domingo, 9 de janeiro de 2022

MÁRCIO CATUNDA | As noites transcendidas de Paul Éluard

 


Eugène Emile Paul Grindel, ou Paul Éluard, natural de Saint-Denis, nasceu em 1895. Teve, em Paris, duas residências na infância. Morou na rue du faubourg Saint-Denis, de 1908 a 1909, e na rue Louis Blanc, nº 43, perto do canal de Saint-Martin, de 1910 a 1912. Foi aluno da École Colbert, rue Château-Landon.

Fui em busca do endereço, número 43 da rue Louis Blanc. Cheguei, pelo metrô, à place Colonel Fabien, um recanto arborizado, no meio do “carrefour” que marca o encontro de oito vias públicas. A rue Louis Blanc é um dos caminhos dessa encruzilhada no décimo arrondissement, que se caracteriza como subúrbio (“banlieue”). Vou, pela calçada, olhando a alameda de plátanos que o inverno despiu de folhas. Cruzo a rue Francis Jammes e o quartier de la Grange-aux-Belles, onde está situada a place Robert Desnos. Chego ao canal Saint-Martin e ao quai de Valmy. O curso da água verde atravessa a rua onde Paul Éluard viveu sua adolescência. Andar por ali seria um passeio bucólico, se não fosse pelo trânsito nada poético.

O número 43, entre as ruas du faubourg Saint-Martin e a rua de l’Aqueduc, é um prédio modesto e austero, carente de pintura e conservação. Tem cinco andares, sem varandas, sem ornamentação e sem registro da passagem do poeta pelo local.

Aos 16 anos, Éluard interrompeu os estudos na École Colbert e foi se tratar na Suíça, no sanatório de Clavadel, onde conheceu Manuel Bandeira. E conheceu, também, sobretudo, a russa Elena Dimitrievna Diakonova (Gala), com quem se casaria três anos depois. Voltou a Paris, em 1914, quando começava a guerra, que o empregou como soldado-enfermeiro do 95º Regimento de Infantaria, a serviço do hospital de Hargnicourt, no nordeste da França. Sua sensibilidade se aguçou com a visão do sofrimento dos feridos, cobertos de sangue, coágulos e lama. A guerra propiciou-lhe a ocasião de aprofundar suas convicções humanistas e escrever os Poèmes pour la paix, cujos originais, fotocopiados em folhetos, ele distribuía alhures, num gesto de generosa compreensão.

Em 1917, casa-se com Gala. O casal foi morar na rue Ordener, nº 3, primeiro andar, no 18º arrondissement. Gala foi a inspiradora do magnífico L’amoureuse:

 

Elle est debout sur mes paupières

Et ses cheveux son dans le mien.

Elle a la forme de mes mains,

Elle a la couleur de mes yeux.

 

Em 1918, nasce sua filha Cécile. Ele conhece Jean Paulhan, que publicava a revista Le Spectateur e o convida a aderir ao grupo da revista Littérature. A essa altura, o convívio com colegas do surrealismo o influenciará, no sentido de desenvolver experiências novas nos significados e formas da poesia.

 Em 1920, interpretou, com Gala, no teatro Maison de l’Oeuvre, na rue de Clichy, S’il vous plait, de Breton e Soupault.

Sua propensão à cooperação com os colegas de ofício se exemplifica com a publicação de três livros em parceria com amigos. Com Max Ernst, ilustrador de alguns de seus livros, Les malheurs des immortels (1922); com a colaboração de Benjamin Péret, 152 proverbes mis au goût du jour (1925) e com Breton, L’Immaculée conception (1930). Este último, de textos eróticos e aforismos singulares.

Data de 1922 sua filiação ao “Bureau de Recherches Surréalistes”, instalado na rue de Grenelle, nº 15 e mantido por Pierre Naville e Benjamin Péret.

Viajou, em 1923, a Roma, onde se encontrou com George de Chirico. A febre de viajar o conduziu, em 1924, a longa viagem, em que percorreu a Oceania, a Malásia e a Índia, em sete meses de vagabundagem lírica. Só no último mês é que Gala o acompanhou em Saigon e com ele regressou a Paris. 

A intensidade da amizade com Breton se nota nas cartas que eles intercambiaram entre si. Na carta de Breton, datada de 22 de agosto de 1923, quando de sua estada em Lorient, entre outras expressões de cordialidade, ele pergunta por Gallimard e diz que Desnos é “épatant”, (“Je l’aime infiniment et que ne cesse pas de penser à lui”), numa declaração de amizade que sugere uma ideia de fraternidade. É lamentável que aqueles amigos, que tanto se auguram votos de bem-estar, tivessem desentendimentos posteriores que prejudicaram a boa convivência.


