segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

FERNANDO FREITAS FUÃO | Terry Gilliam e a vida sem sentido

 


Collage, cut out, stop motion

Terry Gilliam para a maioria dos jovens é o grande criador do Stop Motion, rótulo que nos anos 1970 e até poucos anos atrás não existia como expressão para designar collages em movimento. Era apenas mais uma modalidade de animação. Mas, Gilliam se referia e se refere até hoje às suas collages animadas como Cut-out. Termo que lembra a expressão utilizada por W. Burroughs para designar suas collages literárias: Cut up.

Tanto o Cut out como Stop-motion podem ser considerados collages animadas construídas a partir de recortes de revistas, fragmentos fotografados quadro a quadro, um trabalho lento e exaustivo, principalmente quando feito manualmente antes do advento do computador. As collages animadas de Gilliam como prefiro aqui chamar partem de um repertório variado de ilustrações: recortes de enciclopédias do século XIX bem ao gosto das collages de Max Ernst, imagens e revistas dos anos 1950 a 1970 transferidas para um universo da arte POP inglesa. Suas características são irreverência e ironia, usada tanto em seus cuts up quanto em seus filmes. Cientificamente falando, o Stop Motion só é compreendido como movimentação graças à persistência retiniana que provoca a ilusão no cérebro humano de que algo se move continuamente quando constituído com mais de 12 quadros por segundo. A história do Stop Motion remonta aos primórdios do cinema com o mágico e ilusionista francês George Mélies, que viu nesse procedimento uma possibilidade para dar sequência aos seus truques misteriosos que encantavam a todos, alcançando o sucesso com o filme Viagem à Lua, de 1902. Nesse curta, a chegada à lua de um foguete com tripulação humana é criada a partir desta técnica.

As primeiras collages conhecidas de Gilliam pelo mundo apareceram no programa humorístico inglês Flying Circus do Grupo Monthy Phyton, ao qual pertencia. Flying Circus (Circo Voador), esse programa foi exibido entre os anos 1969 e 1974 pela TV britânica; e era constituído de pequenos sketches cômicos. Entre esses sketches, Gilliam aproveitava e introduzia suas collages animadas, surreais e divertidas. Flying Circus era uma crítica violenta e hilária às idiossincrasias da vida britânica, em particular aos políticos. Uma comédia bastante intelectual com inúmeras referências a filósofos e figuras literárias, que compareciam também em suas animações.

Gilliam comentava que o objetivo dessas animações era contar uma história, fazer uma piada, expressar uma ideia, a técnica em si realmente não importava. “É por isso que uso cut out. É a forma mais fácil de animação que conheço”. Gilliam conhecia a dificuldade de se produzir uma animação a partir de desenhos. Os movimentos sofisticados e elegantes à la Walt Disney para ele eram quase impossível. Movimentos rápidos e repentinos, por outro lado, eram muito mais simples e economizavam tempo.

Gilliam adorava recortar pessoas, dar movimento a seus braços e pernas, assim como decapitar cabeças em suas collages. Tema e estratégia recorrente desde os surrealistas com Max Ernst e o brasileiro Jorge de lima. Outra estratégia era recortar o queixo tal como um ventríloquo e parecer que a figura falava, baixando e levantando o queixo; barcos e balões flutuavam por tudo, e com frequência em suas animações. Em suas collages tudo se transfigurava até braços e mãos viravam árvores. Há um pequeno vídeo Terry Gilliam Cut paper animation, no you tube, onde ele explica como fazia suas collages animadas, uma referência clássica para os amantes da collage.

O processo cut out permitia que quem não soubesse desenhar pudesse fazer seus desenhos animados. Da mesma forma que a collage quando surgiu permitiu desenhar sem saber desenhar, ou seja: desenhar com imagens prontas. Para Gilliam interessava mais a espontaneidade do que a animação tradicional, além de ser comparativamente mais barato e fácil de fazer, e mais rápida.

Existe uma nítida relação entre collage e o ‘não sentido’, o ilógico e o surreal. Gilliam mediante suas collages já sabia que nada tem um sentido a priori, tudo é uma construção, basta um desvio, um deslocamento, um encontro para que qualquer objeto e sujeito sejam submetidos a um novo sentido. E como dizia Deleuze, não existe sentido que não se apoie em um não sentido, essa é a lógica do sentido.

Quando coloco em uma entrevista-collage que dei a Gilliam, [1] ali situando o meu pensamento como se fossem dele, a título mesmo de ironia na entrevista, mais precisamente na indagação que: “eu não sei se minhas inquietações existenciais começaram antes da collage ou surgiram depois, como consequência do fazer collage, de ficar brincando de Deus dando a vida aqueles pequenos recortes de papel, animando-os com o movimento num demorado trabalho, ou se essa angústia existencial já latejava em mim”. Estou trazendo à tona uma questão entranhada em Gilliam. Estou pensando justamente nisso, a influência da collage no despertar do pensamento ilógico, non sense, ou, se quem já tem esse pensamento ilógico constituído é que faz se aproximar da collage por amorosamento e afinidade. Creio que cada collagista terá que responder per si, sem nunca chegarmos a uma conclusão do papel da collage no questionamento da existência, de uma vida sem sentido. Ainda mais se cada um que se aproxima da collage já carrega essa angustia existencial. Ou, se nada disso tem correlação. Na collage não existe somente esse questionamento do sentido e não sentido de uma figura, mas também todo um pensamento reflexivo-crítico sobre o espaço e o tempo e a linguagem. Isso enfim, é o que tentaremos paulatinamente perceber e analisar nesse ensaio, as relações entre as collages e os filmes de Gilliam, e a relação simultânea com o questionamento do espaço e do tempo.

Na collage, a compreensão do tempo se dá a partir das próprias figuras, da existência de cada figura, de cada imagem, de cada representação, do tempo de cada imagem fotográfica. Não há um único tempo. Cada figura arrasta seu próprio tempo, formando um caleidoscópio de tempos. Na collage, não há mais um fluxo do tempo como na pintura ou no desenho. Nem precisa. O tempo e o espaço na collage e o próprio paradoxo da simultaneidade da coexistência dos diversos tempos e espaços próprios a cada figura e de seus corpos. Nela reina o império do sem sentido, tudo é transfigurações e segredos a serem revelados.

Todo trabalho fílmico de Gilliam persegue exatamente compreender a criação do não sentido que a collage proporciona, como expressão do não sentido da vida, numa busca desenfreada pelo sentido da vida. Em O sentido da vida, o grupo Monthy Phyton passa o filme todo procurando o sentido ou significado da vida como se fosse um objeto, sem nunca o encontrar; assim como em Monthy Phyton em busca do cálice sagrado. Creio que Gilliam não se cansará de procurar esse sentido até o final de sua vida. É difícil responder àqueles que julgam suficiente haver palavras, coisas, imagens e ideia para explicar o sentido. Pois, não podemos nem sequer dizer, que o sentido exista. Ele é antes de nada uma coisa inventada, que se perde no tempo, provável ter nascido junto com a linguagem simbólica.


