Estranho
destino da revista Tropiques, um meteorito
imprevisto que explode no mar das Caraíbas, em 1941, em plena II Guerra, numa periferia
do mundo, transformada em revista quase mítica pelas ondas que provocou em torno
do seu ponto de impacto e de difusão, por todas as Antilhas (Haiti, Cuba) e até
mais além no continente (Venezuela, México, Nova York), e só redescoberta, muito
tardiamente, pelo público, graças à reprodução anastática, realizada sob a direção
de Jacqueline Leiner, pela editora Jean-Michel Place de Paris, mais de trinta e
cinco anos depois, em 1978. É então que o público leitor teve enfim acesso à série
de números de uma revista composta e publicada em condições muito modestas e precárias
em Fort-de-France, pequena cidade colonial da Martinica. Aliás, é preciso não esquecer
que um dos seus redatores – no caso, uma mulher, Suzanne Césaire – solicita e busca,
inclusive, papel de impressão ao censor oficial de Vichy, durante o período da Dissidência
antilhana até ao seu término. E os seus números se sucedem de 1941 a 1945 sem interrupção,
o que é uma proeza numa revista literária em condições normais. Até então, conheciam-se,
de Tropiques, apenas algumas citações
lacunares e às vezes com bastante falhas, da primeira tese pioneira de Lylian Kesteloot.
Tropiques, por um lado,
confirma um extraordinário poeta (Aimé Césaire, que já publicara a 1ª versão do
Cahier d’un retour au pays natal, em 1939,
numa revista de Paris, Volontés) e por
outro, revela dois grandes escritores: René Ménil e Suzanne Césaire, praticamente
desconhecidos entre nós e de perfis diferenciados.
Suzanne
Césaire acaba de ser publicada, no Brasil, pela editora Papéis selvagens (da UFRJ).
Por outro lado, o leitor encontrará uma nova apresentação da sua obra, em outro
pequeno ensaio, igualmente nesta série “Surrealismo Surrealistas”, da Agulha Revista de Cultura, vista de uma outra
perspectiva, que, invertendo a simples sequência cronológica, espelha a escritora
da Martinica, já falecida, no olhar de Aimé Césaire, seu ex-marido, graças a um
poema escrito na sua velhice diante de um rochedo que avança para o mar com perfil
de mulher adormecida.
René
Ménil, pelo seu lado, professor de filosofia no liceu Schoelcher de Fort-de-France,
fez uma carreira importante de ensaísta embora nunca tenha eu encontrado, nas bibliografias
de trabalhos brasileiros, uma referência ao seu ensaio fundamental, Tracées: identité, negritude, esthétique aux
Antilles (Robert Laffont, 1992), o que é surpreendente pois, já em 1932, ainda
em Paris, ele é um cofundador da revista Légitime
défense. [3] Dito
de outro modo: Ménil permanece ainda mais desconhecido, entre nós, do que Suzanne
Césaire, cuja figura vem saindo, aos poucos, da obscuridade e da clandestinidade.
Estas podem ser explicadas, de certa forma, pela brevidade da sua obra (apenas sete
textos, mais uma peça teatral, ao que parece, irremediavelmente perdida), pela sua
produção que se concentra em apenas quatro anos durante a II Guerra Mundial (1941-
1945) e enfim, pelo seu trágico desaparecimento precoce.
René
Ménil tem, pelo contrário, vida longa, bem preenchida e produtiva. Ele faz brilhantemente
a ligação entre o marxismo clássico dos anos 1950 e os ensaístas da descolonização:
o Césaire do Discurso sobre o colonialismno,
o Fanon de Pele negra e máscaras brancas,
o Édouard Glissant da crioulização e seus epígonos.
O
que nos interessa mostrar aqui são as duas faces de Ménil, a de poeta em prosa e
a de teórico, o primeiro a repensar criticamente a própria revista Tropiques.
Repensando criticamente
Tropiques
Deixaremos para
o final o prazer de descobrir o jovem – imprevisto – René Ménil dos anos 1940, no
período da Dissidência antilhana, teórico sobre literatura e poeta surrealista em
prosa. Comecemos, senão pelo fim, pelo menos in media res. Em 1978, no momento da reprodução anastática da revista
pela editora Jean-Michel Place, muitos anos depois da experiência coletiva da revista-laboratório,
Ménil assina um texto importante intitulado “Pour une lecture critique de Tropiques”. [4] Ele afirma
inicialmente:
A leitura que pretendemos
aqui fazer para os leitores é uma leitura crítica – preocupada, por consequência,
em encontrar as implicações e as consequências desses textos de modo a extrair as
suas significações objetivas, entre as quais deverão ser encontradas até aquelas
que teriam escapado aos redatores da revista por qualquer razão. (Tradução
de Lilian Pestre de Almeida) [5]
Para
tal, Ménil aponta um certo número de problemas, de natureza diferente aliás: a)
em Tropiques, a censura prévia obrigatória
produziu efeitos de estilo e de pensamento; b) os seus leitores – essencialmente
estudantes de liceu, nascidos e vivendo na Martinica – sabiam ler nas entrelinhas,
preencher os silêncios, interpretar os símbolos, as elipses e as antífrases e c)
os textos publicados dirigiam-se, ao mesmo tempo, ao leitor antilhano e ao censor
francês. Assim, Pétain e seu regime eram denunciados por meias palavras mas nunca
claramente nomeados enquanto dura o período da chamada “Dissidência” antilhana.
Enfim, a autocensura interior (freudiana) acrescentava-se ainda aos redatores de
Tropiques. Ménil observa com propriedade:
“os limites do passado só são vistos no presente”.
Outra
observação sua: “o empréstimo ao surrealismo,
que é simplesmente proclamado em diversos lugares nos textos, não deve paralisar
a análise nem sugerir preguiçosas interpretações mecanicistas”.
Ménil
nota ainda presenças e ausências nos textos de Tropiques:
Em
suma, para Ménil, a revista tem “literatura
demais” (trop de littérature), insistindo
no “mistério”, por definição, quase impenetrável
e remetendo ainda ao “romantismo” mais
exaltado que trabalha todos os textos, do interior. É portanto literatura altamente
elaborada, de segundo grau, que se inscreve e desenvolve a partir da literatura
francesa em relação à qual toma, de forma contraditória, distância numa “constante contestação”. Quanto a isso, o
exemplo citado por Ménil é o do cubano Wifredo Lam, na pintura, marcando a sua total
solidariedade com a revista e, logo a seguir, apresentando-se como “expressão plástica do 3º mundo”. Para Ménil,
la Jungle, o grande quadro emblemático
de Lam, mestiço de chinês com negra cubana,
não é certamente um dado “naïf” mas
o resultado de muitas reflexões sobre culturas e civilizações, sobre a “cosa negra” (sic), ao mesmo tempo, em relação e em contradição, com os pintores do
Ocidente.
