domingo, 9 de janeiro de 2022

LUCAS HENRIQUE DA SILVA, KARIN VOLOBUEF | Hans Bellmer: objetos provocativos

 


Eu acredito que os diferentes modos de expressões: pose, gesto, ato, som, palavra, gráficos, criação de objetos, todos resultam do mesmo conjunto de mecanismos psicofisiológicos. Todos obedecem a uma mesma lei de nascimento. A que necessidade, a que impulso o corpo obedece?

HANS BELLMER, Pequena anatomia da imagem

 

Os objetos de Hans Bellmer

Hans Bellmer (1902, Katowice Polônia-1975, Paris, França) foi um dos principais artistas de origem alemã dentro do movimento Surrealista. Bellmer deixou a Alemanha para integrar o grupo de Breton em 1938. Na época, sua escultura A Boneca (Die Puppe, 1934) já havia aparecido na Minotaure. Ao lado dos surrealistas, Bellmer produziu textos, fotografias e principalmente imagens, devido à tendência para o desenho barroco, aprendido com mestres da tradição dessa arte na Alemanha. Dentro do Surrealismo, Bellmer exerceu vínculos com Unica Zürn e Nora Mitrani; era admirado particularmente por Paul Éluard e André Breton; colaborou, sobretudo, com Georges Bataille, parceria que rendeu trabalhos como Histoire d’oeil e, duas décadas depois, Madam Edwarda.

Apesar da obra de Bellmer ter impactado diretamente a história do Surrealismo e a da arte, ele só encontrou certo reconhecimento no fim da sua vida. Hoje, trabalhos como A Boneca ou “Pequena anatomia do inconsciente físico ou Anatomia da imagem” (Petit anatomie de l’image, texto de 1958 publicado em francês) permanecem desconhecidos. Ainda assim, não raro são referenciados na cultura, na arte ou narrativas modernas ocidentais e também orientais – onde o artista encontrou certo reconhecimento no Japão. Com a presença da sua obra no Museu de Arte Moderna de Chicago, observa-se um crescente interesse, ainda que de maneira conflitiva, com a arte desafiadora de Hans Bellmer.

Bellmer é mais conhecido pelo seu trabalho na escultura, principalmente nos desdobramentos de A Boneca. Entretanto, esse objeto ganha uma versão totalmente articulável que se aproxima mais do desenho do que da escultura, parte da tendência de Bellmer para a representação de estruturas simultâneas. Enquanto objeto, a Boneca surpreende pela transitoriedade entre os domínios poéticos. A esse fato se soma a renovação de seu valor de choque pelos múltiplos ângulos e constituições anatômicas. De uma escultura estática, ou seja, de um corpo representado espacialmente, Bellmer recria a Boneca sob o princípio da junta esférica do matemático renascentista Girolamo Cardano.

A obra de Hans Bellmer aparece geralmente relacionada à produção do Surrealismo no campo da escultura e objetos. Bellmer participou dessa tradição com sua noção de “objeto provocativo”, termo que fala principalmente de sua principal criação de 1934. Esta categoria do objeto percebida por Bellmer e buscada em sua obra se baseava em um apagamento da fronteira entre objeto e linguagem. A grosso modo, o objeto provocativo é aquele objeto que guarda diacronicamente imagens subjetivas por permanecer sempre incompleto. Para Bellmer, esse objeto é identificado nos brinquedos infantis, mas não somente, pois ele também o compara com os objetos militares. A sua Boneca deve ser entendida nessa categoria a partir da relação que ela exerce com esses objetos. Ela se trata de um amálgama dessa realidade e uma introjeção sua. O conceito cardaniano de “Junção” compõe o equilíbrio. Assim, a Boneca se relaciona com o objeto provocativo da mesma forma que o anagrama com a frase. Equivale-a, assim, aos anagramas, jogos linguísticos baseados na substituição de palavras dentro de uma frase. Por isso, com a publicação de textos como “Pequena anatomia da imagem” (1958) e “Modos de uso” (1968), assim como no texto sobre a junta esférica para o prefácio de “Os jogos da Boneca” (1941), Bellmer define A Boneca como “poesia experimental”.

