Collage, cut out, stop motion
Terry Gilliam para a maioria dos jovens
é o grande criador do Stop Motion, rótulo
que nos anos 1970 e até poucos anos atrás não existia como expressão para designar
collages em movimento. Era apenas mais uma modalidade de animação. Mas, Gilliam
se referia e se refere até hoje às suas collages animadas como Cut-out. Termo que lembra a expressão utilizada
por W. Burroughs para designar suas collages literárias: Cut up.
Tanto o Cut out como Stop-motion podem
ser considerados collages animadas construídas a partir de recortes de revistas,
fragmentos fotografados quadro a quadro, um trabalho lento e exaustivo, principalmente
quando feito manualmente antes do advento do computador. As collages animadas de Gilliam como prefiro
aqui chamar partem de um repertório variado de ilustrações: recortes de enciclopédias
do século XIX bem ao gosto das collages de Max Ernst, imagens e revistas dos anos
1950 a 1970 transferidas para um universo da arte POP inglesa. Suas características
são irreverência e ironia, usada tanto em seus cuts up quanto em seus filmes. Cientificamente falando, o Stop Motion só é compreendido como movimentação
graças à persistência retiniana que provoca a ilusão no cérebro humano de que algo
se move continuamente quando constituído com mais de 12 quadros por segundo. A história
do Stop Motion remonta aos primórdios
do cinema com o mágico e ilusionista francês George Mélies, que viu nesse procedimento
uma possibilidade para dar sequência aos seus truques misteriosos que encantavam
a todos, alcançando o sucesso com o filme Viagem
à Lua, de 1902. Nesse curta, a chegada à lua de um foguete com tripulação humana
é criada a partir desta técnica.
As primeiras collages conhecidas de Gilliam
pelo mundo apareceram no programa humorístico inglês Flying Circus
do Grupo Monthy Phyton, ao qual pertencia.
Flying Circus
(Circo Voador), esse programa foi exibido entre os anos 1969 e 1974 pela TV britânica;
e era constituído de pequenos sketches
cômicos. Entre esses sketches, Gilliam
aproveitava e introduzia suas collages animadas, surreais e divertidas. Flying Circus era uma crítica violenta e
hilária às idiossincrasias
da vida
britânica, em particular aos políticos. Uma comédia bastante intelectual
com inúmeras referências a filósofos e figuras literárias, que compareciam também
em suas animações.
Gilliam comentava que o objetivo dessas
animações era contar uma história, fazer uma piada, expressar uma ideia, a técnica
em si realmente não importava. “É por isso que uso cut out. É a forma mais fácil de animação que conheço”. Gilliam conhecia
a dificuldade de se produzir uma animação a partir de desenhos. Os movimentos sofisticados
e elegantes à la Walt Disney para ele
eram quase impossível. Movimentos rápidos e repentinos, por outro lado, eram muito
mais simples e economizavam tempo.
Gilliam adorava recortar pessoas, dar movimento
a seus braços e pernas, assim como decapitar cabeças em suas collages. Tema e estratégia
recorrente desde os surrealistas com Max Ernst e o brasileiro Jorge de lima. Outra
estratégia era recortar o queixo tal como um ventríloquo e parecer que a figura
falava, baixando e levantando o queixo; barcos e balões flutuavam por tudo, e com
frequência em suas animações. Em suas collages tudo se transfigurava até braços
e mãos viravam árvores. Há um pequeno vídeo Terry
Gilliam Cut paper animation, no you tube,
onde ele explica como fazia suas collages animadas, uma referência clássica para
os amantes da collage.
O processo cut out permitia que quem não soubesse desenhar pudesse fazer seus desenhos animados. Da mesma forma que a collage
quando surgiu permitiu desenhar sem saber desenhar, ou seja: desenhar com imagens
prontas. Para Gilliam interessava mais a espontaneidade do que a animação tradicional,
além de ser comparativamente mais barato e fácil de fazer, e mais rápida.
Existe uma nítida relação entre collage
e o ‘não sentido’, o ilógico e o surreal. Gilliam mediante suas collages já sabia
que nada tem um sentido a priori, tudo
é uma construção, basta um desvio, um deslocamento, um encontro para que qualquer
objeto e sujeito sejam submetidos a um novo sentido. E como dizia Deleuze, não existe
sentido que não se apoie em um não sentido, essa é a lógica do sentido.
Quando coloco em uma entrevista-collage
que dei a Gilliam, [1] ali situando o
meu pensamento como se fossem dele, a título mesmo de ironia na entrevista, mais
precisamente na indagação que: “eu não sei se minhas inquietações existenciais começaram
antes da collage ou surgiram depois, como consequência do fazer collage, de ficar
brincando de Deus dando a vida aqueles pequenos recortes de papel, animando-os com
o movimento num demorado trabalho, ou se essa angústia existencial já latejava em
mim”. Estou trazendo à tona uma questão entranhada em Gilliam. Estou pensando justamente
nisso, a influência da collage no despertar do pensamento ilógico, non sense, ou, se quem já tem esse pensamento
ilógico constituído é que faz se aproximar da collage por amorosamento e afinidade.
Creio que cada collagista terá que responder per si, sem nunca chegarmos a uma conclusão do papel da collage no questionamento
da existência, de uma vida sem sentido. Ainda mais se cada um que se aproxima da
collage já carrega essa angustia existencial. Ou, se nada disso tem correlação.
Na collage não existe somente esse questionamento do sentido e não sentido de uma
figura, mas também todo um pensamento reflexivo-crítico sobre o espaço e o tempo
e a linguagem. Isso enfim, é o que tentaremos paulatinamente perceber e analisar
nesse ensaio, as relações entre as collages e os filmes de Gilliam, e a relação
simultânea com o questionamento do espaço e do tempo.
Na collage, a compreensão do tempo se dá
a partir das próprias figuras, da existência de cada figura, de cada imagem, de
cada representação, do tempo de cada imagem fotográfica. Não há um único tempo.
Cada figura arrasta seu próprio tempo, formando um caleidoscópio de tempos. Na collage,
não há mais um fluxo do tempo como na pintura ou no desenho. Nem precisa. O tempo
e o espaço na collage e o próprio paradoxo da simultaneidade da coexistência dos
diversos tempos e espaços próprios a cada figura e de seus corpos. Nela reina o
império do sem sentido, tudo é transfigurações e segredos a serem revelados.
