MARTIN LUTHER KING
JR.
Biografia de uma rebelde
Detesto academias
e ideias fixas sobre o que uma coisa devia ser ou como ela deve ser feita. O problema,
hoje (1965), com a dança moderna é que ela está a tentar ser respeitável. Os seus
fundadores eram rebeldes mas os seus seguidores são burgueses.
ANNA SOKOLOW
Meia dúzia de frases poderiam descrever resumida, mas assertivamente,
a vida da grande coreógrafa Anna Sokolow:
Judia por nascimento fez-se bailarina por
paixão e coreógrafa – de grande e intransigente integridade – por vocação.
Levou a “modern dance” (dança moderna)
dos Estados Unidos da América para o México e Israel – e a outros países do Mundo
– tendo mostrado, com enorme pujança, o que a Arte lhe pediu da vida e do seu trabalho.
O seu incisivo interesse em temas humanísticos
levou-a a criar obras de grande intensidade dramática sempre associadas a imagéticas
contemporâneas e, quantas vezes, provocatórias.
As suas criações não apresentavam soluções
para os problemas do mundo em que viveu mas, não restam quaisquer dúvidas, tudo
fazia para despertar a consciência do público que acorria quer aos teatros da Broadway
(teatro musical) ou aos de dança, então na Baixa novaiorquina.
O objectivo artístico de Anna, só por si,
de reflectir práticas humanitárias e de justiça social, fizeram dela uma Mulher
e Artista ímpares no espectro da dança do século XX.
Nasceu a 9 de Fevereiro de 1910 na cidade
de Hartford (Connecticut) filha de dois emigrantes russos, Samuel e Sarah, que chegaram
ao “novo continente” respectivamente em 1905 e 1907. Foi uma das quatro filhas do
casal e veio a crescer, com algumas dificuldades, na cidade de Nova Iorque. Por
volta dos 15 anos abandonou o lar para estudar dança, enquanto trabalhava como operária
fabril. Teve inicialmente contacto com a linha de dança de Isadora Duncan (1877–1927)
e da de movimento dos europeus François Delsarte (1811-1871) e Émile Jacques-Dalcroze
(1865-1950). Antes de, na Neighborhood Playhouse situada na Lower East Side de Manhattan,
ter tido como mestres duas figuras incontornáveis da dança da época, Martha Graham
(1894-1991) e Louis Horst (1884-1964). Aí estudou movimento, voz e pantomina tendo-se
estreado em palco por volta de 1928. Dois anos depois começou a fazer parte do grupo
de Graham, tendo-se tornado solista e, em simultâneo, assistente das aulas de composição
coreográfica de Horst. Durante os oito anos em que interpretou trabalhos de Graham
teve oportunidade de fazer parte do elenco que dançou “A Sagração da Primavera”,
de Leonide Massine, em 1930. Posteriormente criou o Union Dance Group (1933) e o
Dance Unit (1935) com os quais começou a apresentar obras de cariz intervencionista,
conotadas com um movimento radical e político de dança. Em 1937, ao seu conjunto
(feminino) juntaram-se quatro homens, tendo Anna optado, deliberadamente, por não
separar o movimento dos artistas por géneros. Nesse mesmo ano, em que integrou a
Liga da Nova Dança, criou a obra Excertos
de um Poema de Guerra que terá surgido na sequência da sua Trilogia Anti-Guerra, datada de 1933. Considerando
os membros dos sindicatos o seu público-alvo, Sokolow também abordou temas relacionados
com o socialismo, o comunismo e a exploração das classes operárias. Bem como os
crescentes problemas dos judeus na Alemanha de Hitler. Em 1939 iniciou uma longa
colaboração com o teatro e a dança no México. Nos anos 40 criou A Noiva (1946) peça influenciada por elementos
tradicionais das cerimónias de casamento da igreja judaica ortodoxa. Entre 55 e
85 foi professora e coreografou regularmente para o Juilliard Dance Ensemble peças
como Primavera (1955) e Ballade (1965). Rooms, criada em 1955, é considerada uma das suas obras-primas.
Em 1953 foi convidada para trabalhar com
a Inbal Dance Theatre de Israel tendo, a partir de então, coreografado e leccionado
regularmente nas mais importantes companhias daquele país.