No texto a seguir, propomos uma exploração das origens da Boneca a partir do estudo de Bellmer do “objeto provocativo”. Além disso, buscaremos apresentar a obra de Hans Bellmer a partir de facetas menos comentadas do artista. Por exemplo, as marcas “alemãs” de seu trabalho, as quais identificamos principalmente no Romantismo alemão. Bellmer produziu em língua alemã dentro do movimento surrealista por um período considerável. Tal característica o isolava no Surrealismo. Além disso, a tradição alemã sempre interessou a Bellmer no desenho, não somente o Romantismo, mas o Renascimento e Barroco. A obra de Bellmer se relaciona com o Romantismo alemão e a tradição alemã em diversos níveis, como, por exemplo, o próprio tema da Boneca. No final desta incursão, apresentamos brevemente a relação de Bellmer com o objeto chamado de “Diana de Éfeso”, que remonta a essa tradição da História Natural da Alemanha, que Bellmer incorpora na Boneca.

Sobre a origem de La poupée, “variações fotográficas sobre a boneca ou uma menina articulada”, ela é inspirada na Olímpia da montagem de Max Reinhardt de Les contes d’Hoffmann, de Jacques de Offenbach (1881) em 1922. Bellmer constrói uma versão articulada da boneca como uma “solução” ao fim trágico da personagem. Bellmer fotografa-a, então, em diversas situações, detalhando o mecanismo do constructo e o objeto life-sized. O material utilizado foi essencialmente fibra, gesso e madeira. Bellmer recebeu ajuda de seu irmão, Fritz, principalmente na constituição do esqueleto de maneira que ele sustentasse a bola que forma o ventre da figura. O mecanismo artificial contrasta com a aparência da boneca, em adereços femininos e olhar expressivo de adolescente. A aparência da Boneca sempre foi bastante rica em detalhes. Muitas vezes, a Boneca ultrapassava o simulacro antropomórfico e se tornava um cefalópode de membros multiplicados, um ser constituído de pernas no lugar dos braços. Nos dois livros Bellmer traz as fotografias junto de texto-memorabilia “Souvenir da Boneca” e “Os jogos da boneca”, traduzidos do alemão para o francês por Paul Éluard e Robert Valançay.


A publicação de Die Puppe contou primeiramente com a iniciativa do próprio autor. A dedicação em tornar aqueles desejos públicos era a resposta do jovem Hans à adesão de seu pai ao partido nazista. Bellmer de certo enfrentaria a censura, por isso, rapidamente buscou o exílio na França, depois de perder a primeira esposa para a tuberculose. Em Paris, Bellmer acabou se tornando prisioneiro por um período em um campo de estrangeiros indesejados, junto de Max Ernst, onde criou a série de desenhos Subterrâneos, dentre eles um retrato de Ernst ao estilo de Sade de Man Ray. A Boneca, assim como os desenhos, nascia do desafio à autoridade e ao mundo como um ambiente inóspito. A Boneca era, afinal, a representação do uso desviante da engenharia, de tudo aquilo considerado como “útil” pelo Estado, como conta Sue Taylor (2000) e Peter Webb (2004). Por isso, Bellmer se relacionava de maneira particular com o passado da Alemanha, principalmente o Barroco e o Romantismo, movimentos de uma antiga liberdade poética.

A escultura A Boneca é definida por Bellmer como fruto da existência do “objeto provocativo”. O termo “objeto” começou no Surrealismo com os ready-made de Duchamp, as representações espaciais do mundo onírico (Breton) e os objetos de funcionamento imaginário (Dalí): “estabelecida essa genealogia, Breton define o campo próprio do surrealismo”, explica Guinsburg e Leirner (2009), que vai dos objetos aos “não-objetos” ou objetos “fora dele”: “objeto natural, objeto perturbado, objeto matemático, objeto involuntário etc.”. A Boneca foi apresentada como um objeto “provocativo” justamente pela sua possibilidade de “jogo”, categoria da poesia experimental. Bellmer mesmo oferece conceituação, em texto que parodia o gênero injuntivo, “Modos de uso”: “o jogo pertence à categoria ‘poesia experimental’. Se o método de provocação é essencialmente mantido, o brinquedo terá a forma de um objeto provocativo”.