A tuberculose o assediaria, mais uma vez, e o inverno de 1928 foi passado no sanatório d’ Arosa, nos Grisons.

Em 1929, separou-se de Gala e encontrou Nush (Maria Benz), com quem se casou. De 1934 a 1938, morou, com Nush, na rue Legendre, 54, quinto andar. Nesse período, escreveu, em colaboração com René Char e André Breton, o livro Ralentir travaux.

O engajamento político radical e fanático prejudicou as grandes amizades. No ano de 1932, aconteceu uma querela, em que Éluard e Breton se voltaram contra Aragon, porque, desde suas perspectivas, este teria excitado os comunistas à desobediência e acusado seus colegas de contrarrevolucionários, fato que Éluard e Breton consideraram uma “malhonnêteté crapuleuse”. Aragon protestou no jornal L’Humanité em 10 de março de 1932. Éluard replicou, ironizando a atitude de Aragon, ao acusar Elsa Triolet de manipular as opiniões de seu marido.

Na manhã do dia 17 de agosto de 2019, saí, com destino a Montmartre, mais específicamente, à rue Becquerel, nº 7, onde Éluard morou, no primeiro andar. Empreendo minha caminhada pela rue Lamarck, pelas altas imediações do Sacré-Coeur. Dia luminoso e arejado. Subo a rua inclinada, quase íngreme, com escadas laterais, até contemplar o belo prédio, de aspecto moderno, certamente em decorrência das reformas por que passou.

Existe, ao lado, um terreno baldio, em cujo portão de ferro registra-se o número 7 bis, entre este edifício moderno e o seguinte, de número 13. Acredito que a reforma no edifício de Éluard tenha sido apenas na parte mais alta de ladrilhos marrons da fachada, porque a porta principal e a parte baixa têm características de edificação mais antiga.

Ao contemplar a vista esplêndida dessas alturas da cidade, percebo que estou a 50 metros da basílica de Montmartre, à qual posso chegar subindo apenas os poucos degraus de uma escada. Antes de subir ao topo da elevação, fui vencido pela fome e almocei no restaurante do outro lado da calçada, na mesma esquina da Lamarck com a Becquerel, a poucos passos da grande igreja que cinge Paris com a sua brancura altissonante.

Respira-se, neste Montmartre inebriante, um ar que é pura saúde. Nem me parece que estou numa cidade tão grande, tão poluída, com milhões de habitantes.

Vejo o templo grandioso, com seus heraldos e pináculos, e a multidão que se aglomera para ver a miríade pétrea da cidade, lá embaixo derramada, nos quatro horizontes.

Ao descer a ladeira, pela rue Cortot, vejo, no número 6, a placa de indicação de onde morou Erik Satie, de 1890 a 1898. Ao lado está o museu de Montmartre, que visitei na viagem anterior, no início de 2019.

Em 1936, Éluard viajou à Espanha, convidado por artistas e poetas espanhóis, para dar uma palestra sobre Picasso, no Ateneo de Madri. Também foi a Londres, participar da Exposição Internacional do Surrealismo, inagurada por Breton. Na volta, Éluard publicou o livro de poemas Les yeux fertiles.

O guarda-chuva foi minha melhor companhia no dia 22 de agosto de 2019, que resultou pouco produtivo para um andarilho que escreve enquanto caminha e aposta nos dias ensolarados. Quase que o desânimo se apodera de mim, mas prossegui. Saí do hotel, pela avenue Daumesnil, e fui até a Gare de l'Est, que já se chamou Gare de Strasbourg. Tomei um ônibus da Gare de l'Est até a esquina da rue Legendre com a avenue de Clichy. Pela janela, via o chão molhado e as vidraças pontilhadas de gotas de chuva. Desci do ônibus, andei oito quadras a pé, debaixo d’água, cruzando diversas ruas (inclusive a rue de Rome, onde morou Mallarmé), até chegar ao número 54 da rua Legendre, onde morou Paul Éluard, no quinto andar, com a esposa Nush, de 1934 a 1938.

O bairro de Batignolles parecia mais longínquo, sob a intempérie. O guarda-chuva era pequeno e não impediu que eu me encharcasse.


O prédio esguio, de sete andares e janelas estreitas, tem, no térreo, um salão de beleza feminina e uma loja de bicicletas. Paul Éluard não tem fãs que sinalizem suas casas.

