segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | René Ménil, o poeta trickster de Tropiques ou Teoria e crítica, humor e criação em uma revista-laboratório antilhana



Do ponto de vista antropológico, o que é exatamente um trickster? De um modo muito simples: é o que semeia a desordem no mundo da ordem ou o que inventa [1] uma nova ordem quando o caos se instala no mundo; é o que joga com o tempo e o espaço, e também com a linguagem; aquele que, em mitologias muito diferentes, ou longínquas, dialectiza o que se crê perfeitamente sabido e conhecido, jogando o jogo insolente de inverter ou desregular a série cronológica dos acontecimentos; [2] o que brinca, irreverente, com os deuses, enganando-os e finalmente o que repõe, em movimento, o mundo, imobilizado pela chegada da Morte. É o corvo ou o coiote nos mitos ameríndios; é a raposa (o velho “goupil” da Idade Média ocidental, ora chamado Renard, ora Till Eulenspiegel) nos contos da Europa; é Loki, a divindade da trapaça e da travessura na mitologia nórdica, também ligado à magia e podendo assumir a forma ou o tamanho que quiser; em suma, o trickster é Exu ou Papa Legba, no universo cultural das Américas negras. O trickster aparece, ainda, transposto para a literatura, em personagens como o fool shakespeariano do King Lear ou o arlequim da commedia dell’arte italiana.

Estranho destino da revista Tropiques, um meteorito imprevisto que explode no mar das Caraíbas, em 1941, em plena II Guerra, numa periferia do mundo, transformada em revista quase mítica pelas ondas que provocou em torno do seu ponto de impacto e de difusão, por todas as Antilhas (Haiti, Cuba) e até mais além no continente (Venezuela, México, Nova York), e só redescoberta, muito tardiamente, pelo público, graças à reprodução anastática, realizada sob a direção de Jacqueline Leiner, pela editora Jean-Michel Place de Paris, mais de trinta e cinco anos depois, em 1978. É então que o público leitor teve enfim acesso à série de números de uma revista composta e publicada em condições muito modestas e precárias em Fort-de-France, pequena cidade colonial da Martinica. Aliás, é preciso não esquecer que um dos seus redatores – no caso, uma mulher, Suzanne Césaire – solicita e busca, inclusive, papel de impressão ao censor oficial de Vichy, durante o período da Dissidência antilhana até ao seu término. E os seus números se sucedem de 1941 a 1945 sem interrupção, o que é uma proeza numa revista literária em condições normais. Até então, conheciam-se, de Tropiques, apenas algumas citações lacunares e às vezes com bastante falhas, da primeira tese pioneira de Lylian Kesteloot.

Tropiques, por um lado, confirma um extraordinário poeta (Aimé Césaire, que já publicara a 1ª versão do Cahier d’un retour au pays natal, em 1939, numa revista de Paris, Volontés) e por outro, revela dois grandes escritores: René Ménil e Suzanne Césaire, praticamente desconhecidos entre nós e de perfis diferenciados.

Suzanne Césaire acaba de ser publicada, no Brasil, pela editora Papéis selvagens (da UFRJ). Por outro lado, o leitor encontrará uma nova apresentação da sua obra, em outro pequeno ensaio, igualmente nesta série “Surrealismo Surrealistas”, da Agulha Revista de Cultura, vista de uma outra perspectiva, que, invertendo a simples sequência cronológica, espelha a escritora da Martinica, já falecida, no olhar de Aimé Césaire, seu ex-marido, graças a um poema escrito na sua velhice diante de um rochedo que avança para o mar com perfil de mulher adormecida.

René Ménil, pelo seu lado, professor de filosofia no liceu Schoelcher de Fort-de-France, fez uma carreira importante de ensaísta embora nunca tenha eu encontrado, nas bibliografias de trabalhos brasileiros, uma referência ao seu ensaio fundamental, Tracées: identité, negritude, esthétique aux Antilles (Robert Laffont, 1992), o que é surpreendente pois, já em 1932, ainda em Paris, ele é um cofundador da revista Légitime défense. [3] Dito de outro modo: Ménil permanece ainda mais desconhecido, entre nós, do que Suzanne Césaire, cuja figura vem saindo, aos poucos, da obscuridade e da clandestinidade. Estas podem ser explicadas, de certa forma, pela brevidade da sua obra (apenas sete textos, mais uma peça teatral, ao que parece, irremediavelmente perdida), pela sua produção que se concentra em apenas quatro anos durante a II Guerra Mundial (1941- 1945) e enfim, pelo seu trágico desaparecimento precoce.

René Ménil tem, pelo contrário, vida longa, bem preenchida e produtiva. Ele faz brilhantemente a ligação entre o marxismo clássico dos anos 1950 e os ensaístas da descolonização: o Césaire do Discurso sobre o colonialismno, o Fanon de Pele negra e máscaras brancas, o Édouard Glissant da crioulização e seus epígonos.

O que nos interessa mostrar aqui são as duas faces de Ménil, a de poeta em prosa e a de teórico, o primeiro a repensar criticamente a própria revista Tropiques.

 

Repensando criticamente Tropiques

Deixaremos para o final o prazer de descobrir o jovem – imprevisto – René Ménil dos anos 1940, no período da Dissidência antilhana, teórico sobre literatura e poeta surrealista em prosa. Comecemos, senão pelo fim, pelo menos in media res. Em 1978, no momento da reprodução anastática da revista pela editora Jean-Michel Place, muitos anos depois da experiência coletiva da revista-laboratório, Ménil assina um texto importante intitulado “Pour une lecture critique de Tropiques”. [4] Ele afirma inicialmente:

 

A leitura que pretendemos aqui fazer para os leitores é uma leitura crítica – preocupada, por consequência, em encontrar as implicações e as consequências desses textos de modo a extrair as suas significações objetivas, entre as quais deverão ser encontradas até aquelas que teriam escapado aos redatores da revista por qualquer razão. (Tradução de Lilian Pestre de Almeida) [5]

 

Para tal, Ménil aponta um certo número de problemas, de natureza diferente aliás: a) em Tropiques, a censura prévia obrigatória produziu efeitos de estilo e de pensamento; b) os seus leitores – essencialmente estudantes de liceu, nascidos e vivendo na Martinica – sabiam ler nas entrelinhas, preencher os silêncios, interpretar os símbolos, as elipses e as antífrases e c) os textos publicados dirigiam-se, ao mesmo tempo, ao leitor antilhano e ao censor francês. Assim, Pétain e seu regime eram denunciados por meias palavras mas nunca claramente nomeados enquanto dura o período da chamada “Dissidência” antilhana. Enfim, a autocensura interior (freudiana) acrescentava-se ainda aos redatores de Tropiques. Ménil observa com propriedade: “os limites do passado só são vistos no presente”.

