheco e eslovaco Analogon,
publicada em diversas edições por ano desde 1990.
KRZYSZTOF FIJAŁKOWSK | Professor de Cultura Visual, lecionando em Belas Artes e em Pesquisa de Pós-graduação. Desde que completou seu PhD em Surreallist Object em 1991 que a sua principal área de pesquisa e publicação tem sido a história e teoria do Surrealismo, o que o levou a uma série de publicações em livros, periódicos acadêmicos e catálogos de exposições (para instituições como Tate, V&A, Vitra Design Museum e Barbican Galleries). As áreas recentes de interesse particular incluem as relações entre o surrealismo e o design; Surrealismo na Europa Central e Oriental; e Surrealismo e fotografia.
ANA SABIÁ | Artista visual e pesquisadora independente. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), mestra em Psicologia Social (UFSC) e graduada em artes visuais pela FAAP (SP). Participa ativamente da cena fotográfica contemporânea de exposições, palestras, mostras e festivais em todo o território nacional. Em 2017 foi premiada com o 1° lugar (categoria foto única) no 13° Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco (RJ); com o 2° lugar do júri oficial do Prix Photo Web Aliança Francesa e selecionada em convocatória do SESC Galerias, para a mostra individual “Do porão ao sótão” itinerante em três cidades catarinenses. Em 2019 foi selecionada para a mostra coletiva “Vento Sul” no 9° Foto em Pauta Festival de Fotografia de Tiradentes (MG) e convidada pela curadoria da 14ª Bienal Internacional de Curitiba para integrar a programação com a mostra individual “Panorâmicas do Desejo”. Em 2020 foi selecionada no edital “Arte como respiro” do Itaú Cultural (SP); também selecionada no 25° Salão Anapolino de Arte (GO) e, neste mesmo ano, na leitura de portfólio do FESTFOTO (POA), obteve o Prêmio Aquisição do Museu da Fotografia de Fortaleza.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 01
Número 200 | janeiro de 2022
Artista convidada: Ana Sabiá (Brasil, 1978)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
ARC Edições © 2022
∞ contatos
Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL
https://www.instagram.com/floriano.agulha/
https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/
Nenhum comentário:
Postar um comentário