segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

LUIZ NAZARIO | A realidade manifesta no cinema de Alberto Cavalcanti

 


Eu era surrealista. Surrealista cinematográfico, bem entendido, pois jamais pratiquei outras artes, nem pintura, nem escultura. Insisto que meu surrealismo era exclusivamente cinematográfico. Quando mostrei Rien que les heures (1926), foi a essa forma de expressão no seio da vanguarda que me filiou a maioria da “intelligentsia” cinematográfica.

CAVALCANTI, 1960, apud PELLIZZARI; VALENTINETTI, 1995

 

Nascido no Rio de Janeiro em 1897, filho de um militar pernambucano de antiga linhagem italiana, o cineasta Alberto Cavalcanti estava destinado a uma vida errante. Em 1908, quando entrou no Colégio Militar, Cavalcanti apaixonou-se pelo cinema: “Os dramas dinamarqueses interpretados por Asta Nielsen e as comédias de Max Linder tanto me impressionaram, que nunca esqueci. Somente aquelas imagens simples e silenciosas, acompanhadas de uma música de fundo, pareciam tornar para mim, por um segundo, realidade.” (CAVALCANTI, 1960).

Quando a homossexualidade de Cavalcanti manifestou-se no meio tradicional em que ele havia nascido, ela assumiu socialmente a forma de uma contestação da autoridade. Voltou-se, então, para as artes, o que já o transformava, para os seus, num rebelde. E saiu do Colégio Militar no quinto ano, decidindo fazer a Faculdade de Direito da Escola Politécnica. Ali travou conhecimento com o dramaturgo Roberto Gomes, que o iniciou na literatura, na frequentação das peças da Companhia Francesa de Réjane e Féraudy e nos bailes do Catete e do Itamarati.

Foi expulso da escola de Direito ao ser pego imitando um de seus professores, o Doutor Nerval de Gouveia, que o havia posto no mundo como ginecologista. Causava preocupação ao pai militar a ambígua amizade que o filho mantinha com Gomes. Para afastar essa influência, em 1914 a família de Cavalcanti enviou o filho transviado à Suíça. Cavalcanti matriculou-se na Escola Técnica de Friburgo, escolhendo o curso preparatório de Arquitetura, onde se tornou amigo do arquiteto Fernand Dorier. No mesmo ano foi aprovado no exame de admissão da Escola de Belas-Artes de Genebra.

Em 1917, Cavalcanti obteve seu diploma de Graduação em Arquitetura na Escola de Belas Artes de Genebra e partiu para Paris. Durante a viagem de navio teve sua primeira – e insatisfatória – experiência sexual, com uma prostituta, na Ilha da Madeira. Outra experiência inusitada deu-se quando foi levado ao casamento de uma princesa russa que nem conhecia. Mostrou-se tão à vontade na casa dos noivos que acordou na manhã seguinte no leito dos nubentes, numa lua de mel a três. (BORBA FILHO, 1953, in PELLIZZARI; VALENTINETTI, 1995).

Em Paris, Cavalcanti matriculou-se na Sorbonne, onde seguiu o curso de estética de Victor Basch (que assinava, com orgulho, “Basch, Judeu” e que foi, mais tarde, assassinado pela milícia de Vichy). As lições de estética desse professor severo e exigente tiveram muita influência na sua futura carreira.

Cavalcanti acompanhava o cinema com grande interesse. Adorava o cinema italiano – os filmes de D’Annunzio e da diva Lyda Borelli – e a escola sueca, especialmente os dramas de Victor Sjöström. Em 1919, assistiu a Rose France (1918), de Marcel L’Herbier e, entusiasmado, escreveu uma carta ao diretor analisando a obra e manifestando o desejo de trabalhar a seu lado. L’Herbier o empregou então como diretor de arte em L’Homme au large (1920). Acompanhando as filmagens, Cavalcanti ficou surpreso com a direção improvisada do mestre – mais tarde, na Alemanha, conheceria outros métodos de trabalho, em estúdios que valorizavam o planejamento e a disciplina.

Em 1921, Cavalcanti voltou ao Brasil como representante da casa de decoração Compagnie des Arts Françaises. Mas o projeto de manter uma loja tão sofisticada no Rio foi um fracasso. Através de um amigo da família, o cônsul Dario Freire, Cavalcanti obteve um emprego no Consulado Brasileiro em Liverpool, para onde foi acompanhado dos pais.

O pai faleceu durante a viagem e o caixão foi levado de barco sobre um gelado rio Mersey para o velório em Liverpool. Já decidido a entrar no mundo do cinema, Cavalcanti contou com a benevolência e generosidade do cônsul, que o encarregou de cuidar de suas filhas em Paris, assegurando-lhe o salário de um ano.

Em Paris, Cavalcanti encontrou-se com Marcel L’Herbier na Companhia Cinégraphic e foi imediatamente acolhido no seio da “primeira Avant-Garde” (a escola eclética do “impressionismo francês”, segundo Henri Langlois), da qual participavam, além de L’Herbier, Antonin Artaud, Luis Buñuel, René Clair, Salvador Dalí, Louis Delluc, Germaine Dullac, Carl Dreyer, Jean Epstein, Abel Gance, Ferdinand Léger, Man Ray, Jean Renoir, Jean Vigo.

Para L’Herbier, Cavalcanti assinou os figurinos de Eldorado (Eldorado, 1921), estrelado por Eve Francis, amante e musa de Paul Claudel; e a cenografia de Réssurrection (1923), que ficou inacabado, mas permitiu-lhe tornar-se amigo da estrela Emy Lienn. Depois, trabalhou como cenógrafo em L’Inondation (1923), de Louis Delluc, novamente estrelado por Eve Francis.

Voltou a trabalhar com L’Herbier em A inumana (L’Inhumaine, 1923). Para este filme, desenhou um laboratório em estilo art-déco e coordenou o trabalho de uma equipe de cenógrafos que incluía Claude Autant-Lara, Malet-Stevens, o pintor Fernand Léger e o decorador Pierre Charneau, de grande renome na época. O filme foi um sucesso pelo seu lado plástico e pela música de Darius Milhaud.

L’Herbier levou-o para assistir às filmagens de Le marchand de plaisirs (1923), de Jaque-Catelain, que o convidou a fazer a direção de arte do genial A galeria dos monstros (La galerie des monstres, 1924), filmado na Espanha, onde Cavalcanti deixou-se contaminar pela arte de El Greco.

Trabalhou ainda nos cenários de The Little People (1925), de George Pearson; e de O falecido Mathias Pascal (Feu Mathias Pascal, 1925), de L’Herbier, com base na novela de Luigi Pirandello. Mais tarde, este autor declararia a Cavalcanti, num encontro casual durante uma viagem de trem, que havia detestado o filme, mas apreciado os “ambientes” que ele havia desenhado.

O jovem diretor de arte compôs, para esses filmes mudos, ora cenários geométricos e quase abstratos, ora cenários carregados de pathos realista, demonstrando grande versatilidade. Depois de editar o célebre documentário Voyage au Congo (1926), de Marc Allégret, realizado em colaboração com o escritor André Gide, Cavalcanti pensou em dirigir uma adaptação de Pirandello, mas a produtora russa Sacex faliu.

O trem sem olhos (Le train sans yeux, França, 1926) seria dirigido por Julien Duvivier na Côte d’Azur e num velho hangar de Zepelim em Berlim, com cenografia de Hermann Warm, um dos cenógrafos de O gabinete do Dr. Caligari. Quando Duvivier abandonou as filmagens, Cavalcanti o substituiu; mas os credores, que perseguiam o ousado produtor Pierre Braunberger, sequestraram os negativos do estúdio. Com a ajuda de amigos, Cavalcanti concluiu as filmagens com cenas rodadas nas ruas de Paris. A trama, adaptada de um romance de Louis Delluc, girava em torno de uma bela e rica norte-americana cobiçada por um banqueiro. Como ela o rejeitava e preferia namorar um empregado dele, o banqueiro vingava-se encomendando um roubo e acusando seu rival do crime.

Cavalcanti filmou, em seguida, Somente as horas (Rien que les heures, 1926), produzido pela Néo Filmes, com Catherine Hesseling, ex-modelo do pintor Auguste Renoir, que se casara com o filho dele, o cineasta Jean Renoir. Esse caleidoscópio impressionista sobre os excluídos da cidade-luz utilizava recursos do cinema experimental: sem trama, o filme era um “docudrama” poético sobre um dia na vida de pobres, marginais e prostitutas de cais do porto.