Outra observação sua: “o empréstimo ao surrealismo, que é simplesmente proclamado em diversos lugares nos textos, não deve paralisar a análise nem sugerir preguiçosas interpretações mecanicistas”.

Ménil nota ainda presenças e ausências nos textos de Tropiques:

 


Assim, o comentário poético, ao que parece, não ilumina o homem no trabalho, os instrumentos de trabalho, as obras de trabalho. Ao contrário, a paisagem (em deflagração), a vegetação (em tumulto), a animalidade (raivosa), o coração humano e a sociedade (em tormento) – gestos e cores – em realizações patéticas. (Ibidem.)

 

Em suma, para Ménil, a revista tem “literatura demais” (trop de littérature), insistindo no “mistério”, por definição, quase impenetrável e remetendo ainda ao “romantismo” mais exaltado que trabalha todos os textos, do interior. É portanto literatura altamente elaborada, de segundo grau, que se inscreve e desenvolve a partir da literatura francesa em relação à qual toma, de forma contraditória, distância numa “constante contestação”. Quanto a isso, o exemplo citado por Ménil é o do cubano Wifredo Lam, na pintura, marcando a sua total solidariedade com a revista e, logo a seguir, apresentando-se como “expressão plástica do 3º mundo”. Para Ménil, la Jungle, o grande quadro emblemático de Lam, mestiço de chinês com negra cubana, não é certamente um dado “naïf” mas o resultado de muitas reflexões sobre culturas e civilizações, sobre a “cosa negra” (sic), ao mesmo tempo, em relação e em contradição, com os pintores do Ocidente.

A observação merece um comentário para apreciar a sutileza de Ménil que não cita nenhum dos redatores, seus colegas, da revista. Sua expressão em espanhol “cosa negra” joga com o famoso aforismo de Leonardo da Vinci em italiano: “la pittura è cosa mentale”. Assim, para Ménil, o exotismo de Tropiques joga com duas linguagens diferentes no interior da mesma língua (o francês). Daí um certo maneirismo e preciosismo que apreende e talvez surpreenda, o leitor atento e culto.

Ménil sugere igualmente que os textos de Tropiques deveriam ser lidos e analisados em confronto com a estética elaborada das literaturas latino-americanas, em espanhol. [6]

Entre os pontos positivos da revista, René Ménil destaca a pesquisa sobre história, fauna e flora locais, o inventário de elementos do folclore oral antilhano, a busca de componentes vindos de África. É, segundo ele, a leitura posterior de Bachelard, sobretudo do livro Matérialisme rationnel (de 1953) – ainda não feita em 1945, claro – que permite a compreensão “retroativa” dos esforços, mostrando a imbricação das intuições de cada um com os fatos observados. Na análise dos contos orais, lamenta ainda a ausência de leituras estruturalistas.

Para Ménil, o interesse dos textos está, sobretudo, no plano filosófico-político e a reedição da revista responde a uma “necessidade social” e, de certa forma, demorou demais. Emprega em relação a si próprio e aos seus companheiros a forma “écrivant” (e não écrivain): “nesse laboratório de pesquisa, cada um deles sendo absolutamente livre no seu trabalho de produção do texto”. Hoje, percebem-se melhor “dissonâncias” e “contradições” entre os textos que remetem a diversas filosofias do grupo.

Ménil refere ainda a predominância da poesia sobre a política, o que acentua o “lado idealista” (hegeliano) e “irracional” (surrealista), presente aliás já desde Légitime defense (de 1932), face ao racionalismo de Marx. Mas o enraizamento emocional (sobretudo da dimensão racial) revela claramente a dura realidade antilhana.

O que lhe parece grave, no entanto, é que as oposições, diferenças e contradições nos conceitos filosóficos da revista permaneçam ainda como não-existentes, porque não identificados, não analisados nem aprofundados. O filósofo marxista que existe em Ménil, esperava uma análise abordando a questão. “Tropiques foi a expressão das perspectivas, esperanças, vontade da esquerda revolucionaria antilhana dos anos 40”.

Esta, no fundo, é a grande questão. Os números de Tropiques não foram reimpressos por longo tempo e foi praticamente impossível encontrá-los, em livraria ou biblioteca, durante mais de 30 anos. Assim, uma boa parte das reflexões, feitas nos anos 1940, extraviou-se. A esquerda antilhana perdeu, de certa forma, a sua memória crítica uma vez que a leitura atenta da revista não foi feita pela geração seguinte e a “herança de conceitos filosóficos” não foi digerida. Uma ruptura se fez por problemas, inclusive, vários: “problemas de línguas mal definidas na sua natureza e no seu funcionamento” (Ménil refere-se evidentemente à diglossia antilhana francês-crioulo que não é de modo nenhum bilinguismo, uma vez que há hierarquização social e cultural das duas línguas), “do folclore ainda não diferenciado da literatura” e mesmo “sem perspectiva de ação política”.

Por essas breves notas que percorrem e resumem as 35 páginas do seu juízo crítico sobre a revista Tropiques, o leitor pode avaliar não só as qualidades como as exigências intelectuais de René Ménil. No momento em que, no Brasil, se começa a traduzir ensaístas antilhanos francófonos é urgente traduzi-lo.

 

O jovem trickster-poeta em ação

 

A mina minada do humor.

René Ménil, “Laissez passer la poésie”,

in Tropiques, V, 25.

 

O intermédio anterior serviu para que o leitor pudesse avaliar a perspectiva do écrivant René Ménil que pensa, sempre, transitivamente. Cabe-nos, agora, voltar atrás e apreciar a sua outra face, jovem e insolente. Nascido em 1907, em Gros Morne, [7] na Martinica, no momento da criação de Tropiques, em 1941, Ménil é um dos mais velhos do grupo [8] e tem apenas 34 anos. Seus textos são ora sérios e eruditos, ora joviais, francamente humorísticos, ora líricos e oníricos. Alguns totalmente imprevistos. Estes são, na verdade, pelo menos cinco: Drame légendaire au crépuscule (Tropiques, IV), Couleurs d’enfance, couleurs de sang (Tropiques, V), Le Dictateur (Tropiques, VI-VII), Poème (Tropiques, X) e Dernière insurrection (Tropiques, XI).

Ao lado de Suzanne Césaire, Ménil é o outro teórico do grupo além de ser o que lê alemão, o que implica conhecimento direto dos filósofos e poetas alemães, assim como de Freud. Depois de Césaire, Ménil é, ainda, o segundo autor com maior número de textos na revista-laboratório.

Apresentemos cronológica e resumidamente todos os seus textos ao longo dos números de Tropiques: o resumo dará ao leitor uma noção da grande variedade das suas contribuições, dentre as quais, a seguir, destacaremos algumas, ou mais precisamente, cinco, para um exame mais minucioso. Esta análise mais de perto, o leitor a encontrará na parte final.