O objeto, segundo Breton em O Amor Louco (1937), é a primeira forma de captação do mundo interior e a disponibilidade do Eu no mundo exterior. No texto introdutório da primeira edição da Boneca, “Souvenir da Boneca”, Bellmer demonstra como esse objeto constituía uma prova externa de suas fantasias: “objetos heterogêneos e perigosos que, por alguma analogia ou na excitação do furto comum, prometiam elevar-se à medicina”. Esses objetos guardavam uma “luxúria” como parte de sua própria incompletude, “ovos negros de páscoa, pombinhos e biscoitos de açúcar rosa”. Daí nasce a Boneca, que estabelece com esse objeto uma relação de “poesia experimental”, tal como o anagrama com a frase.

Não seria na boneca que, apesar de sua doutrina acomodada e sem limites, cercou-se de reserva desesperado e, na realidade mesma da boneca, a imaginação encontraria o que estava procurando de alegria, exaltação e medo? Seria isso o triunfo final das adolescentes com olhos grandes que se transformam, se, sob o olhar consciente saqueando seus encantos, dedos agressivos assaltando a forma plástica e construindo lentamente, membro por membro, o que os sentidos e o cérebro tinham se apropriado.

Construir membro por membro equivale a construir uma frase, rearranjar seus elementos para criar uma nova sentença: “o anagrama nasce de um conflito violento e paradoxal (…) entrelaçam nós com significados e com ecos vizinhos, como um novo objeto”, explica Bellmer em um pequeno texto sobre os anagramas. O interesse de Bellmer pelos “modos de uso” dos objetos é que eles são respondidos pelo acúmulo do “eu” no “tu”. Em “Jogos da Boneca”, Bellmer afirma que “o papel do objeto provocativo é [assim] esclarecido”, pois “se ele ocupar algum lugar nos balanços mais próximos ou mais distantes da confusão entre o animado e o inanimado, será a da coisa personificada, móvel, passiva, adaptável e incompleta”. O objeto provocativo é aquele objeto que, estando ele incompleto, une-se ao mundo exterior em um amálgama de realidade e subjetividade, por meio do princípio de “Junção”. Ele guarda uma ironia e convoca a imaginação a “completar esse imperfeito a fim de restaurar o equilíbrio”. É entre essas realidades que Bellmer encontra o “equilíbrio” da boneca, como veremos na sua relação com o pião na Diana de Éfeso, o objeto provocativo é dotado de “transcendente ironia”.

 

Souvenir da Boneca

Bellmer se conectava também com o Romantismo alemão, como na tradição de Henrich von Kleist (1777-1811), Hans Christian Andersen (1805-1875), além de Hoffmann, artistas que resgataram o universo da infância para apresentar um novo olhar sobre um ídolo infantil: a boneca. Essas referências literárias, que remontam também ao passado alemão, são ativadas por um momento pessoal: a lembrança de uma caixa de brinquedos da infância, enviada a Bellmer pela mãe, como nos conta Sue Taylor (2000) e Eliane Robert Moraes (2002). Em 1969, perto do fim da sua vida, Bellmer ilustrou uma versão do conto “Sobre o teatro das marionetes”, de Kleist, reiterando a relevância do Romantismo alemão para a arte do século XX. Nas recriações das marionetes de Kleist, Bellmer coroa a sua relação da boneca com as palavras, na medida em que, para ele, as bonecas nada mais eram do que recriações na anatomia dos caprichos dos jogos poéticos escritos como os anagramas. Segundo Alain Jouffroy (apud COSTA, 2017): “o desenho permite a Bellmer dotar um ser humano com posturas simultâneas, que sua boneca só poderia assumir sucessivamente. O teatro tornou-se cinema”.