A
observação merece um comentário para apreciar a sutileza de Ménil que não cita nenhum
dos redatores, seus colegas, da revista. Sua expressão em espanhol “cosa negra” joga com o famoso aforismo de
Leonardo da Vinci em italiano: “la pittura
è cosa mentale”. Assim, para Ménil, o exotismo de Tropiques joga com duas linguagens diferentes no interior da mesma língua
(o francês). Daí um certo maneirismo e preciosismo que apreende e talvez surpreenda,
o leitor atento e culto.
Ménil
sugere igualmente que os textos de Tropiques
deveriam ser lidos e analisados em confronto com a estética elaborada das literaturas
latino-americanas, em espanhol. [6]
Entre
os pontos positivos da revista, René Ménil destaca a pesquisa sobre história, fauna
e flora locais, o inventário de elementos do folclore oral antilhano, a busca de
componentes vindos de África. É, segundo ele, a leitura posterior de Bachelard,
sobretudo do livro Matérialisme rationnel
(de 1953) – ainda não feita em 1945, claro – que permite a compreensão “retroativa” dos esforços, mostrando a imbricação
das intuições de cada um com os fatos observados. Na análise dos contos orais, lamenta
ainda a ausência de leituras estruturalistas.
Para
Ménil, o interesse dos textos está, sobretudo, no plano filosófico-político e a
reedição da revista responde a uma “necessidade
social” e, de certa forma, demorou demais. Emprega em relação a si próprio e
aos seus companheiros a forma “écrivant”
(e não écrivain): “nesse laboratório de pesquisa, cada um deles
sendo absolutamente livre no seu trabalho de produção do texto”. Hoje, percebem-se
melhor “dissonâncias” e “contradições” entre os textos que remetem
a diversas filosofias do grupo.
Ménil
refere ainda a predominância da poesia sobre a política, o que acentua o “lado idealista” (hegeliano) e “irracional” (surrealista), presente aliás
já desde Légitime defense (de 1932), face
ao racionalismo de Marx. Mas o enraizamento emocional (sobretudo da dimensão racial)
revela claramente a dura realidade antilhana.
O
que lhe parece grave, no entanto, é que as oposições, diferenças e contradições
nos conceitos filosóficos da revista permaneçam ainda como não-existentes, porque
não identificados, não analisados nem aprofundados. O filósofo marxista que existe
em Ménil, esperava uma análise abordando a questão. “Tropiques foi a expressão das perspectivas, esperanças,
vontade da esquerda revolucionaria antilhana dos anos 40”.
Esta,
no fundo, é a grande questão. Os números de Tropiques
não foram reimpressos por longo tempo e foi praticamente impossível encontrá-los,
em livraria ou biblioteca, durante mais de 30 anos. Assim, uma boa parte das reflexões,
feitas nos anos 1940, extraviou-se. A esquerda antilhana perdeu, de certa forma,
a sua memória crítica uma vez que a leitura atenta da revista não foi feita pela
geração seguinte e a “herança de conceitos
filosóficos” não foi digerida. Uma ruptura se fez por problemas, inclusive,
vários: “problemas de línguas mal definidas
na sua natureza e no seu funcionamento” (Ménil refere-se evidentemente à diglossia
antilhana francês-crioulo que não é de modo nenhum bilinguismo, uma vez que há hierarquização
social e cultural das duas línguas), “do folclore
ainda não diferenciado da literatura” e mesmo “sem perspectiva de ação política”.
Por
essas breves notas que percorrem e resumem as 35 páginas do seu juízo crítico sobre
a revista Tropiques, o leitor pode avaliar
não só as qualidades como as exigências intelectuais de René Ménil. No momento em
que, no Brasil, se começa a traduzir ensaístas antilhanos francófonos é urgente
traduzi-lo.
O jovem trickster-poeta
em ação
A
mina minada do humor.
René Ménil, “Laissez passer la poésie”,
in
Tropiques,
V, 25.
O intermédio
anterior serviu para que o leitor pudesse avaliar a perspectiva do écrivant René Ménil que pensa, sempre, transitivamente.
Cabe-nos, agora, voltar atrás e apreciar a sua outra face, jovem e insolente. Nascido
em 1907, em Gros Morne, [7] na Martinica,
no momento da criação de Tropiques, em
1941, Ménil é um dos mais velhos do grupo
[8] e tem
apenas 34 anos. Seus textos são ora sérios e eruditos, ora joviais, francamente
humorísticos, ora líricos e oníricos. Alguns totalmente imprevistos. Estes são, na verdade, pelo menos cinco: Drame légendaire au crépuscule (Tropiques, IV), Couleurs d’enfance, couleurs de sang (Tropiques, V), Le Dictateur
(Tropiques, VI-VII), Poème (Tropiques, X) e Dernière insurrection
(Tropiques, XI).
Ao
lado de Suzanne Césaire, Ménil é o outro teórico do grupo além de ser o que lê alemão,
o que implica conhecimento direto dos filósofos e poetas alemães, assim como de
Freud. Depois de Césaire, Ménil é, ainda, o segundo autor com maior número de textos
na revista-laboratório.
Apresentemos
cronológica e resumidamente todos os seus textos ao longo dos números de Tropiques: o resumo dará ao leitor uma noção
da grande variedade das suas contribuições, dentre as quais, a seguir, destacaremos
algumas, ou mais precisamente, cinco, para um exame mais minucioso. Esta análise
mais de perto, o leitor a encontrará na parte final.
Nº
I de Tropiques, abril de 1941: “Naissance
de notre art”.
Texto
importante, em que Ménil toma, como ponto de partida, o desolador vazio cultural [9] da Martinica e a possibilidade
de “nascimento da nossa arte” (não se
trata de renascimento), com uma epígrafe de Nietzsche. A última frase é: “a existência do Poeta vai coincidir com a nossa
existência, nós, homens ainda aproximativos.” Note-se que o texto é anterior
à chegada a Fort-de-France, do barco de refugiados Le Capitaine Lemerle, com a sua carga de intelectuais e artistas franceses
e estrangeiros a caminho do exílio (Breton e sua família, Claude Lévi-Strauss e
a mulher, o pintor André Masson, Wifredo Lam e sua companheira, a alemã Helena Holzer
etc.).
Nº II de Tropiques,
julho de 1941: “Orientation de la poésie”.
Texto
crítico sobre poesia, com uma epígrafe inicial de Novalis: “toda poesia deve ser legendária e feérica”.