Quem faz collage não se conforma com os significados consagrados, convencionalizados, sobretudo na imagem fotográfica como o perfeito correspondente da realidade. Alterar o significado dessas imagens produzidas pelo sistema é uma reação à opressão das imagens e do próprio sistema, que num primeiro momento tanto as collages como os filmes de Gilliam se apresentam à primeira vista como simples comédia. Mas no fundo, é a comédia humana.

Terry Gilliam é um dos integrantes mais densos e intelectuais do grupo, roteirista, está sempre em busca de um sentido das coisas em seus filmes, já desde o hilário Monthy Python em busca do cálice sagrado (1975). Seu trabalho perpassa as questões do tempo, do espaço, e de nossa cultura, assim também as religiões, os sistemas de crenças e até a ciência que vão ser alvo constante em muitos de seus filmes.

O sentido da vida é também o sentido do espaço em termos heiddegerianos; e esse sentido do espaço é todo um sem-sentido, qualquer tentativa em compreender deve passar pela lógica do non-sense, e todas as contradições da vida. Só assim é possível expor o oco das coisas, o esvaziado do mundo e sua falta de sentido. Ele não está na profundidade do ser e tampouco na superfície, muito embora quem trabalhe com collage viva da superficialidade das peles coloridas ou em preto e branco. O sentido não está dentro nem fora, não está em tempo nenhum, nem na origem nem no fim.

Deparar-se com o não sentido é natural e frequente mas escamoteamos sua presença; e esse paradoxo parece permear toda a história da civilização ocidental, principalmente da filosofia. O sentido e o não sentido não se tratam de um par de oposições, um binômio, como quente-frio, mas de uma coisa dentro da outra com equivalência, um não vive sem o outro. Assim fantasia e irrealidade se mesclam de tal forma com a realidade que fica difícil discernir muitas vezes onde começa um e termina outro. Tal como ontem, acreditávamos nos dragões e jurávamos que víamos e lutávamos contra eles, ao ponto de Cervantes criar Don Quixote; hoje alucinamos com uma infinidade de ovnis e ets, bonzinhos e predadores, alguns humanos juram até que foram abduzidos por eles, tal qual alguns medievais juravam terem sidos levados para a caverna do dragão.

É exatamente isso que Gilliam na maioria de seus filmes nos propõe pensar, o mundo mágico e a realidade em que vivemos, a loucura e a dita sanidade, a crença e a descrença, mas nunca como oposições, mas sim como partes entranháveis dentro da vida em convivência. Sobretudo, a fantasia, a loucura como escapatória da terrível prisão que se constitui a vida domesticada. Esses temas percorrerão quase todos seus filmes principalmente Fischer King, como veremos adiante.

O difícil para o espectador acostumado a ver tudo de maneira lógica nos filmes convencionais, para compreender o sentido do que Gilliam quer dizer. Muitas vezes infelizmente acaba tendo uma visão distorcida, vê o filme como uma simples comédia absurda e fantasiosa, sem lógica, onde o espectador reluta, resiste mergulhar seu pensar no sentido tanto do tempo e do espaço. Mas, parece que Gilliam não se importa com isso.

Isso ocorre em muito de seus filmes desde a busca do Santo Graal, O sentido do da vida ou em Time bandits, Brasil, e ou O homem que matou Dom quixote, onde o espectador observa o filme como uma comédia, uma aventura, ou uma simples fantasia, não querendo ver o que há por trás da tela, do velo. O sentido não vive sem o sem-sentido, justamente é ele que alimenta o sentido da existência para que possamos seguir existindo. Cada um desrealiza a realidade a seu modo, a maioria das pessoas se precipita na loucura da ganância do bezerro de ouro e na gargalhada frouxa das salas escuras dos cinemas, e agora na palma da mão dos celulares. Talvez, Gilliam assim como os Phyton saibam que não há uma resposta para isso, e só nos resta mesmo rir do absurdo da própria existência. Nada faz sentido nessa aterrisagem chamada vida.

Deleuze em A Lógica do sentido mostrou que “o não senso e o sentido acabam com sua relação de oposição dinâmica, para entrar na co-presença de uma gênese estática, como não-senso da superfície e sentido que desliza sobre ela”… “O bom senso se diz de uma direção: ele é senso único. Sentido único, correnteza, aquela existência da qual chamamos ‘vida de gado onde as massas se dirigem para a consumação. O bom senso exprime a existência de uma ordem de acordo com a qual é preciso escolher uma direção e se fixar a ela, uma orientação”. O non-sense: é o que destrói esse bom senso, o sentido único, o senso. O boi desgarrado e louco que se recusa a ser consumido e a consumir.

O filme O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus é um claro exemplo disso, onde a realidade e a fantasia são filtradas por uma pequena cortina prateada dividida em duas partes, como um espelho, ou como um hímen, por onde se atravessa da realidade para a fantasia; no mundo do Dr. Parnassus os que atravessam essa cortina às vezes podem não voltar dessa fantasia. A cortina prateada é uma alusão a Alice através do espelho.

Se pensarmos no sentido como orientação, temos seu oposto à desorientação. Gilliam também encontrou esse universo desorientador em Lewis Carrol, “Em que sentido, em que sentido?” – perguntava Alice. Essa pergunta não tem resposta nem sentido porque é próprio do sentido não ter mesmo direção, orientação, não ter bom sentido, mas sempre as duas ao mesmo tempo. A desorientação é a perda do sentido, do significado, a porção esquecida e pouco estudada principalmente na arquitetura, mas que fazem parte do processo de consciência da existência, e que Gilliam explora isso magnificamente em seus cenários. Ele foi um ilustrador em seus primeiros anos profissionais, apesar de sua formação em ciências políticas.

A desorientação é a experiência na qual não sabemos mais exatamente o que está diante de nós, e o que não está, desta forma o trabalho de Gilliam vive de uma aproximação entre o realismo fantástico e o surrealismo, e obviamente ao incrível mundo non-sense da collage. Exemplo disso é a pequena carroça cigana do Dr. Parnassus, onde fisicamente não cabem muitas coisas ainda que apertadamente, mas no filme sugere que cabem mais coisas por dentro do que vista por fora, e ainda a dimensão oculta infinita dentro dela quando se ultrapassa o portal do espelho.

