Três dimensões dificilmente se
encontram em bibliotecas, a não ser achatadas pela reprodução fotográfica nas páginas
de um livro. Decidi então visitar a Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova
de Famalicão, cujo espólio surrealista, aquele que de resto lhe dá notoriedade,
foi obra justamente de Isabel Meyrelles.
A minha visita só não foi inútil
porque, de um lado, no átrio da Fundação, estão expostas duas esculturas, Ulisses,
reprodução em grandes dimensões de obra de 2004 (bronze, 2019) e uma homenagem
a André Breton, Le revolver à cheveux blancs (um bronze também de 2019),
e porque, do outro lado, se realizou recentemente uma retrospetiva da escultora
Isabel Meyrelles, Como a sombra, a vida foge. Também na Fundação Cupertino
de Miranda, a exposição permanece, ao menos parcialmente, nas páginas do catálogo,
de título homónimo. Belo livro, editado pela Fundação (2019-2020), com a reprodução
das obras a cores, e rica de alguns textos dotados de um teor de informação que,
pesquisada nas pistas sugeridas, se antevê muito produtiva. O catálogo e as duas
obras expostas no átrio da Fundação Cupertino de Miranda constituem assim a ossatura
do meu corpus. Mais não consegui, em tempos de pandemia, distanciamento social
e reclusão.
Entre as informações do catálogo,
surge com mais espetacularidade o trabalho de cooperação entre Isabel Meyrelles
e Arthur do Cruzeiro Seixas, pois algumas obras expostas declaram a singularidade
do relacionamento. Sejam exemplo, uma cabeça cortada em quilha de navio (bronze,
1981), dois Mino-Equus (um em bronze e outro em terracota, 2013), a parte
inferior de um corpo sentado num muro (1977), Le pied et la main (terracota,
sem data), um homem sentado com a lua entre os braços (terracota sobre madeira,
sem data), La cornue déprimée (em duas versões, terracota e terracota sobre
madeira), corpo dobrado com algo assemelhável a um crescente em cima (1984), Mesa
de café (1977), são obras que Isabel Meyrelles declara terem sido criadas a
partir de desenhos de Cruzeiro Seixas. Como este recorda, em depoimento na parte
final do catálogo, Isabel deu formas e figurações aos seus desenhos – e alguém comenta,
no livro ou fora dele, que a escultora antecipou com isso a cegueira do amigo, dando-lhe
a tocar os seus próprios desenhos.
O sentido do tocar é mais amplo
ainda, sobretudo em português, língua na qual o verbo também significa jouer,
em francês, ou to play, em inglês, um instrumento musical. Diria que os dois
temas mais copiosamente apresentados na exposição de Isabel Meyrelles, na Fundação
Cupertino de Miranda, Como a sombra, a vida foge, esperando eu que sejam
representativos da obra toda, são o da música e o da mitologia. Podem interpenetrar-se,
como acontece com a Sereia (bronze, sem data), cujo canto, como sabemos,
atraía os navegantes para o naufrágio e bem tentou, sem o conseguir, atrair Ulisses
também para esse infortúnio. Esbocei uma história. As narrativas e metanarrativas
ocorrem naturalmente, quando o artista trabalha ao longo de décadas. Como as palavras
atraem as palavras, o que as mãos afagam também.
Nem sempre as esculturas de Isabel
Meyrelles constituem um objeto único. Em alguns casos trata-se de conjuntos, como
n’A Ronda do medo, cinco figuras ocultas sob lençóis a rodearem uma maçã
– medo do amor, medo do desejo, será? Creio que a base circular de madeira em que
estão pousados os cinco encobertos também faz parte da escultura múltipla, garantindo
ao todo a sua semântica alimentar, complexa, como a maçã edénica propõe (1996).
Múltipla é também a Hommage à Leonor Fini (1918), delicadas peças verdes
sobre espelho.
Amo-te,
diz ela. A Cruzeiro Seixas? O amor tem teclas várias e quem Isabel Meyrelles amava
não é o que agora importa, sim a forma das figuras, a bem dizer uma só, compreendidas
em linhas curvas. Não será despropositado lembrar o que Konrad Lorenz nos ensinou
sobre as linhas curvas: elas são próprias das crias, sobretudo mamíferos, algumas
aves; inspiram compaixão, amor, desejo de as proteger. Enfim, traduzindo para a
nossa humanidade, simbolizam a maternidade, o infinito amor pela sua criação.
Tocar, com Isabel Meyrelles,
chama em nós o que há de mais terno e originário como o ovo, que é curvo, deu origem
à forma oval, tem embrião dentro, por isso tanto aparece no surrealismo. Na obra
de Isabel Meyrelles, também, o ovo surge diversas vezes, sempre intacto na sua cápsula
de linhas curvas, apto o nascituro a tocar a vida. Seja a A barca de ísis
(terracota pintada sobre madeira, 2013) exemplo marcante do assunto, no seu fácies
quase minimalista, a barca branca a carregar um ovo brilhante, de cor escura. A
oferta (1991) é um trabalho de espírito surrealista – a mão dentro de uma luva
preta oferece um ovo branco. As linhas curvas, as superfícies esféricas, os pomos
redondos são os que despertam em nós o desejo de amorosamente acariciar. Mas não
esqueçamos que o ovo, ao ser a origem da criação, remata o que presidiu ao seu próprio
começo: a vontade de tocar.
MARIA ESTELA GUEDES | Escritora, cultiva géneros vários, entre eles, teatro, poesia e ensaio (diversos títulos, em Portugal e no estrangeiro). Nascida em Portugal, em 1947. Dirige o Triplov e a Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências (www.triplov.com). Títulos recentes, em poesia, a antologia bilingue, português e romeno, Dracula draco, Curtea de Arges, 2017; Clitóris Clítoris, Urutau, 2019, Esta noite dormimos em Tânger Urutau, 2021; Clitóris clitóris, edição trilingue, português, espanhol e francês, Cintra e ARC Edições. Númeras Letras, uma coleção de ensaios, saiu também m um coedição Cintra e ARC Edições (Brasil), 2021.
JAN DOČEKAL | Historiador de arte e artista, nascido em Třebíč, República Tcheca, em 1943. Formado como metalúrgico, estudou história da arte e estética, foi operário, tecnólogo, publicitário, diretor de vendas em uma gráfica e professor de educação artística. Preparou mais de cem exposições de arte e foi comissário do Simpósio de Esculturas Mladá tvorba Žďár nad Sázavou (2000). Colaborou com a Galeria Moravian de Stanislava Macháčková por 25 anos. É membro do grupo surrealista Stir up e já realizou trinta exposições originais. Livros e catálogos publicados: Jaroslav Vyskočil (1996), Horácka Fine Arts Club (1999), Horácka Fine Arts Club (2000), About Graphics (2001), Max Švabinský Graphics (2001), Everyday Things / Beyond the Art of Arts (2004), Reviews Texts Interviews (2005), Interviews 2005-2013 (2014), Josef Kremláček (monografia, 2020). É coautor do Dicionário de Belas Artistas Tchecas e Eslovacas (1998) e editor do livro Vlastimil Toman, Life Journey (2015).
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 02
Número 201 | janeiro de 2022
Artista convidado:
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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