Todo trabalho fílmico de Gilliam persegue
exatamente compreender a criação do não sentido que a collage proporciona, como
expressão do não sentido da vida, numa busca desenfreada pelo sentido da vida. Em
O sentido da vida, o grupo Monthy Phyton passa o filme todo procurando
o sentido ou significado da vida como se fosse um objeto, sem nunca o encontrar;
assim como em Monthy Phyton em busca do cálice
sagrado. Creio que Gilliam não se cansará de procurar esse sentido até o final
de sua vida. É difícil responder àqueles que julgam suficiente haver palavras, coisas,
imagens e ideia para explicar o sentido. Pois, não podemos nem sequer dizer, que
o sentido exista. Ele é antes de nada uma coisa inventada,
que se perde no tempo, provável ter nascido junto com a linguagem simbólica.
Terry Gilliam é um dos integrantes mais
densos e intelectuais do grupo, roteirista, está sempre em busca de um sentido das
coisas em seus filmes, já desde o hilário Monthy
Python em busca do cálice sagrado (1975). Seu trabalho perpassa as questões
do tempo, do espaço, e de nossa cultura, assim também as religiões, os sistemas
de crenças e até a ciência que vão ser alvo constante em muitos de seus filmes.
O sentido da vida é também o sentido do
espaço em termos heiddegerianos; e esse sentido do espaço é todo um sem-sentido,
qualquer tentativa em compreender deve passar pela lógica do non-sense, e todas
as contradições da vida. Só assim é possível expor o oco das coisas, o esvaziado
do mundo e sua falta de sentido. Ele não está na profundidade do ser e tampouco
na superfície, muito embora quem trabalhe com collage viva da superficialidade das
peles coloridas ou em preto e branco. O sentido não está dentro nem fora, não está
em tempo nenhum, nem na origem nem no fim.
Deparar-se com o não sentido é natural e
frequente mas escamoteamos sua presença; e esse paradoxo parece permear toda a história
da civilização ocidental, principalmente da filosofia. O sentido e o não sentido
não se tratam de um par de oposições, um binômio, como quente-frio, mas de uma coisa
dentro da outra com equivalência, um não vive sem o outro. Assim fantasia e irrealidade
se mesclam de tal forma com a realidade que fica difícil discernir muitas vezes
onde começa um e termina outro. Tal como ontem, acreditávamos nos dragões e jurávamos
que víamos e lutávamos contra eles, ao ponto de Cervantes criar Don Quixote; hoje
alucinamos com uma infinidade de ovnis e
ets, bonzinhos e predadores, alguns humanos
juram até que foram abduzidos por eles, tal qual alguns medievais juravam terem
sidos levados para a caverna do dragão.
É exatamente isso que Gilliam na maioria
de seus filmes nos propõe pensar, o mundo mágico e a realidade em que vivemos, a
loucura e a dita sanidade, a crença e a descrença, mas nunca como oposições, mas
sim como partes entranháveis dentro da vida em convivência. Sobretudo, a fantasia,
a loucura como escapatória da terrível prisão que se constitui a vida domesticada.
Esses temas percorrerão quase todos seus filmes principalmente Fischer King, como veremos adiante.
O difícil para o espectador acostumado a
ver tudo de maneira lógica nos filmes convencionais, para compreender o sentido
do que Gilliam quer dizer. Muitas vezes infelizmente acaba tendo uma visão distorcida,
vê o filme como uma simples comédia absurda e fantasiosa, sem lógica, onde o espectador
reluta, resiste mergulhar seu pensar no sentido tanto do tempo e do espaço. Mas,
parece que Gilliam não se importa com isso.
Isso ocorre em muito de seus filmes desde
a busca do Santo Graal, O sentido do da vida
ou em Time bandits, Brasil, e ou O homem que matou Dom quixote, onde o espectador
observa o filme como uma comédia, uma aventura, ou uma simples fantasia, não querendo
ver o que há por trás da tela, do velo. O sentido não vive sem o sem-sentido, justamente
é ele que alimenta o sentido da existência para que possamos seguir existindo. Cada
um desrealiza a realidade a seu modo, a maioria das pessoas se precipita na loucura
da ganância do bezerro de ouro e na gargalhada frouxa das salas escuras dos cinemas,
e agora na palma da mão dos celulares. Talvez, Gilliam assim como os Phyton saibam
que não há uma resposta para isso, e só nos resta mesmo rir do absurdo da própria
existência. Nada faz sentido nessa aterrisagem chamada vida.
Deleuze em A Lógica do sentido mostrou que “o não senso e o sentido acabam com
sua relação de oposição dinâmica, para entrar na co-presença de uma gênese estática,
como não-senso da superfície e sentido que desliza sobre ela”… “O bom senso se diz
de uma direção: ele é senso único. Sentido único, correnteza, aquela existência
da qual chamamos ‘vida de gado onde as massas se dirigem para a consumação. O bom
senso exprime a existência de uma ordem de acordo com a qual é preciso escolher
uma direção e se fixar a ela, uma orientação”. O non-sense: é o que destrói esse
bom senso, o sentido único, o senso. O boi desgarrado e louco que se recusa a ser
consumido e a consumir.
O filme O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus é um claro exemplo disso, onde
a realidade e a fantasia são filtradas por uma pequena cortina prateada dividida
em duas partes, como um espelho, ou como um hímen, por onde se atravessa da realidade
para a fantasia; no mundo do Dr. Parnassus
os que atravessam essa cortina às vezes podem não voltar dessa fantasia. A cortina
prateada é uma alusão a Alice através do espelho.
Se pensarmos no sentido como orientação,
temos seu oposto à desorientação. Gilliam também encontrou esse universo desorientador
em Lewis Carrol, “Em que sentido, em que sentido?” – perguntava Alice. Essa pergunta
não tem resposta nem sentido porque é próprio do sentido não ter mesmo direção,
orientação, não ter bom sentido, mas sempre as duas ao mesmo tempo. A desorientação
é a perda do sentido, do significado, a porção esquecida e pouco estudada principalmente
na arquitetura, mas que fazem parte do processo de consciência da existência, e
que Gilliam explora isso magnificamente em seus cenários. Ele foi um ilustrador
em seus primeiros anos profissionais, apesar de sua formação em ciências políticas.
A desorientação é a experiência na qual
não sabemos mais exatamente o que está diante de nós, e o que não está, desta forma
o trabalho de Gilliam vive de uma aproximação entre o realismo fantástico e o surrealismo,
e obviamente ao incrível mundo non-sense da collage. Exemplo disso é a pequena carroça
cigana do Dr. Parnassus, onde fisicamente
não cabem muitas coisas ainda que apertadamente, mas no filme sugere que cabem mais
coisas por dentro do que vista por fora, e ainda a dimensão oculta infinita dentro
dela quando se ultrapassa o portal do espelho.