Insiste sobre a importância do sonho e glosa uma imagem de Suzanne Césaire sobre
o “funâmbulo que caminha sobre a corda”,
cita Hegel e Éluard, Breton e os manifestos do Surrealismo, terminando com a recusa
radical do realismo. Última frase: “é o tempo
da liberdade de espírito”, o que não deixa de ser paradoxal porque se vive então
sob censura militar na ilha, mas a declaração sugere ainda, por um lado, a importância
do encontro com Breton e, por outro, um caminho de libertação (interior) que devia
suscitar grande entusiasmo nos jovens leitores da revista.
Nº
III de Tropiques, outubro de 1941: dois
textos, “Introduction au merveilleux” e “L’action fulgurante”.
“Introdução
ao maravilhoso” é um denso ensaio filosófico dividido em 9 partes e precedido por
um resumo revelador: “Estamos à procura do
nosso verdadeiro rosto. Condenamos suficientemente a literatura artificial que,
dele, nos pretende dar a imagem: poetas atrasados, heróis de clichés, supersticiosos
fazedores de alexandrinos, cobardolas declamadores de nada. Narciso martinicano
onde te reconhecerás? Mergulha o teu olhar
no espelho do maravilhoso: os contos, as lendas, os cantos. Verás aí inscrever-se,
luminosa, a segura imagem de ti mesmo.” O ensaio é a introdução teórica para
dois textos do número seguinte sobre literatura oral em crioulo.
Nas
Notas, com o subtítulo de “A ação fulminante” e como uma nota-comunicação, René
Ménil, acrescenta um pequeno texto de três páginas na mesma direção: citando a psico-análise
(sic) e a etnografia, reafirma, segundo
Hegel, a unidade humana do sonho e da ação. Última frase: “Cada um sabe que a palavra do mago produzia o seu efeito com a certeza do
relâmpago.”
A
primeira frase do primeiro texto começa como um conto para crianças: “Era uma vez…” e articula-se evidentemente
com os dois ensaios anteriores de Ménil. Assinado em parceria com Césaire, o texto
de janeiro de 1942 funciona como uma demonstração da teoria para analisar a produção
anônima e popular: com pouco mais de quatro páginas, coloca a problemática da literatura
oral em crioulo, modo de expressão alusivo e metafórico de “um povo que tem fome” e que exprime, a seu
modo, o seu “medo” através da figura do
“zumbi” (haitiano). Nas duas últimas partes
do ensaio, os autores analisam pari passu
um conto popular sobre a derrota de Colibri com o seu tambor, personagem tradicional,
morto por vários animais (Cavalo, Boi, Peixe-Armado), enviados pelo Bom Deus contra
a pequena ave e o seu instrumento que marca o ritmo. A última frase retoma o tom
do conto infantil: “Era uma vez um homem negro
agarrado à sua terra”.
O
texto final é uma total surpresa, desestabilizando qualquer leitor: um conto fantástico
sob a forma de uma carta, escrita quase à moda do século XVII, em que o Destinador
emprega o “vous” dirigindo-se a um “caro amigo”, não nomeado. Este surge como
avatar de Dom Quixote a cavalo e empunhando uma lança no alto de um morro, desce
até à “imensa catedral” de um burgo da
Martinica, justamente Gros-Morne, seu burgo natal. Ironia e pastiche, alegoria e
simbolismo, tudo se conjuga num texto imprevisto em que o muito sério Ménil revela
sua faceta de trisckter. A frase final
é: “Mas, sabei-o, não escapareis mais, desde
então, à injunção trovejante do vosso desejo armado. Já disse demais. Adeus.”
Nº V de Tropiques,
abril de 1942, dois textos: “Laissez passer la poésie” e “Couleurs d’enfance, couleurs
de sang”.
O
texto “Deixai passar a poesia…” é um ataque feroz à pequena burguesia mulata da
Martinica, dividido em nove partes e, ao mesmo tempo, um poema em prosa. Anuncia
a descoberta da “mina minada, o humor”.
“Anunciamos a chegada do humor às Antilhas”.
Dirigindo-se com ironia ao “meu colonial amigo”,
evoca ainda o célebre passeio coletivo em companhia dos novos amigos (Breton e Jacqueline,
Lam e Helena, Masson), à floresta de Absalom através do jogo surrealista do “belo como”: [10] … belo como o encontro na floresta antilhana, no
coração de uma clareira iluminada por uma fina luz sangrenta, de um canibal e de
uma mulata [11] de tez cor de cinza”, o que retoma
um texto anterior de Suzanne Césaire, repetindo-lhe a frase sem indicar a fonte:
“A poesia da Martinica será canibal. Ou não
será”, apenas com mudança da pontuação. A frase final – “Deixai passar nas Caraíbas tumultuosas, à altura
do gavião, a voz total, mortal, exaltante da poesia” – retoma e sintetiza o
início do Cahier em que o narrador descreve
as Antilhas em voo planado de um grande pássaro que desce progressivamente à terra,
numa espécie de zoom cinematográfico.
Em
“Cores de infância, cores de sangue”,
Ménil apresenta um poema em prosa, de quase três páginas e meia, em torno do tema
partida e volta, exílio forçado e retorno. O título “Cores de infância, cores de sangue” retorna como fecho do poema. Voltaremos
ao texto mais adiante.
Nº
duplo VI-VII de Tropiques, fevereiro de
1943: três textos “In Memoriam”, “Le Dictateur” e “Notes sur Mallarmé”.
“In
memoriam”, no interior da revista, tem como subtítulo, [12] “Aquele
que chamávamos o mestre”: Ménil presta homenagem, bastante corajosa para a época
e em nome da redação, a Jules Monnerot, falecido no ano anterior (Fort-de-France,
julho de 1874-setembro de 1942), obrigado a suspender todas as suas atividades públicas
sob o regime do Almirante Robert. Advogado, professor de filosofia e jornalista,
Jules Monnerot é o fundador do Partido Comunista da Martinica e do jornal Justice. Último parágrafo do elogio fúnebre:
“Se a vida tem um sentido, ele existe na morte.
Logo que apareceu a morte, esta existência que se simplificava até à lenda, se decantava
ainda mais para traçar, como pelo fogo do espírito, a estrada, única, da nossa dignidade.”
Em nota de pé de página, Ménil deseja que um estudo sério venha fixar a trajetória
e “o papel considerável que este professor
de civismo verdadeiro, este advogado brilhante, este político humano, este historiador
da nossa miséria colonial, representou na geração dos Grandes republicanos”.