Nos teatros da Broadway criou danças para
os musicais Street Scene, Happy as Larry e Camino Real, assim como para as óperas Carmen e Candide. Devido a
uma doença inesperada teve que abandonar a coreografia na criação do emblemático
Hair, em 1967. Já restabelecida, tempos
depois, recusou voltar a esse trabalho por ele envolver cenas de nudez.
Entre 58 e 65 concebeu uma série de bailados
intitulados Opus e, no final dos anos
60, utilizou o estilo de dança jazz para protestar contra a guerra no Vietname e
dar voz às contraculturas emergentes nos Estados Unidos.
É de salientar que, em 1947, o seu amigo
Elia Kazan convenceu-a a ensinar movimento para actores no famoso Actors Studio,
de que também foi membro fundador. Viria a abandonar esse trabalho a meio da década
de 50.
Pela sua contribuição para a sedimentação
e divulgação da dança moderna e cultura norte-americanas recebeu vários prémios,
bolsas e subsídios ao longo da sua vida activa, bem como diversas condecoração no
seu país natal e em outros, designadamente no México – Orden Mexicana del Águila
Azteca, a mais alta condecoração outorgada a estrangeiros por proeminentes serviços
prestados à nação mexicana ou à Humanidade.
Déserts
Tentem sentir a solidão, a angústia e o medo, ou, talvez, a liberdade
de um deserto existencial que existe dentro de cada uma das vossas cabeças.
ANNA SOKOLOW
Não é por acaso que a conceituada escritora norte-americana Selma Jeanne
Cohen – de quem se diz ter transformado o mundo da dança fornecendo aos críticos
e historiadores uma linguagem muito particular para a discussão das nuances da interpretação e da coreografia
– em um dos seus livros, Modern Dance – Seven
Statements of Belief, junta Anna Sokolow com alguns dos nomes cimeiros da Dança
Moderna norte- americana, designadamente, José Limón, Erick Hawkins, Donald McKayle,
Alwin Nikolais, Pauline Koner e Paul Taylor.
Na época do crescimento dos enormes arranha-céus
nos Estados Unidos, de amargos conflitos laborais e de dilacerantes estados de neurose,
ao que se viria a juntar, em tempos de guerra, os escritos de Freud, Joyce e T.
S. Elliot, a pintura de Picasso e a música de Bartók, Martha Graham, a principal
mentora de Anna, afirmava “não quero ser uma árvore, uma flor ou uma onda. No corpo
de um bailarino, nós como espectadores, devemos vermo-nos a nós próprios não imitando
o comportamento das acções quotidianas, nem fenómenos da natureza, nem criaturas
exóticas vindas de outro planeta, mas algo do milagre que é um ser humano motivado,
disciplinado e concentrado. [1]
Entusiasmado pelo conhecimento desse mundo
histórico e distante, no tempo e no espaço – e muito antes de ler a obra de Selma
Jeanne Cohen –, a primeira vez que ouvi falar de Anna Sokolow foi através do bailarino
e coreógrafo português Jorge Trincheiras (1939-1991) que fora seu discípulo na Juilliard
School e aí interpretara o bailado Rooms.
O irmão mais novo de Carlos Trincheiras
(1937-1993) – director do Balé do Teatro Guaíra, de Curitiba, entre 1979 e 1983
– dançou no Grupo Experimental de Ballet e no Grupo Gulbenkian de Bailado, em Lisboa,
antes de se lançar numa carreira internacional. Foi o artista da dança português,
da sua época, com mais visibilidade no estrangeiro, tendo feito parte, entre outros,
dos Ballets de Paris/Roland Petit, do Ballet da Ópera de Hamburgo, do Ballet de
Zurich, do Ballet do Século XX/ Maurice Béjart, do Ballet da Ópera de Chicago, do
Ballet de Santiago do Chile, do Ballet Nacional da Noruega e da Companhia Nacional
do Egipto. Trabalhou com inúmeros coreógrafos e dançou ao lado de bailarinas de
renome mundial como Laura Proença, Zizi Jeanmaire, Svetlana Beriosova, Violette
Verdy e outras. Após uma carreira de sucesso, como intérprete, seguiu para Nova
Iorque a fim de estudar na emblemática Juilliard School, onde se diplomou, no final
dos anos 70, tendo de seguida regressado a Portugal tornando-se professor de dança
moderna no Conservatório de Ponta Delgada, na Escola de Dança do Conservatório Nacional
e, por fim, na Escola Superior de Dança (ambas em Lisboa). Foi também o fundador,
director e coreógrafo do Ballet-Teatro Arquipélago, nos Açores, e, posteriormente,
do grupo de dança experimental Olissipo, na capital portuguesa.