A desorientação devolve o indivíduo ao espaço
existencial, bruto, indiferenciado. É o estado no ser que desconjuga a relação espaço-tempo,
jogando-o no abismo dos sentidos. Um lapso da razão que transporta para a infinitude
do espaço e da insignificância de todas as coisas contidas nele. Tudo é igual na
desorientação e nada nos causa estranhamento neste estado porque nada é reconhecível
ou identificável num primeiro momento. Freud foi um dos primeiros a nos mostrar
que os mecanismos do sentido passam pelo não sentido, pelo inconsciente, e foi em
seu ensaio Das Unheimlich (A Inquietante
Estranheza), onde procurou demonstrar a existência de um domínio todo peculiar da
estética que escapava às formulações clássicas da teoria do belo. A unheimlich freudiana, no fundo pode ser vista
também como um estudo sobre a orientação. Na desorientação estamos simultaneamente
dentro e fora, ou simplesmente nem dentro nem fora. É essa desconfortável sensação
fora da lógica que define a sensação expressa por Heidegger, do eu se ver desagregar e se tornar um objeto
de representação para o outro. De se abrir em nós o que nos olha no que vemos.
É importante observar que no mundo e Gilliam
que esse dentro e fora não tem equivalência dimensional espacial e muito menos temporal.
O dentro pode ser infinitamente maior, um mundo maior que o de fora, é justo nesse
ponto em que temos que entender Gilliam como um aprofundador e pesquisador da lógica
do non-sense do espaço, e de todas as situações onde ele se manifesta. Ou, em outras
palavras, Gilliam é um profundo estudioso da lógica antidomesticadora contemporânea.
Se para o sentido existe milhares de bibliotecas, para o não sentido só existe soterramento
e encarceramento espacial.
Em outros filmes ele nos mostra que esse
dentro ou fora da realidade muitas vezes não passam de estados psíquicos que a civilização
ocidental resolveu considerar como enfermidades
O filme The Fisher King, uma das mais belas e dramáticas atuações de Robin Williams,
Gilliam nos mostra a loucura como ‘non-sense’, o triste lado da loucura como processo
de fuga. Não há nada irônico no filme, mas sim a dura dor e o sofrimento psíquico
que essas pessoas enfrentam. Jack Lucas é um ex-astro da rádio de Manhattan
que vive bêbado, deprimido e com um forte sentimento de culpa depois que um ouvinte,
seguindo literalmente os seus conselhos, matou várias pessoas em um bar. Após uma
noite na rua ele acaba fazendo amizade com Parry (Robin Williams),
um ex-professor de história medieval
que se transformou num mendigo num mundo imaginário de cavaleiros medievais. A fuga
para a loucura ou para a fantasia, para Giliam parece ser a única saída frente aos
modelos totalitários fascistas, como bem mostra também no filme Brasil, uma releitura de 1984 de George Orwell. Em The Fischer King ele aproveita ideias já
expressas e aproveita para reforçar o que tem a dizer no novo filme, nesse caso
introduz a busca do Santo Graal como se fosse um fragmento, uma ideia collage no
enredo do filme, agora de uma forma trágica, uma viagem ao inconsciente do personagem
como se o cálice pudesse restituir sua normalidade, e assim felizmente acontece
ao final do filme. O Graal significaria o próprio sentido de sua volta ao dito estado
normal. Era mais ou menos assim que os medievalistas encontravam sentido na vida,
buscando coisas que não existiam, ao ponto de ter que fabricá-las.
A maioria de seus filmes enfoca essas lutas
e tentativas de escapar da repressão da normalidade e do tormento às religiões por
meio da imaginação; Time Bandits pelos
olhos de uma criança, Brasil pelos olhos
de um homem na casa dos trinta, e Munchausen,
pelos olhos de um homem idoso. Em nenhuma dessas etapas da vida, evidentemente se
encontrará o sentido da vida.
Existe a ideia de que o sentido carregue
uma dita profundidade, essa profundidade tem sua explicação lógica na origem da
representação em perspectiva; argumento que parece desconexo, mas não é. Numa profundidade
disposta na superfície de representação da pintura, numa ilusão. A representação
renascentista é totalmente oposta à representação medieval que abria portas e janelas,
derrubava paredes para mostrar a profundidade dos corpos, misturava tempos distintos
em sua narrativa evidenciando um sentido que se abrigava na profundidade dos corpos,
no interior de suas casas. Gilliam vai perceber que essa questão é fundamental e
se utiliza de câmeras de grande angular para capturar uma dimensão maior e mais
extensa do quadro cinematográfico renascentista barroco, para colocar ali mais detalhes.
Os filmes de Gilliam têm uma aparência distinta, não apenas na mise-en-scène, mas sobretudo para
criar uma atmosfera surreal de inquietação psicológica e certo desequilíbrio para
isso ele frequentemente usa ângulos de câmera incomuns, particularmente fotos de baixo ângulo,
fotos
de alto
ângulo e ângulos
holandeses, que nos ajudam a desorientar.
100% = 0%
Gilliam, em Teorema Zero, vai nos propor outra forma mais cruel de organizar o mundo
na modernidade. Para ele é o capital que organiza o mundo, o dinheiro – justo o
não sentido do dinheiro –, exatamente por isso quanto mais sem sentido se parecer
o mundo, mais o capitalismo encontrará formas de organizar a lógica e a orientação
dos seres humanos. E, essa lógica comunga na consumação, consumir-se comprando.
A alienação do consumo está presente em várias imagens nos filmes de Gilliam, ainda
que por breves instantes, como a patética cena do casal vendo e consumindo TV e
suas propagandas em Time Bandits, enquanto
o menino brinca com um bonequinho de Agamenon, o herói persa; o massacre da propaganda
nos painéis eletrônicos em Teorema Zero, à
moda Blade Runner e Minority report. Ainda ou mesmo, ingressar
nos templos religiosos comprando absolvição através de seus dízimos, e sendo dizimados
por qualquer Deus.
O Teorema
zero, uma ficção cientifica, é uma profunda crítica à religiosidade, às crenças
e à situação atual dos seres humanos como ferramentas, expressa na emblemática imagem
iconoclasta de uma câmera de segurança que é posicionada no lugar da cabeça de Jesus
na cruz. Leth Qohen, o personagem central, vive numa antiga igreja incendiada atrolhada
de máquinas, um gênio da informática obcecado pelo seu trabalho, está atormentado
por uma crise existencial que o leva a refletir sobre aquilo que faz, e o funcionamento
do sistema social e burocrático.
Enquanto isso, a rua está repleta de propagandas
que deslizam horizontalmente pelas paredes: “Chateado com o Budismo? Não suporta
filosofia religiosa? Então a Igreja do Batman pode ser a resposta”, diz um dos anúncios
publicitários em Teorema Zero. Outro diz
repetidamente: “Nós da financeira Euforia, queremos colocar vocês novamente na euforia.