O
segundo texto é um delicioso e, ao mesmo tempo, assustador conto surrealista, intitulado
“O Ditador”. Amante de trevos de 4 folhas e habitando uma torre, o personagem central
desvela desde a primeira frase o seu aspecto inquietante-grotesco: “O ditador caminhava na pradaria. Sem muito pensar,
colhia trevos de 3 folhas e, sem muito pensar, seja pela saliva, seja por discreta
sutura, seja por hábil dissimulação, fazia trevos de 4 folhas”. O conto incorpora
dois discursos outros: o de um cronista legendário e a “teoria” posta em ação pelo
ditador. Este discorre sobre seus projetos de modelar o novo homem com ajuda de
engenheiros-psicólogos e grandes encenações psicodélicas. Última frase: “O trevo, no céu, se tinha acentuado com luz florescente,
e dir-se-ia, hipnótica. O ditador, no elevador, esmigalhava entre os dedos um falso
trevo natural de 4 folhas que colhera num dos jardins suspensos da torre de marfim.”
Voltaremos ao texto mais adiante.
No
terceiro texto do número, René Ménil com “Notas
sobre Mallarmé” retoma um diálogo interno da revista – diálogo com Césaire –
sobre a poesia francesa. [13] A última
parte é voluntariamente polémica: “Mallarmé
no ápice de uma história em que alguma coisa podia ainda ser feita por reflexão.
/ Suprema poesia. / Mallarmé tão perto de fazer o grande salto, estanca.” E
Ménil termina as suas notas articulando Mallarmé a Breton, este, aliás, exemplo
de quem não interrompeu a sua trajetória.
Nº duplo VIII-IX de Tropiques,
outubro de 1943: “Évidences touchant l’esprit et sa vitesse”.
Ménil,
em “Evidências referentes ao espírito e à sua rapidez”, dividido em 14 partes, geralmente
curtas, aborda sucessivamente: o espírito e o inconsciente, a lógica da imagem é
a lógica do absurdo, o todo está no todo, a rapidez do espírito, a multiplicação
contemporânea dos poetas malditos, a vidência poética, “o pensamento é bio-lógico ou não é”, a clareza não está nos objetos,
o irracional tem a sua luz “diferente”,
o inconsciente coletivo está no inconsciente individual e vice-versa, a tensão poética
se mantém pelo movimento metafórico, “o espírito
rápido é o espírito-soberano”, a metáfora é um meio de conhecimento do mundo
e do homem. A última frase: “o último destino
da poesia sendo o de se multiplicar, dialecticamente, em força nua da multidão.”
O ensaio retoma, de certa forma, no final, a exigência, ao mesmo tempo emblemática
e paradoxal de Lautréamont, de que a poesia deva ser feita por todos. Uma das respostas
possíveis ao paradoxo seria a reescritura literária da oralidade tradicional (os
críticos haitianos diriam “a oralitude”).
Nº
X de Tropiques, fevereiro 1944: “Poème”.
Primeiro
número de Tropiques a circular depois
da grande crise do final de 1943: a proibição de publicação da revista pela censura
oficial e, logo a seguir, o fim da “Dissidência” antilhana, ou seja, o fim do regime
de Vichy nos territórios franceses da América (Martinica, Guadalupe e Guiana francesa).
O ano de 1944 é importante ainda porque o casal Aimé-Suzanne Césaire, a partir do
verão, passa mais de seis meses no Haiti, deixando os filhos com as avós em Fort-de-France.
Aimé Césaire é convidado para um colóquio internacional e uma série de conferências.
A guerra terminou no mar das Caraíbas embora continue na Europa e no Oriente.
René
Ménil publica, neste número de recomeço, um poema em prosa. A primeira frase: “Colhíamos injúrias do chão para com elas fazermos
diamantes.” A ele voltaremos mais adiante.
Nº
XI de Tropiques, maio de 1944, dois textos:
“Situation de la poésie aux Antilles” e “La dernière insurrection”.
René
Ménil refaz o panorama literário da Martinica, três anos depois do primeiro número
da revista: “Situação da poesia nas Antilhas.” Primeira frase: “Todo renascimento põe na ordem do dia a velha
querela do fundo e da forma.” O fim do texto aborda o romantismo: “O romantismo antilhano aí está com sua nova concepção
da beleza crioula”. E resume: “Romantismo
antilhano: movimento cultural do povo antilhano tomado convulsivamente pelo sentimento
da sua própria vida. Concebido em 1932 em ‘Legítima defesa’, esse movimento só foi
efetivamente desenvolvido em 1940, de modo insólito, por voluntária sugestão poética.
Foi constantemente orientado por meio de técnicas seguras, vindas das ciências humanas,
tais como a psicanálise, o materialismo histórico, a etnografia. O mestre operador
desta revolução foi Aimé Césaire”. O ensaio apresenta, ao leitor, a face de
Ménil, ideólogo marxista.
“A
última insurreição” é um excelente exemplo de conto surrealista, narrado na primeira
pessoa. Uma “cabeça cortada” [14] – no caso feminina – é jogada
no meio dos negros que dançam numa praça de uma cidade fantástica e tropical, denominada
“Rivière-aux-écailles” (= Ribeira das Escamas). A cabeça é de Méloré, a amada do
narrador. Num pátio pendem três cadáveres – igualmente femininos – enforcados, e
todos sorriem “luminosamente”. Numa assembleia
secreta, se reúnem dois padres e duas mulatas sob o olhar intruso do narrador, voyeur, e que lá chegou por um caminho secreto.
O voyeur, saindo do labirinto, encontra
a seguir uma mulher de uma beleza terrível com quem faz amor. Ela insinua que Méloré
não amava o narrador: “é a liberdade de espírito
que ela procurava nos teus braços. E mais ainda, talvez ela pensasse no outro enquanto
te beijava”. No final, sob os faróis/holofotes que iluminam o céu, a mulher
misteriosa propõe ao narrador: “vá ver como
dorme a cidade”. O conto lembra o clima de um filme de Dalí ou de Buñuel. É
uma das joias escondidas, a meu ver, de Tropiques,
e o conto surrealista mostra a outra face de Ménil, poeta em prosa. Sobre o texto
ainda ver mais adiante.
Nº
XII de Tropiques, janeiro de 1945: “Introduction
à 1945”, segundo o sumário inicial.
De
René Ménil, um novo texto teórico muito importante intitulado, no interior da revista,
“O humor: introdução a 1945”, a ser lido integralmente e em que se destacam, na
sua longa história, Sócrates, Lautréamont e Dada. E na literatura moderna: Baudelaire,
Breton, Éluard, Langston Hughes, Césaire para exaltar “os tiros de salva do humor atroz.” Num parágrafo anterior descreve o
humor camponês nas Antilhas: “No camponês
antilhano, é preciso confessar, sempre existiu um humor que geralmente se ignora
mas do qual se encontra a expressão quotidiana nas piadas e nas canções em que o
negro toma a si próprio como alvo dos seus sarcasmos.”