Cavalcanti transformou a cidade de Paris na protagonista do filme, inaugurando em tom menor as “sinfonias urbanas” de outros cineastas de vanguarda – como Berlim, sinfonia de uma cidade (Berlin: Die Sinfonie der Großstadt, Alemanha, 1927), de Walter Ruttmann; O homem da câmera (Chelovek s kino-apparatom, URSS, 1929), de Dziga Vertov; e São Paulo, sinfonia da metrópole (Brasil, 1929), de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig – que anunciavam a era das massas. A “sinfonia urbana” de Cavalcanti era antes um “concerto urbano”, realizado com poucos recursos e sem história definida – “uma série de impressões no tempo que passa”, segundo o diretor.

À diferença de outros vanguardistas, talvez devido às suas origens brasileiras, o experimentalismo de Cavalcanti era tingido de preocupações sociais e de pulsões sexuais, apontando para um novo realismo dentro do formalismo das vanguardas francesas, tendo em comum com o surrealismo um apelo indireto à revolução, ainda que menos sangrenta que a que será sonhada por Luis Buñuel em Um cão andaluz (Un chien andalou, 1929) e A idade do ouro (L’âge d’or, 1930).

Em Somente as horas, a preocupação de Cavalcanti com os desvalidos revela-se nas imagens recorrentes da velha bêbada que anda a esmo pela periferia de Paris até cair à beira do cais; da lojista assaltada brutalmente; dos ratos que passeiam à vontade pelas ruas da periferia; do burguês que come tranquilamente seu bife sem perceber, em sobreposição, as imagens dos abatedouros em seu prato; da prostituta que encontra um marinheiro que a olha com grande apetite, e depois, no quarto, para a cama que os espera. Essas imagens transcendem a mera justaposição de “objetos”, comum no cinema abstrato e no cinema impressionista.

Outra importante contribuição de Cavalcanti à vanguarda francesa foi o poema surrealista En rade (1927), onde uma garçonete (Catherine Hessling) é maltratada pela mãe e assediada pelos trabalhadores das docas que frequentavam o bar. Ela se relaciona de forma tímida com o filho de uma lavadeira (Nathalie Lissenko), Jean (Georges Charlia), que sonha com uma vida melhor, longe dali. Mas um avanço de Jean, roubando um beijo da jovem, arruína o delicado romance: assustada, a garota manda embora o pretendente que, desconsolado, afoga-se no mar.

En rade foi aclamado pela crítica e traz num de seus raros papéis principais o ator icônico do surrealismo, Pierre Batcheff (1907-1932), que se tornou mundialmente conhecido como o protagonista de Um cão andaluz – curiosamente, tanto Batcheff quanto a atriz do filme de Buñuel, Simone Mareuil (1903-1954), se suicidaram – ele com uma overdose de Veronal, ela embebendo o corpo em gasolina e se ateando fogo numa praça pública de Perigueux.

Tornando-se amigo da atriz Catherine Hessling e de seu marido, o cineasta Jean Renoir, Cavalcanti realizou o curta-metragem La P’tite Lilie (1928), estrelado pelo casal. O filme ilustra a popular canção de Gravel e Benesch sobre uma órfã de dezesseis anos, uma costureirinha linda e de olhos azuis que, certa noite num baile, se enamora de um proxeneta. Ele fecha o ateliê da garota e a obriga a prostituir-se, mas, não sendo feita para essa vida, ela tenta escapar, acabando assassinada. A cançoneta foi regravada por Milhaud, mas os distribuidores franceses do filme consideraram sua trilha refinada demais: a versão sonora nunca foi lançada.

Na tragédia surrealista de Cavalcanti, a alegre costureirinha Lilie (Catherine Hessling) prostitui-se aos dezesseis anos depois de conhecer num baile um gordo gigolô. Depois de se fingir amigo, o gigolô desencaminha Lilie da vida honesta. Abusada e explorada, Lilie se revolta e planeja uma fuga num dia de chuva. No momento oportuno, ela corre em disparada, mas é alcançada pelo gordo cafetão no fim da estrada, que termina no cais do porto, sendo ali selvagemente esfaqueada pelas costas. O assassino limpa o sangue do facão para com ele partir uma fruta, que fica a saborear aos pés da morta, enquanto o policial que chega com um curioso apenas comenta: “Que belo cadáver!”. De repente, a alma de Lilie sobe ao céu.

Algumas das realizações de Cavalcanti no cinema mudo são hoje consideradas como clássicos do cinema. É o caso de Capitão Tornado (Le Capitaine Fracasse, 1929), baseado no popular romance de Théophile Gautier. Recentemente redescoberto e restaurado, o filme surpreendeu a crítica por sua espetacular cenografia, seus ousados movimentos de câmera e suas engenhosas cenas de ação.

Com o fim do cinema mudo, a Avant-Garde dissolveu-se: o sonoro impôs novos padrões, tornando o filme um produto cada vez mais industrial. Cavalcanti foi quem realizou, em Portugal, o primeiro filme falado em língua portuguesa: A canção do berço (1931), versão portuguesa de Sarah and Son (1930).

Logo foi contratado pelos estúdios de Joinville para realizar uma série de comédias comerciais sonoras que o fizeram sentir que estava se enclausurando num gênero, limitando sua criatividade ao vaudeville. Elas merecem, contudo, uma revisão. Alguns críticos consideram Plaisirs défendus brilhante. Em Dans une île perdue (1931) e A mi-chemin du ciel (1931), Cavalcanti trabalhou com Enrique Rivero, ator chileno que se tornou, em seguida, ícone do surrealismo e do cinema gay no papel do poeta em Sangue de um poeta (Le Sang d’un poète, 1932), de Jean Cocteau.


Veterano do cinema mudo, Cavalcanti considerava o diálogo algo acessório ao filme, cuja essência era, sobretudo, visual. Em cinco segundos, ele dizia, podia-se mostrar uma “solidão” na tela: bastaria o apito de um trem e o latido de um cachorro para que o público imaginasse a solidão de uma mulher. (CAVALCANTI apud CALDIERI, 2005). As ideias revolucionárias de Cavalcanti sobre o som no cinema chamaram a atenção do documentarista John Grierson, escocês socialista que dirigia o General Post Office (GPO), a unidade de cinema do Departamento Britânico de Correios e Telégrafos.

Preferindo retomar o curso de sua carreira errante, sempre aberta a novos desafios, Cavalcanti aceitou o convite de Grierson e partiu para a Inglaterra em 1933, onde substituiu Flaherty no cargo de instrutor dos cineastas que produziam documentários no GPO. Grierson havia cunhado o termo “documentário” numa resenha do filme Moana (Moana, 1926), de Flaherty, e desejava forçar o público a se interessar pelas questões essenciais do país através de filmes educativos. Cavalcanti não gostava da palavra “documentário” e em seu livro Filme e realidade (1952), escreveu que ela tinha “um gosto de poeira e tédio”; no GPO, Cavalcanti sugeriu a Grierson o uso do termo “neorrealismo”, sugestão que não foi acolhida.

Havia divergências entre a visão de documentário de Cavalcanti, que gostava de dramatizar a realidade, e a visão mais direta e funcional de Grierson, que considerava o brasileiro um “esteta” pouco afeito à sua concepção do filme “não cinemático”, embora todos os documentários do GPO, antes mesmo da chegada de Cavalcanti, qualquer que fosse o tema abordado, dramatizavam a realidade “para forçar o público a se interessar pelas questões essenciais do país”.

O GPO operava como uma equipe, em revezamento nas diversas funções dos filmes, e Cavalcanti foi sucessiva ou simultaneamente diretor de som, assistente de direção, diretor e produtor de muitos dos documentários realizados, nos quais introduziu notáveis inovações de som e de edição. Ele e todos trabalhavam à maneira dos artesãos da Idade Média. O filme de cada um era discutido pelo grupo e se o filme de um companheiro exigisse melhora, todos ajudavam; mas cada equipe mantinha seu próprio perfil dentro de um espírito de competição saudável.

O primeiro filme dirigido por Cavalcanti no GPO foi o curta-metragem Pett and Pott: A Fairy Story of the Suburbs (1934), um falso conto moral com o objetivo de promover o uso do telefone. O otimista Pett investe num serviço de telefonia enquanto o decadente Pott usa seu dinheiro para manter uma empregada em casa. A falta do telefone leva a senhora Pott a longas caminhadas carregando pacotes, causa constantes mal-entendidos e discussões inúteis. Já a senhora Pett faz as compras pelo telefone e a família tem tempo para viajar nos fins de semana e manter a vida bem organizada. Certa noite, quando os Pott se ausentam, a empregada abusada chama o amante ladrão para roubar a casa. Felizmente, a filha dos Pett ouve o barulho na casa dos vizinhos e chama a polícia pelo telefone. Os larápios são presos e, no tribunal, tanto a bravura da menina quanto o uso do telefone são elogiados pelo juiz. Para Ruy Gardnier, o filme está entre os mais interessantes do diretor:

 

Em trinta e três minutos, vemos uma obra francamente experimental… Porque procedeu à algo insana experiência de gravar todo o som do filme para em seguida associar-lhe as imagens […]. [Este] pequeno teatrinho de comportamentos sociais, com dimensões extraordinárias e de tom folgadamente expressionista […] mostra em paralelo os destinos de duas famílias. (GARDNIER).