É interessante notar a herança da tradição do pensamento e da cultura da Alemanha na escultura de Hans Bellmer. Sobre o tema da boneca, a Alemanha concentrou os escritos e as criações mais profundas sobre a boneca, como nos conta Hans R. Purschke (1957) em O teatro de marionetes na Alemanha. A cultura do teatro de títeres alemão é um dado de origem popular, como percebeu Walter Benjamin (1928) no seu estudo sobre o teatro barroco da Alemanha. Nesse campo, destaca-se a contribuição do Romantismo alemão. É a partir da literatura de E. T. A. Hoffmann que Sigmund Freud, o criador da psicanálise, pensou sobre a boneca em seu texto “Das Unheimliche” (1919), antecessor do importante Além do princípio do prazer. Para Freud, as brincadeiras infantis com a boneca dizem muito sobre a economia criativa do sujeito adulto. Já Walter Benjamin fala sobre boneca ao estilo romântico, em fragmentos e elogios, como é o caso de “Elogio à boneca” (1930), e outros textos menores, como “Brinquedo e brincadeira” e “História cultural do brinquedo”, dentre outros.

No caso de Bellmer, a criação da sua Boneca deve não somente à influência do passado, mas também a partilha que artistas como Lotte Pritzel estabeleceram com ele. Pritzel, cujas criações maravilharam Rainer Maria Rilke, era conhecida por suas bonecas. Foi a ela que Oskar Kokoschka fez a proposta de criar uma réplica erótica de sua amante, Alma Mahler, história que hoje é bastante conhecida. Ainda que tenha recusado tal pedido, Pritzel se conciliava com as ideias abertamente eróticas de Hans Bellmer. Também Bellmer conheceu Kokoschka e certamente compartilhava de seu interesse pela boneca como um objeto capaz de superar a realidade. Bellmer visitou o museu Kaiser Friedrich na Alemanha, onde entrou em contato com as bonecas articuladas do século XVI. Daí, ele e Pritzel desenvolveram o método de Cardan, baseado no matemático renascentista, aplicado à Poupée logo em seguida para o trabalho d’Os jogos. A escultura de Bellmer é definida como “objeto provocativo” justamente pela sua tentativa de se aproximar da mobilidade do desejo e, portanto, de superar a escultura e a rigidez do objeto baseado na própria espacialidade.

Aqui, tocamos em outra influência importante da boneca: as telas sacras do Renascimento nórdico, principalmente, as de Matthias Grünewald (1515). Sue Taylor (2000) e Alexandre da Costa (2017) apontam apropriações de elementos dessas telas na Boneca. Bellmer se impressiona com ela, a ponto de, a partir daí, criar a sua própria obra. Tal momento se deu em Colmar no ano de 1932, em que Bellmer buscava redimir a baixa qualidade de vida de sua esposa com tuberculose, bem como a sua própria vida e agonias em torno de obsessões não resolvidas, morbidez e sofrimentos. Bellmer traz consigo uma miniatura da imagem de souvenir, e a partir de então cria “Os souvenires da Boneca”. A junta esférica da segunda Boneca era uma perfeita tentativa de tornar a escultura um objeto vivo, capaz de expressão com o corpo inteiro. A junta esférica da boneca é uma aproximação de Bellmer da imagem do Cristo crucificado de Grünewald. Bellmer costumava dizer que um sentimento só lhe interessava quando ele era representado pelo corpo como um todo, tal como o sofrimento de Madalena, como nos conta o biógrafo Peter Webb (2004). A imagem da Madalena ajoelhada que suplica com suas mãos, seu rosto, seu cabelo e toda a sua imagem impactou profundamente a criação da Boneca e, em conseguinte, a sua reimaginação como objeto provocativo.


Bellmer se inspirou em mestres do desenho alemão como os do Renascimento em suas técnicas, como, por exemplo, no uso das cores. Ao pintar à mão muitas das fotografias da Boneca, ele adicionava sentidos como aqueles do Cristo de Grünewald. Essa imagem de Cristo é tida como uma representação ao mesmo tempo mórbida e balsâmica do sofrimento. Segundo Jeremy Biles (2004), essa oposição faz do Cristo uma figura monstruosa. A tela faz uso de cores vivas em cenas chocantes de corpos em putrefação e feridas escancaradas. Segundo Sue Taylor (2000), a exibição física do sofrimento em Grünewald foi o que fez com que Bellmer experimentasse tamanha impressão perante o tema sacro sendo, ele mesmo, um ateu. Em 1969, quase no fim de sua vida, Bellmer visitaria mais uma vez a tela de Grünewald em Colmar, momento em que publica também uma ilustração cheia de cores das marionetes sagradas do texto de Heinrich von Kleist.