Sua qualidade de vida é nosso objeto. O excesso nunca é o bastante.”
“O futuro vem e vai até onde está você.”
A propaganda da Mancom, a empresa onde Leth trabalha repete: “interrompemos as más noticias”...”vivemos
em um caótico e confuso mundo. Tantas opções. Tão pouco tempo. O que precisamos?
A quem amamos? O que nos proporciona alegria? Mancom, dando sentido às coisas boas da vida”
Mancom, sigla que reúne a palavra man (homem) e com, abreviatura de comércio; ou seja pode-se ler como comércio humano. O programa da sociedade
de Teorema Zero é produzir desgraças,
guerras como no fascismo do livro de Orwell, 1984, mesmo que a guerra seja fake.
É preciso criar o caos para manipular mais facilmente as pessoas, trabalhar para
o coletivo do fascismo. É preciso cultuar o não sentido da existência, as complexidades,
a entropia, para que o capital possa organizar o caos
O nome Mancom é muito curioso por sua aproximação com a palavra na língua portuguesa
‘semancol’, um termo que tem seus significados relacionados à capacidade de uma
pessoa ter bom senso, ter sentido, de saber perceber quando está agindo de maneira
inconveniente. Uma pessoa sem semancol é uma pessoa “sem noção”. Nada faz sentido
nessa sociedade distópica de Gilliam organizada pela empresa Mancom. Ao contrário,
tudo alimenta o caos, a insatisfação, a alienação para as corporações capitalistas
e religiosas poderem lucrar.
O Teorema
Zero é também uma reflexão sobre a presença do Big Brother, dispositivo orwelliano que tudo vigia a todo o momento,
mas atribui-lhe outra faceta que não deixa de ser curiosa, é que com as novas tecnologias,
esse “Grande Irmão” não é mais apenas da responsabilidade daquela entidade misteriosa
do Grande Irmão, mas de nós nos tornamos ele, somos ferramentas que fazem a manutenção
e as novas versões do programa. Por trás de toda aparência do filme vamos encontrar
no personagem Leth uma certa semelhança existencial também com o protagonista de
Memorias do subsolo de Dostoiesvski. Ambos
são burocratas, alienados, atormentados por certo fantasma de crise existencial,
Leth tudo o que deseja é só trabalhar na solidão de sua casa-templo, Gilliam antecipa
anos antes o home-office. “Porque precisamos
nos deslocar ao trabalho, e chegando lá nos colocarmos em cubículos e nem conversarmos
com outras pessoas, então melhor ficar em casa que se produz bem mais”, afirma Leth.
Depois de muito pedir a junta médica da
empresa para trabalhar em casa, ele é recompensado com seu desejo depois de uma
conversa com o ‘Gerente’ da Mancom, porém a condição é que em seu novo lugar de
trabalho deverá encontrar o Teorema Zero, uma equação que comprova que o universo
é vazio e que todos nós rumamos inexoravelmente para o filosófico “nada”. É disso
no fundo que trata o filme: a produção e comercialização dos homens para produções
de homens-máquinas, homens sem sentido, numa existência que nunca teve sentido já
desde seus primórdios; e tudo que se lhes oferece é trabalho e mais trabalho. E,
quando há carência ou demissão de trabalho, como é o caso do colega de trabalho
de Leth que é demitido por sua causa, torna-se o aniquilamento da existência. Ali
todos humanos estão mediocrizados e sem noção da existência, percorrendo labirínticas
estruturas de uma estrutura virtual plug in,
onde encaixar peças para dar sentido à equação da criação.
Teorema Zero se apresenta um profundo questionamento
à individualidade do enlouquecido, do desgarrado. Leth Qohen, sempre se refere a
sua pessoa como nós. Um estranhamento
de linguagem, uma desconvencionalização da linguagem que se explicita nos pronomes.
O eu é também uma invenção gramatical
tanto quanto o tu ou o nós. Esse nós no lugar do outro não significa só uma desconstrução da linguagem,
mas incide num forte questionamento da relação do eu com o mundo, e com o criador, como propõe Gilliam.
Quando Leth diz estamos morrendo, e a junta médica pergunta o que ele tem, o que está
sentindo, no fundo também está dizendo em profundidade que o infinito e Deus está
também morrendo, ele não só está se referindo a todos nós enquanto existência como
ao próprio Uno, o uni-verso. Ao espectador do filme só lhe resta rir da contradição,
do estranhamento, mas no fundo ri de sua/nossa desgraça. É preciso rever sempre
os filmes de Gilliam, uma vez não basta. Embora a primeira vez seja só para brotar
o amargo sorriso de se ver projetado no filme. Teorema Zero, afora sua aparência, é uma profunda reflexão sobre Deus,
ou deuses, o drama das identidades, eu, tu, nós, entrelaçados. A coerência do mundo
que está por um tênue fio. “Nós estamos a morrer”, é uma das frases mais fortes
que pronuncia, e não é o eu, mas somos
nós mesmos. Embora deixe no ar essa dupla interpretação.
É preciso distinguir duas maneiras pelas
quais a identidade pessoal é perdida, como explica mais uma vez Deleuze em A lógica do sentido. Duas maneiras pelas
quais a contradição entre o eu e o nós aparece. Primeiro, em profundidade, é pela
identidade infinita que os contrários comunicam e que a identidade de cada um se
acha rompida, cindida, tanto que cada termo é ao mesmo tempo o momento e o todo,
a parte, a relação e o todo, o eu, o mundo e Deus, o sujeito, a cópula e o predicado.
Segundo, na superfície onde não se desdobram a não ser os acontecimentos infinitos,
as coisas se passam diferentemente: cada um se comunica com o outro pelo caráter
positivo de sua distância, pelo caráter afirmativo da disjunção que libera para
fora dele, que põe para fora dele as séries divergentes como tantas singularidades
impessoais e pré-individuais.
Em Teorema
Zero essas duas dimensões se entrecruzam: profundidade na busca do criador,
onde muitos pensam que o gerente da Mancom é o criador, e na superfície na necessidade
de Leth no afastamento social, pois ele adora a solidão, odeia festas e reuniões.
É o protótipo do homem do futuro que se avizinha.
A lógica do sentido apontada por Deleuze
se constitui num jogo de repetição (loop) como em um anel de Moebius, onde a fita
se dobra e não se consegue distinguir o que está de um lado ou de outro, o sentido
e o não sentido; do qual sempre estaremos incapacitados de resolver. Mas essa fita
de Moebius já não é tão larga para permitir que as formigas de Escher passem de
um lado a outro. Em Teorema Zero o jogo
entre o eu e o nós, nessa profundidade parece mais um fio que uma fita, um fio tensionado
pronto a romper qualquer lógica estabelecida até então entre o sentido e o não sentido.