 

Nº I de Tropiques, abril de 1941: “Naissance de notre art”.

Texto importante, em que Ménil toma, como ponto de partida, o desolador vazio cultural [9] da Martinica e a possibilidade de “nascimento da nossa arte” (não se trata de renascimento), com uma epígrafe de Nietzsche. A última frase é: “a existência do Poeta vai coincidir com a nossa existência, nós, homens ainda aproximativos.” Note-se que o texto é anterior à chegada a Fort-de-France, do barco de refugiados Le Capitaine Lemerle, com a sua carga de intelectuais e artistas franceses e estrangeiros a caminho do exílio (Breton e sua família, Claude Lévi-Strauss e a mulher, o pintor André Masson, Wifredo Lam e sua companheira, a alemã Helena Holzer etc.).

 

Nº II de Tropiques, julho de 1941: “Orientation de la poésie”.

Texto crítico sobre poesia, com uma epígrafe inicial de Novalis: “toda poesia deve ser legendária e feérica”. Insiste sobre a importância do sonho e glosa uma imagem de Suzanne Césaire sobre o “funâmbulo que caminha sobre a corda”, cita Hegel e Éluard, Breton e os manifestos do Surrealismo, terminando com a recusa radical do realismo. Última frase: “é o tempo da liberdade de espírito”, o que não deixa de ser paradoxal porque se vive então sob censura militar na ilha, mas a declaração sugere ainda, por um lado, a importância do encontro com Breton e, por outro, um caminho de libertação (interior) que devia suscitar grande entusiasmo nos jovens leitores da revista.

 

Nº III de Tropiques, outubro de 1941: dois textos, “Introduction au merveilleux” e “L’action fulgurante”.

“Introdução ao maravilhoso” é um denso ensaio filosófico dividido em 9 partes e precedido por um resumo revelador: “Estamos à procura do nosso verdadeiro rosto. Condenamos suficientemente a literatura artificial que, dele, nos pretende dar a imagem: poetas atrasados, heróis de clichés, supersticiosos fazedores de alexandrinos, cobardolas declamadores de nada. Narciso martinicano onde te reconhecerás? Mergulha o teu olhar no espelho do maravilhoso: os contos, as lendas, os cantos. Verás aí inscrever-se, luminosa, a segura imagem de ti mesmo.” O ensaio é a introdução teórica para dois textos do número seguinte sobre literatura oral em crioulo.

Nas Notas, com o subtítulo de “A ação fulminante” e como uma nota-comunicação, René Ménil, acrescenta um pequeno texto de três páginas na mesma direção: citando a psico-análise (sic) e a etnografia, reafirma, segundo Hegel, a unidade humana do sonho e da ação. Última frase: “Cada um sabe que a palavra do mago produzia o seu efeito com a certeza do relâmpago.

 


Nº IV de Tropiques, janeiro de 1942: dois textos, “Introduction au folclore martiniquais” e “Drame légendaire au crepuscule”.

A primeira frase do primeiro texto começa como um conto para crianças: “Era uma vez…” e articula-se evidentemente com os dois ensaios anteriores de Ménil. Assinado em parceria com Césaire, o texto de janeiro de 1942 funciona como uma demonstração da teoria para analisar a produção anônima e popular: com pouco mais de quatro páginas, coloca a problemática da literatura oral em crioulo, modo de expressão alusivo e metafórico de “um povo que tem fome” e que exprime, a seu modo, o seu “medo” através da figura do “zumbi” (haitiano). Nas duas últimas partes do ensaio, os autores analisam pari passu um conto popular sobre a derrota de Colibri com o seu tambor, personagem tradicional, morto por vários animais (Cavalo, Boi, Peixe-Armado), enviados pelo Bom Deus contra a pequena ave e o seu instrumento que marca o ritmo. A última frase retoma o tom do conto infantil: “Era uma vez um homem negro agarrado à sua terra”.

O texto final é uma total surpresa, desestabilizando qualquer leitor: um conto fantástico sob a forma de uma carta, escrita quase à moda do século XVII, em que o Destinador emprega o “vous” dirigindo-se a um “caro amigo”, não nomeado. Este surge como avatar de Dom Quixote a cavalo e empunhando uma lança no alto de um morro, desce até à “imensa catedral” de um burgo da Martinica, justamente Gros-Morne, seu burgo natal. Ironia e pastiche, alegoria e simbolismo, tudo se conjuga num texto imprevisto em que o muito sério Ménil revela sua faceta de trisckter. A frase final é: “Mas, sabei-o, não escapareis mais, desde então, à injunção trovejante do vosso desejo armado. Já disse demais. Adeus.”

 

Nº V de Tropiques, abril de 1942, dois textos: “Laissez passer la poésie” e “Couleurs d’enfance, couleurs de sang”.

O texto “Deixai passar a poesia…” é um ataque feroz à pequena burguesia mulata da Martinica, dividido em nove partes e, ao mesmo tempo, um poema em prosa. Anuncia a descoberta da “mina minada, o humor”. “Anunciamos a chegada do humor às Antilhas”. Dirigindo-se com ironia ao “meu colonial amigo”, evoca ainda o célebre passeio coletivo em companhia dos novos amigos (Breton e Jacqueline, Lam e Helena, Masson), à floresta de Absalom através do jogo surrealista do “belo como”: [10] belo como o encontro na floresta antilhana, no coração de uma clareira iluminada por uma fina luz sangrenta, de um canibal e de uma mulata [11] de tez cor de cinza”, o que retoma um texto anterior de Suzanne Césaire, repetindo-lhe a frase sem indicar a fonte: “A poesia da Martinica será canibal. Ou não será”, apenas com mudança da pontuação. A frase final – “Deixai passar nas Caraíbas tumultuosas, à altura do gavião, a voz total, mortal, exaltante da poesia” – retoma e sintetiza o início do Cahier em que o narrador descreve as Antilhas em voo planado de um grande pássaro que desce progressivamente à terra, numa espécie de zoom cinematográfico.

Em “Cores de infância, cores de sangue”, Ménil apresenta um poema em prosa, de quase três páginas e meia, em torno do tema partida e volta, exílio forçado e retorno. O título “Cores de infância, cores de sangue” retorna como fecho do poema. Voltaremos ao texto mais adiante.

 

Nº duplo VI-VII de Tropiques, fevereiro de 1943: três textos “In Memoriam”, “Le Dictateur” e “Notes sur Mallarmé”.