 

O estilo expressionista que Gardnier identificou no filme, Cavalcanti definiu como “surrealista com tendência ao realismo”. Mas a presença da fabulosa dançarina e atriz expressionista Valeska Gert, no papel da empregada, revela que Cavalcanti mesclava os diversos estilos, de forma eclética, sem dogmatismos.

Entre 1934 e 1939, Cavalcanti sonorizou, produziu e/ou dirigiu dezenas de documentários e animações para o GPO – filmes experimentais que transcenderam, por suas qualidades cinemáticas, os objetivos institucionais, revelando as realidades sociais por trás das propagandas encomendadas. O mais notável deles foi Cara de carvão (Coal Face, 1935), com iluminação influenciada pelo cinema expressionista alemão, edição inspirada no cinema mudo soviético, notáveis efeitos sonoros e texto escrito pelo poeta W. H. Auden, que destaca o papel do carvão na economia britânica sem eludir os perigos enfrentados pelos mineiros, submetidos a precárias condições de trabalho.

É antológica a marcha subterrânea dos mineiros acompanhada por um coro surdo, com as sombras de seus corpos alongadas projetando-se nas paredes da galeria, e os grandes planos de seus rostos, mãos e pés editados de modo a criar um balé audiovisual. A sequência teria inspirado a cena de Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, 1937), de David Hand, em que os sete anões deixam a mina e marcham para casa cantando “Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou”, com suas sombras alongadas projetando-se nas montanhas.

Em 1937, Grierson deixou o GPO (irá em 1939 para o Canadá a convite do governo para ajudar a criar o National Film Board of Canada) e Cavalcanti assumiu a direção da unidade juntamente com J. B. Holmes, produzindo uma série de documentários criativos até 1939, quando a Segunda Guerra começou. O GPO passou à Crownfilm Unit, ramificação do Ministério da Informação (MOI), encarregado de propaganda de guerra. Quando Londres começou a ser bombardeada pelos alemães, Cavalcanti convocou os cinegrafistas Humphrey Jennings, Pat Jackson e Harry Watt para sair do estúdio e filmar os acontecimentos: “A História está sendo feita nas ruas”, disse à equipe. Os filmes que resultaram dessas jornadas estão entre os melhores produzidos sobre a guerra.

Mas, em 1940, no auge de seu trabalho no GPO, Cavalcanti deixou a unidade por razões que ainda permanecem obscuras: para alguns, o Ministério da Informação não queria que sua produção de propaganda fosse dirigida por um homossexual brasileiro. Cavalcanti declarou certa vez: “Eu era um estrangeiro. O pessoal do GPO queria que eu me naturalizasse britânico. Eu estava praticamente no comando do GPO e eles colocaram alguém no meu lugar.”

Em The Finest Years: British Cinema of the 1940 (2007), Charles Drazin supõe que Cavalcanti era valorizado e reconhecido, como provaria um memorando do gerente geral do GPO ao MOI: “Mr. Cavalcanti é sem dúvida o melhor produtor do país e é vital que a unidade de cinema continue a utilizar seus serviços”.

Contudo, nem todos pensavam assim: Paul Rotha avaliou que “nenhum filme [do GPO] conta sua história claramente. Cada um começa com alguma concepção universal que não leva a lugar nenhum; isso se deve, talvez, à insistência de Cavalcanti em boa técnica a qualquer preço.”. Para Rotha, o documentário deveria ser utilitário sem “as lixeiras e lixos de Alberto Cavalcanti” (ROTHA, 1967).

Se “En rade possuía composições adoráveis sobre a qual (o diretor) construiu uma atmosfera de barcos e de mar, faltava ao filme, definitivamente, a vitalidade dinâmica do cinema” (ROTHA, 1967). Cavalcanti possuiria uma “mente pictural não cinemática” (ROTHA, 1967), “não (sendo) um diretor de filmes cinemáticos” (ROTHA, 1967). “Embora seus filmes sejam cheios de lixo e depressão, eles são todos adocicados […] En rade, filmado em docas e barcos de Marsellha, é um exemplo louvável de centralização do ambiente, pictorialmente belo, mas cinematograficamente insignificante.” (ROTHA, 1967).

Em Claiming the Real (1995), Brian Winston observou que os griersonianos não se furtavam a recorrer aos efeitos poéticos que criticavam nos filmes do brasileiro: “A busca do pitoresco é encontrada até nos temas menos estéticos. Como Flaherty antes dele, Grierson não buscou um código alternativo específico do documentário para representar o tempo e o espaço. Ambos estavam satisfeitos com o legado de Hollywood, até porque a dramatização era vista como essencial à forma.”

Mais que o poético, era o pitoresco que incomodava os griersonianos na visão cavalcantiana do documentário, ligado à ideia francesa de photogénie defendida pela Avant-Garde (Louis Delluc, Louis Aragon, Jean Epstein). Em The Politics of Documentary (2008), Michael Chanan observou que a photogénie “significa mais do que atraente para a câmera… [é] um senso de transcendência que o filme empresta aos fenômenos sob observação, um brilho que nos dá a impressão de ver coisas como nunca as vimos antes”.

De qualquer forma, Cavalcanti fora contratado por Grierson para ajudar o GPO a alcançar esses efeitos poéticos ou pitorescos através de seu dominío do som e seu senso estético. E ele foi uma influência crucial sobre os jovens cineastas – Humphrey Jennings, Basil Wright, Harry Watt, Len Lye, Norman McLaren.

Sobre o papel do brasileiro no GPO, Joe Mendoza comentou: “Cav fez as pessoas pensarem analiticamente sobre o que estava na tela e sobre a sucessão de imagens, e por que ela foi plana aqui e nada aconteceu e por que ali ela melhorou.” Charles Hassé destacou o calor humano de Cavalcanti, que ouvia o que cada um tinha a dizer e melhorava o que cada um tinha a mostrar. E Watt declarou concluiu: “A chegada de Cavalcanti foi o ponto de virada. Sem ele, o documentário britânico não teria avançado. Antes dele, éramos amadores”.

Mais tarde, John Grierson admitiu que, por anos, o nome de Cavalcanti não foi colocado nos créditos dos filmes do GPO; os jovens eram creditados, mas o brasileiro produzia demais, se destacava demais, ele não “precisava” ter o seu talento e o seu trabalho reconhecidos… Hoje é consenso entre os historiadores que os filmes supervisionados por Cavalcanti no GPO destacaram-se pela riqueza imaginativa, especialmente os documentários de guerra de Humphrey Jennings, cuja brilhante carreira o brasileiro impulsionou.

Deixando o GPO, Cavalcanti foi trabalhar, a convite de Michael Balcon, nos Estúdios Ealing (Ealing Studios), exercendo as funções de editor, diretor de arte, diretor de som, produtor e diretor; ali realizou bem produzidos filmes históricos e poderosos panfletos contra o nazifascismo. Balcon valorizou sua visão de um cinema realista e poético e reconheceu seu talento: “Cavalcanti era um homem altamente civilizado… uma figura particularmente excepcional; de todo o grupo do GPO, Cavalcanti era o mais importante e o mais talentoso.”

Cavalcanti começou realizando um experimento antifascista satírico, César amarelo (Yellow Caesar, 1940), dirigido contra o ditador italiano Benito Mussolini, com imagens do Duce remontadas e trucadas a partir de cinejornais. O cineasta emprega efeitos de montagem para modificar o sentido do material de arquivo, transformando as imagens documentárias e suas intenções “realistas” numa fantasia, o que resulta num retrato tragicômico de Mussolini, a exemplo de O grande ditador (The Great Ditactor, 1940), de Charles Chaplin.

Em 1942, Cavalcanti produziu e dirigiu para a Biblioteca Nacional de Cinema (National Film Library), do British Film Institute, a coletânea Filme e realidade (Film and Reality, 1942) com narração de E. V. H. Emmett, sobre a evolução do documentário e sua suposta tradição “realista”.

Organizado de forma não cronológica, o metadocumentário fornecia exemplos da teoria e da prática do realismo no cinema, descrevendo o desenvolvimento do documentário como linguagem cinematográfica através de trechos de 59 filmes de diversos autores, entre os quais: os Irmãos Lumière, Tom Mix, Sergei Eisenstein, William Dieterle, Georges Méliès, Jean Renoir, Marc Allégret, Robert Flaherty, Walter Ruttmann, Harry Watt, Jean Benoît-Lévy, Jean Vigo e do próprio Cavalcanti (Somente as horas).