Jorge era um verdadeiramente apaixonado
pela obra de Anna Sokolow e falava dela com uma devoção, respeito e admiração, dignos
de nota. Certamente por isso tanto me incentivou a seguir as suas pegadas, inscrevendo-me,
no verão de 83 na Juilliard e rumando a Manhattan.
Mas os meus objectivos naquela instituição
eram bem diferentes dos seus. Por tal, quando apareceu na tabela afixada na parede
junto ao escritório de Marta Hill (1900-1995) – a directora da Divisão de Dança
da Juilliard School entre 1951 e 1985 – a distribuição do bailado Déserts (Desertos), foi mesmo com alguma
surpresa que vi o meu nome na lista. Até porque já estava designado para dançar
duas outras peças no Concerto da Primavera de 1984 no Lincoln Centre. E, como era
hábito entre estudantes, estava a aprender mais outro bailado, como substituto.
Antes dos trabalhos começarem, Miss Hill
convocou alguns dos estudantes chamados a integrar o elenco da peça Desertos, para lhes explicar a importância
da obra, a honra de ter sido escolhido e, sobretudo, o facto de Miss Sokolow ser,
cada vez mais, uma presença rara na escola. Os “eleitos” devem trabalhar com ela,
afirmou, com toda a concentração e seguir escrupulosamente as suas directivas técnicas
e artísticas. Notei que, durante o longo (e maternalista) monólogo de Martha Hill
aos seus discípulos, os seus olhos se cruzaram com os meus diversas vezes, o que
não interpretei como bom sinal. Mas os dados estavam lançados e com alguma expectativa
mas, certamente sem o fervor que Jorge Trincheiras teria, dirigi-me para a sala
de ensaios no dia e hora marcada, para iniciar uma jornada que deixaria marcas profundas
na minha vida artística.
Possivelmente havia na coreógrafa um desejo
secreto de moldar os corpos através do seu trabalho pristino e cru, e com isso tirar
bons resultados no campo psicológico ao “homogeneizar” ideologicamente um grupo
de jovens, certamente, pouco dado a questões de ordem social, política ou religiosa.
A verdade é que alguns – mais ou menos
conscientes do caminho que os esperava para percorrer – tinham mostrado vontade
de trabalhar com a grande referência de idoneidade e coerência artística e intelectual
que Anna encarnava. Mas outros tinham sido referenciados para a peça por Martha
Hill, apenas porque ela achava que era necessário que fossem uma pouco “domesticados”,
passando pelo apertado pelo crivo de uma mulher experiente e de aspecto sombrio,
então, nos seus setenta e três anos.
Para o bem e para o mal – não sei se meu
se de Anna – eu enquadrava-me no segundo grupo. Tinha caído, por consequência, num
grupo de jovens bailarinos (quase todos com menos cinco ou sete anos do que eu)
ávido por novas experiências. Alguns deles faziam parte da turma que albergava os
“patinhos feios” da escola, mas, nos ensaios de Déserts todos eram iguais perante a coreógrafa, a música e a própria
dança. E isso deixava-me, em simultâneo, algo desconfortável e um pouco confuso,
porque a arte de Terpsícore frequentemente não tem muito de democrática e, ainda
que inseridos num conjunto, poucas vezes os artistas se contentam em ser “iguais”
aos restantes colegas.
Desde cedo me apercebi da razão porque
havia sido colocado na “mira” de Anna Sokolow, ainda que não tenha manifestado,
junto da própria ou da direcção da escola, vontade de ter mais uma obra para dançar
no concerto da Primavera. Ainda assim, a oportunidade deixou-me contente pois conhecia
apenas uma peça sua, intitulada Rooms,
de 1955 – o ano em que nasci –, e que tinha tanto de sombrio como, nos meus vinte
e tal anos, eu tinha de alegre e enérgico.