“In memoriam”, no interior da revista, tem como subtítulo, [12] “Aquele que chamávamos o mestre”: Ménil presta homenagem, bastante corajosa para a época e em nome da redação, a Jules Monnerot, falecido no ano anterior (Fort-de-France, julho de 1874-setembro de 1942), obrigado a suspender todas as suas atividades públicas sob o regime do Almirante Robert. Advogado, professor de filosofia e jornalista, Jules Monnerot é o fundador do Partido Comunista da Martinica e do jornal Justice. Último parágrafo do elogio fúnebre: “Se a vida tem um sentido, ele existe na morte. Logo que apareceu a morte, esta existência que se simplificava até à lenda, se decantava ainda mais para traçar, como pelo fogo do espírito, a estrada, única, da nossa dignidade.” Em nota de pé de página, Ménil deseja que um estudo sério venha fixar a trajetória e “o papel considerável que este professor de civismo verdadeiro, este advogado brilhante, este político humano, este historiador da nossa miséria colonial, representou na geração dos Grandes republicanos”.

O segundo texto é um delicioso e, ao mesmo tempo, assustador conto surrealista, intitulado “O Ditador”. Amante de trevos de 4 folhas e habitando uma torre, o personagem central desvela desde a primeira frase o seu aspecto inquietante-grotesco: “O ditador caminhava na pradaria. Sem muito pensar, colhia trevos de 3 folhas e, sem muito pensar, seja pela saliva, seja por discreta sutura, seja por hábil dissimulação, fazia trevos de 4 folhas”. O conto incorpora dois discursos outros: o de um cronista legendário e a “teoria” posta em ação pelo ditador. Este discorre sobre seus projetos de modelar o novo homem com ajuda de engenheiros-psicólogos e grandes encenações psicodélicas. Última frase: “O trevo, no céu, se tinha acentuado com luz florescente, e dir-se-ia, hipnótica. O ditador, no elevador, esmigalhava entre os dedos um falso trevo natural de 4 folhas que colhera num dos jardins suspensos da torre de marfim.” Voltaremos ao texto mais adiante.

No terceiro texto do número, René Ménil com “Notas sobre Mallarmé” retoma um diálogo interno da revista – diálogo com Césaire – sobre a poesia francesa. [13] A última parte é voluntariamente polémica: “Mallarmé no ápice de uma história em que alguma coisa podia ainda ser feita por reflexão. / Suprema poesia. / Mallarmé tão perto de fazer o grande salto, estanca.” E Ménil termina as suas notas articulando Mallarmé a Breton, este, aliás, exemplo de quem não interrompeu a sua trajetória.

 

Nº duplo VIII-IX de Tropiques, outubro de 1943: “Évidences touchant l’esprit et sa vitesse”.

Ménil, em “Evidências referentes ao espírito e à sua rapidez”, dividido em 14 partes, geralmente curtas, aborda sucessivamente: o espírito e o inconsciente, a lógica da imagem é a lógica do absurdo, o todo está no todo, a rapidez do espírito, a multiplicação contemporânea dos poetas malditos, a vidência poética, “o pensamento é bio-lógico ou não é”, a clareza não está nos objetos, o irracional tem a sua luz “diferente”, o inconsciente coletivo está no inconsciente individual e vice-versa, a tensão poética se mantém pelo movimento metafórico, “o espírito rápido é o espírito-soberano”, a metáfora é um meio de conhecimento do mundo e do homem. A última frase: “o último destino da poesia sendo o de se multiplicar, dialecticamente, em força nua da multidão.” O ensaio retoma, de certa forma, no final, a exigência, ao mesmo tempo emblemática e paradoxal de Lautréamont, de que a poesia deva ser feita por todos. Uma das respostas possíveis ao paradoxo seria a reescritura literária da oralidade tradicional (os críticos haitianos diriam “a oralitude”).

 

Nº X de Tropiques, fevereiro 1944: “Poème”.

Primeiro número de Tropiques a circular depois da grande crise do final de 1943: a proibição de publicação da revista pela censura oficial e, logo a seguir, o fim da “Dissidência” antilhana, ou seja, o fim do regime de Vichy nos territórios franceses da América (Martinica, Guadalupe e Guiana francesa). O ano de 1944 é importante ainda porque o casal Aimé-Suzanne Césaire, a partir do verão, passa mais de seis meses no Haiti, deixando os filhos com as avós em Fort-de-France. Aimé Césaire é convidado para um colóquio internacional e uma série de conferências. A guerra terminou no mar das Caraíbas embora continue na Europa e no Oriente.

René Ménil publica, neste número de recomeço, um poema em prosa. A primeira frase: “Colhíamos injúrias do chão para com elas fazermos diamantes.” A ele voltaremos mais adiante.

 

Nº XI de Tropiques, maio de 1944, dois textos: “Situation de la poésie aux Antilles” e “La dernière insurrection”.

René Ménil refaz o panorama literário da Martinica, três anos depois do primeiro número da revista: “Situação da poesia nas Antilhas.” Primeira frase: “Todo renascimento põe na ordem do dia a velha querela do fundo e da forma.” O fim do texto aborda o romantismo: “O romantismo antilhano aí está com sua nova concepção da beleza crioula”. E resume: “Romantismo antilhano: movimento cultural do povo antilhano tomado convulsivamente pelo sentimento da sua própria vida. Concebido em 1932 em ‘Legítima defesa’, esse movimento só foi efetivamente desenvolvido em 1940, de modo insólito, por voluntária sugestão poética. Foi constantemente orientado por meio de técnicas seguras, vindas das ciências humanas, tais como a psicanálise, o materialismo histórico, a etnografia. O mestre operador desta revolução foi Aimé Césaire”. O ensaio apresenta, ao leitor, a face de Ménil, ideólogo marxista.

“A última insurreição” é um excelente exemplo de conto surrealista, narrado na primeira pessoa. Uma “cabeça cortada [14] – no caso feminina – é jogada no meio dos negros que dançam numa praça de uma cidade fantástica e tropical, denominada “Rivière-aux-écailles” (= Ribeira das Escamas). A cabeça é de Méloré, a amada do narrador. Num pátio pendem três cadáveres – igualmente femininos – enforcados, e todos sorriem “luminosamente”. Numa assembleia secreta, se reúnem dois padres e duas mulatas sob o olhar intruso do narrador, voyeur, e que lá chegou por um caminho secreto. O voyeur, saindo do labirinto, encontra a seguir uma mulher de uma beleza terrível com quem faz amor. Ela insinua que Méloré não amava o narrador: “é a liberdade de espírito que ela procurava nos teus braços. E mais ainda, talvez ela pensasse no outro enquanto te beijava”. No final, sob os faróis/holofotes que iluminam o céu, a mulher misteriosa propõe ao narrador: “vá ver como dorme a cidade”. O conto lembra o clima de um filme de Dalí ou de Buñuel. É uma das joias escondidas, a meu ver, de Tropiques, e o conto surrealista mostra a outra face de Ménil, poeta em prosa. Sobre o texto ainda ver mais adiante.