A diversidade
dos textos de Ménil não deixa de surpreender o leitor que, conhecendo seus ensaios
posteriores sobre literatura antilhana, tem dele apenas uma imagem de ensaísta-marxista-professor
de filosofia.
Como
um verdadeiro trickster, ele surge, de
repente, em Tropiques, com outro tom e
outro estilo, entre lirismo e paródia, confissão e crueldade, comicidade e leveza,
humor e onirismo. O mundo parece, então, ser visto, ao mesmo tempo, pelo olhar novo
da criança e do fool sem ilusões e sem
peias na língua. E sobretudo com um alto grau presciência, anunciando o que só será
revelado ou conhecido mais tarde.
Destacamos,
a seguir, cinco textos de René Ménil que nos parecem dever ser olhados de mais perto
e com mais vagar. A face do verdadeiro écrivain
e não mais simples e utilitariamente écrivant,
como modestamente tenta se apresentar,
neles se revela, herdeiro de uma dupla linhagem que, em francês, vem de Nerval,
Rimbaud, Lautréamont, confluindo com os seus amados poetas do Romantismo alemão:
Novalis, Heine, Hördelin.
“Drama legendário
ao crepúsculo” ou o desejo armado de um Quixote antilhano
No nº IV de
Tropiques, “Drama legendário ao crepúsculo”
é um verdadeiro conto imprevisto, pondo em cena, na paisagem antilhana, o fantasma
de Dom Quixote a cavalo, debaixo de uma mangueira (árvore inexistente evidentemente
em terras da Mancha espanhola). Do ponto de vista da formal, o conto é uma carta
pessoal, escrita em estilo do século XVII, a um “querido amigo” (cher ami),
não nomeado, mas que só pode ser Aimé Césaire. Narra uma aparição fantástica e termina
por uma injunção ao amigo não nomeado.
A
aparição, no início, imóvel no alto da colina, “entre a mangueira meditativa e o abrigo desabitado”, atravessa depois
teatralmente o cenário ambíguo que junta elementos europeus e africanos, antilhanos
e imaginários, passa diante da “catedral”
do burgo de Gros Morne (onde nasceu Ménil, como já se sabe) e avança pela “ponte-levadiça do castelo de vidro com enormes
arcos de terra batida”. Construir em argila ou terra batida é, aliás, uma forma
de construção africana. [15]
A
carta é ao mesmo tempo uma parábola e um sonho de olhos abertos, que cada leitor
deve interpretar à sua maneira. Tudo sugere que esse cavaleiro ao mesmo tempo literário
e mítico, patético na sua desmedida e grandioso no seu sonho ideal (com toda a carga
conotativa do “Cavaleiro da triste figura” diante da decadência da Espanha e seus
impasses), é uma injunção ao amigo Aimé Césaire num estilo quase paródico de grandiloquência
arcaizante:
Quant à vous, cher ami, vous ne cessez, les yeux écarquillés, malgré l’ombre
tombée, de voir la flame impérieuse de la fausse lance et, soudain, le coeur battant,
vous reconnaissez votre propre désir, crucifié, équestrement debout au haut de la
colline… Mais sachez-le, vous n’échapperez plus, dès lors, à l’injonction tonante
de votre désir armé.
J’en ai trop dit. Adieu. (Ibid.). [16]
“Desejo
armado” retoma de certa forma não só a injunção do Cahier, presente desde 1939, como ainda a de Suzanne, que a cita ipsis litteris: “voici le temps de se ceindre les reins comme un vaillant homme.”
“Cores de infância,
cores de sangue” ou o mundo visto pelo olhar infantil
No volume V,
de abril de 1942, o texto, com pouco mais de três páginas, é um verdadeiro poema
em prosa, dividido em quatro partes. Começa como conto
fantástico: “En ce temps-là, le ciel était
une merveilleuse teinture bleue, frémissante, où s’ecrasait la fleur d’encre des
cocotiers. Ma vie n’était pas encore
quotidienne.” [17]
Nesse
tempo fora do tempo cronológico, destacam-se as tardes, momento em que começavam
as viagens nas asas das borboletas, viagens de exploração da terra de diferentes
cores: terra vermelha, terra amarela.
A
segunda viagem do menino é a descoberta de um feiticeiro, na realidade, um galo
colorido, ao mesmo tempo amado e detestado. O galo traça o limite do território
que lhe é permitido e do alto do qual o menino assiste, pela primeira vez, uma descida
fúnebre de um corpo morto. [18]
Na
terceira secção do texto, aparece, nos seus sonhos noturnos, um cavalo terrível,
a seguir lentamente domesticado pelo olhar infantil:
C’est vers la même époque qu’apparut pour la première fois, dans mes rêves et
dans mes rêveries, un cheval. C’est un cheval géant, à la croupe et la tête géantes.
Son apparition me fait basculer dans l’angoisse. Il est rouge ou peut-être bleu.
Il se cabre, sur le ciel, démesuré… Et moi je reste devant lui, pantelant, un grain
de poussière à la main…
A la fin je recevais sans trembler ce terrible visiteur.
Je l’avais apprivoisé. [19]
A
quarta secção, a mais longa, descreve o encantamento infantil diante de vidros de
diferentes cores. A alegria do menino torna-se “frenesia” ao descobrir cristais com múltiplas facetas que brilham sobretudo
à noite diante da chama trêmula da lâmpada a petróleo. O final do poema em prosa é:
Dans mon miroir aux alouettes le monde était pris au piège. Dans mon miroir
tout se précipitait, se concentrait, gelait, crépitait, de chaud, de froid, de vie.
Je ne marchais plus qu’avec un bouchon de cristal dans la main.. Dans le bouchon,
était le flacon. Dans le flacon, était le monde, tous les mondes.
Et cela frissonnait dans ma main comme un oiseau.
Couleurs d’enfance, couleurs de sang. [20]
“O ditador”
ou o delírio do poder e a criação do novo homem
No volume VI-VII,
de fevereiro de 1943, em plena guerra e no seu momento talvez mais dramático e ainda
incerto, Ménil, numa cidadezinha de uma ilha antilhana que sobrevive com dificuldade,
isolada pelo bloqueio naval anglo-americano, escreve um conto entre farsa rasgada
e fantasia desabrida sobre o sonho e as aventuras do poder absoluto.