A resposta a essa difícil equação chegou
logo no primeiro ensaio em que, não dominando a minha boa disposição, fui de imediato
chamado à atenção pela coreógrafa para “o carácter sério e intenso” da obra em preparação.
Anna olhou-me de soslaio algumas vezes e, um dia, a meio de um ensaio parou todo
o movimento da sala para me dizer, quase rangendo os dentes, que não estava suficientemente
concentrado. E isso foi apenas o princípio de uma “guerra” surda que demorou várias
semanas.
Como o ambiente era hermético e o trabalho,
por vezes, penoso comecei por partir do princípio que poderia aplicar a minha costumeira
“fórmula” de aliviar a rigidez dos ensaios, com momentos de descontracção. Mas o
que desconhecia era que o cerne da questão para a coreógrafa estava, justamente,
na capacidade de alimentar um crescendo
emocional e uma tensão física nos artistas que culminasse com uma série de danças
individuais espasmódicas no final da peça, antes de, no caso, todos se recolherem
ao solo simulando o poético efeito hipnótico das areias adormecidas de um imaginado
deserto. Ao contrário das outras obras do programa, Déserts apelava muito mais à parte emocional do que física. E Anna era
o retrato de uma mulher sofrida e sempre vestida de negro, num corpo débil que mais
de uma década antes sofrera de uma longa e profunda depressão.
Quem, depois de longos minutos sentado
no duro piso de madeira do estúdio de dança a olhar fixamente para as costas das
suas próprias mãos tensamente abertas e empurrando a superfície lisa de um deserto
ali imaginado, poderia evitar mais do que uma réstia de cansaço? Apenas o pequeno
grupo de raparigas judias que encaravam qualquer trabalho de Sokolow como uma espécie
de missão e aquela excepcional participação artística como um desígnio até mais
religioso que coreográfico.
Anna era assim, tensa e pristina, fechada
nos pensamentos e impenetrável na sua própria mente. Não havia um sorriso naquela
mulher desamparada e solitária que, em surdina, era capaz de bolsar as coisas mais
violentas que um artista pode ouvir. Dizia-se que era a maneira que tinha de preservar
a sua integridade coreográfica e de amar os seus bailarinos. Talvez fosse!
Percebia-se, dentro das quatro paredes
de um estúdio em que passar os olhos por um dos espelhos era tido como um autêntico
sacrilégio, que as suas peças eram altamente politizadas e, por vezes, mesmo religiosas,
dentro de uma moldura fortemente teatral, pesada, severa e angustiante.
Como ela podia ser intensa e, ao mesmo
tempo, mostrar uma inusitada força interior, quando o seu corpo era tão vulnerável
e as suas mãos, frequentemente erguidas, eram intemporais e frágeis?
Creio que hoje, à distância de quase quatro
décadas, que todas as respostas estavam, justamente, nas imagens que tão bem conseguia
passar aos artistas naquela magnífica viagem que se intitulava Desertos.
Déserts, o título de 1954 do compositor francês Edgar Varèse (1883-1965) que
Anna escolheu para construir uma peça que, em primeira análise, evoca os desertos
que cada um constrói à sua volta. De um modo bem simplista, poder-se-ia interpretar
a sua proposta coreográfica sob o seguinte lema: todos somos ilhas rodeados de areia
por todos os lados e que apenas o vento consegue fazer mover.
Quando, nos anos 50, os gravadores de som
se tornaram peças relativamente acessíveis o compositor criou as suas duas últimas
peças, que, posteriormente, se tornaram obras de referência da música electrónica:
Déserts, para orquestra e fita e Poème Électronique (1958), para fita solo.
Hamsa e o ancestral mistério das mãos
Olha bem para as tuas mãos. São diferentes, uma da outra, e não há
duas pessoas no mundo com mãos iguais.