 

Nº XII de Tropiques, janeiro de 1945: “Introduction à 1945”, segundo o sumário inicial.

De René Ménil, um novo texto teórico muito importante intitulado, no interior da revista, “O humor: introdução a 1945”, a ser lido integralmente e em que se destacam, na sua longa história, Sócrates, Lautréamont e Dada. E na literatura moderna: Baudelaire, Breton, Éluard, Langston Hughes, Césaire para exaltar “os tiros de salva do humor atroz.” Num parágrafo anterior descreve o humor camponês nas Antilhas: “No camponês antilhano, é preciso confessar, sempre existiu um humor que geralmente se ignora mas do qual se encontra a expressão quotidiana nas piadas e nas canções em que o negro toma a si próprio como alvo dos seus sarcasmos.

 


Humor e criação

A diversidade dos textos de Ménil não deixa de surpreender o leitor que, conhecendo seus ensaios posteriores sobre literatura antilhana, tem dele apenas uma imagem de ensaísta-marxista-professor de filosofia.

Como um verdadeiro trickster, ele surge, de repente, em Tropiques, com outro tom e outro estilo, entre lirismo e paródia, confissão e crueldade, comicidade e leveza, humor e onirismo. O mundo parece, então, ser visto, ao mesmo tempo, pelo olhar novo da criança e do fool sem ilusões e sem peias na língua. E sobretudo com um alto grau presciência, anunciando o que só será revelado ou conhecido mais tarde.

Destacamos, a seguir, cinco textos de René Ménil que nos parecem dever ser olhados de mais perto e com mais vagar. A face do verdadeiro écrivain e não mais simples e utilitariamente écrivant, como modestamente tenta se apresentar, neles se revela, herdeiro de uma dupla linhagem que, em francês, vem de Nerval, Rimbaud, Lautréamont, confluindo com os seus amados poetas do Romantismo alemão: Novalis, Heine, Hördelin.

 

“Drama legendário ao crepúsculo” ou o desejo armado de um Quixote antilhano

No nº IV de Tropiques, “Drama legendário ao crepúsculo” é um verdadeiro conto imprevisto, pondo em cena, na paisagem antilhana, o fantasma de Dom Quixote a cavalo, debaixo de uma mangueira (árvore inexistente evidentemente em terras da Mancha espanhola). Do ponto de vista da formal, o conto é uma carta pessoal, escrita em estilo do século XVII, a um “querido amigo” (cher ami), não nomeado, mas que só pode ser Aimé Césaire. Narra uma aparição fantástica e termina por uma injunção ao amigo não nomeado.

A aparição, no início, imóvel no alto da colina, “entre a mangueira meditativa e o abrigo desabitado”, atravessa depois teatralmente o cenário ambíguo que junta elementos europeus e africanos, antilhanos e imaginários, passa diante da “catedral” do burgo de Gros Morne (onde nasceu Ménil, como já se sabe) e avança pela “ponte-levadiça do castelo de vidro com enormes arcos de terra batida”. Construir em argila ou terra batida é, aliás, uma forma de construção africana. [15]

A carta é ao mesmo tempo uma parábola e um sonho de olhos abertos, que cada leitor deve interpretar à sua maneira. Tudo sugere que esse cavaleiro ao mesmo tempo literário e mítico, patético na sua desmedida e grandioso no seu sonho ideal (com toda a carga conotativa do “Cavaleiro da triste figura” diante da decadência da Espanha e seus impasses), é uma injunção ao amigo Aimé Césaire num estilo quase paródico de grandiloquência arcaizante:

 

Quant à vous, cher ami, vous ne cessez, les yeux écarquillés, malgré l’ombre tombée, de voir la flame impérieuse de la fausse lance et, soudain, le coeur battant, vous reconnaissez votre propre désir, crucifié, équestrement debout au haut de la colline… Mais sachez-le, vous n’échapperez plus, dès lors, à l’injonction tonante de votre désir armé.

J’en ai trop dit. Adieu. (Ibid.). [16]

 

“Desejo armado” retoma de certa forma não só a injunção do Cahier, presente desde 1939, como ainda a de Suzanne, que a cita ipsis litteris: “voici le temps de se ceindre les reins comme un vaillant homme.”

 

“Cores de infância, cores de sangue” ou o mundo visto pelo olhar infantil

No volume V, de abril de 1942, o texto, com pouco mais de três páginas, é um verdadeiro poema em prosa, dividido em quatro partes. Começa como conto fantástico: “En ce temps-là, le ciel était une merveilleuse teinture bleue, frémissante, où s’ecrasait la fleur d’encre des cocotiers. Ma vie n’était pas encore quotidienne.” [17]

Nesse tempo fora do tempo cronológico, destacam-se as tardes, momento em que começavam as viagens nas asas das borboletas, viagens de exploração da terra de diferentes cores: terra vermelha, terra amarela.

A segunda viagem do menino é a descoberta de um feiticeiro, na realidade, um galo colorido, ao mesmo tempo amado e detestado. O galo traça o limite do território que lhe é permitido e do alto do qual o menino assiste, pela primeira vez, uma descida fúnebre de um corpo morto. [18]

Na terceira secção do texto, aparece, nos seus sonhos noturnos, um cavalo terrível, a seguir lentamente domesticado pelo olhar infantil:

 

C’est vers la même époque qu’apparut pour la première fois, dans mes rêves et dans mes rêveries, un cheval. C’est un cheval géant, à la croupe et la tête géantes. Son apparition me fait basculer dans l’angoisse. Il est rouge ou peut-être bleu. Il se cabre, sur le ciel, démesuré… Et moi je reste devant lui, pantelant, un grain de poussière à la main…

A la fin je recevais sans trembler ce terrible visiteur.

Je l’avais apprivoisé. [19]

 

A quarta secção, a mais longa, descreve o encantamento infantil diante de vidros de diferentes cores. A alegria do menino torna-se “frenesia” ao descobrir cristais com múltiplas facetas que brilham sobretudo à noite diante da chama trêmula da lâmpada a petróleo. O final do poema em prosa é:

 

Dans mon miroir aux alouettes le monde était pris au piège. Dans mon miroir tout se précipitait, se concentrait, gelait, crépitait, de chaud, de froid, de vie.

Je ne marchais plus qu’avec un bouchon de cristal dans la main.. Dans le bouchon, était le flacon. Dans le flacon, était le monde, tous les mondes.

Et cela frissonnait dans ma main comme un oiseau.