Leth está sempre à espera de um telefonema
divino, um milagre, um acontecimento que venha lhe dizer ou sussurrar a razão de
sua existência. A chamada, a ligação divina. Mas nunca chega. O acontecimento nem
sempre acontece. O acontecimento emana do não senso e da instância paradoxal, o
acontecimento está sempre deslocado, excêntrico, descentrado, fora de orbita. Por
isso que o acontecimento é sempre inusitado, impensável, o não sentido, o incalculável.
Leth jamais pronuncia eu durante todo o filme e, em certo diálogo,
quando se encontra com o gerente da Mancom,
ele se refere, como sempre, ao falar de si como nós, o gerente estranhando o nós,
contesta, “como assim nós”?
“Nós, nós mesmos”, responde Leth, com naturalidade
como se o gerente não estivesse entendendo.
Curioso, porque essa condição também acontece
na collage, o eu só existe enquanto outro, outros, outras alteridades. Nesse sentido, ela é reveladora da existência
suprema das constelações, das cooperações, dos coletivos, pois aquele eu, também, já não existe mais. O problema
que se coloca é que depois das várias mortes de Deus, a partir do século XVIII,
e depois da morte e do fracasso do homem, na pós-modernidade, prenuncia-se a perda
do próprio ‘eu’ que se precipita no abismo do sem-sentido; é o que acontece com
Leth.
Outra frase emblemática do filme é dita
pelo gerente da Mancom quase ao final
do filme – que tanto pode ser o diretor da Mancom como também serviria para o próprio
diretor do filme: Terry Gilliam, quando declara que cada ator, cada personagem não
passa de uma ferramenta, sem muito saber o proposito final do filme, ou da existência
muitas vezes. Leth ainda acredita que o sentido faz a vida do homem, mas as pessoas
todas são tratadas como ferramentas, ferramentas sem sentido que dão sentido à existência
sem sentido, produzindo sentido e não sentido ao mesmo tempo.
Gilliam parece revisitar todos os temas
das produções anteriores: máquinas de vigilância, o homem contra o Estado, imaginação
versus realidade, porém com uma abordagem mais intimista e filosófica. Um dos pontos
que avança em sua crítica à sociedade de controle, e nesse sentido vai além de Deleuze,
é que não há mais nenhuma estrutura de controle que controla a todos, ou mesmo onde
todos controlam a todos, tipo o sinóptico de Baumann, mas sim agora cada um de nós
é parte dessa estrutura de controle. O eu
somos nós, mas é difícil aceitar porque
nessa lógica do eu está também à lógica do nós.
Teorema Zero significa o teorema próximo ao Big Bang, o Universo ao se contrair se tornará
um ponto, um zero, um nada. Zero tem que ser igual a 100%, e vice-versa. A questão
é esse buraco que traga tudo para o nada. Gilliam ironiza até com o universo, mostrando
que nem o Universo faz sentido, e que o fim dele é não ter sentido, como afirmou
na referida entrevista. Gilliam parece ter encontrado desde cedo a resposta no surrealismo,
no realismo fantástico e também na via negativa da filosofia, como ele próprio admitiu
em entrevista: “Não há sentido para a vida: minhas células se dividem, as coisas
estão acontecendo, as estruturas estão sendo formadas, outras coisas estão comendo
outras coisas. É o maravilhoso caos organizado. Então o que significa que existe
para a vida é o que você dá à sua vida. Você tem que fazer o trabalho, você não
pode ficar esperando por um telefonema que vai dizer-lhe. O que eu sempre pensei
que era engraçado em O Teorema Zero foi
que o filme está tentando provar uma negatividade positiva. Essa é a coisa estranha
quando você está tentando provar que 100% deve ser igual a zero, ou zero deve ser
igual a 100%. Construímos essas estruturas que se mantêm caindo aos pedaços, que
não conseguem produzir resultado”
Talvez o mundo não se explique pelo sentido
e o não sentido; quiçá seja apenas mais uma sequela do mundo da linguagem, talvez
os antigos percebessem isso, mas não dessem importância pois havia outras coisas
que observa e que faziam muito sentido, ou vivessem um outro não sentido positivo.
O tema é complexo e sem respostas. Na obra de Gilliam, tudo se passa na mesma lógica
da collage, daquelas primeiras collages que fazia, ou seja, há leituras dentro de
leituras em cada collage, múltiplos significados gerados pelo paradoxo das contradições.
Tudo na collage inicialmente parece sem sentido, mas estão repletos de sentidos
transmitido pelo não sentido. Mas esse sentido ao fim nunca deixará de ser sem sentido.
O Gerente da Mancom, parece ser um semideus
muitos acreditam que seja; mas declara ao final ser simplesmente um homem. Declara
quase ao final do filme:
“sempre quisemos sentir uma razão para existência”
“sou apenas um homem procurando a verdade”...
Caos encapsulado, o caos favorece o capitalismo
Tudo isso é para nada.
Nada é para nada.
“Dinheiro ordenando desordem”.
Gilliam sabe muito bem a importância das
portas como fissuras de transporte para outros mundos, a porta e o portal tem uma
importância em Time Bandits, e o incrível mundo do Dr. Parnassus, assim
como em O Homem que matou Dom Quixote,
no momento que entra no pequeno barraco, que diz ‘Quixote vive’, para ver o verdadeiro
Don Quixote de la Mancha.
O sentido está diretamente associado com
a orientação. Em Time bandits, a trupe
dos anões saqueadores, piratas do tempo, está sempre aparentemente desorientada
– o que a orienta para o saque é um mapa do tempo que indica os portais para passar
de um tempo para outro para a pilhagem. Como se isso fosse possível, como se um
mapa do espaço tivesse seu correspondente também num mapa do tempo.
Essa busca desesperada de sentido nos leva
a bater na figura da porta. Talvez por isso que o tema da porta aparece com frequência
nos filmes de Gilliam. A porta é o elemento que se abre, é a cisão, o corte que
permite a passagem dos corpos, espacialmente estabelece um dentro e um fora, estabelece
uma ligação. Porta em si a própria existência do espaço, o início da vida. Em Time bandits, Gilliam se utiliza fartamente
de portais que se abrem em determinados lugares e em horários específicos permitindo
transportar de um lugar a outro, de um tempo a outro. Em Time bandits, os saqueadores saem de dentro do armário; em Dr. Parnassus, o portal é constituído de
duas cortininhas flexíveis espelhadas. Gilliam vai associar continuamente a figura
da porta, como portal para outra dimensão ou tempo, para o mundo surreal e também
do inconsciente. E mesmo onde parece não haver uma porta, só parede, em Time bandits por um passe de mágica os anões,
para fugirem do Ser Supremo, que os persegue
por terem lhe roubado o mapa que contém a localização exata dos furos no tecido
do universo, começam a empurrar a parede e um pedaço dela se transfigura em um corredor,
na medida em que vão empurrando ela se torna mais um portal.