A cor é a medicina de Bellmer, sua cura, como ele descreve nos “Souvenires”. O hábito de pintar as fotografias manualmente, muitas vezes acompanhado de seus amigos, constitui um exercício livre que faz da obra um objeto sempre em aberto. Assim, às representações do sofrimento extremo da Boneca, Bellmer adiciona cores que também criam diversos pontos focais como ilusões óticas em todo o corpo da Poupée. A cor cria efeitos de diferença entre os membros multiplicados da boneca. Assim, Bellmer tenta criar uma realidade distinta para cada membro, que seja o amálgama de muitas realidades, em busca da representação da sua ideia de que o corpo é como uma frase. A cor é o título do anagrama de Bellmer e Mitrani, Rose au coer violet. As múltiplas colorações da boneca e seus ambientes dispara faíscas naquele que a visualiza, como diz Juliane Wanzl (2003). Podemos ainda dizer que a cor é um elemento sensível na obra de Bellmer que erotiza a descrição científica do corpo. Como mostra Sue Taylor (2000), Bellmer tinha um apelo científico em suas obras, como na relação com o estudo das ilusões óticas de Paul Schilder. Podemos dizer que sua obra tinha a mesma pretensão científica mesclada a certo romantismo, no sentido da presença de mistura das linguagens, como se verifica em obras de J. W. Goethe como A metamorfose das plantas (1790) e Doutrina das cores (1810).

Assim, quando se trata de Hans Bellmer e o Romantismo, a relação vai além daquela do Surrealismo. O movimento do século XX associado à França, definia-se como “cauda preênsil” do Romantismo alemão, como afirma o próprio André Breton no segundo dos Manifestos. No caso de Bellmer, o Romantismo se encontra em todo seu projeto de arte e sujeito. Por exemplo, a filosofia da linguagem, o Eu absoluto e até mesmo a noção subvertida de “Educação” (“Bildung”), que aparece em Bellmer ligada à sexualidade. Em Bellmer, a reflexão da linguagem é a chave para entender o corpo (“o corpo como uma frase, capaz de experimentações e passível de ser recombinado”).

 

A anatomia da imagem

Em seu texto “Pequena anatomia do inconsciente físico ou Anatomia da imagem” (Petit anatomie de l’image, escrito em 1951 e finalizado em 1958), Bellmer apresenta um estudo da anatomia e a sua constituição a partir dos mecanismos de percepção e representação da mulher, temas que remetem à escultura da Boneca, dessa vez por meio do devir da imagem. O desenho, nesse trabalho, permite a Bellmer uma maior exploração da “simultaneidade da imagem”. Como coloca Bellmer (2004), a imagem em si seria a síntese de duas imagens simultâneas, dissimilares, muitas vezes antagônicas. Bellmer coloca que, através da imagem, o mundo exterior apresenta o seu “valor de choque”, na medida em que nos confronta com essa imagem, que é ao mesmo tempo percepção e representação. O desenho pode ir além da Boneca para expressar que uma “perna”, como explica Bellmer (2019), “só adquire realidade quando o desejo a toma por uma perna”. Ou ainda que o mundo exterior sofre uma extroversão, em que o interior do corpo se revela sobre a sua camada e o exterior torna-se o interior, tal como o interior do corpo humano que sobrepõe as vísceras do interior pelo exterior.

A base da obra de Bellmer está em sua relação entre corpo e linguagem. Bellmer acreditava que “o corpo é como uma frase, ele nos convida a desarticulá-lo, para reconstruir as suas partes como em um infinito anagrama”. Anagramas são jogos linguísticos em que partes de uma frase ou palavra são deslocadas para novas formações dentro da original. Segundo Bellmer, o anagrama “nasce, se olharmos de perto, de um conflito violento e paradoxal”, pois “pressupõe uma vontade máxima da vontade imaginativa e, ao mesmo tempo, a exclusão de qualquer intenção preconcebida”. Essa proximidade do corpo com a linguagem fez com que o homem gostasse de produzir jogos eróticos, algo que se explicaria pelo mesmo processo observado, também, na língua. Bellmer desenvolve a existência de um “inconsciente físico” que nada mais é do que o conjunto de imagens que o corpo guarda de si mesmo, convocadas pela reversibilidade no momento da criação. Por isso, como os românticos, Bellmer acreditava que toda a criação tinha um princípio em comum.