Couleurs d’enfance, couleurs de sang. [20]

 

“O ditador” ou o delírio do poder e a criação do novo homem

No volume VI-VII, de fevereiro de 1943, em plena guerra e no seu momento talvez mais dramático e ainda incerto, Ménil, numa cidadezinha de uma ilha antilhana que sobrevive com dificuldade, isolada pelo bloqueio naval anglo-americano, escreve um conto entre farsa rasgada e fantasia desabrida sobre o sonho e as aventuras do poder absoluto.

O conto tem sete páginas e incorpora dois outros textos diferentes, impressos aliás em itálico: a) a citação de um cronista antigo (legendário) chamado Brocelte [21] sobre uma rainha também muita antiga, chamada Etha (igualmente legendária, claro), que percebeu, uma noite, a importância de uma certa lua iluminando os chifres de elefante colocados no alto de uma torre de marfim; e b) o discurso do ditador que se põe em cena, com a ajuda dos seus engenheiros-psicólogos (sic), diante de uma multidão, ou seja, a totalidade dos habitantes do seu país (imaginário). O momento que se vive então é o encerramento do “PLANO DECENAL PSICOLÓGICO”. E o ditador fala a “vários milhões de homens, mulheres e bebês” (sic).

Um exemplo claro de farsa rasgada:

 

Quand la lune vint docilement s’inscrire, pour le dictateur, dans l’encoche d’ivoire, un silence venu d’où, s’imposa à la foule. Les adultes cessèrent même leur ruminante méditation; les enfants eux-mêmes cessèrent de rugir et de se désarticuler. [22]

 

E o ditador fala durante horas e horas aos seus 20 milhões de ouvintes hipnotizados “pela lua e pelo elefante”. Todo o conto deveria ser citado.

 

“Poema” ou o retorno ao lirismo surrealista

No volume X de Tropiques, de fevereiro de 1944, Ménil volta a publicar um poema em prosa, de uma única página, impresso integralmente em itálico, exceto o título. A linguagem é ao mesmo tempo vaga e melodiosa. A marca de Nerval e do Rimbaud das Illuminations me parece clara. É o poema provavelmente mais surrealista de Ménil.

Escrito quase todo no imperfeito do ponto de vista de um nós (nous) coletivo, narra a trajetória (com a expulsão não se sabe ao certo de quem nem de quantos, mas com retorno no final) e a felicidade utópica dos “filhos da derrisão”. Derrisão é o riso zombeteiro ou o comportamento, dito ou gesto, que denotam desprezo por outrem, geralmente de forma irônica ou sarcástica. O trisckter é um mestre e um filho da derrisão.

Dividido em três partes, a segunda de apenas 4 linhas, inserida entre duas partes maiores, respectivamente de 9 e 11 linhas, o poema narra: a) na primeira parte, a saída forçada e muito cedo pela manhã, de um grupo indistinto de jovens da cidade (no singular); b) na segunda, a reação dos pássaros [23] descrita em imagens aquáticas que terminam aparecendo nos sonhos, também aquáticos, de mulheres adormecidas; e c) na terceira, em um movimento inverso ao da primeira parte, a procura das cidades (agora no plural) que partem em busca dos jovens, antes expulsos.

O texto é muito absconso jogando com sinestesias e semelhanças fônicas de palavras de significação muito diferente, [24] constrói-se a partir de sensações e movimentos vagos de euforia claramente ascendente. Sua tradução seria um desafio para qualquer tradutor. Constitui um relato alusivo e metafórico de uma expulsão das cidades, e pelas cidades, dos “filhos” que usam a derrisão e o humor (as grandes armas de Lautréamont), e que, no final, vêm a reconhecer os seus exilados e partem ao encontro dos que partiram, levando prendas a oferecer-lhes.

Para que se tenha uma ideia, citamos o início de cada uma das partes:

 

Nous ramassions des injures pour en faire des diamants. Le temps avait la blancheur du blé. Nous étions forcés de sortir de la ville tôt. Le linge séchait déjá sur les villages. Sous chaque porte il y avait un baiser […]

 

Bientôt pourtant, dans le bol des collines, mijotèrent la rumeur et le geste d’oiseaux rendus fous par le jour. […]

 

Les villes venaient à nous. Chacune avait son nom, son amour et ses dons. Chacune s’abritait derrière une parole de bal, derrière un loup vivant. Chacune brûlait d’un feu secret, d’une secréte ardeur. […] [25]

 

“A última insurreição” ou um outro conto surrealista

Em maio de 1944, quando, nas Antilhas francesas (Martinica, Guadalupe e Guiana), a guerra já terminara desde o ano anterior, Ménil publica um conto estranho sobre uma derradeira insurreição, que não aconteceu, aliás. É, portanto, uma narrativa imaginária que se desenrola, numa cidade desconhecida (ou inexistente), banhada por uma ribeira (Rivière aux écailles) cujo nome junta água e escamas/placas de animais marinhos brilhando ao sol, tudo se passando fora do tempo (uma revolta negra não acontecida) e dentro do tempo contemporâneo (com holofotes varrendo o céu noturno em leques abertos ou flechas de luz). Por outras palavras: uma narrativa dentro e fora de um espaço, que vários indícios apontam como antilhano, dentro e fora do tempo histórico (o da II Guerra).

Narrado na primeira pessoa por um homem que acabou de perder a mulher amada, de nome Méloré, cuja cabeça cortada é lançada no meio de negros que se divertem, junta o espetáculo de uma revolução sanguinária e cruel, encontro sigiloso de padres e mulatas numa Cidadela de outro tempo, com salas e túneis secretos, um espaço que parece sair da imaginação do marquês de Sade ou de um filme de Buñuel.

Trata-se de uma insurreição também com muitas mulheres, ora torturadoras cruéis, ora vítimas mortas, nas ruas: além da degola da amada, há três enforcadas num pátio e que sorriem, um cavalo esventrado pela turba feminina com “horríveis crueldades”, além das duas mulatas e a mulher desconhecida encontrada no próprio quarto de Méloré e que é, provavelmente, uma encarnação da Morte. Ambos, narrador e desconhecida de tez de argila, fazem amor. Mas o narrador não morre, sendo reencaminhado, no final, para ir ver como está agora a cidade adormecida, depois dos terríveis acontecimentos da noite:

 

 Bientôt nous fûmes à l’air libre. La rumeur de la ville nous reprit. Maintenant les maisons éclairées montraient des scènes de couleur. Maintenant, j’étais seul. Je me débarrassai de mon fardeau et j’entrai dans la maison où vivait Méloré – il n’y avait pas un jour. Il y avait une femme dans la chambre. C’était l’une des femmes de la citadelle. Son teint était d’argile heureuse et il y avait de la violette dans son teint. Elle me sourit mais ses dents étaient cruelles. Elle était d’une beauté terrible et l’on avait envie qu’elle fût, une bonne fois, cruelle pour en finir. Elle me prit pourtant affectueusement par la main comme pour me faire les honneurs de toutes ces choses qui appartenaient à Méloré. [26]

 

A narrativa acompanha assim a trajetória do narrador, completamente atordoado (hébété) pela cidade, do meio-dia, com o sol a pino, até o momento em que toda a gente dorme, passando pelo crepúsculo. “Le soleil lançait vers nous la meute devorante de sa lumière” (= o sol lançava na nossa direção a matilha devoradora da sua luz) é a primeira frase e a frase final reza: “va-t-en voir comment dort la ville” (= vá ver como dorme a cidade).