O
conto tem sete páginas e incorpora dois outros textos diferentes, impressos aliás
em itálico: a) a citação de um cronista antigo (legendário) chamado Brocelte [21] sobre uma rainha também muita
antiga, chamada Etha (igualmente legendária, claro), que percebeu, uma noite, a
importância de uma certa lua iluminando os chifres de elefante colocados no alto
de uma torre de marfim; e b) o discurso do ditador que se põe em cena, com a ajuda
dos seus engenheiros-psicólogos (sic),
diante de uma multidão, ou seja, a totalidade dos habitantes do seu país (imaginário).
O momento que se vive então é o encerramento do “PLANO DECENAL PSICOLÓGICO”. E o
ditador fala a “vários milhões de homens,
mulheres e bebês” (sic).
Um
exemplo claro de farsa rasgada:
Quand la lune vint docilement s’inscrire, pour le dictateur, dans l’encoche
d’ivoire, un silence venu d’où, s’imposa à la foule. Les adultes cessèrent même
leur ruminante méditation; les enfants eux-mêmes cessèrent de rugir et de se désarticuler.
[22]
E
o ditador fala durante horas e horas aos seus 20 milhões de ouvintes hipnotizados
“pela lua e pelo elefante”. Todo o conto
deveria ser citado.
“Poema” ou o
retorno ao lirismo surrealista
No volume X
de Tropiques, de fevereiro de 1944, Ménil
volta a publicar um poema em prosa, de uma única página, impresso integralmente
em itálico, exceto o título. A linguagem é ao mesmo tempo vaga e melodiosa. A marca
de Nerval e do Rimbaud das Illuminations
me parece clara. É o poema provavelmente mais surrealista de Ménil.
Escrito
quase todo no imperfeito do ponto de vista de um nós (nous) coletivo, narra
a trajetória (com a expulsão não se sabe ao certo de quem nem de quantos, mas com
retorno no final) e a felicidade utópica dos “filhos da derrisão”. Derrisão é o riso zombeteiro ou o comportamento,
dito ou gesto, que denotam desprezo por outrem, geralmente de forma irônica ou sarcástica.
O trisckter é um mestre e um filho da
derrisão.
Dividido
em três partes, a segunda de apenas 4 linhas, inserida entre duas partes maiores,
respectivamente de 9 e 11 linhas, o poema narra: a) na primeira parte, a saída forçada
e muito cedo pela manhã, de um grupo indistinto de jovens da cidade (no singular);
b) na segunda, a reação dos pássaros [23] descrita
em imagens aquáticas que terminam aparecendo nos sonhos, também aquáticos, de mulheres
adormecidas; e c) na terceira, em um movimento inverso ao da primeira parte, a procura
das cidades (agora no plural) que partem em busca dos jovens, antes expulsos.
O
texto é muito absconso jogando com sinestesias e semelhanças fônicas de palavras
de significação muito diferente, [24] constrói-se
a partir de sensações e movimentos vagos de euforia claramente ascendente. Sua tradução
seria um desafio para qualquer tradutor. Constitui um relato alusivo e metafórico
de uma expulsão das cidades, e pelas cidades, dos “filhos” que usam a derrisão e
o humor (as grandes armas de Lautréamont), e que, no final, vêm a reconhecer os
seus exilados e partem ao encontro dos que partiram, levando prendas a oferecer-lhes.
Para
que se tenha uma ideia, citamos o início de cada uma das partes:
Nous ramassions des injures pour en faire des diamants. Le temps avait la blancheur
du blé. Nous étions forcés de sortir de la ville tôt. Le linge séchait déjá sur
les villages. Sous chaque porte il y avait un baiser […]
Bientôt pourtant, dans le bol des collines, mijotèrent la rumeur et le geste
d’oiseaux rendus fous par le jour. […]
Les villes venaient à nous. Chacune avait son nom, son amour
et ses dons. Chacune s’abritait derrière une parole de bal, derrière un loup vivant.
Chacune
brûlait d’un feu secret, d’une secréte ardeur. […] [25]
“A última insurreição”
ou um outro conto surrealista
Em maio de 1944,
quando, nas Antilhas francesas (Martinica, Guadalupe e Guiana), a guerra já terminara
desde o ano anterior, Ménil publica um conto estranho sobre uma derradeira insurreição,
que não aconteceu, aliás. É, portanto, uma narrativa imaginária que se desenrola,
numa cidade desconhecida (ou inexistente), banhada por uma ribeira (Rivière aux écailles) cujo nome junta água
e escamas/placas de animais marinhos brilhando ao sol, tudo se passando fora do
tempo (uma revolta negra não acontecida) e dentro do tempo contemporâneo (com holofotes
varrendo o céu noturno em leques abertos ou flechas de luz). Por outras palavras:
uma narrativa dentro e fora de um espaço, que vários indícios apontam como antilhano,
dentro e fora do tempo histórico (o da II Guerra).
Narrado
na primeira pessoa por um homem que acabou de perder a mulher amada, de nome Méloré,
cuja cabeça cortada é lançada no meio de negros que se divertem, junta o espetáculo
de uma revolução sanguinária e cruel, encontro sigiloso de padres e mulatas numa
Cidadela de outro tempo, com salas e túneis secretos, um espaço que parece sair
da imaginação do marquês de Sade ou de um filme de Buñuel.
Trata-se
de uma insurreição também com muitas mulheres, ora torturadoras cruéis, ora vítimas
mortas, nas ruas: além da degola da amada, há três enforcadas num pátio e que sorriem,
um cavalo esventrado pela turba feminina com “horríveis crueldades”, além das duas mulatas e a mulher desconhecida
encontrada no próprio quarto de Méloré e que é, provavelmente, uma encarnação da
Morte. Ambos, narrador e desconhecida de tez de argila, fazem amor. Mas o narrador
não morre, sendo reencaminhado, no final, para ir ver como está agora a cidade adormecida,
depois dos terríveis acontecimentos da noite:
Bientôt nous fûmes à l’air
libre. La rumeur de la ville nous reprit. Maintenant les maisons éclairées montraient
des scènes de couleur. Maintenant, j’étais seul. Je me débarrassai de mon fardeau
et j’entrai dans la maison où vivait Méloré – il n’y avait pas un jour. Il y avait
une femme dans la chambre. C’était l’une des femmes de la citadelle. Son teint était
d’argile heureuse et il y avait de la violette dans son teint. Elle me sourit mais
ses dents étaient cruelles. Elle était d’une beauté terrible et l’on avait envie
qu’elle fût, une bonne fois, cruelle pour en finir. Elle me prit pourtant affectueusement
par la main comme pour me faire les honneurs de toutes ces choses qui appartenaient
à Méloré. [26]
A
narrativa acompanha assim a trajetória do narrador, completamente atordoado (hébété) pela cidade, do meio-dia, com o sol
a pino, até o momento em que toda a gente dorme, passando pelo crepúsculo. “Le soleil lançait vers nous la meute devorante
de sa lumière” (= o sol lançava na nossa direção a matilha devoradora da sua
luz) é a primeira frase e a frase final reza: “va-t-en voir comment dort la ville” (= vá ver como dorme a cidade).