As opções estéticas de Cavalcanti e sua vaidade ferida nas querelas com os griersonianos que o atacavam, fizeram com que ele se incluísse entre os maiores diretores do cinema documentário, numa vingança contra os que o tiraram do GPO, o que acabou ferindo, por sua vez, a vaidade de Grierson, que considerou Filme e realidade um insulto ao Movimento Documentarista Britânico.

Em 30 de maio de 1943, dia de Santa Joana D’Arc, Joseph Kessel e seu sobrinho, Maurice Druon, reuniram-se no Ashdown Park Hotel, perto de Londres, com a cantora e resistente Germaine Sablon: era um belo domingo de sol, mas Kessel estava decidido a reescrever em francês, a pedido de Sablon, para um filme de Cavalcanti, a canção da resistência russa composta por Anna Marly em 1941.

Sentado no parque do Hotel, Sablon, com seu caderno de anotações sobre os joelhos – ela se esforçava então para aprender o inglês , ia anotando os versos que Kessel e Druon lhe ditavam. Das três às cinco da tarde a canção foi composta. Os três entraram então no saguão do hotel, onde havia um piano, e ali a Sablon, durante o chá da tarde, cantou, pela primeira vez, Les Partisans.

Depois, ela correu para o telefone, avisando seu amigo Alberto Cavalcanti que a canção estava pronta. No dia seguinte, às onze e meia da manhã, Cavalcanti filmava com Sablon e Georges Thill, nos Ealing Studios, 3 chansons de la Resistence (1943), produzido pelo QG do General De Gaulle. Na voz de Sablon, aquela canção, que ficou conhecida como Le Chant des Partisans, ouvida nas rádios clandestinas e registrada para a História por Cavalcanti (juntamente com Paris est à nous, de Anna Marly, cantada por Sablon; e La Marsellaise, por Thill), tornou-se o hino da Resistência Francesa (INA, 1963).

Nesta fase heroica da carreira de Cavalcanti, de resistência ao nazifascismo e colaboração no esforço de guerra, seu filme mais notável foi 48 horas! (Went the Day Well?, 1942), com roteiro de John Dighton, Diana Morgan e Angus MacPhail, inspirado no conto The Lieutenant Died First, de Graham Greene, publicado na revista Collier’s, em 29 de junho de 1940. O título original do filme seria They Came in Khaki (Eles vieram em cáqui). Foi talvez o único filme rodado durante a guerra que imaginou a Inglaterra sendo ocupada pelos nazistas.

O filme abre com um vigário explicando como uma lápide do cemitério de Bramley End, uma pequena cidade do interior da Inglaterra, veio a ter uma lista de nomes alemães. Em flashback vemos a chegada de caminhões do exército carregando soldados britânicos que precisam ser posicionados. Os aldeões mostram-se receptivos aos militares, sem entender que o país estava sendo invadido. Nessa impressionante propaganda da defesa inglesa contra espiões e sabotadores, os pára-quedistas alemães desembarcavam uniformizados como soldados britânicos.

A solteirona Nora (Valerie Taylor), filha do vigário, que hospeda um escudeiro (Leslie Banks), vê um “soldado britânico” comendo uma barra de Chokolade Wien e revela a estranheza disso ao escudeiro, de quem ela se aproxima atraída por sua autoridade e segurança, ignorando ser ele um colaborador dos nazistas.

Logo a idílica cidadezinha é transformada num campo de concentração. Os moradores, impedidos de se comunicarem com o resto do país, detidos em suas casas e na igreja, são submetidos a listas de chamadas e toques de recolher. Quando começam a resistir, lutam contra o invasor com todas as suas forças, fazendo uso das poucas armas de que dispõem.

As primeiras e ingênuas tentativas de resistência – mensagens escritas nas cascas dos ovos embalados para viagem, papéis colocados com pedidos de socorro nos bolsos dos visitantes – fracassam tristemente. Eles percebem, então, a necessidade de responder com violência à violência que sofreram.

Uma senhora joga sal nos olhos de um nazista e o golpeia até a morte com seu machado de cortar lenha. Depois, corre para a mesa de telefone para alertar a cidade vizinha. Ironicamente, as operadoras de telefônica mostram-se preguiçosas (“A velha pode esperar”) e, quando finalmente elas conectam a chamada, a mulher já fora assassinada com golpes de baioneta.

Um menino consegue uma arma da polícia local. Avistado por um nazista, é baleado na perna. Felizmente, o pobrezinho consegue arrastar-se penosamente, entre dores, até a casa de um vizinho.

Levando para casa crianças ameaçadas de serem fuziladas como punição pela fuga de um prisioneiro, uma dama impede que elas sejam apanhadas. Quando um nazista joga pela janela uma granada no quarto, a senhora não hesita em recolher o artefato, correndo para o corredor: ela morre na explosão, mas salva as crianças. Enquanto esperam a chegada dos soldados ingleses alertados, duas jovens resistem atirando nos ocupantes: “Temos que manter o placar”, diz uma delas, animada.

No clímax do filme, Nora descobre que o escudeiro, por quem se apaixonou, colaborou o tempo todo com os invasores: ela caminha em sua direção, na biblioteca, com uma arma escondida, e desfere naquele odioso traidor (amoroso e político) uma rajada de balas: ele cai da escada em direção à câmera, numa tomada inusitada experimentada por Cavalcanti.

Pela violência que perpassa o filme, o crítico David Cairns leu-o quase como uma “traição” ao esforço de guerra, escorado numa declaração posterior de Cavalcanti de que 48 horas! poderia servir hoje como propaganda pacifista: “nessa idílica cidade inglesa em que todo mundo é tão bom e afável, quando chega a guerra todos se tornam monstros absolutos” (CAIRNS).


Na época, porém, em que foi realizado, o filme certamente serviu para educar os ingleses sobre a natureza do inimigo que enfrentavam, mostrando, sem adocicar a realidade, que não era possível vencer o exército nazista com gestos ingênuos, mantendo a complacência, evitando a autodefesa. O governo britânico reconheceu a contribuição de Cavalcanti ao esforço de guerra oferecendo-lhe a nacionalidade britânica. O diretor a recusou, preferindo permanecer um brasileiro errante.

48 horas! integrava uma trilogia antinazista dos Ealing Studios que incluía The Foreman Went to France (1942), de Charles Frend, sobre um capataz de fábrica determinado a recuperar máquinas importantes emprestadas a uma empresa francesa para que os nazistas não pudessem usá-las; e The Next of Kin (1942), de Thorold Dickinson, sobre um ataque à França ocupada que os alemães interceptam devido a uma conversa fiada. A trilogia compartilha roteiristas, a estrutura de flashback, mudanças repentinas de humor e cenas fortes para a época.

Em sua autobiografia, Balcon escreveu que “o que fez The Foreman Went to France notável foi a influência de Cavalcanti… Cavalcanti era maravilhoso no cinema” (HOUSTON, 1992). Essa opinião, porém, não foi compatilhada por Charles Barr em seu livro de referência Ealing Studios, que deixou de lado a contribuição do brasileiro, descrevendo 48 horas! apenas como “parte solta de uma trilogia”.

Outra importante contribuição de Cavalcanti aos Earling Studios foi Champagne Charlie (Champagne Charlie, 1944), sobre a ascensão do cabaretista George Leybourne (Tommy Trinder), nascido Joe Saunders (Stanley Holloway) na cidade mineira de Leybourne, que ganha do público o apelido artístico de Champagne Charlie e rivaliza com o já consagrado Great Vance em duelos de drinking songs.

No final, os dois rivais unem-se, selando uma aliança contra a cruzada moralista dos proprietários de teatros, que não conseguiam esconder seus interesses financeiros ao pregar o fechamento dos cabarés, o que representaria o fim de suas carreiras. Para essa comédia vitoriana que evocava o teatro burlesco londrino do século XIX, Cavalcanti reconstituiu locais da Londres de 1860 com bastante precisão de detalhes, embora um crítico tenha percebido uma atmosfera suave mais próxima de Toulouse-Lautrec que de Walter Sickert.

Durante o cerco de Leningrado, em pleno inverno, Ivan Montague levou à URSS, entre outros filmes ingleses, a comédia de Cavalcanti. Ao voltar, trouxe uma mensagem de Eisenstein para o diretor: “Diga a Cavalcanti que se ele não refizer um filme como Champagne Charlie onde se canta, dança, come, bebe, para nos mostrar dentro da situação onde nos encontramos nesse inverno, não falarei mais com ele” (CALDIERI, 2005). O colega russo protestava contra o filme por estar a URSS faminta, enquanto os personagens de Cavalcanti bebiam e comiam à farta, dançando alegremente. Contudo, esse era justamente o objetivo do filme: fazer o público esquecer, por instantes, as misérias da guerra.