ANNA SOKOLOW
Decorrido algum tempo sobre o muito aplaudido e esgotado Concerto da Primavera, no Lincoln Center
– a que Anna não assistiu –, recebi uma mensagem de Miss Hill para me dirigir ao
seu gabinete. Como não tinha feito nenhuma “tropelia” em aula ou ensaio ou esperasse
notícia que justificasse semelhante deslocação, foi com a maior das surpresas que
subi ao piso da administração e a directora me informou que tinha uma carta para
mim. Fez questão de ma entregar em mão com a advertência que era para levar e ler
em casa. Sempre curioso, mal atravessei a porta abri o envelope sem remetente e,
espanto dos espantos, tinha dentro um bilhete de Anna Sokolow a pedir-me para ir
a sua casa. Acrescentou a morada: 1, Christopher St., Apt. 5H e o seu número de
telefone (212) 2925043, para combinarmos a data e hora do encontro. Lembro-me que
fiquei tão comovido como pensativo. Mas, sobretudo, muito curioso. Ainda tive alguma
dificuldade em que atendesse o telefone, porém, quando falámos – ela num tom de
voz calmo e particularmente afectuoso – disse-me, simplesmente, que me queria convidar
para ir visitá-la. Não podia ter ficado mais surpreendido. Não só porque Anna era
conhecida por ser parca em receber visitantes como, apesar de vários meses de ensaios,
não tínhamos construído grandes pontes nem ficado grande intimidade entre nós. Fui,
com um misto de receio e de excitação, ao seu apartamento, num antigo edifício de
tijolo castanho-escuro perto da Greenwich Village, onde viveu grande parte da sua
vida.
Não houve testemunhas, mas recebeu-me com
um sorriso que eu pensava não existir no seu rosto fechado, com um abraço caloroso
e algumas palavras em meticulosamente articuladas em castelhano. Mal entrei no seu
“universo” percebi que era um lar cuidado, com mobília requintada e muitos objectos
decorativos que exibiam uma certa patine. Mas aquilo que chamaria, sempre, a atenção
ao mais desprevenido dos visitantes só poderia ser a enorme quantidade de representações
de mãos espalhadas por todas as divisões da casa. Mãos pintadas, mãos esculpidas,
mãos bordadas, mãos frágeis ou poderosas, claras ou escuras, abertas ou fechadas,
grandes ou pequenas com muitos dedos que se poderiam contar às centenas.
Olha para essas mãos, determinada, mandou.
Agora olha para as tuas mãos. São diferentes uma da outra, não são? É que não há
duas pessoas no mundo com mãos iguais. E por isso elas são tão misteriosas. E não
me canso de as contemplar.
Pedi-lhe que me deixasse ver as dela. Não,
retorquiu secamente. Não gosto que olhem as minhas mãos. Repara antes nestes quadros.
São pinturas de mãos que vieram de todo o Mundo.
Estas são de Marrocos? As mãos de Fátima?
Questionei-a.
Sim, mas também há muitas de Israel. Lá
chama-se hamsa, a mão de Miriam. É uma
palavra que deriva de hamesh, que em hebraico
significa cinco. São, naturalmente, os cinco dedos da mão.
Após umas horas de trocas de calculadas
frases entre nós, já de saída, inclinei-me para a beijar e, de seguida, despedi-me,
perto do seu ouvido, com um… muchas gracias, Anna.
Que Dios te bendiga
siempre. Respondeu.
Hasta sempre, Anna!
E assim nos separámos, na porta de elevador,
e nunca mais nos voltámos a ver.
Estava, pois, desvendado o ancestral mistério
das mãos que tanto intrigou, durante meses, os intérpretes de Desertos. Saí do apartamento
de Anna com um envelope tendo dentro uma fotografia autografada e um recado para
Jorge Trincheiras: un beso siempre.
Tinha encontrado uma velha foto de um ensaio
de Rooms dentro de uma gaveta e lembrou-se
de mandar saudades em papel a alguém que, como eu, falava português mas a quem ela
sempre se dirigia em castelhano.
Epílogo
Meu Deus como o tempo passa
Dizemos de quando em quando
Afinal o tempo fica
A gente é que vai passando
JOÃO DE FREITAS (1901?-1970)
Passados quase quarenta anos sobre o meu
último encontro com Anna Sokolow, e numa altura em que a Dança constitui para mim,
pouco mais que uma longínqua recordação de “juventude”, imagino muitas vezes, a
artista solitária sentada em frente de um espelho, olhando-se a si própria no reflexo
prateado dos sonhos. E bem ao fundo, atrás de todos os pensamentos, um mundo em
que a dança possa ser… too pretty ou too ugly. Too close ou too far… em que as mãos
de Miriam, ou de Fátima, por mais misteriosas que fossem, tivessem a aprovação de
Miss Sokolow.