A palavra “porta” porta muitos significados,
desde seu substantivo até o verbo portar; entretanto, a porta em si serve como uma
espécie de palavra que designa a questão do transporte e de seus correlatos, é uma
espécie de veículo, tal qual a metáfora, um elemento de deslocamento, análoga a
uma ponte que permite a passagem de um lado a outro. Portar, sair de um lugar ao
outro, é transpor; portar é sempre uma transposição, um transporte, para além. A
porta porta a porta.
Talvez o verbo “tragar” em português nos
ajude a explicar outros sentidos não observáveis em outras línguas, se admitirmos
uma certa radicalidade (raiz) imaginária formalmente entre essas duas palavras mesmo
em línguas distintas, português e alemão: tragar e tragen. Tragar tem vários sentidos na língua portuguesa, entre eles:
eu trago no sentido de “trazer”, ou “tomar um trago” (beber algo alcoólico) e também
“tragar”, no sentido de tragar a fumaça, ou seja: colocar para dentro, engolir,
ou ser engolido, tragado, absorver. “Ser” absorvido. Parece que todos esses sentidos
“trazem”, “carregam” a ideia mesmo de uma incorporação, uma inoculação mais do que
uma enxertia, de colocar dentro do corpo, de receber livremente ou forçosamente;
um colocar dentro do corpo através de abertura. Todos esses sentidos de tragen devem ser pensados como também outros
sentidos da porta, mas observando que todos esses sentidos do verbo portar, curiosamente, o portar, o tragar
e ou tragen (carregar), não existem sem
a abertura, sem a ranhura, a fresta, o buraco. Tragar e soprar. O tragar e o (ex)tragar.
O intragável, o insuportável.
A porta, relaciona não só um dentro e um
fora, um interior e um exterior, uma peça a outra, um quarto a outro, um distante
e um próximo, um contido e não contido, um acima e abaixo, um lado a outro; tal
como uma ponte, a porta relaciona e conecta, e também aparta, separa, divide o muro.
Mas nos filmes de Gilliam ela conecta tempos e mundos diversos. Ela em si, como
a ponte, é o símbolo da indefinição, nem dentro, nem fora, dentro e fora ao mesmo
tempo. Nela esses binômios estão suspensos, desaparecem, ela não pertence a nenhum
dos mundos que comunica, não é desse lado ou de outro, não é desse universo ou de
outro, é de mundo nenhum. E essa separação para Derrida constitui-se numa diáfora,
que significa diferença, dia-phero, eu
separo, eu difiro, e eu porto ao fim descolando seu ser de coisa, elas gestam o mundo, portam no transcorrer de
uma gestação, carregam dentro o outro, portam a término, dão um comportamento, uma
compostura, uma figura, um gesto.
A desorientação é característica de um deslize
do espaço-tempo. Talvez o mais difícil de entender e articular é que o sentido do
espaço é também o sentido do tempo. Todo nosso sentido, nossa compreensão do mundo
é fruto desse casamento contratual entre espaço-tempo. Mas com a desorientação do
espaço vem junto o aniquilamento do tempo. O tempo zero.
O sentido de orientação e desorientação
do espaço-tempo pode ser melhor compreendido com o auxílio dos conceitos de tempo
cíclico e tempo linear. No tempo circular, característico dos povos primitivos,
os espaços são quase imutáveis, a cultura de um modo geral permanece a mesma. O
que aconteceu com meus avós está acontecendo comigo agora, e o que aconteceu comigo
agora, acontecerá com meus sucessores. Na cultura ocidental, linear e acumulativa,
os espaços mudam frequentemente, e a arquitetura se reserva o papel de monumento,
de reservatório da história. O elemento que resiste à passagem do tempo.
No tempo cíclico as orientações espaciais
arquitetônicas permanecem as mesmas devido à permanência das formas; já no tempo
linear elas estão constantemente mudando, provocando não só um estado de constante
desorientação, conforme a sociedade vai mudando, mas essas desorientações são graduais,
e na maioria das vezes permitem que só possamos compreendê-las através das gerações.
Por isso utilizamos flechas, placas, sinalizações para nos orientarmos no tempo
e no espaço.
A nadificação do tempo é esse período nem
sempre agradável que experimentamos quando estamos desorientados e sentimos um forte
impulso para retornar à casa, ao lar, como indicava Freud e que não tem correspondente
nem no tempo cíclico, nem no linear ou tampouco no espetacular, constituindo uma
outra categoria de tempo, muito próxima ao que poderíamos designar como tempo zero, onde tudo se move mas o tempo
não passa. Onde o próprio tempo se contradiz. Uma experimentação íntima, real, pessoal
em todos os sentidos, mas na qual não existe para os outros.
“Geleia ontem ou geleia amanhã, mas jamais
geleia hoje”, dizia Alice.
A desorientação também pode ser interpretada
circunstancialmente como estar perdido.
Significa andar, andar e não encontrar nenhum ponto de referência ou chegada. Uma
situação onde andamos em círculo como os ponteiros do relógio, o tempo passa, mas
temos a nítida sensação que permanecemos no mesmo lugar, no mesmo espaço delimitado.
Tudo é também igual nessa situação, todas as coisas se veem envoltas no velo do
igual, e não conseguimos encontrar uma saída.
Na desorientação podemos experimentar, entre
outras, dois tipos de sensações: uma, onde o tempo não passa, mas o espaço permanece
em sua extensão, e outra, onde o tempo passa, mas o espaço parece condenado a um
encarceramento definitivo. Tudo sugere que no estado da desorientação existe uma
ruptura da sincronia do enlace tempo-espaço, uma outra compreensão do mundo, uma
outra visão.
O tempo da desorientação é o período no
qual nos vemos enquanto representação, várias cenas em O homem que matou Dom Quixote, onde o personagem Toby (Adam Driver),
se vê filmando uma versão antiga e barata de Dom Quixote. Toby redescobre essa fita
da época da faculdade, quando juntou alguns atores amadores, fica obcecado em encontrar
o elenco novamente e percebe que sua obsessão também tomou conta deles. [2] Esse se ver se vendo deslocado de tudo,
de todos, inclusive de nós mesmos, deixando-nos ocos.
Quando passamos para o outro lado espelho
é como se fôssemos jogados ali sem saber por que e nem quando. O ver se vendo, um
dentro do outro, também carrega o terrível paradoxo do tempo, o tempo dentro do
tempo. Em Brazil, Gilliam coloca muito
bem essa questão, le mise em abyme, Terry
explora constantemente esse recurso do tempo, o tempo dentro do tempo, o filme dentro
do filme assim também como em O homem que
matou Don Quixote.