Em 1945, Cavalcanti perdeu a mãe. Ao mesmo tempo, garantiu seu lugar na História do Cinema com o fantástico filme Na solidão da noite (Dead of Night, 1945), composto de seis segmentos: The Linking Story e The Hearse Driver, de Basil Dearden; The Haunted Mirror, de Robert Hamer; The Golfing Story, de Charles Crichton; Christmas Party e The Ventriloquist’s Dummy, de Alberto Cavalcanti. O filme tem a estrutura de um pesadelo.

Confinado num chalé, um grupo de pessoas compartilha histórias sinistras enquanto um personagem tem certeza de já ter estado naquele lugar, onde teria matado um dos presentes…

Cavalcanti dirigiu o impressionante segmento Christmas Party, história de uma garotinha que encontra, durante uma festa de Natal, o fantasma de uma criança assassinada por sua irmã; e o melhor de todos os episódios, The Ventriloquist’s Dummy, história arrepiante sobre a possessão de um ventríloquo por seu boneco, Hugo, que adquire vida própria e pretende mudar de dono, levando seu manipulador à loucura.

No papel do ventríloquo, Michael Redgrave oferece uma performance espetacular, com sua máscara facial capaz de expressar, em segundos, uma enorme gama de emoções, contrastando e rivalizando com a máscara estática e sinistra de Hugo, que parece ganhar vida para arrasar moralmente seu manipulador com a constante ameaça de trocar de “parceiro” – trama percebida, por alguns críticos, como metáfora sutil para um doentio triângulo homossexual entre o boneco traiçoeiro e os dois ventríloquos rivais.

Segundo David Cairns, enquanto os filmes de terror dessa época apresentavam finais felizes em que a ordem era restaurada, Cavalcanti ousou criar um clímax assustador, com desfecho terrível e desprovido de esperança, antecipando o final de Psycho (Psicose, 1960), de Alfred Hitchcock (CAIRNS), ou, como notou Gilberto Silva Jr., a série de TV dos anos 1960 Além da imaginação (SILVA JR.).

Cavalcanti realizou, em seguida, A vida e as aventuras de Nicholas Nickleby (The Life and Adventures of Nicholas Nickleby, 1947), baseado na obra de Charles Dickens, produzido com bem cuidada cenografia de época e apuro técnico.

Depois de afastar-se da Ealing, Cavalcanti dirigiu Nas garras da fatalidade (They Made Me a Fugitive, 1947), um noir britânico com sombras expressionistas e flashes surrealistas que Cavalcanti levou da França em sua bagagem para a Inglaterra, contando com a colaboração de um dos maiores iluminadores da época, o tcheco Otto Heller. O roteiro baseado no romance A Convict has Escaped, de Jackson Budd, guarda do original apenas a premissa principal: o condenado que foge da prisão.

No imediato pós-guerra, Clem Morgan (Trevor Howard), ex-piloto da Real Força Aérea Britânica (RAF), que não consegue adaptar-se à vida civil e, desempregado, acaba entrando para uma gangue liderada por Narcy – abreviação de Narciso (Griffith Jones) que explora o mercado negro. Sob a fachada de uma funerária, a organização criminosa trafica cigarros, bebidas e drogas dentro de caixões.

No trabalho desonesto com Narcy, Morgan comete dois erros: depois de beber demais, ele apresenta sua namorada Ellen ao patrão e o critica por traficar narcóticos. Sensível às críticas que ouviu de Morgan, Narcy o entrega à polícia logo em seu primeiro “trabalho”, quando o carro em que fugia acidenta-se após matar um policial. O ladrão assassino lança sobre Morgan a culpa de seu homicídio.

Injustamente acusado, Morgan é condenado a 15 anos de reclusão no isolado presídio de Dartmoor. Além da liberdade, Morgan perde a namorada Ellen, que se bandeia, interesseira, para o lado do gângster. A rejeitada ex-namorada de Narcy, Sally (Sally Gray) visita Morgan na prisão e o incita a fugir. Morgan consegue a façanha e vaga por Londres planejando vingar-se do sádico criminoso.

Uma senhora de meia idade da classe média inglesa (Fenshaw) ajuda Morgan a esconder-se da polícia, mas com segundas intenções: ela vê nele uma oportunidade de ouro de livrar-se de seu marido alcóolatra. Trata bem o foragido, serve-lhe chá com bolo e fornece um banho quente, pedindo em troca apenas que ele mate seu marido, que está no andar de cima. Em sua obtusidade, ela pensa que a um condenado um crime a mais nas costas não fará diferença. Ela lhe daria até algum dinheiro.

Morgan insiste que só matou alguns nazistas durante a guerra, recusando-se a tirar a vida de um inocente. Mas como ele parte deixando a arma que a senhora lhe deu sobre a mesa, ela a recolhe com cuidado para preservar as impressões digitais do fugitivo; depois, vai até o quarto de cima e descarrega a arma no cônjuge, que rola escada abaixo. Com isso, mais um cadáver é jogado na conta de Morgan.

Já Sally, depois de tentar ajudar Morgan, é punida brutalmente por Narcy, que manda seu capanga espancá-la com um cinto enorme enfeitado com ásperos medalhões metálicos. Finalmente, Morgan fica cara a cara com Narcy e seu bando, enfrentando-os sozinho na funenária cheia de caixões vazios e quadros de consolação evocando a morte para o luto dos clientes, num contraponto mórbido e cômico às ações violentas que ali se desernrolam.

A luta corpo-a-corpo é levada até o telhado do prédio, de onde o vilão, ao despencar, mergulha no vazio até cair de cabeça na calçada de pedra. A câmera nos dá, então, a visão subjetiva da dolorosa queda. E nem morrendo, com o rosto esfolado, o vilão liberta o herói marcado, antecedendo o final de outro noir mais famoso: Pacto sinistro (Strangers on a Train, 1951), de Alfred Hitchcock. Mas, aqui, o herói não encontra sua remissão.

De produção modesta, mas brilhantemente encenado, o filme faz um retrato sombrio do imediato pós-guerra na Inglaterra. Os ambientes pobres, os bares infectos, o submundo das docas, nada escapa ao olhar de documentarista de Cavalcanti. Personagens corruptos dominam a cena, como a idosa em elegante traje de luto que se revela a chefa da gangue ou a triste senhora de classe média que alimenta a esperança sórdida de que Morgan liquide seu marido beberrão.

Nessa atmosfera sombria e expressionista graças aos planos inclinados e closes de personagens com olhos constantemente esbugalhados, Cavalcanti recorre a efeitos visuais herdados da Avant-Garde: quando Narcy espanca Ellen, o pavor da garota é cristalizado num close de seu rosto, com os fotogramas arranhados, como se o filme envelhecesse subitamente. O sadismo de Narcy é acentuado pela câmera, que gira loucamente enquanto o criminoso pisoteia a mocinha.

O príncipe regente (The First Gentleman, 1947), o filme menos conhecido de Cavalcanti desta fase, é, segundo A. C. Gomes de Mattos, uma brilhante reconstituição histórica com cenários e figurinos impecáveis e uma deliciosa composição de tipo de Cecil Parker no papel do extravagante George IV da Inglaterra, quando ainda era o Príncipe de Gales.

Frustrado seu projeto de adaptar Sparkenbroke, de Charles Morgan, para a Rank, Cavalcanti aceitou, em 1949, o convite de Assis Chateaubriand, então embaixador do Brasil em Londres, e de P. M. Bardi, para ministrar uma série de dez conferências sobre o cinema no Museu de Arte de São Paulo – MASP, recém-criado por Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado.

Aproveitando a oportunidade, o empresário Franco Zampari, que fundara com sucesso o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e que agora pretendia criar, com Matarazzo, Adolfo Celi e Ruggiero Jacobbi, um estúdio de cinema nos moldes dos de Hollywood, convidou Cavalcanti para ser o diretor de produção da Vera Cruz.

Empolgado com a tarefa e com o contrato de quatro anos, ele se desfez de seu apartamento em Londres, fechou sua casa em Anacapri e convidou para trabalhar com ele na criação da Vera Cruz o fotógrafo inglês Chick Fowle, o editor iugoslavo Oswald Haftenricher, o engenheiro de som dinamarquês Eric Rassmussen, o assistente de som Michael Stoll, o ator e diretor argentino Tom Payne, o editor inglês John Waterhouse, o maquiador Jerry Fletcher, entre outros excelentes técnicos, eletricistas, iluminadores.