A desorientação devolve o indivíduo ao espaço existencial, bruto, indiferenciado. É o estado no ser que desconjuga a relação espaço-tempo, jogando-o no abismo dos sentidos. Um lapso da razão que transporta para a infinitude do espaço e da insignificância de todas as coisas contidas nele. Tudo é igual na desorientação e nada nos causa estranhamento neste estado porque nada é reconhecível ou identificável num primeiro momento. Freud foi um dos primeiros a nos mostrar que os mecanismos do sentido passam pelo não sentido, pelo inconsciente, e foi em seu ensaio Das Unheimlich (A Inquietante Estranheza), onde procurou demonstrar a existência de um domínio todo peculiar da estética que escapava às formulações clássicas da teoria do belo. A unheimlich freudiana, no fundo pode ser vista também como um estudo sobre a orientação. Na desorientação estamos simultaneamente dentro e fora, ou simplesmente nem dentro nem fora. É essa desconfortável sensação fora da lógica que define a sensação expressa por Heidegger, do eu se ver desagregar e se tornar um objeto de representação para o outro. De se abrir em nós o que nos olha no que vemos.

É importante observar que no mundo e Gilliam que esse dentro e fora não tem equivalência dimensional espacial e muito menos temporal. O dentro pode ser infinitamente maior, um mundo maior que o de fora, é justo nesse ponto em que temos que entender Gilliam como um aprofundador e pesquisador da lógica do non-sense do espaço, e de todas as situações onde ele se manifesta. Ou, em outras palavras, Gilliam é um profundo estudioso da lógica antidomesticadora contemporânea. Se para o sentido existe milhares de bibliotecas, para o não sentido só existe soterramento e encarceramento espacial.

Em outros filmes ele nos mostra que esse dentro ou fora da realidade muitas vezes não passam de estados psíquicos que a civilização ocidental resolveu considerar como enfermidades

O filme The Fisher King, uma das mais belas e dramáticas atuações de Robin Williams, Gilliam nos mostra a loucura como ‘non-sense’, o triste lado da loucura como processo de fuga. Não há nada irônico no filme, mas sim a dura dor e o sofrimento psíquico que essas pessoas enfrentam. Jack Lucas é um ex-astro da rádio de Manhattan que vive bêbado, deprimido e com um forte sentimento de culpa depois que um ouvinte, seguindo literalmente os seus conselhos, matou várias pessoas em um bar. Após uma noite na rua ele acaba fazendo amizade com Parry (Robin Williams), um ex-professor de história medieval que se transformou num mendigo num mundo imaginário de cavaleiros medievais. A fuga para a loucura ou para a fantasia, para Giliam parece ser a única saída frente aos modelos totalitários fascistas, como bem mostra também no filme Brasil, uma releitura de 1984 de George Orwell. Em The Fischer King ele aproveita ideias já expressas e aproveita para reforçar o que tem a dizer no novo filme, nesse caso introduz a busca do Santo Graal como se fosse um fragmento, uma ideia collage no enredo do filme, agora de uma forma trágica, uma viagem ao inconsciente do personagem como se o cálice pudesse restituir sua normalidade, e assim felizmente acontece ao final do filme. O Graal significaria o próprio sentido de sua volta ao dito estado normal. Era mais ou menos assim que os medievalistas encontravam sentido na vida, buscando coisas que não existiam, ao ponto de ter que fabricá-las.

A maioria de seus filmes enfoca essas lutas e tentativas de escapar da repressão da normalidade e do tormento às religiões por meio da imaginação; Time Bandits pelos olhos de uma criança, Brasil pelos olhos de um homem na casa dos trinta, e Munchausen, pelos olhos de um homem idoso. Em nenhuma dessas etapas da vida, evidentemente se encontrará o sentido da vida.

Existe a ideia de que o sentido carregue uma dita profundidade, essa profundidade tem sua explicação lógica na origem da representação em perspectiva; argumento que parece desconexo, mas não é. Numa profundidade disposta na superfície de representação da pintura, numa ilusão. A representação renascentista é totalmente oposta à representação medieval que abria portas e janelas, derrubava paredes para mostrar a profundidade dos corpos, misturava tempos distintos em sua narrativa evidenciando um sentido que se abrigava na profundidade dos corpos, no interior de suas casas. Gilliam vai perceber que essa questão é fundamental e se utiliza de câmeras de grande angular para capturar uma dimensão maior e mais extensa do quadro cinematográfico renascentista barroco, para colocar ali mais detalhes. Os filmes de Gilliam têm uma aparência distinta, não apenas na mise-en-scène, mas sobretudo para criar uma atmosfera surreal de inquietação psicológica e certo desequilíbrio para isso ele frequentemente usa ângulos de câmera incomuns, particularmente fotos de baixo ângulo, fotos de alto ângulo e ângulos holandeses, que nos ajudam a desorientar.


A palavra desorientação associa-se a uma indisposição espacial, uma desorganização. Isso porque acreditamos que orientar é organizar, normalizar/dar um sentido as coisas. Daí a importância da geometria ocidental, que sempre privilegiou a visão e a regularidade dos espaços, os alinhamentos da cidade reticulada na formação do sentido moderno. Quanto mais a sociedade do espetáculo avança em sua trajetória ao nada, mais rígida e especializada suas formas se tornam. Para a organização de nossa cultura foi necessária uma disciplina imposta às formas, ao longo de alguns séculos, através de estratégias estéticas compositivas baseadas em simetria, assimetria, ritmos, em uma disposição dos corpos no espaço organizados e disciplinados, sobretudo de uma acomodação da visão mediante as regras da perspectiva, do distanciamento entre os corpos, e do incremento de luz despejado sobre eles. Ou seja, a perspectiva não existe como coisa natural, sentido natural, foi preciso criar e construir essa realidade pintada.

 

100% = 0%

Gilliam, em Teorema Zero, vai nos propor outra forma mais cruel de organizar o mundo na modernidade. Para ele é o capital que organiza o mundo, o dinheiro – justo o não sentido do dinheiro –, exatamente por isso quanto mais sem sentido se parecer o mundo, mais o capitalismo encontrará formas de organizar a lógica e a orientação dos seres humanos. E, essa lógica comunga na consumação, consumir-se comprando. A alienação do consumo está presente em várias imagens nos filmes de Gilliam, ainda que por breves instantes, como a patética cena do casal vendo e consumindo TV e suas propagandas em Time Bandits, enquanto o menino brinca com um bonequinho de Agamenon, o herói persa; o massacre da propaganda nos painéis eletrônicos em Teorema Zero, à moda Blade Runner e Minority report. Ainda ou mesmo, ingressar nos templos religiosos comprando absolvição através de seus dízimos, e sendo dizimados por qualquer Deus.