Time bandits é uma espécie do Túnel do Tempo, certamente alguma relação Gilliam deve ter com o seriado
homônimo de Irwin Allen, onde os personagens
eram bonzinhos e honestos. Em Time bandits
os protagonistas não são nada bonzinhos, são sete anões malvados, de certa forma
também, podemos evocar também outra série para TV de Irwin Allen, Terra de gigantes (Land of the Giants).
A série O Túnel do Tempo ilustra essa sensação de desorientação espacial temporal,
onde os personagens são dois cientistas que viajam pelo tempo através de uma curiosa
máquina em forma de túnel, onde eram literalmente jogados em diversos momentos e
situações da história por essa máquina que havia fugido ao controle. Funcionava
aleatoriamente andando à deriva ao longo da história. Esses personagens, cada vez
que eram jogados nesses momentos da história experimentavam rapidamente uma forte
sensação de desorientação, sem saber o que estava acontecendo; para orientá-los,
um ou outro sempre procuravam identificar lugar e época pelo vestuário. Na verdade,
quem acabava orientando-os era o conhecimento da história, a própria história universal,
essa pseudociência que não tem outra função do que a pretensa orientação temporal
do homem, que preferiu o tempo linear ao cíclico. O grande indutor da orientação
e desorientação é o conhecimento, reconhecimento e desconhecimento. Reconhecer um
determinado lugar, uma determinada situação é orientar-se, dar um sentido. O conhecimento
é aquilo que explica, agora faz sentido.
Mas, em uma época cada vez mais plena de mudanças e desorientações, cada vez mais
se torna imperativo uma contrapartida: a aquisição de memória a granel para guardar
nosso conhecimento, para que não se perca nosso sentido, nossa história.
Fica a questão, se a desorientação é condição
para questionar a ordem e a organização, ou se ela em si já é uma linha de fuga,
a única saída possível para a ordem do tempo. O perder-se era sempre o objetivo
perseguido pelos Phyton e para isso não mediram estratégias físicas e espaciais
para a desorientação. Tal qual os integrantes da Internacional Situacionista eles
se esforçam por perder-se, preferem perder-se a se encontrar, só se encontram perdidamente.
A sociedade consumista, capitalista continuará
sempre com a crença de que existe um sentido em tudo, pois essa busca transcendental,
metafísica, é vital para sua existência, uma essência no mundo, e isso persiste
em suas roupagens camufladas e emboloradas.
O sentido despeja-se na superfície. Na superfície
que se dobra sobre si mesma. Na continuidade entre direito e avesso que se confundem
na sequência das dobras, como na folha de uma revista com seu verso e seu reverso,
e com toda sua perversão da arte das superfícies que a collage explora muito bem.
Devemos entender que o sentido incorpora
o outro lado da versão e que a pseudoneutralidade do sentido e da superfície é inseparável
de seu estatuto de duplo e paradoxo. A dobra é a continuidade do avesso e do direito,
do verso e reverso da folha, a arte de instaurar esta continuidade entre as superfícies.
Foi mais ou menos assim que compreendeu Deleuze A Lógica do sentido. O que está dentro está fora, e o que está fora,
logo pode estar dentro. Mas, e como fica a questão do tempo? Já não é uma questão
de passar de dentro para fora ou de fora para dentro da lógica sem perceber. A dobra
quando se relaciona ao tempo requer mais atenção.
O que Gilliam nos conta de um modo irreverente
em outras palavras é que toda lógica do sentido se assenta sobre uma lógica do não
sentido, com toda a carga de seus paradoxos e que a superfície onde se funda o sentido
se desdobra constantemente transformando-se em non-sense, e vice-versa como no anel
de Moebius. E que, para passar de um tempo a outro é preciso de um portal, uma porta.
A dobra em si já é o paradoxo, o ponto exato de inflexão.
Mas o anel de Moebius também é um terrível
labirinto, ele é uma armadilha simples e perfeita para o mito do eterno retorno.
A metáfora do anel de Moebius ou da cortina com seu forro e opacidade é o que realmente
nos impede de ver um outro tipo de espaço que não seja esse que se dobra e desdobra
em um contínuo infinito de repetições. A perspectiva de quem vaga como uma formiga
ainda sobre o anel ou a cortina é de um olhar voltada para sua superfície de base,
para seu horizonte infinito, a isso continuamos chamando tridimensionalidade ou
profundidade redobrada pela superfície. É exatamente a opacidade dessa superfície,
desse horizonte incerto que a física nos faz duvidar a cada amanhecer, e que não
nos permite visualizar as duas faces de sua superfície em simultaneidade, criando
a falsa ilusão de que hora estamos dentro, hora estamos fora.
Mas existe um fora do anel, e esse fora que a lógica perversa do labirinto do anel
com suas oposições não nos permite ver. E quando percebemos as repetições a que
somos submetidos pela lógica do espaço, quando nos vemos nos vendo, somos acometidos
pela Inquietante estranheza, pela sensação
de ficarmos como condenados a vagar pelo labirinto, ou de nos transformarmos nas
formigas que andam em um único sentido no anel desenhado por Escher. Sempre poderemos
ver o outro lado da superfície do anel, da cortina, do espelho, mas nunca o que
está fora da superfície, ou mesmo dentro da espessura inconcebível dela.
O que nos revela essa lógica de oposição,
desses paradoxos e fissuras é que não podemos acreditar que existe um jogo do dentro
e do fora, realidade e fantasia, sentido e não sentido, o jogo do labirinto, pois
nessa geometria estamos sempre dentro, e o que pensamos ser o fora sempre será um
dentro. Está tudo misturado. Pelo efeito da dobra tudo se apresenta ora como uma
produção ordenável lógica, ora como um labirinto ilógico, carente de qualquer sentido,
dependendo do lado da superfície em que estamos. O sentido é muito frágil, se rompe
fácil, quando sua superfície é cortada ele cai na profundidade do abismo, dos significados.
Encontramos falta de sentido em muitas coisas
e em muitos sentidos, como as já apresentadas anteriormente: a orientação, a existência,
memória, a porta, o espaço do labirinto etc. Mas existe ainda um outro sentido não
diretamente vinculado ao espaço, mas que poderíamos associar à proliferação repetitiva
das coisas, à produção excessiva de objetos, às grandes megalópoles, a todas essas
infinidades de coisas que Gilliam vai explorar em seus filmes, mostrando que a repetição
acaba tornando tudo igual, despertando-nos a baunasia, a falta do sentido do espaço,
das cidades e da própria existência. A crítica à sociedade de consumo e as propagandas
são praticamente uma constante em seus filmes, até mesmo em A vida de Brian.