Com a competente equipe internacional que reuniu, Cavalcanti construiu um estúdio profissional com uma rotina de produção, contratos milionários e artistas exclusivos. Cavalcanti produziu os dois primeiros filmes da nova companhia – Caiçara (1950), de Adolfo Celi e John Waterhouse; e Terra é sempre terra (1951), de Tom Payne - e lançou diversos atores que se tornaram ícones do cinema nacional: Mário Sérgio, Alberto Ruschel, Eliane Lage, Marisa Prado, Colé.

A Vera Cruz foi, porém, mal administrada por Zampari. A desorganização financeira e o nepotismo imperavam. No estúdio, faltava lápis, mas o cão Duque que só participara de um filme, sendo empregado como “animador de festas” fazendo piruetas, ganhava um salário superior ao da grande atriz negra Ruth de Souza, que brilhava no Teatro Experimental do Negro (CALDIERI, 2005).

A Vera Cruz financiava o TBC enquanto sua produção era boicotada pelas grandes distribuidoras e pela Kodak, que não fornecia as películas, obrigando Cavalcanti a comprá-las na Argentina, sem garantia de qualidade. Após montar no Brasil, a duras penas, em apenas um ano, uma infraestrutura de cinema industrial, sem obter o devido respaldo administrativo, o cineasta foi demitido por Zampari.

O rompimento desencadeou uma campanha de difamação sem precedentes contra Cavalcanti, a quem Abílio Pereira de Almeida chegou a chamar de “bicha histérica” (PELLIZZARI; VALENTINETTI, 1995). Cavalcanti estava acostumado com essas manifestações de homofobia. E depois de desmontar sua vida na Europa, preferiu minimizar as ofensas e retomar sua missão de fazer cinema no Brasil.

Desistindo de filmar uma biografia de Noel Rosa intitulada O escravo da noite, realizou Simão, o caolho (1952), uma comédia ambientada nos bairros populares de São Paulo, entre 1942 e 1950. Simão é um corretor de negócios caolho, que espera por um lance de sorte e quer, de qualquer maneira, recuperar seu olho perdido. Para tanto, submete-se às experiências de um amigo, inventor maluco. O novo olho que obtém dota-o de poderes especiais, como a invisibilidade. Simão torna-se milionário com corridas de cavalo, envolve-se com magnatas do mercado de carne e decide entrar para a política, candidatando-se à Presidência da República, sendo mesmo eleito.

O filme desenrola-se dentro de uma narrativa às bordas do surrealismo e sua melhor sequência é a do sonho de Simão, na qual ele perde seu olho artificial, que cai ao chão, rolando como uma bola de gude, até um galinheiro, onde uma galinha cisca o precioso órgão, para desespero do proprietário.

O filme foi produzido pela Cinematográfica Maristela um ano após a saída de Cavalcanti da Vera Cruz. Ganhou o Prêmio de Melhor Diretor da Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos de 1952 (Rio de Janeiro); o Saci de Melhor Diretor de 1952 (São Paulo), além dos Prêmios de Melhor Ator Secundário para Barsotti e o de Melhor Adaptação para Silveira e Moles. Cavalcanti trabalhou sob condições que não conhecera nem quando assistente de L’Herbier. E mesmo nessas condições realizou a comédia mais brilhante do cinema brasileiro.

Precisando de apoio para a criação de sua companhia de cinema, Cavalcanti foi mostrar Simão, o caolho ao Presidente Getúlio Vargas, que teria rido à larga com a sequência em que estudantes revoltados pregam a revolução até que, ao ouvirem um bate-estacas, fogem acovardados, imaginando ser a repressão. Virando-se para o Ministro da Fazenda, Getúlio teria dito: “Empreste o dinheiro que pedirem!”.

Assim teria nascido a Kino Filmes, com a aquisição da Maristela, no final de 1952, por Cavalcanti e um grupo de empresários. Cavalcanti era o diretor-geral da nova empresa. Ali ele realizou O canto do mar (1953).


Na trama, inspirada em En rade, retirantes da seca dirigem-se para o litoral, em direção ao sul. Numa família de pescadores, o velho pai, bêbado e desequilibrado, é ameaçado de ser mandado para o hospício pela mãe lavadeira, de caráter inflexível. O adolescente Raimundo trabalha para ajudar no sustento da casa enquanto a irmã mais velha vive à toa, desejando seguir seu destino de prostituta.

O irmão pequeno adoece e morre sem assistência. A mãe não chora para que o anjinho não entre no céu com chuva. Sonhando em embarcar para o sul com a namorada, Raimundo assalta o armazém onde ela trabalha para comprar duas passagens. Mas a namorada foge com um caminhoneiro, sem despedir-se de Raimundo e da própria família.

A mãe de Raimundo descobre as duas passagens na trouxa do filho e pensa que a segunda era para seu marido. Como ela o detesta, leva o coitado ao desespero dizendo-lhe que o filho partiu no barco que acabara de zarpar, que ele chegara tarde ao porto e fora abandonado para sempre.

O doido se lança ao mar numa canoa tentando alcançar a embarcação. Raimundo, no entanto, havia desistido da viagem ao saber da traição da namorada. Só teme agora ser preso como assaltante, mas o comerciante aceitou a promessa da mãe de devolver o dinheiro aos poucos. No final, todos os sonhos se desfazem, e mesmo a mãe parece sucumbir ao saber que a segunda passagem era para a namorada do filho, e que ela havia, assim, levado injustamente o marido à morte.

Ao ser exibido em Cannes, em 1954, Vinicius de Moraes, então adido cultural do Brasil na França, tentou influenciar os jurados para que o filme não fosse premiado, pois ao mostrar um Brasil miserável Cavalcanti foi considerado “comunista” pelas autoridades brasileiras. Essa proposta indignou o crítico comunista Georges Sadoul.

Paradoxalmente, no Brasil, o crítico comunista Alex Viany considerou O canto do mar um filme fracassado, baseado numa anedota medíocre e com cenas de folclore turístico. Desagradando comunistas e anticomunistas, o filme teria sido elogiado à época apenas por Jean-Paul Sartre, segundo Caldieri, que não cita sua fonte.

O que provavelmente desagradou os comunistas foi o tom fatalista da apresentação de personagens presos ao seu “destino”, numa situação sem saída. Como bem observou Luciana Corrêa de Araújo, esse fatalismo era sugerido por imagens recorrentes de redemoinhos, gaiolas, grades e vigas. Num misto de ficção e documentário, um pouco à maneira de A terra treme: episódio do mar (La Terra Trema: Episodio del Mare, 1948), de Luchino Visconti, Cavalcanti retratou o Nordeste com um olhar de esteta e de antropólogo (ARAÚJO).

Os que atacavam O canto do mar por seu caráter “folclórico” reduziam seu drama social. Os que nele só enxergavam “miséria” descartavam seu esteticismo. Mais tarde, Glauber Rocha retomaria a crítica brasileira de orientação comunista, qualificando O canto do mar de “desequilibrado e claudicante”.

Cavalcanti dirigiu, em seguida, outra comédia surrealista, Mulher de verdade (1954). Num confronto com a polícia, Bamba (Cole), um malandro, tem seu crânio fraturado. No hospital, apaixona-se pela enfermeira Amélia (Inezita Barroso, em seu primeiro papel no cinema). Ele planeja casar-se com ela depois de cumprir sua pena na prisão. Depois de um último golpe, Bamba muda de vida para realizar seu sonho. A enfermeira, que sofre de perda de memória recente, talvez devido aos seus inusitados horários de trabalho, aceitou casar-se com Bamba, mas já estava casada – casamento que escondia do hospital por ir contra os regulamentos. Tentando esconder do marido seu relacionamento com Bamba, e do hospital seus dois casamentos, Amélia leva uma vida dupla – ou tripla… Até que, durante um incêndio, Bamba salva a esposa das chamas e uma festa é organizada para homenageá-lo, e na qual a bigamia de Amélia é exposta.

Mulher de verdade traz um número musical de Ivaná (Ivan Monteiro Damião), o primeiro travesti do teatro de revista brasileiro (NUNES, 2015), e uma impagável sequência musical com amigos travestidos, antecipando, em mais de uma década, a “nova sensibilidade” da contracultura que se manifestará no Cinema Marginal.

Embora alegadamente “inspirado” na canção popular Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago, que faz o elogio da mulher-objeto, fiel e obediente ao marido como um cão ao seu dono, o filme celebra o oposto do que ela prega. Os letreiros finais citam, com refinada ironia, Madame de Staël, parodiando o machismo contido na canção: É por isto que uma mulher de verdade, Madame de Staël, disse: “Eu não queria ser homem para não ter de casar com uma mulher.”