Numa época (de pandemia) em que tanta gente
se obriga a dançar em lugares inusitados – tais como as divisões das suas próprias
casas – e em cidades vazias de alma em que o afastamento e a solidão pontuam muito
para além das máscaras faciais, o bailado Rooms
parece ter, em 2022, recuperado um novo significado. Os títulos das suas sete secções
são bastante reveladores da proposta de Anna Sokolow, que se reveste de contornos
que alguns poderão associar a um universo algo surrealista. Solitário, Sonho, Escape,
Saindo, Pânico, Sonhar Acordado e Fim foram carpinteiradas tendo em mente, e por
enquadramento, as alturas de um de um qualquer apartamento no topo um arranha-céus
novaiorquino.
Descendo às memórias da Greenwich Village, não poderei deixar de
confessar que tenho muitas saudades daquela personagem carismática (e algo ficcional)
lembrando com particular carinho tudo o que aprendi com o seu olhar arguto e os
silêncios que ela tão bem sabia engendrar. Ainda que hoje me pareça que a sua lógica
de movimento era muito diferente da minha, tenho a certeza que as contradições que
sempre encontrei no complexo ofício da Dança, não se conseguiram atenuar com as
fortes experiências que Anna, então, me proporcionou.
No meu universo artístico Anna Sokolow
sempre foi, e continuará a ser, a coreógrafa dos 3 is: integridade, intensidade
e inteligência.
Até sempre Anna.
Lisboa, 21 de dezembro 2021
NOTA
Este é um texto assumidamente redigido na primeira pessoa e contém,
especificamente, apenas uma referência bibliográfica:
Cohen, Selma Jeanne. (1965) The Modern Dance – Seven Statements of Belief,
Middletown (CT), Wesleyan University Press.
1. Dorris, George. “Selma Jeanne Cohen”. The Shalvi/Hyman Encyclopedia of
Jewish Woman. 31 dezembro 1999. Jewish Womens’s Archive.
ANTÓNIO LAGINHA | Bailarino, professor, coreógrafo, jornalista e investigador português, licenciado em Arquitectura, pela ESBAL – Escola Superior de Belas Artes da Universidade Técnica de Lisboa (1978) e antigo membro da Ordem dos Arquitectos. Estudou dança no Conservatório Nacional e na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, na Juilliard School (NYC) e na Universidade de Nova Iorque (Tisch School of the Arts) onde obteve o grau de Mestre em Belas Artes (1997), posteriormente reconhecido pela Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica de Lisboa. É doutorado em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (2016) com uma tese intitulada “Memória da Saudade – O percurso artístico do Ballet Gulbenkian como estrutura de referência na dança portuguesa (1961-2005)”, no ramo de Estudos Teatrais e Performativos do Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes, depois de ter sido bolseiro da FCT junto da Faculdade de Motricidade Humana. Publicou O Segredo de Natália (1988), a biografia de Ruth Asvin (A fabulosa Madame Ruth, 2017 e 2021) História do Bailado em Portugal (2021), dentre outros.
ANA SABIÁ | Artista visual e pesquisadora independente. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), mestra em Psicologia Social (UFSC) e graduada em artes visuais pela FAAP (SP). Participa ativamente da cena fotográfica contemporânea de exposições, palestras, mostras e festivais em todo o território nacional. Em 2017 foi premiada com o 1° lugar (categoria foto única) no 13° Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco (RJ); com o 2° lugar do júri oficial do Prix Photo Web Aliança Francesa e selecionada em convocatória do SESC Galerias, para a mostra individual “Do porão ao sótão” itinerante em três cidades catarinenses. Em 2019 foi selecionada para a mostra coletiva “Vento Sul” no 9° Foto em Pauta Festival de Fotografia de Tiradentes (MG) e convidada pela curadoria da 14ª Bienal Internacional de Curitiba para integrar a programação com a mostra individual “Panorâmicas do Desejo”. Em 2020 foi selecionada no edital “Arte como respiro” do Itaú Cultural (SP); também selecionada no 25° Salão Anapolino de Arte (GO) e, neste mesmo ano, na leitura de portfólio do FESTFOTO (POA), obteve o Prêmio Aquisição do Museu da Fotografia de Fortaleza.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 01
Número 200 | janeiro de 2022
Artista convidada: Ana Sabiá (Brasil, 1978)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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