Com a separação gradual da trupe de Python
entre A vida de Brian em 1979 e O sentido da vida em 1983, Gilliam tornou-se
roteirista e diretor, aproveitando a experiência que adquiriu durante a produção
de Monty Python e o Santo Graal. Ele diz
que pensava em seus filmes em termos de trilogias, começando com Time Bandits: a Trilogia da Imaginação sobre as
idades do homem em Time Bandits (1981),
Brasil (1985) e The Adventures of Baron Munchausen (1988). Todos são sobre a “loucura
de nossa sociedade desajeitadamente organizada e o desejo de escapar dela por todos
os meios possíveis”.
Mas, por outro lado a repetição, a falta
de identidade, a perda da aura, surgiram como reação ao gosto exagerado pelo original
e pelo exclusivo, típico do século XIX. A repetição destitui as coisas de seus significados,
e devolve-as vazias ao circuito semântico. Do mesmo modo que esvazia os corpos de
sentido, a repetição subordina-os a uma ordem majoritária, na qual o todo se pensa
pelo próprio todo e as partes são impensadas e impensáveis por si sós. O mundo parece
sem sentido pela repetição, mas é a repetição que dá sentido, orienta. O que se
opõe à eternidade não é a morte, mas a vida. Eis o paradoxo da vida, ou da eternidade.
Não é a vida que faz a eternidade como força concorrente, mas sim como força contrária,
oposta. Não é a sucessão de vidas que concorre para a perpetuação da eternidade,
mas a morte.
A Seguradora Permanente Crimson
The
Crimson Permanent Assurance (1983), curta de introdução do longa-metragem
do Monty Python, O Sentido da Vida, foi
originalmente idealizado como uma animação para o fim da Parte V, mas Gilliam convenceu
os companheiros a realizar a sequência em película e inseri-la como prólogo do filme.
Sátira violenta ao capitalismo, onde coloca questões como o antigo e o novo, os
idosos e a juventude, arquitetura moderna x
arquitetura antiga, o capitalismo selvagem.
É um dos melhores exemplos de transfiguração
dos objetos, da arquitetura e também dos seres humanos. No caso da arquitetura,
um prédio antigo é transfigurado numa caravela, num navio de piratas velhinhos.
Ou seja, retornamos aqui novamente ao início, a influência da collage no pensamento
de Gilliam, de como modificar o sentido das coisas sem muito alterar suas formas.
Nesse caso do curta, quase nada, há apenas desvio de funções originais. Os trabalhadores
idosos da Seguradora Permanente Crimson, uma empresa de Londres que foi assumida
recentemente por uma corporação americana muito grande, se rebelam contra seus chefes
corporativos quando um deles é demitido. O título é uma referência ao filme The Crimson Pirate (no Brasil “O Pirata Sangrento”),
com Burt Lancaster.
O antigo edifício é transfigurado num navio
pirata. Os andaimes e lonas da seguradora cuja fachada estava sendo restaurada se
transfiguram em velas, assim quando o vento sopra o edifício então, começa a se
mover como se se tratasse realmente de um navio; e vão abordar o edifício acristalado
moderno símbolo do novo capitalismo selvagem que não se importa nem com os idosos.
Os antigos arquivadores de madeira se transformam
em canhões, que disparam gavetas contra as janelas envidraçadas que cobrem todo
o edifício moderno. As lâminas de um ventilador de teto se transformam em espadas.
As janelas são estilhaçadas e velhinhos conseguem abordar o prédio, usando cordas,
eles passam para a sala da diretoria e atacam os executivos da corporação inimiga.
Depois de trancar os supervisores no cofre e forçar o seu chefe a andar numa prancha
improvisada em uma janela, depois da vitória, os funcionários continuam “navegando
pelo amplo mar da contabilidade mundial” sem a menor cerimônia, até cair para fora
da borda do mundo.
NOTA
1. “O sentido da
vida em Fernando Freitas Fuão”, entrevista concedida a Terry Gilliam: https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/12/terry-gilliam-entrevista-fernando.html.
2. Tal como em Teorema Zero, o paralelo entre Gilliam e Toby já se constitui
uma metalinguagem, o que alcança outro nível quando Gilliam mostra um terceiro paralelo:
a história do próprio Dom Quixote. Jonathan
Pryce, que atuou no filme amador de Toby e acredita ser de fato o personagem
de Miguel de Cervantes.
FERNANDO FREITAS FUÃO | Arquiteto, artista e ensaísta brasileiro, nascido em 1956. Começou a fazer colagens em 1975, no mesmo ano em que ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas (1975-81). Em 1987 vai a Barcelona cursar o doutorado na Escuela Técnica Superior de Arquitetura, desenvolve a tese Arquitetura como collage. Em 2011, publica o livro A collage como trajetória amorosa (Editora UFRGS). Possui uma série de artigos e ensaios que giram em torno a Collage, assim como textos publicados sobre alguns collagistas. Articula interlocuções da collage com a filosofia, a arquitetura, a psicologia e a educação. Desenvolveu a pesquisa A collage no Brasil, arquitetura e artes plásticas, sob o viés do surrealismo (1992-1995. CNPq). Pertenceu ao Grupo Surrealista de São Paulo, liderado por Sergio Lima e Floriano Martins durante os anos 1990. Ministrou desde então uma série de cursos e oficinas sobre collage. Mantém o blog http://mundocollage.blogspot.com/ e https://fernandofuao.blogspot.com/
JAN DOČEKAL | Historiador de arte e artista, nascido em Třebíč, República Tcheca, em 1943. Formado como metalúrgico, estudou história da arte e estética, foi operário, tecnólogo, publicitário, diretor de vendas em uma gráfica e professor de educação artística. Preparou mais de cem exposições de arte e foi comissário do Simpósio de Esculturas Mladá tvorba Žďár nad Sázavou (2000). Colaborou com a Galeria Moravian de Stanislava Macháčková por 25 anos. É membro do grupo surrealista Stir up e já realizou trinta exposições originais. Livros e catálogos publicados: Jaroslav Vyskočil (1996), Horácka Fine Arts Club (1999), Horácka Fine Arts Club (2000), About Graphics (2001), Max Švabinský Graphics (2001), Everyday Things / Beyond the Art of Arts (2004), Reviews Texts Interviews (2005), Interviews 2005-2013 (2014), Josef Kremláček (monografia, 2020). É coautor do Dicionário de Belas Artistas Tchecas e Eslovacas (1998) e editor do livro Vlastimil Toman, Life Journey (2015).
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 02
Número 201 | janeiro de 2022
Artista convidado:
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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