Cavalcanti também começou a produzir na Kino Films, sem conseguir concluir, provavelmente por falta de recursos, a maior parte de suas produções. A despeito de sua qualidade, os filmes da Kino Films fracassaram nas bilheterias. Não tendo como pagar as contas da empresa, Cavalcanti a devolveu aos antigos proprietários em 1954. Com o fim da companhia, ele foi trabalhar como diretor na TV e no teatro. E publicou o importante livro Filme e realidade (CAVALCANTI, 1953).

Cavalcanti foi então convidado pelo Presidente Getúlio Vargas a elaborar o projeto do Instituto Nacional do Cinema (INC) para, em seguida, presidi-lo. Ele elaborou o projeto, mas não aceitou o cargo burocrático, pois queria apenas fazer cinema. Indicou em seu lugar o escritor Josué Guimarães. Getúlio lamentou a decisão do cineasta, mas aceitou a indicação.

Semanas depois, ao convocar Guimarães, Vargas declarou-lhe que deveria adiar a criação do INC, pois o Departamento de Estado dos EUA, através de comunicação feita ao chanceler João Neves da Fontoura, havia considerado a idéia da criação do Instituto um ato hostil à produção norte-americana de cinema com a intenção de dificultar o mercado brasileiro para os EUA.

No projeto de Cavalcanti, cada órgão público teria seu próprio cinema, sendo o INC encarregado de coordenar a produção. O projeto foi alterado pelo governo e Cavalcanti renegou a agência de propaganda criada, que substituiu seu projeto.

Cavalcanti ainda ajudou a organizar o I Festival Internacional de Cinema de São Paulo em 12 de fevereiro de 1954. Através de seus contatos, vários atores e diretores famosos aceitaram participar. Desembarcaram em São Paulo os cineastas Mervin Le Roy, Norman McLaren, Erich Von Stroheim; as atrizes Joan Fontaine, Irene Dunne, Rhonda Fleming, Jeanette MacDonald, Ann Miller; os atores Tyrone Power, Robert Cummings, Walter Pidgeon, Edward G. Robinson, Errol Flynn. Durante o Festival, Cavalcanti recebeu o Prêmio Governador do Estado “pelo alcance de sua contribuição para a recuperação do cinema brasileiro”.

Cavalcanti encenou Electra, de Sófocles, no Teatro Leopoldo Froes com Madalena Nicol, Valdo Wanderley, Rachel Forner, Nadia Brandel, Wanda Cosmo, Riva Nimitz, Apolo Monteiro, Carlos Cotrim; e adaptou a peça para a TV Tupi de São Paulo, com o mesmo elenco (MATTOS, 1988; 2010).

Depois de retornar de uma viagem à União Soviética, Cavalcanti viu-se desempregado, sendo visto como “comunista” pela burguesia paulista por ter publicado no Diário de S. Paulo artigos sobre sua viagem e elogiado o cinema soviético num encontro com Trigueirinho Neto. Já os comunistas viam Cavalcanti como um “burguês decadente” por assumir sem recalques sua homossexualidade. E os futuros cinemanovistas difamavam Cavalcanti como “reacionário” por ter colaborado com o governo Vargas no projeto (rejeitado) do INC, sendo que a verdadeira razão de sua rejeição estava no fato de que ele não os havia convidado para trabalhar na Vera Cruz. Assim explicou-se Nelson Pereira dos Santos:

 

É claro que criticamos tudo aquilo, ainda que Cavalcanti tenha sido o principal instigador desse interesse nascente do cinema, para nós ele não passava de um ‘agente do imperialismo’. Sonhávamos entrar na Vera Cruz, mas criticávamos tudo o que se fazia lá. Queríamos participar para podermos mudar todo o sistema das coisas. Não sabíamos muito bem como e não havíamos definido claramente a alternativa. Imaginávamos alguma coisa próxima do neo-realismo, mas não compreendíamos que esse tipo de cinema era incompatível com as estruturas da Vera Cruz… Quando Cavalcanti deixou a Vera Cruz e se associou a Getúlio Vargas, para criar a Comissão Nacional de Cinema, que foi as bases do primeiro INC (Instituto Nacional de Cinema), nós nos opusemos ferozmente, sem nem pensar que algumas das medidas preconizadas por Cavalcanti eram as mesmas pelas quais teríamos lutado. Éramos hostis por princípio, porque não haveria nada de esperar de bom de um ‘colaborador’ (SANTOS apud GALVÃO, 1981).

 

Sem encontrar espaço num Brasil de mentes primitivas Cavalcanti acabou retornando desgostoso à Europa em dezembro de 1954: “Tentei organizar uma estrutura realmente profissional e séria, mas sofri críticas e perseguições de toda sorte, até mesmo com absurda conotação política”, lamentou. Provocando ainda mais a provinciana esquerda brasileira, o cineasta aceitou a oferta de um estúdio austríaco para adaptar a peça de Bertolt Brecht, Sr. Puntila e seu criado (Herr Puntila und sein Knecht Matti, 1955), a ser rodada em cores, em Viena.

Cavalcanti fez o filme por insistência de outro célebre comunista, o documentarista holandês Joris Ivens, originalmente incumbido da direção. Ivens não se sentia à vontade para dirigir atores profissionais em enredos de ficção, especialmente em uma comédia, e Cavalcanti assumiu a tarefa, a partir da escritura do roteiro em parceria com o papa da dramaturgia marxista.

Com fama de inimigo do cinema, tendo processado Georg Wilhelm Pabst pela adaptação de A ópera de três vinténs (Die 3 Groschen-Oper, 1931) e rompido com Fritz Lang pelos cortes de seu roteiro infilmável em Os carrascos também morrem (Hangmen Also Die!, 1943), o escritor detestava até as melhores adaptações de suas obras. Mas Cavalcanti percebeu que ele aceitava o corte de grandes trechos de seus escritos se os textos mantidos não fossem modificados. Ele tampouco criava dificuldades para cenas novas, inventadas, desde que elas não contivessem diálogos. Cavalcanti pode assim trabalhar com Brecht sem nenhum atrito.

A trama gira em torno de Puntila (interpretado por Curt Bois, que havia sido dirigido neste papel pelo próprio Brecht na montagem da peça), um rico proprietário de terras finlandês, que é generoso e engraçado quando bêbado e austero, e cruel quando sóbrio. Além de aguentar o temperamento oscilante do patrão, seu fiel criado precisa protegê-lo quando ele se envolve em confusões.

O cineasta fez as sórdidas relações humanas contrastarem com belas paisagens, com a ação burlesca sendo comentada por um coro de criadas, bem no espírito do teatro brechtiano. Cavalcanti também criou diversas cenas musicais, cuja trilha sonora encomendou a Hanns Eisler, então colaborador do filósofo Theodor Adorno. O resultado satisfez Brecht, que aprovou o filme com entusiasmo, ao contrário do que ocorrera com as outras adaptações de suas obras.

Ainda nessa fase de “companheiro de viagem” dos comunistas, Alberto Cavalcanti colaborou com a DEFA num filme em cinco episódios sobre a condição das mulheres trabalhadoras em cinco países, A rosa dos ventos (Die Windrose, 1954-1957), produzido para o Congresso da Federação Internacional das Mulheres Democráticas, dirigindo o Prólogo e escrevendo com Jorge Amado e Trigueirinho Neto o episódio brasileiro, Ana (1957), estrelado por Vanja Orico.

Desde então, a produção de Cavalcanti diminuiu, sendo o diretor cada vez menos requisitado, tornando-se ele mais que nunca um cineasta errante, em busca de produção para projetos pessoais ou de encomendas para manter-se em atividade.

Em 1967, Cavalcanti realizou um filme sobre a visão de Theodore Herzl sobre a criação de um Estado Judeu, produzido em Israel, em quatro versões: a versão israelense original recebeu o título de Herzl (1967) e foi narrada por Haim Yavin e Ester Sofer, com Izhak Michael Sheila fazendo a voz de Theodor Herzl; a versão norte-americana foi intitulada Story of Israel, sendo narrada por Stanley Broza e Anita Davies; a versão inglesa chamou-se Thus spoke Theodore Herzl e foi narrada por Leo Genn; e a versão francesa foi apresentada como Ainsi parlait Theodor Herzl, com narração de Yves Robert.

Na sequência do registro da votação da ONU que determinou a partilha da Palestina, Cavalcanti fez questão de incluir o voto favorável do Brasil. Através da escolha do registro desse voto, em detrimento de dezenas de outros, Cavalcanti reafirmou tanto sua nacionalidade brasileira jamais renegada quanto sua posição a favor de Israel. Foi ainda em Israel que Cavalcanti encenou, durante a produção do filme, uma das quatro peças que dirigiu em sua vida: Fuente Ovejuma, de Lope de Vega, no Teatro Municipal de Haifa.