 Nesse intervalo, do sol a pino à noite fechada, transcorre a ação, num espaço sempre orgiástico, ora aberto (praças, ruas), ora secreto (pátio), ora fechado (Cidadela ou quarto de Méloré). O conto leva a marca de Lautréamont e de Sade, com seus sucessivos encontros funestos e cruéis, do qual sai o narrador, não se sabe como, ainda com vida.

O diálogo que fecha o conto é melancólico. Note-se que a descrição física da mulher morta e da mulher-Morte aproxima-se: ambas têm a tez de argila clara com um toque de violeta na pele. São, talvez, a mesma, como no soneto “Artémis” de Nerval: “La Treizième revient… C’est encore la première” (= A décima terceira retorna… É ainda a primeira).

 

À guisa de conclusão aberta

Pretendeu-se aqui somente apresentar, forçosamente por alto, não só um escritor antilhano de língua francesa praticamente desconhecido no Brasil e na América hispânica, como dar uma ideia da sua primeira produção, muito variada, dentro de uma revista-laboratório, afiliada ao Surrealismo, nos anos 40 do século passado.

René Ménil, em Tropiques, é ao mesmo tempo um teórico e um crítico (como Suzanne Césaire, aliás) que trabalha e continuará a trabalhar sobre identidade e ainda um poeta em prosa, herdeiro de uma dupla tradição (o romantismo alemão e a poesia da revolta francesa).

Seria urgente analisá-lo no contexto dos escritores que pensam a problemática da descolonização e da identidade americana com suas múltiplas camadas de significação e suas temporalidades diferentes e arriscar traduzi-lo, uma vez que a sua obra nos ajudaria a compreender as Américas.

 

NOTAS

1. Inventar, do ponto de vista etimológico, é achar/revelar o que está escondido e não se vê.

2. Do tipo: com a pedra lançada ontem, mata o pássaro hoje. Este, aliás, é um dos orikis de Exu.

3. Légitime défense, fundada em Paris, em 1932, por jovens intelectuais antilhanos, com um só número, reúne além de René Ménil, Jules-Marcel Monnerot, Thélus e Marcel Léro, Auguste Thésée, Michel Plotin, Maurice-Sabas Quitman, Pierre e Simone Yoyotte: a revista é uma reflexão crítica, de cunho marxista, sobre literatura e identidade na Martinica. Três anos mais tarde, em 1935, sempre em Paris, surge L’Etudiant noir, dirigido por Aimé Césaire e com a colaboração de Aristide Maugée, Léopold Sédar Senghor, Paulette Nadal, Gilbert Gratiant, Léon Damas. Este, seu secretário de redação, assim define mais tarde a publicação que alcançou três números: “L’Etudiant noir, jornal corporativo e de combate, tinha por objetivo o fim do tribalismo, do sistema de clãs em vigor no Quartier Latin! Deixava-se de ser estudante martinicano [caso de Césaire], guadalupeano, guianense [caso de Damas, ele próprio], africano [caso de Senghor] e malgache, para ser apenas um só e mesmo estudante negro.” Havia, portanto, já uma tradição, em Paris, de estudantes negros, de diferentes origens, reunirem-se em torno de uma revista. Tropiques herda dessa tradição coletiva. Enfim, além de laços de amizade, criam-se igualmente, no grupo, novos laços familiares: Aristide Maugée, por exemplo, é cunhado de Césaire, tendo casado com uma das suas irmãs.

4. Ver Tropiques. Jean-Michel Place, 1978, vol. I. Texto assinado e datado de outubro de 1973.

5. A obra de Ménil não tem ainda nenhuma tradução para o português. Os seus trechos de crítica, reproduzidos no vernáculo, para não alongar demasiado esta apresentação, são traduções da autora. Entretanto, os seus trechos de prosa poética serão apresentados, mais adiante, em dupla versão, no original e em tradução em pé de página. Há uma qualidade especificamente literária a ser apreciada pelo leitor.

6. Note-se que, em nenhum momento, mesmo em 1978, na sua reavaliação crítica, Ménil fala de literatura brasileira. Entre todos os poetas e escritores de Tropiques, o único em que o Brasil aparece, ao mesmo tempo, como país imaginário e real, é Aimé Césaire.

7. Situada na parte norte-atlântica da Martinica, Gros-Morne é uma das comunas da ilha e foi colonizada tardiamente no século XVIII. Hoje vive essencialmente da agricultura do ananás e da mandioca. A sua altitude permite uma visão da costa atlântica. No seu território existe ainda a Habitação Saint-Etienne, fabricante tradicional de rum.

8. Aimé Césaire, nascido em 1913, tem então 28 anos incompletos e Suzanne, nascida em agosto de 1915, ainda não fez 26 anos.

9. A mesma constatação desolada reaparece em vários outros colaboradores da revista: Césaire, Suzanne Césaire, René Hibran.

10. Na verdade, o jogo da comparação surpreendente e inédita “belo como…”, retoma uma passagem de Lautréamont (Chants de Maldoror, Canto VI). Este passeio à floresta tropical, “higrófila” segundo os guias de turismo de hoje, e claramente iniciático para os que chegam da França em 1941, reaparece igualmente em textos de Suzanne Césaire, Breton (Martinique, charmeuse de serpents) e Masson, repercutindo ainda na grande tela de Wifredo Lam (La Jungle) em que o pintor cubano, vivendo na Europa (Espanha e França) há muitos anos, reencontra um espaço ancestral. Está claro ainda que, para os viajantes, o próprio nome Absalão evoca o filho rebelde do rei David, retomado aliás pelo romance de Faulkner, publicado em 1936, Absalom, Absalom! Mas não é o caso de Breton que sempre se recusou não só falar como aprender outra língua, além do francês.

11. Nas Antilhas, diz-se chabine: é uma mulata clara, de traços finos, de pele cinza claro, muitas vezes de olhos verdes. A “chabine” é sempre Suzanne Césaire, tanto em Breton como em Ménil.

12. Uma das estratégias do grupo é: ao apresentar o sumário para um novo número ao censor oficial, escolhe-se um título bastante vago que, depois, no interior da revista, ganha um subtítulo mais explícito.