O Teorema zero, uma ficção cientifica, é uma profunda crítica à religiosidade, às crenças e à situação atual dos seres humanos como ferramentas, expressa na emblemática imagem iconoclasta de uma câmera de segurança que é posicionada no lugar da cabeça de Jesus na cruz. Leth Qohen, o personagem central, vive numa antiga igreja incendiada atrolhada de máquinas, um gênio da informática obcecado pelo seu trabalho, está atormentado por uma crise existencial que o leva a refletir sobre aquilo que faz, e o funcionamento do sistema social e burocrático.

Enquanto isso, a rua está repleta de propagandas que deslizam horizontalmente pelas paredes: “Chateado com o Budismo? Não suporta filosofia religiosa? Então a Igreja do Batman pode ser a resposta”, diz um dos anúncios publicitários em Teorema Zero. Outro diz repetidamente: “Nós da financeira Euforia, queremos colocar vocês novamente na euforia. Sua qualidade de vida é nosso objeto. O excesso nunca é o bastante.”

“O futuro vem e vai até onde está você.”

A propaganda da Mancom, a empresa onde Leth trabalha repete: “interrompemos as más noticias”...”vivemos em um caótico e confuso mundo. Tantas opções. Tão pouco tempo. O que precisamos? A quem amamos? O que nos proporciona alegria? Mancom, dando sentido às coisas boas da vida”

Mancom, sigla que reúne a palavra man (homem) e com, abreviatura de comércio; ou seja pode-se ler como comércio humano. O programa da sociedade de Teorema Zero é produzir desgraças, guerras como no fascismo do livro de Orwell, 1984, mesmo que a guerra seja fake. É preciso criar o caos para manipular mais facilmente as pessoas, trabalhar para o coletivo do fascismo. É preciso cultuar o não sentido da existência, as complexidades, a entropia, para que o capital possa organizar o caos

O nome Mancom é muito curioso por sua aproximação com a palavra na língua portuguesa ‘semancol’, um termo que tem seus significados relacionados à capacidade de uma pessoa ter bom senso, ter sentido, de saber perceber quando está agindo de maneira inconveniente. Uma pessoa sem semancol é uma pessoa “sem noção”. Nada faz sentido nessa sociedade distópica de Gilliam organizada pela empresa Mancom. Ao contrário, tudo alimenta o caos, a insatisfação, a alienação para as corporações capitalistas e religiosas poderem lucrar.

O Teorema Zero é também uma reflexão sobre a presença do Big Brother, dispositivo orwelliano que tudo vigia a todo o momento, mas atribui-lhe outra faceta que não deixa de ser curiosa, é que com as novas tecnologias, esse “Grande Irmão” não é mais apenas da responsabilidade daquela entidade misteriosa do Grande Irmão, mas de nós nos tornamos ele, somos ferramentas que fazem a manutenção e as novas versões do programa. Por trás de toda aparência do filme vamos encontrar no personagem Leth uma certa semelhança existencial também com o protagonista de Memorias do subsolo de Dostoiesvski. Ambos são burocratas, alienados, atormentados por certo fantasma de crise existencial, Leth tudo o que deseja é só trabalhar na solidão de sua casa-templo, Gilliam antecipa anos antes o home-office. “Porque precisamos nos deslocar ao trabalho, e chegando lá nos colocarmos em cubículos e nem conversarmos com outras pessoas, então melhor ficar em casa que se produz bem mais”, afirma Leth.

Depois de muito pedir a junta médica da empresa para trabalhar em casa, ele é recompensado com seu desejo depois de uma conversa com o ‘Gerente’ da Mancom, porém a condição é que em seu novo lugar de trabalho deverá encontrar o Teorema Zero, uma equação que comprova que o universo é vazio e que todos nós rumamos inexoravelmente para o filosófico “nada”. É disso no fundo que trata o filme: a produção e comercialização dos homens para produções de homens-máquinas, homens sem sentido, numa existência que nunca teve sentido já desde seus primórdios; e tudo que se lhes oferece é trabalho e mais trabalho. E, quando há carência ou demissão de trabalho, como é o caso do colega de trabalho de Leth que é demitido por sua causa, torna-se o aniquilamento da existência. Ali todos humanos estão mediocrizados e sem noção da existência, percorrendo labirínticas estruturas de uma estrutura virtual plug in, onde encaixar peças para dar sentido à equação da criação.

Teorema Zero se apresenta um profundo questionamento à individualidade do enlouquecido, do desgarrado. Leth Qohen, sempre se refere a sua pessoa como nós. Um estranhamento de linguagem, uma desconvencionalização da linguagem que se explicita nos pronomes. O eu é também uma invenção gramatical tanto quanto o tu ou o nós. Esse nós no lugar do outro não significa só uma desconstrução da linguagem, mas incide num forte questionamento da relação do eu com o mundo, e com o criador, como propõe Gilliam.

Quando Leth diz estamos morrendo, e a junta médica pergunta o que ele tem, o que está sentindo, no fundo também está dizendo em profundidade que o infinito e Deus está também morrendo, ele não só está se referindo a todos nós enquanto existência como ao próprio Uno, o uni-verso. Ao espectador do filme só lhe resta rir da contradição, do estranhamento, mas no fundo ri de sua/nossa desgraça. É preciso rever sempre os filmes de Gilliam, uma vez não basta. Embora a primeira vez seja só para brotar o amargo sorriso de se ver projetado no filme. Teorema Zero, afora sua aparência, é uma profunda reflexão sobre Deus, ou deuses, o drama das identidades, eu, tu, nós, entrelaçados. A coerência do mundo que está por um tênue fio. “Nós estamos a morrer”, é uma das frases mais fortes que pronuncia, e não é o eu, mas somos nós mesmos. Embora deixe no ar essa dupla interpretação.

É preciso distinguir duas maneiras pelas quais a identidade pessoal é perdida, como explica mais uma vez Deleuze em A lógica do sentido. Duas maneiras pelas quais a contradição entre o eu e o nós aparece. Primeiro, em profundidade, é pela identidade infinita que os contrários comunicam e que a identidade de cada um se acha rompida, cindida, tanto que cada termo é ao mesmo tempo o momento e o todo, a parte, a relação e o todo, o eu, o mundo e Deus, o sujeito, a cópula e o predicado. Segundo, na superfície onde não se desdobram a não ser os acontecimentos infinitos, as coisas se passam diferentemente: cada um se comunica com o outro pelo caráter positivo de sua distância, pelo caráter afirmativo da disjunção que libera para fora dele, que põe para fora dele as séries divergentes como tantas singularidades impessoais e pré-individuais.

Em Teorema Zero essas duas dimensões se entrecruzam: profundidade na busca do criador, onde muitos pensam que o gerente da Mancom é o criador, e na superfície na necessidade de Leth no afastamento social, pois ele adora a solidão, odeia festas e reuniões. É o protótipo do homem do futuro que se avizinha.

