quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

TERRY GILLIAM entrevista Fernando Freitas Fuão

 


TG: É verdade que você nasceu nesse país louco, sem sentido, surreal chamado Brazil ao qual dei o título a um de meus filmes? Parece que também agora é ninho dos neonazismo, do totalitarismo, um cenário aterrorizante como de 1984 de Orwell, ou de Teorema Zero? [1]

 

FF: Sim, infelizmente nasci aqui. Até parecia que as coisas andavam bem. Não se escolhe onde se nasce. A chegada é um terrível nonsense, inexplicável como a gente vem parar em determinados lugares e épocas, nunca se escolhe. Sorte hoje de quem nasceu em pais do dito primeiro mundo que consegue fazer filmes facilmente, escrever e publicar livros, e qualquer asneira que diz tem caráter de validade universal. Aqui no Brasil onde queimam e ardem as florestas, faz justiça a seu braseiro, seu nome, brasa tudo, vai virar um cinzeiro. Tudo parece sombrio, sem futuro, nesse momento cinzento. Tudo é difícil aqui, há uma pobreza imensa fundacional, séculos de saques e sacanagens pelos colonialistas. Lá fora ninguém lê nada produzido por brasileiros, alguns filmes até os europeus mais cultos chegam a ver, tudo que se produz aqui é desprestigiado. É só futebol e música.

 

TG: Quais artistas você sofreu influencias em suas collages surrealistas? Em meu caso, com relação ao cinema, fui influenciado por Fellini, “não vou negar que Fellini é o meu deus absoluto, por causa de sua visão suprarreal, alegórica e teatral. O mundo é um palco para Fellini e para mim também. Com ele, aprendi a fazer metacinema, a me criticar e a mergulhar sem medo na fantasia colorida e desenfreada. Eu me influenciei pelos enredos non sense e demolidores de Luis Buñuel e as cenas grandiosas e épicas que não abdicam da densidade psicológica nas histórias de Akira Kurosawa.” [2]

 


FF: Veja, minha primeira influencia para as collages foi através do artista pelotense João Manta, que retirava grande parte de suas imagens de capa de discos, a influência pop britânica, para elaborar suas collages. Nos anos 70 a collage estava de moda, assim como hoje nesses dois últimos anos durante a pandemia. Sempre preferi o lado irônico da collage como temática, mas pouco a pouco fui me aproximando ao surrealismo, e a coisa foi ficando mais intelectual, Breton, Max Ernst, Buñuel também. Monthy Python, e você em especial com suas collages pouco me influenciou até certa época, Só fiquei sabendo sua existência através do filme Monthy Python em busca do cálice sagrado, e de alguns sketches collages do Flying Circus que eventualmente apareciam na TV.

 

TG: “Atualmente, há uma brutalidade na standup comedy que ataca alvos para alimentar o ódio do público sem recorrer à ironia e à inteligência. Hoje, só a trollagem e o deboche provocam gargalhadas. Além disso, os grupos de pressão da mentalidade politicamente correta estão dando o tiro de misericórdia no humor. O mesmo vale para esse movimento ridículo do #Metoo, que envolve feministas no combate ao assédio sexual. Ora, a gente costumava antigamente fazer um humor que brincava com os estereótipos das comunidades de imigrantes, com os defeitos físicos tanto dos pobres como dos nobres. Não poupávamos ninguém porque fazer humor é promover a crítica dos costumes. Acreditávamos que provocar o riso poderia mudar o mundo para melhor. Hoje os cômicos só querem destruir tudo o que abordam. Se Monthy Python tivesse começado a carreira hoje, simplesmente não encontraria espaço, pois seria censurado” [3] Como você vê esse cenário?

 

FF: Sim, não encontrariam espaço, pois seriam censurados. Eu seria um que não iria ver. Só tinha sentido naquele momento. Sinceramente não curto humor em cima de deficientes e pobres, acho uma pobreza de espirito total, falta semancol, entende?! 