A percepção de Bellmer da linguagem se reporta a uma longa tradição hermenêutica que pode ser identificada em nomes como Novalis, por exemplo. Segundo esse filósofo do romantismo alemão, a linguagem “brinca apenas consigo mesma, expressa nada além de sua insólita natureza”, e apenas por isso “a relação das coisas se reflete nela [na linguagem]” (Novalis 1997, tradução nossa). Para Bellmer, a linguagem também busca o prazer ao criar e reter expressões, sílabas, palavras e reflexos que não necessariamente são produtos do homem, mas de seu próprio corpo de forma autônoma: “o ser humano conhece sua língua menos do que conhece seu corpo”. O anagrama, nesse sentido, é uma forma do homem tomar posse desses conteúdos “psicofísicos”. Trata-se de um exame de como o corpo forma a si mesmo e se deforma, se constrói e se “educa” para o desejo.

Já em textos como Mode d’emploi, prefácio aos Jogos da Boneca temos uma linguagem operacional como a de um manual de instrução. Os desenhos de Mode d’emploi datam de 1953, e foram pensados como ilustrações de “um livro suntuoso e sádico que não pode tomar forma”, como nos conta André Pieyre de Mandiargues no prefácio de Hans Bellmer: Oeuvre gravé (1975). Tal ironia, podemos dizer, trata-se de uma postura artística de Bellmer para a necessidade de entendimento de um objeto hermético como a Boneca. Diz Bellmer (2019): “há certas instruções de uso que nunca são usadas”, pois, “o desejo muitas vezes prevalece sobre a prudência”. Bellmer faz uso irônico do gênero injuntivo dos manuais de instrução ao contrastar linguagem e seu conteúdo. Como uma operação, Bellmer fala de jogos eróticos: “aconselhamos, no espírito de nossa ação poética direta, a manter em primeiro lugar os detalhes: apanhe delicadamente um pé [un pied], sem rolá-lo, para fazer um único monte”. A expressão “apanhe delicadamente um pé” joga de forma irônica com a descrição da instrução e a sexualidade do objeto fetiche, que, ao ser tomado pelo desejo, dota-se de realidade.

 


Metralhadora em estado de graça

A figura da boneca aparece muitas vezes transformada para assumir a aparência de um pião ou um cone com seios. Bellmer chama essa imagem de “Diana de Éfeso”. Ela aparece em seu texto em Mode d’emploi, mas também é uma das inspirações de Petit anatomie de l’image. “A estátua de Diana de Éfeso era um cone negro cravejado de seios”. No texto para “Os jogos da Boneca”, a Diana de Éfeso é uma percepção do maravilhoso da anatomia, já que as garotas em tenra idade se assemelham a um pião com seios, antes de desenvolverem um “ponto focal” anatômico, isso é, um equilíbrio na junção em que o mundo externo se fixa no centro de sua figura. Bellmer comenta que “só a matéria sólida se atreve a demonstrar por si mesma tal ruptura de reciprocidade e cortar no ponto de intersecção o sinal do infinito, que não ousaria na óptica, sob pena de pegar fogo”. Aqui, Bellmer se refere à representação dessas pequenas garotas pela via do objeto como forma de captação primária e limpa da imagem.

Na Diana de Éfeso, Bellmer via suas ideias sobre a multiplicação de partes do corpo pelo inconsciente físico. Esse procedimento estaria contido nos múltiplos seios da representação da deusa da fertilidade. A Diana sobrevive no “jardineiro que força o buxo a tomar a forma de uma bola, um cone ou um cubo”, tal como “o homem impõe suas convicções elementares, sua geometria e álgebra na imagem da mulher”. Essa figura aparece pela primeira vez em um desenho de 1938, intitulado Das durchdrungene Geheimnis der Diana von Ephesus (“o segredo penetrado de Diana de Éfeso”). Nesse desenho, Bellmer desenha o pião como a metade do infinito, que espelha a sua outra metade ausente por meio de um jogo de percepções angulares determinadas. Essa espécie de “matemática” de teor altamente hermética deve ser entendida, sobretudo, como desdobramentos da Boneca.