A lógica do sentido apontada por Deleuze se constitui num jogo de repetição (loop) como em um anel de Moebius, onde a fita se dobra e não se consegue distinguir o que está de um lado ou de outro, o sentido e o não sentido; do qual sempre estaremos incapacitados de resolver. Mas essa fita de Moebius já não é tão larga para permitir que as formigas de Escher passem de um lado a outro. Em Teorema Zero o jogo entre o eu e o nós, nessa profundidade parece mais um fio que uma fita, um fio tensionado pronto a romper qualquer lógica estabelecida até então entre o sentido e o não sentido.

Leth está sempre à espera de um telefonema divino, um milagre, um acontecimento que venha lhe dizer ou sussurrar a razão de sua existência. A chamada, a ligação divina. Mas nunca chega. O acontecimento nem sempre acontece. O acontecimento emana do não senso e da instância paradoxal, o acontecimento está sempre deslocado, excêntrico, descentrado, fora de orbita. Por isso que o acontecimento é sempre inusitado, impensável, o não sentido, o incalculável.

Leth jamais pronuncia eu durante todo o filme e, em certo diálogo, quando se encontra com o gerente da Mancom, ele se refere, como sempre, ao falar de si como nós, o gerente estranhando o nós, contesta, “como assim nós”?

“Nós, nós mesmos”, responde Leth, com naturalidade como se o gerente não estivesse entendendo.

Curioso, porque essa condição também acontece na collage, o eu só existe enquanto outro, outros, outras alteridades. Nesse sentido, ela é reveladora da existência suprema das constelações, das cooperações, dos coletivos, pois aquele eu, também, já não existe mais. O problema que se coloca é que depois das várias mortes de Deus, a partir do século XVIII, e depois da morte e do fracasso do homem, na pós-modernidade, prenuncia-se a perda do próprio ‘eu’ que se precipita no abismo do sem-sentido; é o que acontece com Leth.

Outra frase emblemática do filme é dita pelo gerente da Mancom quase ao final do filme – que tanto pode ser o diretor da Mancom como também serviria para o próprio diretor do filme: Terry Gilliam, quando declara que cada ator, cada personagem não passa de uma ferramenta, sem muito saber o proposito final do filme, ou da existência muitas vezes. Leth ainda acredita que o sentido faz a vida do homem, mas as pessoas todas são tratadas como ferramentas, ferramentas sem sentido que dão sentido à existência sem sentido, produzindo sentido e não sentido ao mesmo tempo.

Gilliam parece revisitar todos os temas das produções anteriores: máquinas de vigilância, o homem contra o Estado, imaginação versus realidade, porém com uma abordagem mais intimista e filosófica. Um dos pontos que avança em sua crítica à sociedade de controle, e nesse sentido vai além de Deleuze, é que não há mais nenhuma estrutura de controle que controla a todos, ou mesmo onde todos controlam a todos, tipo o sinóptico de Baumann, mas sim agora cada um de nós é parte dessa estrutura de controle. O eu somos nós, mas é difícil aceitar porque nessa lógica do eu está também à lógica do nós.

Teorema Zero significa o teorema próximo ao Big Bang, o Universo ao se contrair se tornará um ponto, um zero, um nada. Zero tem que ser igual a 100%, e vice-versa. A questão é esse buraco que traga tudo para o nada. Gilliam ironiza até com o universo, mostrando que nem o Universo faz sentido, e que o fim dele é não ter sentido, como afirmou na referida entrevista. Gilliam parece ter encontrado desde cedo a resposta no surrealismo, no realismo fantástico e também na via negativa da filosofia, como ele próprio admitiu em entrevista: “Não há sentido para a vida: minhas células se dividem, as coisas estão acontecendo, as estruturas estão sendo formadas, outras coisas estão comendo outras coisas. É o maravilhoso caos organizado. Então o que significa que existe para a vida é o que você dá à sua vida. Você tem que fazer o trabalho, você não pode ficar esperando por um telefonema que vai dizer-lhe. O que eu sempre pensei que era engraçado em O Teorema Zero foi que o filme está tentando provar uma negatividade positiva. Essa é a coisa estranha quando você está tentando provar que 100% deve ser igual a zero, ou zero deve ser igual a 100%. Construímos essas estruturas que se mantêm caindo aos pedaços, que não conseguem produzir resultado”

Talvez o mundo não se explique pelo sentido e o não sentido; quiçá seja apenas mais uma sequela do mundo da linguagem, talvez os antigos percebessem isso, mas não dessem importância pois havia outras coisas que observa e que faziam muito sentido, ou vivessem um outro não sentido positivo. O tema é complexo e sem respostas. Na obra de Gilliam, tudo se passa na mesma lógica da collage, daquelas primeiras collages que fazia, ou seja, há leituras dentro de leituras em cada collage, múltiplos significados gerados pelo paradoxo das contradições. Tudo na collage inicialmente parece sem sentido, mas estão repletos de sentidos transmitido pelo não sentido. Mas esse sentido ao fim nunca deixará de ser sem sentido.

O Gerente da Mancom, parece ser um semideus muitos acreditam que seja; mas declara ao final ser simplesmente um homem. Declara quase ao final do filme:

 

“sempre quisemos sentir uma razão para existência”

“sou apenas um homem procurando a verdade”...

Caos encapsulado, o caos favorece o capitalismo

Tudo isso é para nada.

Nada é para nada.

“Dinheiro ordenando desordem”.

 


Nada importa

Gilliam sabe muito bem a importância das portas como fissuras de transporte para outros mundos, a porta e o portal tem uma importância em Time Bandits, e o incrível mundo do Dr. Parnassus, assim como em O Homem que matou Dom Quixote, no momento que entra no pequeno barraco, que diz ‘Quixote vive’, para ver o verdadeiro Don Quixote de la Mancha.

O sentido está diretamente associado com a orientação. Em Time bandits, a trupe dos anões saqueadores, piratas do tempo, está sempre aparentemente desorientada – o que a orienta para o saque é um mapa do tempo que indica os portais para passar de um tempo para outro para a pilhagem. Como se isso fosse possível, como se um mapa do espaço tivesse seu correspondente também num mapa do tempo.