Nesse intervalo, do sol a pino à noite fechada,
transcorre a ação, num espaço sempre orgiástico, ora aberto (praças, ruas), ora
secreto (pátio), ora fechado (Cidadela ou quarto de Méloré). O conto leva a marca
de Lautréamont e de Sade, com seus sucessivos encontros funestos e cruéis, do qual
sai o narrador, não se sabe como, ainda com vida.
O
diálogo que fecha o conto é melancólico. Note-se que a descrição física da mulher
morta e da mulher-Morte aproxima-se: ambas têm a tez de argila clara com um toque
de violeta na pele. São, talvez, a mesma, como no soneto “Artémis” de Nerval: “La Treizième revient… C’est encore la première”
(= A décima terceira retorna… É ainda a primeira).
À guisa de conclusão
aberta
Pretendeu-se
aqui somente apresentar, forçosamente por alto, não só um escritor antilhano de
língua francesa praticamente desconhecido no Brasil e na América hispânica, como
dar uma ideia da sua primeira produção, muito variada, dentro de uma revista-laboratório,
afiliada ao Surrealismo, nos anos 40 do século passado.
René
Ménil, em Tropiques, é ao mesmo tempo
um teórico e um crítico (como Suzanne Césaire, aliás) que trabalha e continuará
a trabalhar sobre identidade e ainda um poeta em prosa, herdeiro de uma dupla tradição
(o romantismo alemão e a poesia da revolta francesa).
Seria
urgente analisá-lo no contexto dos escritores que pensam a problemática da descolonização
e da identidade americana com suas múltiplas camadas de significação e suas temporalidades
diferentes e arriscar traduzi-lo, uma vez que a sua obra nos ajudaria a compreender
as Américas.
NOTAS
1. Inventar, do ponto de vista etimológico, é achar/revelar o que está escondido
e não se vê.
2. Do tipo: com a pedra lançada ontem, mata o pássaro hoje. Este, aliás,
é um dos orikis de Exu.
3. Légitime défense, fundada em Paris, em 1932,
por jovens intelectuais antilhanos, com um só número, reúne além de René Ménil,
Jules-Marcel Monnerot, Thélus e Marcel Léro, Auguste Thésée, Michel Plotin, Maurice-Sabas
Quitman, Pierre e Simone Yoyotte: a revista é uma reflexão crítica, de cunho marxista,
sobre literatura e identidade na Martinica. Três anos mais tarde, em 1935, sempre
em Paris, surge L’Etudiant noir, dirigido
por Aimé Césaire e com a colaboração de Aristide Maugée, Léopold Sédar Senghor,
Paulette Nadal, Gilbert Gratiant, Léon Damas. Este, seu secretário de redação, assim
define mais tarde a publicação que alcançou três números: “L’Etudiant noir, jornal corporativo e de combate, tinha por objetivo o fim
do tribalismo, do sistema de clãs em vigor no Quartier Latin! Deixava-se de ser
estudante martinicano [caso de Césaire],
guadalupeano, guianense [caso de Damas, ele próprio], africano [caso de Senghor] e
malgache, para ser apenas um só e mesmo estudante negro.” Havia, portanto, já
uma tradição, em Paris, de estudantes negros, de diferentes origens, reunirem-se
em torno de uma revista. Tropiques herda
dessa tradição coletiva. Enfim, além de laços de amizade, criam-se igualmente, no
grupo, novos laços familiares: Aristide Maugée, por exemplo, é cunhado de Césaire,
tendo casado com uma das suas irmãs.
4. Ver Tropiques. Jean-Michel Place,
1978, vol. I. Texto assinado e datado de outubro de 1973.
5. A obra de Ménil não
tem ainda nenhuma tradução para o português. Os seus trechos de crítica, reproduzidos
no vernáculo, para não alongar demasiado esta apresentação, são traduções da autora.
Entretanto, os seus trechos de prosa poética serão apresentados, mais adiante, em
dupla versão, no original e em tradução em pé de página. Há uma qualidade especificamente
literária a ser apreciada pelo leitor.
6. Note-se que, em nenhum momento,
mesmo em 1978, na sua reavaliação crítica, Ménil fala de literatura brasileira.
Entre todos os poetas e escritores de Tropiques, o único em que o Brasil aparece,
ao mesmo tempo, como país imaginário e real, é Aimé Césaire.
7. Situada na parte
norte-atlântica da Martinica, Gros-Morne é uma das comunas da ilha e foi colonizada
tardiamente no século XVIII. Hoje vive essencialmente da agricultura do ananás e
da mandioca. A sua altitude permite uma visão da costa atlântica. No seu território
existe ainda a Habitação Saint-Etienne, fabricante tradicional de rum.
8. Aimé Césaire,
nascido em 1913, tem então 28 anos incompletos e Suzanne, nascida em agosto de 1915,
ainda não fez 26 anos.
9. A mesma constatação
desolada reaparece em vários outros colaboradores da revista: Césaire, Suzanne Césaire,
René Hibran.
10. Na verdade, o jogo
da comparação surpreendente e inédita “belo
como…”, retoma uma passagem de Lautréamont (Chants de Maldoror, Canto VI). Este passeio à floresta tropical, “higrófila”
segundo os guias de turismo de hoje, e claramente iniciático para os que chegam
da França em 1941, reaparece igualmente em textos de Suzanne Césaire, Breton (Martinique, charmeuse de serpents) e Masson,
repercutindo ainda na grande tela de Wifredo Lam (La Jungle) em que o pintor cubano, vivendo na Europa (Espanha e França)
há muitos anos, reencontra um espaço ancestral. Está claro ainda que, para os viajantes,
o próprio nome Absalão evoca o filho rebelde do rei David, retomado aliás pelo romance
de Faulkner, publicado em 1936, Absalom, Absalom!
Mas não é o caso de Breton que sempre se recusou não só falar como aprender
outra língua, além do francês.
11. Nas Antilhas, diz-se
chabine: é uma mulata clara, de traços
finos, de pele cinza claro, muitas vezes de olhos verdes. A “chabine” é sempre Suzanne Césaire, tanto
em Breton como em Ménil.
12. Uma das estratégias
do grupo é: ao apresentar o sumário para um novo número ao censor oficial, escolhe-se
um título bastante vago que, depois, no interior da revista, ganha um subtítulo
mais explícito.
13. Ver Tropiques, nº V: “Vues sur
Mallarmé”, de Césaire.