13. Ver Tropiques, nº V: “Vues sur Mallarmé”, de Césaire.

14. O tema da “cabeça cortada” ou da “degola” é importante na obra de Césaire, no seu caso, cabeças sempre masculinas, lembrança de Boukman (“hougan” do vodu que liderou o primeiro massacre na guerra de Independência no Haiti) e de Zumbi (no Brasil). Ver a propósito a nossa análise do poema “Batouque”.

15. A grande mesquita de Djenné no Mali, construída pela primeira vez no século XIII, é reconstruída, segundo as técnicas tradicionais em argila, no início do século XX (1906-1909). O leitor tem interesse em ver, na Internet, a monumentalidade que a construção tradicional em terra batida pode alcançar.

16. Quanto a vós, meu querido amigo, não cessais, de olhos bem abertos, apesar da noite que cai, de ver o brilho imperioso da lança fingida, e de repente, o coração aos saltos, reconheceis o vosso próprio desejo, crucificado, equestremente de pé no alto da colina… Mas sabei-o, não escapareis, daqui por diante, à injunção trovejante do vosso desejo armado. / Já disse demais. Adeus.

17. Naquele tempo, o céu era uma maravilhosa tapeçaria azul, fremente, onde se esmagava a flor de tinta dos coqueiros. Minha vida não era ainda quotidiana.

18. O tema da descida fúnebre de um morto do alto de um morro (morne) até á igreja na várzea é um tema frequente em poesia e na narrativa antilhanas. Chama-se “descente de corps” (= descida de corpo). O tema reaparece, em particular, no romance de Edouard Glissant e seus seguidores. Ver sobretudo Malemort.

19. Foi na mesma época que apareceu pela primeira vez, nos meus sonhos e nos meus devaneios, um cavalo. Um cavalo gigante, com a garupa e a cabeça enormes. Sua aparição me faz cair na angústia. Ele é vermelho ou talvez azul. Ele se empina, contra o céu, desmedido… E eu, diante dele, tremendo, um pouco de poeira na mão… / No final eu recebia sem tremer esse terrível visitante / Eu o tinha domesticado.

20. Na minha miragem o mundo caía na armadilha. No meu espelho tudo se precipitava, se concentrava, congelava, queimava, quente, frio, vivo. / Eu só andava com uma rolha de cristal na mão. Na rolha estava o frasco. No frasco estava o mundo, todos os mundos. / E isso tremia na minha mão como um passarinho. / Cores de infância, cores de sangue.

21. No nome, está implícito uma raiz “celta” e a palavra se assemelha vagamente a Brocéliande, a famosa floresta dos poemas medievais na chamada Matière de Bretagne. O texto, de certa forma, tem características borgeanas.

22. Quando a lua veio docemente inscrever-se, para o ditador, no entalhe de marfim, um silêncio, vindo não se sabe de onde, impôs-se à multidão. Os adultos cessaram a sua ruminante meditação; até as crianças cessaram de rugir e de se desarticular.

23. Haveria uma intratextualidade a explorar em Tropiques: assim como a Alouette/Andorinha que fuma no fundo do pântano, no poema de Césaire (ver texto, nesta mesma série da Agulha Revista de Cultura) traz a mudança, aqui são os pássaros que “cozinharam lentamente” (mijotèrent) que provocam a revolução, no sentido preciso da palavra, nas cidades.

24. Por exemplo, mares (= charcos) e mariées (= jovens casadas); un loup vivant (ao mesmo tempo máscara negra de carnaval cobrindo apenas os olhos e lobo, animal) etc.

25. Colhíamos, no chão, injúrias para com elas fazer diamantes. O tempo tinha a brancura do trigo. Estávamos obrigados a sair da cidade muito cedo. A roupa lavada secava já nas aldeias. Debaixo de cada porta havia um beijo […] Logo, no entanto, na tigela das colinas, cozinharam lentamente o rumor e o gesto de pássaros enlouquecidos pelo dia […] As cidades vinham até nós. Cada uma tinha seu nome, seu amor e seus dons. Cada uma abrigava-se atrás de uma palavra de baile, atrás de uma máscara negra viva. Cada uma queimava de um fogo secreto, de um secreto ardor […].

26. Logo, chegamos ao ar livre. O rumor da cidade nos retomou. Agora as casas iluminadas mostravam cenas cheias de cor. Agora, eu estava só. Desembaracei-me do meu fardo e entrei na casa em que vivia Méloré – apenas um dia antes. Havia uma mulher no quarto. Era uma das mulheres da cidadela. Sua tez era cor de argila feliz e havia um toque de violeta na sua pele. Ela sorriu para mim, mas seus dentes eram cruéis. Era de uma beleza terrível e tinha-se vontade de, uma vez por todas, que ela fosse cruel para acabar com tudo. Ela me tomou entretanto pela mão afetuosamente como para me fazer as honras de todas as coisas que pertenciam a Méloré.

 


LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Romanista de formação, ensaísta e tradutora, publica em francês e/ou português sobre literaturas francófonas, literatura comparada, iconografia e iconologia. O nº 115 da Agulha Revista de Cultura, de julho de 2018, publicou uma edição especial sobre o seu trabalho, sob o titulo “Entre o Mediterrâneo e as Caraíbas”. Últimas publicações: Vampire liminaire: de Lautréamont aux Césaire. Königshausen & Neumann, 2019, e os posfácios às traduções de Suzanne Césaire: Escritos de Dissidência (Papéis selvagens, 2021) e Sony Labou Tansi. O ato de respirar (Cultura e Barbárie, 2021).

 


JAN DOČEKAL | Historiador de arte e artista, nascido em Třebíč, República Tcheca, em 1943. Formado como metalúrgico, estudou história da arte e estética, foi operário, tecnólogo, publicitário, diretor de vendas em uma gráfica e professor de educação artística. Preparou mais de cem exposições de arte e foi comissário do Simpósio de Esculturas Mladá tvorba Žďár nad Sázavou (2000). Colaborou com a Galeria Moravian de Stanislava Macháčková por 25 anos. É membro do grupo surrealista Stir up e já realizou trinta exposições originais. Livros e catálogos publicados: Jaroslav Vyskočil (1996), Horácka Fine Arts Club (1999), Horácka Fine Arts Club (2000), About Graphics (2001), Max Švabinský Graphics (2001), Everyday Things / Beyond the Art of Arts (2004), Reviews Texts Interviews (2005), Interviews 2005-2013 (2014), Josef Kremláček (monografia, 2020). É coautor do Dicionário de Belas Artistas Tchecas e Eslovacas (1998) e editor do livro Vlastimil Toman, Life Journey (2015).
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 02

Número 201 | janeiro de 2022

Artista convidado: Jan Dočekal (República Tcheca, 1943)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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