Essa busca desesperada de sentido nos leva a bater na figura da porta. Talvez por isso que o tema da porta aparece com frequência nos filmes de Gilliam. A porta é o elemento que se abre, é a cisão, o corte que permite a passagem dos corpos, espacialmente estabelece um dentro e um fora, estabelece uma ligação. Porta em si a própria existência do espaço, o início da vida. Em Time bandits, Gilliam se utiliza fartamente de portais que se abrem em determinados lugares e em horários específicos permitindo transportar de um lugar a outro, de um tempo a outro. Em Time bandits, os saqueadores saem de dentro do armário; em Dr. Parnassus, o portal é constituído de duas cortininhas flexíveis espelhadas. Gilliam vai associar continuamente a figura da porta, como portal para outra dimensão ou tempo, para o mundo surreal e também do inconsciente. E mesmo onde parece não haver uma porta, só parede, em Time bandits por um passe de mágica os anões, para fugirem do Ser Supremo, que os persegue por terem lhe roubado o mapa que contém a localização exata dos furos no tecido do universo, começam a empurrar a parede e um pedaço dela se transfigura em um corredor, na medida em que vão empurrando ela se torna mais um portal.

A palavra “porta” porta muitos significados, desde seu substantivo até o verbo portar; entretanto, a porta em si serve como uma espécie de palavra que designa a questão do transporte e de seus correlatos, é uma espécie de veículo, tal qual a metáfora, um elemento de deslocamento, análoga a uma ponte que permite a passagem de um lado a outro. Portar, sair de um lugar ao outro, é transpor; portar é sempre uma transposição, um transporte, para além. A porta porta a porta.

Talvez o verbo “tragar” em português nos ajude a explicar outros sentidos não observáveis em outras línguas, se admitirmos uma certa radicalidade (raiz) imaginária formalmente entre essas duas palavras mesmo em línguas distintas, português e alemão: tragar e tragen. Tragar tem vários sentidos na língua portuguesa, entre eles: eu trago no sentido de “trazer”, ou “tomar um trago” (beber algo alcoólico) e também “tragar”, no sentido de tragar a fumaça, ou seja: colocar para dentro, engolir, ou ser engolido, tragado, absorver. “Ser” absorvido. Parece que todos esses sentidos “trazem”, “carregam” a ideia mesmo de uma incorporação, uma inoculação mais do que uma enxertia, de colocar dentro do corpo, de receber livremente ou forçosamente; um colocar dentro do corpo através de abertura. Todos esses sentidos de tragen devem ser pensados como também outros sentidos da porta, mas observando que todos esses sentidos do verbo portar, curiosamente, o portar, o tragar e ou tragen (carregar), não existem sem a abertura, sem a ranhura, a fresta, o buraco. Tragar e soprar. O tragar e o (ex)tragar. O intragável, o insuportável.

A porta, relaciona não só um dentro e um fora, um interior e um exterior, uma peça a outra, um quarto a outro, um distante e um próximo, um contido e não contido, um acima e abaixo, um lado a outro; tal como uma ponte, a porta relaciona e conecta, e também aparta, separa, divide o muro. Mas nos filmes de Gilliam ela conecta tempos e mundos diversos. Ela em si, como a ponte, é o símbolo da indefinição, nem dentro, nem fora, dentro e fora ao mesmo tempo. Nela esses binômios estão suspensos, desaparecem, ela não pertence a nenhum dos mundos que comunica, não é desse lado ou de outro, não é desse universo ou de outro, é de mundo nenhum. E essa separação para Derrida constitui-se numa diáfora, que significa diferença, dia-phero, eu separo, eu difiro, e eu porto ao fim descolando seu ser de coisa, elas gestam o mundo, portam no transcorrer de uma gestação, carregam dentro o outro, portam a término, dão um comportamento, uma compostura, uma figura, um gesto.

A desorientação é característica de um deslize do espaço-tempo. Talvez o mais difícil de entender e articular é que o sentido do espaço é também o sentido do tempo. Todo nosso sentido, nossa compreensão do mundo é fruto desse casamento contratual entre espaço-tempo. Mas com a desorientação do espaço vem junto o aniquilamento do tempo. O tempo zero.

O sentido de orientação e desorientação do espaço-tempo pode ser melhor compreendido com o auxílio dos conceitos de tempo cíclico e tempo linear. No tempo circular, característico dos povos primitivos, os espaços são quase imutáveis, a cultura de um modo geral permanece a mesma. O que aconteceu com meus avós está acontecendo comigo agora, e o que aconteceu comigo agora, acontecerá com meus sucessores. Na cultura ocidental, linear e acumulativa, os espaços mudam frequentemente, e a arquitetura se reserva o papel de monumento, de reservatório da história. O elemento que resiste à passagem do tempo.

No tempo cíclico as orientações espaciais arquitetônicas permanecem as mesmas devido à permanência das formas; já no tempo linear elas estão constantemente mudando, provocando não só um estado de constante desorientação, conforme a sociedade vai mudando, mas essas desorientações são graduais, e na maioria das vezes permitem que só possamos compreendê-las através das gerações. Por isso utilizamos flechas, placas, sinalizações para nos orientarmos no tempo e no espaço.

A nadificação do tempo é esse período nem sempre agradável que experimentamos quando estamos desorientados e sentimos um forte impulso para retornar à casa, ao lar, como indicava Freud e que não tem correspondente nem no tempo cíclico, nem no linear ou tampouco no espetacular, constituindo uma outra categoria de tempo, muito próxima ao que poderíamos designar como tempo zero, onde tudo se move mas o tempo não passa. Onde o próprio tempo se contradiz. Uma experimentação íntima, real, pessoal em todos os sentidos, mas na qual não existe para os outros.

“Geleia ontem ou geleia amanhã, mas jamais geleia hoje”, dizia Alice.

A desorientação também pode ser interpretada circunstancialmente como estar perdido. Significa andar, andar e não encontrar nenhum ponto de referência ou chegada. Uma situação onde andamos em círculo como os ponteiros do relógio, o tempo passa, mas temos a nítida sensação que permanecemos no mesmo lugar, no mesmo espaço delimitado. Tudo é também igual nessa situação, todas as coisas se veem envoltas no velo do igual, e não conseguimos encontrar uma saída.

Na desorientação podemos experimentar, entre outras, dois tipos de sensações: uma, onde o tempo não passa, mas o espaço permanece em sua extensão, e outra, onde o tempo passa, mas o espaço parece condenado a um encarceramento definitivo. Tudo sugere que no estado da desorientação existe uma ruptura da sincronia do enlace tempo-espaço, uma outra compreensão do mundo, uma outra visão.

O tempo da desorientação é o período no qual nos vemos enquanto representação, várias cenas em O homem que matou Dom Quixote, onde o personagem Toby (Adam Driver), se vê filmando uma versão antiga e barata de Dom Quixote. Toby redescobre essa fita da época da faculdade, quando juntou alguns atores amadores, fica obcecado em encontrar o elenco novamente e percebe que sua obsessão também tomou conta deles. [2] Esse se ver se vendo deslocado de tudo, de todos, inclusive de nós mesmos, deixando-nos ocos.