A deusa da fertilidade do Mundo Antigo é uma “prova objetiva” do culto da imagem que, para Bellmer, é a marca da história do sujeito diacrônico e moderno. Sobre isso, Bellmer cita Baudelaire, que fala sobre o fenômeno da multiplicação como uma intoxicação; os estudos de anatomia e percepção de Jean l’Hermitte; além da poesia de Tzara, dentre outros. Segundo Bellmer:

 

O homem que está apaixonado por uma mulher e consigo mesmo se desespera apenas o tempo suficiente para polir o espelho cego de chumbo que a mulher representa, para nele se exaltar, para vê-la exaltada. Para que seja verdadeiramente provido de uma língua, duas mãos, quatro peitos, mil dedos, é claro que deve ser entendido que tal multiplicação foi experimentada pela primeira vez no organismo daquele que vê, a que pertence em sua memória.

 

A apropriação da Diana de Éfeso é comprovada não somente pela via argumentativa, mas passa pela criação de objetos, seja na forma de desenho ou de esculturas. La Toupie (1937 e 1968), por exemplo, é uma recriação em desenho da escultura La mitrailleuse en état de grâce (The Machine Gun[neress] in a State of Grace), que data de três décadas antes. Bellmer joga com a referência da Diana nessa obra, que vai da linguagem simultânea do desenho à espacial da escultura, tal como fazia na Boneca.

Ao analisarmos o título da primeira aparição de Diana de Éfeso, vemos que Bellmer se interessava nesse ícone da História Natural como confirmação do papel da sexualidade na constituição do sujeito e consequentemente a presença da multiplicação, verificada nos seios do simulacro. No primeiro título, esses dados aparecem como assunto sexual: “o segredo penetrado”. A Diana é a “mulher móvel” de Petit anatomie: a representação da mulher móvel no espaço, excluindo o fator temporal”. Além disso, conforme Silke Krohn (2010), a deusa joga com os signos masculinos e femininos pela exageração desse último, como a fertilidade, o que se liga à tese de Bellmer de que o homem experimenta em seu próprio corpo a imagem que cria da mulher amada.

Bellmer usa a referência de Diana de Éfeso de diversas formas. Ao chamar o objeto aos moldes dessa figura de “metralhadora”, ele propõe uma atualização da História Natural pela representação de um objeto de grande interesse no século XX, principalmente por parte da Alemanha. Ele vai colocar a metralhadora ou “o fuzil de Henrique” como um objeto provocativo. Bellmer era um conhecedor e amante de armas e esses tipos de objetos, pois remetiam aos romances de aventura de Karl May lidos na infância, onde as armas se tornam mágicas, tal como o exemplo da bola de excentricidade no texto sobre os jogos da Boneca. Ao comparar a representação anatômica a uma metralhadora, Bellmer alude à busca por satisfação na criação de objetos por parte do inconsciente físico, o que liga a estátua ao objeto de engenharia militar. Podemos ver também como o título remete mais à fertilidade e à sexualidade. A mistura desses dois domínios lembra a definição da perversão sexual de Sigmund Freud em Três ensaios sobre a sexualidade. Freud demonstra que o sexo, ao se destituir de seu objetivo de reprodução, aponta ambiguamente para a criação da vida e para a morte, por via do gozo do prazer sem finalidade, definição que alcança o máximo de verdade para Bellmer em Georges Bataille em O erotismo (2017). Nesse estudo, Bataille demonstra como o homem se relaciona com a sexualidade a partir de um eros que sempre tende para a experiência da destruição.