14. O tema da “cabeça
cortada” ou da “degola” é importante na obra de Césaire, no seu caso, cabeças sempre
masculinas, lembrança de Boukman (“hougan”
do vodu que liderou o primeiro massacre na guerra de Independência no Haiti) e de
Zumbi (no Brasil). Ver a propósito a nossa análise do poema “Batouque”.
15. A grande mesquita
de Djenné no Mali, construída pela primeira vez no século XIII, é reconstruída,
segundo as técnicas tradicionais em argila, no início do século XX (1906-1909).
O leitor tem interesse em ver, na Internet, a monumentalidade que a construção tradicional
em terra batida pode alcançar.
16. Quanto a vós, meu
querido amigo, não cessais, de olhos bem abertos, apesar da noite que cai, de ver
o brilho imperioso da lança fingida, e de repente, o coração aos saltos, reconheceis
o vosso próprio desejo, crucificado, equestremente de pé no alto da colina… Mas
sabei-o, não escapareis, daqui por diante, à injunção trovejante do vosso desejo
armado. / Já disse demais. Adeus.
17. Naquele tempo, o
céu era uma maravilhosa tapeçaria azul, fremente, onde se esmagava a flor de tinta
dos coqueiros. Minha vida não era ainda quotidiana.
18. O tema da descida
fúnebre de um morto do alto de um morro (morne)
até á igreja na várzea é um tema frequente em poesia e na narrativa antilhanas.
Chama-se “descente de corps” (= descida
de corpo). O tema reaparece, em particular, no romance de Edouard Glissant e seus
seguidores. Ver sobretudo Malemort.
19. Foi na mesma época
que apareceu pela primeira vez, nos meus sonhos e nos meus devaneios, um cavalo.
Um cavalo gigante, com a garupa e a cabeça enormes. Sua aparição me faz cair na
angústia. Ele é vermelho ou talvez azul. Ele se empina, contra o céu, desmedido…
E eu, diante dele, tremendo, um pouco de poeira na mão… / No final eu recebia sem
tremer esse terrível visitante / Eu o tinha domesticado.
20. Na minha miragem
o mundo caía na armadilha. No meu espelho tudo se precipitava, se concentrava, congelava,
queimava, quente, frio, vivo. / Eu só andava com uma rolha de cristal na mão. Na
rolha estava o frasco. No frasco estava o mundo, todos os mundos. / E isso tremia
na minha mão como um passarinho. / Cores de infância, cores de sangue.
21. No nome, está implícito
uma raiz “celta” e a palavra se assemelha vagamente a Brocéliande, a famosa floresta
dos poemas medievais na chamada Matière de
Bretagne. O texto, de certa forma, tem características borgeanas.
22. Quando a lua veio
docemente inscrever-se, para o ditador, no entalhe de marfim, um silêncio, vindo
não se sabe de onde, impôs-se à multidão. Os adultos cessaram a sua ruminante meditação;
até as crianças cessaram de rugir e de se desarticular.
23. Haveria uma intratextualidade
a explorar em Tropiques: assim como a
Alouette/Andorinha que fuma no fundo do pântano, no poema de Césaire (ver texto,
nesta mesma série da Agulha Revista de Cultura)
traz a mudança, aqui são os pássaros que “cozinharam lentamente” (mijotèrent) que provocam a revolução, no
sentido preciso da palavra, nas cidades.
24. Por exemplo, mares (= charcos) e mariées (= jovens casadas); un
loup vivant (ao mesmo tempo máscara negra de carnaval cobrindo apenas os olhos
e lobo, animal) etc.
25. Colhíamos, no chão,
injúrias para com elas fazer diamantes. O tempo tinha a brancura do trigo. Estávamos
obrigados a sair da cidade muito cedo. A roupa lavada secava já nas aldeias. Debaixo
de cada porta havia um beijo […] Logo, no entanto, na tigela das colinas, cozinharam
lentamente o rumor e o gesto de pássaros enlouquecidos pelo dia […] As cidades vinham
até nós. Cada uma tinha seu nome, seu amor e seus dons. Cada uma abrigava-se atrás
de uma palavra de baile, atrás de uma máscara negra viva. Cada uma queimava de um
fogo secreto, de um secreto ardor […].
26. Logo, chegamos ao
ar livre. O rumor da cidade nos retomou. Agora as casas iluminadas mostravam cenas
cheias de cor. Agora, eu estava só. Desembaracei-me do meu fardo e entrei na casa
em que vivia Méloré – apenas um dia antes. Havia uma mulher no quarto. Era uma das
mulheres da cidadela. Sua tez era cor de argila feliz e havia um toque de violeta
na sua pele. Ela sorriu para mim, mas seus dentes eram cruéis. Era de uma beleza
terrível e tinha-se vontade de, uma vez por todas, que ela fosse cruel para acabar
com tudo. Ela me tomou entretanto pela mão afetuosamente como para me fazer as honras
de todas as coisas que pertenciam a Méloré.
LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Romanista de formação, ensaísta e tradutora, publica em francês e/ou português sobre literaturas francófonas, literatura comparada, iconografia e iconologia. O nº 115 da Agulha Revista de Cultura, de julho de 2018, publicou uma edição especial sobre o seu trabalho, sob o titulo “Entre o Mediterrâneo e as Caraíbas”. Últimas publicações: Vampire liminaire: de Lautréamont aux Césaire. Königshausen & Neumann, 2019, e os posfácios às traduções de Suzanne Césaire: Escritos de Dissidência (Papéis selvagens, 2021) e Sony Labou Tansi. O ato de respirar (Cultura e Barbárie, 2021).
JAN DOČEKAL | Historiador de arte e artista, nascido em Třebíč, República Tcheca, em 1943. Formado como metalúrgico, estudou história da arte e estética, foi operário, tecnólogo, publicitário, diretor de vendas em uma gráfica e professor de educação artística. Preparou mais de cem exposições de arte e foi comissário do Simpósio de Esculturas Mladá tvorba Žďár nad Sázavou (2000). Colaborou com a Galeria Moravian de Stanislava Macháčková por 25 anos. É membro do grupo surrealista Stir up e já realizou trinta exposições originais. Livros e catálogos publicados: Jaroslav Vyskočil (1996), Horácka Fine Arts Club (1999), Horácka Fine Arts Club (2000), About Graphics (2001), Max Švabinský Graphics (2001), Everyday Things / Beyond the Art of Arts (2004), Reviews Texts Interviews (2005), Interviews 2005-2013 (2014), Josef Kremláček (monografia, 2020). É coautor do Dicionário de Belas Artistas Tchecas e Eslovacas (1998) e editor do livro Vlastimil Toman, Life Journey (2015).
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 02
Número 201 | janeiro de 2022
Artista convidado:
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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