Quando passamos para o outro lado espelho é como se fôssemos jogados ali sem saber por que e nem quando. O ver se vendo, um dentro do outro, também carrega o terrível paradoxo do tempo, o tempo dentro do tempo. Em Brazil, Gilliam coloca muito bem essa questão, le mise em abyme, Terry explora constantemente esse recurso do tempo, o tempo dentro do tempo, o filme dentro do filme assim também como em O homem que matou Don Quixote.

Time bandits é uma espécie do Túnel do Tempo, certamente alguma relação Gilliam deve ter com o seriado homônimo de Irwin Allen, onde os personagens eram bonzinhos e honestos. Em Time bandits os protagonistas não são nada bonzinhos, são sete anões malvados, de certa forma também, podemos evocar também outra série para TV de Irwin Allen, Terra de gigantes (Land of the Giants).

A série O Túnel do Tempo ilustra essa sensação de desorientação espacial temporal, onde os personagens são dois cientistas que viajam pelo tempo através de uma curiosa máquina em forma de túnel, onde eram literalmente jogados em diversos momentos e situações da história por essa máquina que havia fugido ao controle. Funcionava aleatoriamente andando à deriva ao longo da história. Esses personagens, cada vez que eram jogados nesses momentos da história experimentavam rapidamente uma forte sensação de desorientação, sem saber o que estava acontecendo; para orientá-los, um ou outro sempre procuravam identificar lugar e época pelo vestuário. Na verdade, quem acabava orientando-os era o conhecimento da história, a própria história universal, essa pseudociência que não tem outra função do que a pretensa orientação temporal do homem, que preferiu o tempo linear ao cíclico. O grande indutor da orientação e desorientação é o conhecimento, reconhecimento e desconhecimento. Reconhecer um determinado lugar, uma determinada situação é orientar-se, dar um sentido. O conhecimento é aquilo que explica, agora faz sentido. Mas, em uma época cada vez mais plena de mudanças e desorientações, cada vez mais se torna imperativo uma contrapartida: a aquisição de memória a granel para guardar nosso conhecimento, para que não se perca nosso sentido, nossa história.

Fica a questão, se a desorientação é condição para questionar a ordem e a organização, ou se ela em si já é uma linha de fuga, a única saída possível para a ordem do tempo. O perder-se era sempre o objetivo perseguido pelos Phyton e para isso não mediram estratégias físicas e espaciais para a desorientação. Tal qual os integrantes da Internacional Situacionista eles se esforçam por perder-se, preferem perder-se a se encontrar, só se encontram perdidamente.

A sociedade consumista, capitalista continuará sempre com a crença de que existe um sentido em tudo, pois essa busca transcendental, metafísica, é vital para sua existência, uma essência no mundo, e isso persiste em suas roupagens camufladas e emboloradas.

O sentido despeja-se na superfície. Na superfície que se dobra sobre si mesma. Na continuidade entre direito e avesso que se confundem na sequência das dobras, como na folha de uma revista com seu verso e seu reverso, e com toda sua perversão da arte das superfícies que a collage explora muito bem.

Devemos entender que o sentido incorpora o outro lado da versão e que a pseudoneutralidade do sentido e da superfície é inseparável de seu estatuto de duplo e paradoxo. A dobra é a continuidade do avesso e do direito, do verso e reverso da folha, a arte de instaurar esta continuidade entre as superfícies. Foi mais ou menos assim que compreendeu Deleuze A Lógica do sentido. O que está dentro está fora, e o que está fora, logo pode estar dentro. Mas, e como fica a questão do tempo? Já não é uma questão de passar de dentro para fora ou de fora para dentro da lógica sem perceber. A dobra quando se relaciona ao tempo requer mais atenção.

O que Gilliam nos conta de um modo irreverente em outras palavras é que toda lógica do sentido se assenta sobre uma lógica do não sentido, com toda a carga de seus paradoxos e que a superfície onde se funda o sentido se desdobra constantemente transformando-se em non-sense, e vice-versa como no anel de Moebius. E que, para passar de um tempo a outro é preciso de um portal, uma porta. A dobra em si já é o paradoxo, o ponto exato de inflexão.

Mas o anel de Moebius também é um terrível labirinto, ele é uma armadilha simples e perfeita para o mito do eterno retorno. A metáfora do anel de Moebius ou da cortina com seu forro e opacidade é o que realmente nos impede de ver um outro tipo de espaço que não seja esse que se dobra e desdobra em um contínuo infinito de repetições. A perspectiva de quem vaga como uma formiga ainda sobre o anel ou a cortina é de um olhar voltada para sua superfície de base, para seu horizonte infinito, a isso continuamos chamando tridimensionalidade ou profundidade redobrada pela superfície. É exatamente a opacidade dessa superfície, desse horizonte incerto que a física nos faz duvidar a cada amanhecer, e que não nos permite visualizar as duas faces de sua superfície em simultaneidade, criando a falsa ilusão de que hora estamos dentro, hora estamos fora.

Mas existe um fora do anel, e esse fora que a lógica perversa do labirinto do anel com suas oposições não nos permite ver. E quando percebemos as repetições a que somos submetidos pela lógica do espaço, quando nos vemos nos vendo, somos acometidos pela Inquietante estranheza, pela sensação de ficarmos como condenados a vagar pelo labirinto, ou de nos transformarmos nas formigas que andam em um único sentido no anel desenhado por Escher. Sempre poderemos ver o outro lado da superfície do anel, da cortina, do espelho, mas nunca o que está fora da superfície, ou mesmo dentro da espessura inconcebível dela.

O que nos revela essa lógica de oposição, desses paradoxos e fissuras é que não podemos acreditar que existe um jogo do dentro e do fora, realidade e fantasia, sentido e não sentido, o jogo do labirinto, pois nessa geometria estamos sempre dentro, e o que pensamos ser o fora sempre será um dentro. Está tudo misturado. Pelo efeito da dobra tudo se apresenta ora como uma produção ordenável lógica, ora como um labirinto ilógico, carente de qualquer sentido, dependendo do lado da superfície em que estamos. O sentido é muito frágil, se rompe fácil, quando sua superfície é cortada ele cai na profundidade do abismo, dos significados.

Encontramos falta de sentido em muitas coisas e em muitos sentidos, como as já apresentadas anteriormente: a orientação, a existência, memória, a porta, o espaço do labirinto etc. Mas existe ainda um outro sentido não diretamente vinculado ao espaço, mas que poderíamos associar à proliferação repetitiva das coisas, à produção excessiva de objetos, às grandes megalópoles, a todas essas infinidades de coisas que Gilliam vai explorar em seus filmes, mostrando que a repetição acaba tornando tudo igual, despertando-nos a baunasia, a falta do sentido do espaço, das cidades e da própria existência. A crítica à sociedade de consumo e as propagandas são praticamente uma constante em seus filmes, até mesmo em A vida de Brian.