Bellmer coloca a imagem de Diana ao lado do signo da metralhadora, o que acentua a pulsão de morte da atividade sexual. O título faz igualar criar e ceifar vidas. Por trás dessa mensagem, está a ideia da sacralidade, que faz do título monstruoso por unir morte e vida. Nesse sentido, também, Bellmer une a figura mitológica e pagã de Diana ao universo sagrado católico. Conforme observado, a apropriação desse universo na obra de Bellmer corresponde diretamente à tela de Matthias Grünewald, da qual se destaca também uma figura feminina: Maria Madalena. Em Madalena, entendemos o conceito de “Mulher móvel” de Bellmer. Tal como faz com Diana, Bellmer estuda Madalena a partir da sua expressão física, isso é, como o seu corpo expressa o seu sofrimento. Madalena alude tanto ao conteúdo erótico do sagrado, como também à morte, com o seu choro perante o Cristo crucificado.

 

Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

BELLMER, Hans. Corpos labirínticos: textos de Hans Bellmer. Tradução de Alexandre da Costa (Org.). Rio de Janeiro: Gramma, 2019.

___. Oeuvre grave. Paris: Denoël, 1971.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ___: Obras completas, volume 6. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2016.

KROHN, Silke. Diana von Ephesus. In: Hans Bellmer/Louise Bourgeois. Berlin: Nationalgalerie Staatliche Museen zu Berlin und Sammlung Scharf Gerstenberg, 2016.

NOVALIS. Philosophical Writings. Traduzido para o inglês por Margaret Mahony Stoljar. Nova York: State University of NY, 1997.

TAYLOR, Sue. The anatomy of anxiety. Londres: MIT Press, 2000.

WEBB, Peter. Death, desire and the doll: the life and art of Hans Bellmer. Chicago: Solar Books, 2004.

WANZL, Juliane. Die Spiele der Farbe: die Rollen der Farbe in Hans Bellmers fotografischer Serie, Die Spiele der Puppe, 2013.

 

 


LUCAS HENRIQUE DA SILVA
| Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Mestre (2016) pela mesma universidade. Atualmente, é bolsista CNPq de Doutorado na área de Estudos Literários na UNESP-Araraquara. Publicou artigos, resenhas e capítulos de livros, principalmente sobre a obra de Hans Bellmer, mas também sobre escritores alemães como E. T. A. Hoffmann e Heinrich von Kleist. Atualmente, desenvolve Tese sobre Hans Bellmer. Contato: lucas.henrique-silva@unesp.br.

 


KARIN VOLOBUEF
| Graduada em Letras pela Universidade de Campinas (UNICAMP), Mestre (1991) e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã da Universidade de São Paulo (1996). Desde 1992 é docente na UNESP-Araraquara, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Publicou os livros A prosa de ficção do Romantismo na Alemanha e no Brasil (1999), Mito e magia (2011), Dimensões do fantástico, mítico e maravilhoso (2011), Vertentes do fantástico na literatura (2012) além de artigos em variados periódicos. Atua nas áreas de pesquisa: contos de fadas, romance fantasia, ficção científica, fantástico, romantismo. Contato: volobuef@uol.com.br.

 


ANA SABIÁ
| Artista visual e pesquisadora independente. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), mestra em Psicologia Social (UFSC) e graduada em artes visuais pela FAAP (SP). Participa ativamente da cena fotográfica contemporânea de exposições, palestras, mostras e festivais em todo o território nacional. Em 2017 foi premiada com o 1° lugar (categoria foto única) no 13° Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco (RJ); com o 2° lugar do júri oficial do Prix Photo Web Aliança Francesa e selecionada em convocatória do SESC Galerias, para a mostra individual “Do porão ao sótão” itinerante em três cidades catarinenses. Em 2019 foi selecionada para a mostra coletiva “Vento Sul” no 9° Foto em Pauta Festival de Fotografia de Tiradentes (MG) e convidada pela curadoria da 14ª Bienal Internacional de Curitiba para integrar a programação com a mostra individual “Panorâmicas do Desejo”. Em 2020 foi selecionada no edital “Arte como respiro” do Itaú Cultural (SP); também selecionada no 25° Salão Anapolino de Arte (GO) e, neste mesmo ano, na leitura de portfólio do FESTFOTO (POA), obteve o Prêmio Aquisição do Museu da Fotografia de Fortaleza.
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 01

Número 200 | janeiro de 2022

Artista convidada: Ana Sabiá (Brasil, 1978)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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