TG: Eu não sei se minhas inquietações existências começaram antes de eu começar a fazer collage, ou surgiram depois, como consequência do fazer collage, de ficar brincando de Deus dando a vida aqueles pequenos recortes de papel, animando-os com o movimento num demorado trabalho, ou se essa angustia existencial já latejava em mim. Não sei como foi para você, mas quando éramos crianças, minha mãe nos dava uma tesoura e umas revistas velhas para brincarmos. Mediante recortes, destacávamos os personagens suspensos no tempo. Nossas inábeis mãos ao recortá-los, ao pegá-los, ao movê-los de um lado a outro faziam com que as figuras se tornassem vivas, seres animados pelo alento do recorte. Naqueles dias chuvosos, reafirmávamos, constantemente, nossas personalidades, na medida em que íamos, ao mesmo tempo, recortando e recordando nossos desejos. Escolhíamos as personagens com quem mais nos identificávamos, e nunca faltavam as brigas e escaramuças por eles. Os mimávamos com nosso gesto, nos projetávamos, projetávamos nossa família, nossos amigos e inimigos em cada uma daquelas patéticas e aplastadas figuras. O eu já era nós. Deixávamos que o desejo atuasse livremente. Vivíamos tudo aquilo de que carecíamos, o que queríamos ser e ter. Habitando as figuras, as encarnávamos em seu sentido original. Ignorava-se o valor das revistas. Cada figura reduzia-se a uma projeção. Em nossas mãos, cada figura era um corpo que andava contente ao encontro do outro. As fazíamos habitáveis. Desacreditados do mundo, criávamos sentido. E, para você Como se deu essa relação entre collage e a falta de sentido do mundo?

 

FF: Roubastes as palavras de minha boca, até estou achando que você copiou um trecho grande do meu livro sobre collage. (risos). Acho que meu sentido de não sentido se agravou vendo Monthy Python (risos).

 

TG: como você sendo um arquiteto acabou estudando e trabalhando a Collage?

 

FF: Quando estou trabalhando com collage, estabeleço algumas figuras iniciais recortadas de revistas (plantas baixas, fachadas, vistas), alguns fragmentos como ponto de partida que serão utilizados, e a partir deles os outros fragmentos começam a se juntar ao acaso ou intencionalmente para conformar a forma inicial, uma ideia ou até mesmo final. Gosto mesmo que, na medida em que os fragmentos das figuras arquitetônicas vão se casando, elas mesmas sugerem novas possibilidades formais do todo. É como se elas próprias pensassem por si. Algo que o arquiteto acaba por surpreender-se positivamente ante a força do acaso, do desenho, da collage. É evidente que o acaso desenvolve um papel importante dentro da collage, e até mesmo do desenho. Mas, o desenho parece ser um procedimento mais totalizador controlador e controlado do que trabalhar aleatoriamente com a collage. Tal como você faz suas collages animadas, também utilizo revistas de fotocópias de revistas de arquitetura para retirar as figuras. Recorto muitas figuras, tudo o que acho que pode servir. Faço collages no âmbito de artes plásticas há mais de 40 anos. Atualmente desenvolvo trabalhos de criação musical, em workstation, de música ambiente, new age e drum’bass, house baseados também no procedimento collage. Entretanto, afora as aproximações de processo entre música e arquitetura, neste caso como lawyers, loops, envelops, em nada transcrevo ou quase nada para o projeto.

 


TG: “Bem, eu também realmente quero encorajar uma espécie de fantasia, uma espécie de magia. Eu amo o termo realismo mágico, quem quer que o tenha inventado – eu realmente gosto porque ele diz certas coisas. Trata-se de expandir a forma como você vê o mundo. Acho que vivemos em uma época em que estamos apenas martelados, martelados por pensar que o mundo é assim. A televisão está dizendo, tudo está dizendo: Esse é o mundo. E não é o mundo. O mundo é um milhão de coisas possíveis”

 

FF. Concordo. O mundo não é como crê a maioria das pessoas uma realidade rígida e válida para todos. Ele em si é tão plástico e imaterial como o próprio tempo, variando com os indivíduos, com os povos, com as épocas, e principalmente com os pontos de vistas. Não existe um mundo objetivo e autônomo do ser humano. Existem diferentes maneiras de perceber e compreender esse espaço ‘bruto’, lá fora, sem significação, a espera de minha chegada. Por exemplo, desse mesmo espaço podemos produzir as mais diversas representações como a do pintor, do arquiteto, do fotógrafo, do engenheiro, do médico etc. Mas certamente, a somatória deles nunca retratará a experiência de cada um, apenas ampliará seus sentidos, mostrando a existência de diversos pontos de vista. Eu compartilho contigo esse mesmo nonsense da vida, da loucura da existência e seu aprisionamento.

 

NOTAS

1. Fragmentos retirados e adulterados de uma entrevista de Terry Gilliam a Luis Antonio Giron. Revista Isto é. Edição 20.06.2019. n. 2582. Luis Antonio Giron. https://istoe.com.br/a-politica-acabou-com-o-humor/.

2. Idem.

3. Idem.




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[A partir de janeiro de 2022]
 

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Número 199 | dezembro de 2021

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