Com a separação gradual da trupe de Python entre A vida de Brian em 1979 e O sentido da vida em 1983, Gilliam tornou-se roteirista e diretor, aproveitando a experiência que adquiriu durante a produção de Monty Python e o Santo Graal. Ele diz que pensava em seus filmes em termos de trilogias, começando com Time Bandits: a Trilogia da Imaginação sobre as idades do homem em Time Bandits (1981), Brasil (1985) e The Adventures of Baron Munchausen (1988). Todos são sobre a “loucura de nossa sociedade desajeitadamente organizada e o desejo de escapar dela por todos os meios possíveis”.

Mas, por outro lado a repetição, a falta de identidade, a perda da aura, surgiram como reação ao gosto exagerado pelo original e pelo exclusivo, típico do século XIX. A repetição destitui as coisas de seus significados, e devolve-as vazias ao circuito semântico. Do mesmo modo que esvazia os corpos de sentido, a repetição subordina-os a uma ordem majoritária, na qual o todo se pensa pelo próprio todo e as partes são impensadas e impensáveis por si sós. O mundo parece sem sentido pela repetição, mas é a repetição que dá sentido, orienta. O que se opõe à eternidade não é a morte, mas a vida. Eis o paradoxo da vida, ou da eternidade. Não é a vida que faz a eternidade como força concorrente, mas sim como força contrária, oposta. Não é a sucessão de vidas que concorre para a perpetuação da eternidade, mas a morte.

 

A Seguradora Permanente Crimson

The Crimson Permanent Assurance (1983), curta de introdução do longa-metragem do Monty Python, O Sentido da Vida, foi originalmente idealizado como uma animação para o fim da Parte V, mas Gilliam convenceu os companheiros a realizar a sequência em película e inseri-la como prólogo do filme. Sátira violenta ao capitalismo, onde coloca questões como o antigo e o novo, os idosos e a juventude, arquitetura moderna x arquitetura antiga, o capitalismo selvagem.

É um dos melhores exemplos de transfiguração dos objetos, da arquitetura e também dos seres humanos. No caso da arquitetura, um prédio antigo é transfigurado numa caravela, num navio de piratas velhinhos. Ou seja, retornamos aqui novamente ao início, a influência da collage no pensamento de Gilliam, de como modificar o sentido das coisas sem muito alterar suas formas. Nesse caso do curta, quase nada, há apenas desvio de funções originais. Os trabalhadores idosos da Seguradora Permanente Crimson, uma empresa de Londres que foi assumida recentemente por uma corporação americana muito grande, se rebelam contra seus chefes corporativos quando um deles é demitido. O título é uma referência ao filme The Crimson Pirate (no Brasil “O Pirata Sangrento”), com Burt Lancaster.

O antigo edifício é transfigurado num navio pirata. Os andaimes e lonas da seguradora cuja fachada estava sendo restaurada se transfiguram em velas, assim quando o vento sopra o edifício então, começa a se mover como se se tratasse realmente de um navio; e vão abordar o edifício acristalado moderno símbolo do novo capitalismo selvagem que não se importa nem com os idosos.

Os antigos arquivadores de madeira se transformam em canhões, que disparam gavetas contra as janelas envidraçadas que cobrem todo o edifício moderno. As lâminas de um ventilador de teto se transformam em espadas. As janelas são estilhaçadas e velhinhos conseguem abordar o prédio, usando cordas, eles passam para a sala da diretoria e atacam os executivos da corporação inimiga. Depois de trancar os supervisores no cofre e forçar o seu chefe a andar numa prancha improvisada em uma janela, depois da vitória, os funcionários continuam “navegando pelo amplo mar da contabilidade mundial” sem a menor cerimônia, até cair para fora da borda do mundo.

 

NOTA

1. “O sentido da vida em Fernando Freitas Fuão”, entrevista concedida a Terry Gilliam: https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/terry-gilliam-entrevista-fernando.html.

2. Tal como em Teorema Zero, o paralelo entre Gilliam e Toby já se constitui uma metalinguagem, o que alcança outro nível quando Gilliam mostra um terceiro paralelo: a história do próprio Dom Quixote. Jonathan Pryce, que atuou no filme amador de Toby e acredita ser de fato o personagem de Miguel de Cervantes.

 


FERNANDO FREITAS FUÃO
| Arquiteto, artista e ensaísta brasileiro, nascido em 1956. Começou a fazer colagens em 1975, no mesmo ano em que ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas (1975-81). Em 1987 vai a Barcelona cursar o doutorado na Escuela Técnica Superior de Arquitetura, desenvolve a tese Arquitetura como collage. Em 2011, publica o livro A collage como trajetória amorosa (Editora UFRGS). Possui uma série de artigos e ensaios que giram em torno a Collage, assim como textos publicados sobre alguns collagistas. Articula interlocuções da collage com a filosofia, a arquitetura, a psicologia e a educação. Desenvolveu a pesquisa A collage no Brasil, arquitetura e artes plásticas, sob o viés do surrealismo (1992-1995. CNPq). Pertenceu ao Grupo Surrealista de São Paulo, liderado por Sergio Lima e Floriano Martins durante os anos 1990. Ministrou desde então uma série de cursos e oficinas sobre collage. Mantém o blog http://mundocollage.blogspot.com/ e https://fernandofuao.blogspot.com/

 


JAN DO
ČEKAL | Historiador de arte e artista, nascido em Třebíč, República Tcheca, em 1943. Formado como metalúrgico, estudou história da arte e estética, foi operário, tecnólogo, publicitário, diretor de vendas em uma gráfica e professor de educação artística. Preparou mais de cem exposições de arte e foi comissário do Simpósio de Esculturas Mladá tvorba Žďár nad Sázavou (2000). Colaborou com a Galeria Moravian de Stanislava Macháčková por 25 anos. É membro do grupo surrealista Stir up e já realizou trinta exposições originais. Livros e catálogos publicados: Jaroslav Vyskočil (1996), Horácka Fine Arts Club (1999), Horácka Fine Arts Club (2000), About Graphics (2001), Max Švabinský Graphics (2001), Everyday Things / Beyond the Art of Arts (2004), Reviews Texts Interviews (2005), Interviews 2005-2013 (2014), Josef Kremláček (monografia, 2020). É coautor do Dicionário de Belas Artistas Tchecas e Eslovacas (1998) e editor do livro Vlastimil Toman, Life Journey (2015).
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 02

Número 201 | janeiro de 2022

Artista convidado: Jan Dočekal (República Tcheca, 1943)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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