Sempre na vanguarda, sempre experimentando novas formas de filmar, Cavalcanti deslocava-se para trabalhar onde quer que fossem oferecidos à sua mente inquieta novos desafios cinematográficos, retornando depois à sua casa-refúgio na paradisíaca Anacapri, na Itália, para ler, escrever, concentrar-se em futuros projetos e manter encontros amorosos efêmeros. Continuou a produzir filmes de ficção e documentários, incluindo duas produções para a TV francesa: Les Empaillés (1969), com texto de Jeannine Worms; e La visite de la vieille dame (1971), com Mary Marquet e Louis Arbessier, a partir da peça A visita da velha senhora, do escritor suíço Friedrich Dürrenmatt.

Cavalcanti voltou novamente ao Brasil em 1969 para integrar o júri do Festival Internacional do Filme, no Rio de Janeiro. Em 1970, deu aulas no Film Study Center em Cambridge, Massachussets e ganhou, em 1972, a American Medal for Superior Artistic Archievement. Em 1973, fez conferências na UCLA e deu aulas de cinema para minorias étnicas nos antigos estúdios da MGM.

Depois de um novo telefilme realizado na França, Le voyageur du silence (1976), Cavalcanti retornou mais uma vez ao Brasil para realizar um projeto pessoal: a cinebiografia do compositor popular brasileiro Noel Rosa. De 1976 a 1980, Cavalcanti morou no hotel Castro Alves tentando viabilizar esta e outras produções: uma adaptação de Aurélie, de Louis Aragon, que teria três horas de duração e deveria ser filmada em cores; outra de Tenda dos milagres, de Jorge Amado, com assistência de Adalberto Vieira e Jeannine Worms, a ser estrelada por Dorival Caymmi; um épico sobre A Retirada da Laguna, que teria interessado ao exército francês. Nenhum desses projetos vingou.

Outro projeto, ainda mais acalentado por Cavalcanti, era realizar a cinebiografia do primeiro dramaturgo brasileiro, Antônio José da Silva, condenado à fogueira da Inquisição, no século XVIII, em Lisboa, por ser judeu: O doutor judeu, um épico orçado em US$ 300 mil, cabendo ao governo português arcar com US$ 50 mil.

Tive o privilégio de ler o roteiro original de Cavalcanti na época das negociações do cineasta com a Embrafilme. Uma das cópias dele foi-me então emprestada pelo ator Guará Rodrigues, que estudava suas falas numa das peças do dramaturgo que seriam encenadas dentro do filme. Guará fora convidado para viver o papel de seus sonhos: Sancho Pança, o fiel escudeiro de Dom Quixote. A peça de Antônio José da Silva que seria representada por Guará era a Vida do grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança.

A Embrafilme alegou poder produzir quatro filmes ao custo daquele único de Cavalcanti e negou essa chance ao maior cineasta brasileiro. Com a verba da agência, Cavalcanti acabou por fazer um documentário sobre sua própria obra: Um homem e o cinema (1977), projeto narcísico que ele justificou por ter nascido de uma conversa sua com André Malraux, então Ministro da Cultura na França.

Em 1980, sem mais esperanças, amargurado com a última rejeição de seu talento em sua pátria, Cavalcanti retornou para seu apartamento na Rue du Fresnes, em Paris. Antes de partir, pressentindo que dessa vez seria para sempre, externou a amigos seu desejo de registrar seu último passeio pela terra natal. Entre despedidas, renovação de passaporte e arrumação de malas, ele conseguiu que J. B. Tanko produzisse e Gilvan Pereira dirigisse uma lembrança cinematográfica para seus amigos registrando um passeio nostálgico: “a rua onde nasceu; o quintal da casa do Leme onde brincava na infância, hoje um bar no calçadão; e sua caminhada para onde ficaria para sempre” (VALENTINETTI, 1997).

Na França, Cavalcanti tentou escrever roteiros para a TV e concluir suas memórias. Morava num tranquilo bairro parisiense, num sobrado coberto de trepadeiras, e saía apenas para andar pelas redondezas, jantando no restaurante Tastevin, frequentando o Café Nice. Ia à casa dos amigos Françoise Jaubert, a filha do compositor Maurice Jaubert; Arthur de Toledo Piza, artista brasileiro; Jeannine Worms, dramaturga cuja peça Nuit ele encenara nos anos de 1970. Tinha dificuldades para andar, mas ia de noite ao Café de Flore ou à Cervejaria Lipp, em Saint-Germain des Près.

Cavalcanti faleceu a 23 de agosto de 1982, aos 85 anos, numa clínica da Rue de Passy em Paris, após uma crise cardíaca. Em discreta cerimônia, seu corpo foi cremado no Cemitério Père Lachaise e as cinzas enviadas à família no Rio de Janeiro pelos amigos franceses de Cavalcanti: Jean François Nehu, Françoise Gilbert e Jeannine Worms. A Cinemateca Francesa organizou, então, uma retrospectiva de seus filmes no cinema e na TV.

Alberto Cavalcanti identificava-se com o destino errante dos judeus, simbolizado na figura do poeta brasileiro queimado pela Inquisição. Esse “fascinante gênio itinerante do cinema mundial” (CAIRNS) permanece o brasileiro de maior relevo na História do Cinema, com uma filmografia que alcança 126 títulos, incluindo trabalhos como figurinista, cenógrafo, diretor de arte, montador, roteirista, diretor e produtor.

A formação cultural de Cavalcanti era universal como seu gosto cinematográfico. Perguntado sobre seus cineastas preferidos, Cavalcanti citou Griffith, Chaplin, Stroheim, Eisenstein e Flaherty. E Bergman? Não o agradava: “Não inventou nada, socialmente. Não refletiu, não documentou coisa alguma. Nunca se preocupou com a situação social do homem”. Do mesmo modo, rejeitava a Nouvelle Vague, que dizia ser composta por jovens ricos vindos da crítica cinematográfica que se elogiavam mutuamente, desconhecendo outros campos da arte, reagindo contra o cinema industrial sem a agressividade vital dos surrealistas, que provocavam a destruição das salas onde os filmes eram exibidos: “A Avant-Garde, que era composta por rapazes pobres, morreu deixando grandes obras e tradições, enquanto a Nouvelle Vague morreria em silêncio” (CALDIERI, 2005).

Cavalcanti tinha, contudo, uma visão otimista do futuro do cinema, que seria “curado” pelo vídeo, que funcionaria para o cinema como o disco para a música: “A pessoa deverá comprar seus filmes prediletos, guardá-los e ver quando bem entender na sua televisão” (CAVALCANTI apud CALDIERI, 2005). De fato, vinte anos depois dessa declaração de Cavalcanti, o DVD, o Bluray, o streaming e o Home Theatre realizaram a visão otimista do cineasta.

 

Referências

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LUIZ NAZARIO | Professor Titular na área de Cinema e História na Escola de Belas Artes da UFMG. Doutor em História Social pela USP. Bolsista de Produtividade do CNPq entre 2003 e 2018, com pesquisas sobre Animação Expressionista e Cinema e Holocausto. Autor de diversos livros, dentre os quais: Autos-de-fé como espetáculos de massa (Humanitas, 2005); Todos os corpos de Pasolini (Perspectiva, 2007); e O cinema errante (Perspectiva, 2013).

 


JAN DOČEKAL | Historiador de arte e artista, nascido em Třebíč, República Tcheca, em 1943. Formado como metalúrgico, estudou história da arte e estética, foi operário, tecnólogo, publicitário, diretor de vendas em uma gráfica e professor de educação artística. Preparou mais de cem exposições de arte e foi comissário do Simpósio de Esculturas Mladá tvorba Žďár nad Sázavou (2000). Colaborou com a Galeria Moravian de Stanislava Macháčková por 25 anos. É membro do grupo surrealista Stir up e já realizou trinta exposições originais. Livros e catálogos publicados: Jaroslav Vyskočil (1996), Horácka Fine Arts Club (1999), Horácka Fine Arts Club (2000), About Graphics (2001), Max Švabinský Graphics (2001), Everyday Things / Beyond the Art of Arts (2004), Reviews Texts Interviews (2005), Interviews 2005-2013 (2014), Josef Kremláček (monografia, 2020). É coautor do Dicionário de Belas Artistas Tchecas e Eslovacas (1998) e editor do livro Vlastimil Toman, Life Journey (2015).
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 02

Número 201 | janeiro de 2022

Artista convidado: Jan Dočekal (República Tcheca, 1943)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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