Durante a Segunda Grande Guerra, quando os artistas se refugiavam alhures ou fechavam as persianas perante as ameaças e listas de reféns, afixadas nos muros de Paris, Éluard conclamou os escritores a se unirem pela ressurreição espiritual da França. Contra a opressão, publicou Poésie et vérité (1942), que o Instituto Alemão, mandado pela Gestapo, considerou suspeito. Éluard foi forçado a mudar de domicílio cada mês, levando os rascunhos dos seus poemas, que fazia circular como panfletos.

Ao reiterar sua convicção de que a poesia é um veículo de generosidade e comunhão, e um instrumento de luta contra a injustiça, lamentou a condição escrava de Paris, ocupada pelos agressores nazistas:

 

Paris a faim

Paris ne mange plus de marrons dans la rue.

 

O livro Au rendez-vous allemand, no qual constam os versos acima citados, é um canto fúnebre de solidariedade aos fuzilados, reféns e mártires, que morreram para que a esperança não morresse.

Desço na parada de Marx Dormoy e vejo, imediatamente, a place Paul Éluard, como um bom augúrio de que vou no caminho certo para encontrar a antiga morada do poeta. Comprei um rádio portátil, a um indiano, numa loja de eletrodomésticos, e assisti à quebra do espelho retrovisor de uma camioneta preta, parada em frente. Um caminhão passou de raspão e destroçou o espelho retrovisor lateral da camioneta, espalhando fragmentos de vidros sobre a rua de Marx Dormoy. O motorista da camioneta estava ausente e nem percebeu o prejuízo.

Fui empós do número 35 da rue Marx Dormoy, antes chamada de rue la Chapelle. É hoje uma avenida movimentadíssima, de dois sentidos. Durante a ocupação alemã, o apartamento de Paul Éluard, no terceiro andar da rue de la Chapelle, nº 35, foi um bastião do Front National de la Résistance.

O prédio é antigo. Tem fachada neoclássica de cor cinza, com frisos, janelas verticais e grades nas estruturas que simulam varandas. Éluard morou nesse local de 1940 até o final de sua vida, em 1952.

Durante os 12 anos em que ali viveu, interrompidos pelos transtornos da guerra, Éluard escreveu diversos artigos para a revista Les Lettres Françaises, tendo, num desses artigos, homenageado seu amigo Max Jacob. Também, criou a Eternelle Revue, para publicar jovens escritores. Imprimiu seus cantos fraternos numa gráfica clandestina em Saint Flour, e os distribuiu, em Clermont-Ferrand, aos amigos de Resistência. Seu poema Liberté, cuja primeira estrofe cito, fez história. Teve sua primeira edição, de forma clandestina, no livro Poésie et vérité, em 1942. Lançado por aviões britânicos, sobre o solo francês, tornou-se o hino de celebração da vitória dos Aliados. Em 1943, foi musicado por Francis Poulenc:

 

Sur mes cahiers d’écolier

Sur mon pupitre et les arbres

Sur le sable sur la neige

J’écris ton nom.

 

Éluard refugiou-se da guerra, em 1944, no asilo psiquiátrico de Saint-Alban, nas montanhas de Lozère, onde escreveu intensamente, produzindo novos cantos de amor e liberdade, como este excerto do livro Une longue réflexion amoureuse:

 

Nos jeunes amis nous attendent.

Il faut bon vivre à la campagne

Nos feuilles vont regagner l’arbre

Notre herbe retrouver la nuit de sa croissance.

 

Em 1946, ocorreu o trágico acontecimento, que foi a morte de Nusch, após dezesseis anos de vida em comum. O livro Le temps déborde, de 1947, reflete o terrível estado emocional em que seu espírito se abismou. Aqui, no poema Notre vie, constata-se essa evidência:

 

Mon passé se dissout

je fais place au silence.

 

Três anos mais tarde, ele conhece, no México, durante o Congresso Mundial da Paz, Dominique Lemort, sua derradeira inspiradora, que, segundo suas palavras, significou para ele uma ressurreição:

 

Tu es venue l’après midi crévait la terre

et la terre et les hommes ont changé de sens.

 

O questionamento da compatibilidade entre a atitude cultural da URSS e do Partido Comunista está em todo momento na concepção da ideologia revolucionária de Éluard. Humanista do amor fraterno, desde seus primeiros versos, Paul Éluard universalizou sua voz, ao se solidarizar com todos os homens. Veja-se o que preconiza esse profeta lírico, no poema Pour vivre ici, texto datado de 1918, incluído na compilação de Le livre ouvert:

 

Je fis un feu, l’azur m’ayant abandonné,

Un feu pour être son ami,

Un feu pour m’introduire dans la nuit d’hiver,

Un feu pour vivre mieux.

Je lui donnai ce que le jour m’avait donné.

 

Seu protesto de indignação contra a falsa moral, que se sustenta pela construção de casernas, prisões e bordéis, ressoa como aspecto de sua utopia. Quisera ele extinguir do mundo os flagelos da doença, da miséria, da violência e da destruição. Para Éluard, a ordem social não poderia ser imposta apenas pelo poder dos vencedores de uma guerra, mas, sobretudo, pela compreensão espiritual da fraternidade. Sua fé na evolução espiritual do homem profetiza um tempo em que não haverá vitória do mais forte, porque um dia todos teremos o mesmo equilíbrio de forças e as sociedades hão de viver em colaboração pacífica. Esta estrofe de Bonne justice, por exemplo, brilha com a ressonância mística da doutrina cristã:

 

C’est la douce loi des hommes

de changer l’eau en lumière

le rêve en réalité

et les ennemis en frères.

 


Saliente-se que, nesta fase madura do poeta, ele já havia passado pela experiência ideológica mais radical, tornando-se um processo em sua formação humanista.

Aos temas do amor e aos exercícios de poesia experimental de sua obra, o humanista da fraternidade acrescentou um otimismo quase religioso.

 

La nuit n’est jamais complète,

Il y a toujours puisque je le dis

Puisque je l’affirme

Au bout du chagrin une fenêtre ouverte

Une fenêtre éclairé.

 

De esplêndida emoção lúcida, Éluard escreveu a poesia das sensações e das impressões visuais e táteis. Poemas feitos da relação direta entre a vida e o mundo, com intensa vibração de formas e cores. Poesia de grande celebração do amor.

Em 1952, aos cinquenta e sete anos, em Charenton, nas proximidades do bois de Vincennes, numa crise de angina, a morte o arrebatou.

Não canto as proezas do Barão Haussmann, nem a coragem do Marechal Joffre, nem as filigranas do teu monolito, Nôtre-Dame des poètes! Canto o meu passeio entre a Île Saint-Louis e o Quartier Latin. Canto os barcos, as ensolaradas esquinas de la Seine, a estampa retangular dos edifícios cinzentos que cingem as duas margens, o acordeom do cigano, os sinos do Hôtel de Ville, o bem-estar na tarde fresca, a transitoriedade da vida e a palavra de Paul Éluard, grande humanista, que dizia sermos os homens todos irmãos; devoto da vida e do amor, “devant ce paysage où la nature est mienne”.

Éluard transcendeu a ortodoxia surrealista, com a expressão de sua poesia de alta qualidade humana. Poesia com a qual iluminou a realidade. Sua fé na palavra como experiência purificadora e libertadora o qualifica como o poeta do amor e da esperança. Sempre atormentado pela saúde precária e pelos parcos recursos financeiros, vivia no âmago da utopia. Dizia sentir uma emoção superior, ao ouvir a palavra fraternidade, que significa esperança de vencer as potências da ruína e da morte. Éluard entende, portanto, que o poeta, instrutor da humanidade, nos ensina com seus cantos a consciência do que somos e do que podemos ser.

 


MÁRCIO CATUNDA
| Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros.

 


ANA SABIÁ
| Artista visual e pesquisadora independente. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), mestra em Psicologia Social (UFSC) e graduada em artes visuais pela FAAP (SP). Participa ativamente da cena fotográfica contemporânea de exposições, palestras, mostras e festivais em todo o território nacional. Em 2017 foi premiada com o 1° lugar (categoria foto única) no 13° Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco (RJ); com o 2° lugar do júri oficial do Prix Photo Web Aliança Francesa e selecionada em convocatória do SESC Galerias, para a mostra individual “Do porão ao sótão” itinerante em três cidades catarinenses. Em 2019 foi selecionada para a mostra coletiva “Vento Sul” no 9° Foto em Pauta Festival de Fotografia de Tiradentes (MG) e convidada pela curadoria da 14ª Bienal Internacional de Curitiba para integrar a programação com a mostra individual “Panorâmicas do Desejo”. Em 2020 foi selecionada no edital “Arte como respiro” do Itaú Cultural (SP); também selecionada no 25° Salão Anapolino de Arte (GO) e, neste mesmo ano, na leitura de portfólio do FESTFOTO (POA), obteve o Prêmio Aquisição do Museu da Fotografia de Fortaleza.
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 01

Número 200 | janeiro de 2022

Artista convidada: Ana Sabiá (Brasil, 1978)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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