segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

MARIA ESTELA GUEDES | Isabel Meyrelles e a vontade de tocar

 


Confesso que, ao aceitar a proposta de Floriano Martins para escrever sobre a Isabel Meyrelles das obras em três dimensões, me moveu mais o interesse em conhecer melhor a artista do que o de mostrar quanto sei dela, que pouco era e continua a pouco ser.

Três dimensões dificilmente se encontram em bibliotecas, a não ser achatadas pela reprodução fotográfica nas páginas de um livro. Decidi então visitar a Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, cujo espólio surrealista, aquele que de resto lhe dá notoriedade, foi obra justamente de Isabel Meyrelles.

A minha visita só não foi inútil porque, de um lado, no átrio da Fundação, estão expostas duas esculturas, Ulisses, reprodução em grandes dimensões de obra de 2004 (bronze, 2019) e uma homenagem a André Breton, Le revolver à cheveux blancs (um bronze também de 2019), e porque, do outro lado, se realizou recentemente uma retrospetiva da escultora Isabel Meyrelles, Como a sombra, a vida foge. Também na Fundação Cupertino de Miranda, a exposição permanece, ao menos parcialmente, nas páginas do catálogo, de título homónimo. Belo livro, editado pela Fundação (2019-2020), com a reprodução das obras a cores, e rica de alguns textos dotados de um teor de informação que, pesquisada nas pistas sugeridas, se antevê muito produtiva. O catálogo e as duas obras expostas no átrio da Fundação Cupertino de Miranda constituem assim a ossatura do meu corpus. Mais não consegui, em tempos de pandemia, distanciamento social e reclusão.

Entre as informações do catálogo, surge com mais espetacularidade o trabalho de cooperação entre Isabel Meyrelles e Arthur do Cruzeiro Seixas, pois algumas obras expostas declaram a singularidade do relacionamento. Sejam exemplo, uma cabeça cortada em quilha de navio (bronze, 1981), dois Mino-Equus (um em bronze e outro em terracota, 2013), a parte inferior de um corpo sentado num muro (1977), Le pied et la main (terracota, sem data), um homem sentado com a lua entre os braços (terracota sobre madeira, sem data), La cornue déprimée (em duas versões, terracota e terracota sobre madeira), corpo dobrado com algo assemelhável a um crescente em cima (1984), Mesa de café (1977), são obras que Isabel Meyrelles declara terem sido criadas a partir de desenhos de Cruzeiro Seixas. Como este recorda, em depoimento na parte final do catálogo, Isabel deu formas e figurações aos seus desenhos – e alguém comenta, no livro ou fora dele, que a escultora antecipou com isso a cegueira do amigo, dando-lhe a tocar os seus próprios desenhos.


Dar a tocar é um gesto de amor, mas tocar as esculturas, afagá-las, deixar correr os dedos pelas superfícies que parecem todas tão macias e tépidas como o corpo humano, este desejo de tocar e esta partilha de afeto, também se geram no espectador, no visitante da exposição ou até no leitor, ao volver página a página o catálogo de tão sedutoras imagens.

O sentido do tocar é mais amplo ainda, sobretudo em português, língua na qual o verbo também significa jouer, em francês, ou to play, em inglês, um instrumento musical. Diria que os dois temas mais copiosamente apresentados na exposição de Isabel Meyrelles, na Fundação Cupertino de Miranda, Como a sombra, a vida foge, esperando eu que sejam representativos da obra toda, são o da música e o da mitologia. Podem interpenetrar-se, como acontece com a Sereia (bronze, sem data), cujo canto, como sabemos, atraía os navegantes para o naufrágio e bem tentou, sem o conseguir, atrair Ulisses também para esse infortúnio. Esbocei uma história. As narrativas e metanarrativas ocorrem naturalmente, quando o artista trabalha ao longo de décadas. Como as palavras atraem as palavras, o que as mãos afagam também.

Nem sempre as esculturas de Isabel Meyrelles constituem um objeto único. Em alguns casos trata-se de conjuntos, como n’A Ronda do medo, cinco figuras ocultas sob lençóis a rodearem uma maçã – medo do amor, medo do desejo, será? Creio que a base circular de madeira em que estão pousados os cinco encobertos também faz parte da escultura múltipla, garantindo ao todo a sua semântica alimentar, complexa, como a maçã edénica propõe (1996). Múltipla é também a Hommage à Leonor Fini (1918), delicadas peças verdes sobre espelho.


Para voltar a Cruzeiro Seixas, com quem Isabel Meyrelles trabalhou, os cortes abruptos, “os ângulos agudos” que, à falta de melhor explicação minha, remetem para as alterações do sistema nervoso de Cesário Verde, essa formas geométricas dos trabalhos que resolvem em três dimensões as duas do desenho do pintor surrealista, desaparecem em esculturas mais cativantes do toque, do afago do observador. Com duas termino, em que domina a curva, completamente diferentes, uma por eu a considerar belíssima: a Hommage à René Magritte (terracota pintada sobre pedestal de madeira, 2013), uma cabeça de mulher de olhos verdes envolvida em lenço verde, com a forma de maçã; e uma escultura geminada, com dois passarinhos unidos pelo bico, Amo-te (terracota pintada e vidro, sem data), pertencente à Coleção Cruzeiro Seixas.

Amo-te, diz ela. A Cruzeiro Seixas? O amor tem teclas várias e quem Isabel Meyrelles amava não é o que agora importa, sim a forma das figuras, a bem dizer uma só, compreendidas em linhas curvas. Não será despropositado lembrar o que Konrad Lorenz nos ensinou sobre as linhas curvas: elas são próprias das crias, sobretudo mamíferos, algumas aves; inspiram compaixão, amor, desejo de as proteger. Enfim, traduzindo para a nossa humanidade, simbolizam a maternidade, o infinito amor pela sua criação.


Não deixaremos sem reparo a escultura A parede que toca (bronze de 2004), não só por acrescentar mais um aspecto à obra da escultora, o bom humor, mas sobretudo por trazer à colação o sentido musical do toque. Simula um quadro pintado no seu cavalete, tendo por assunto um violoncelo tocado pelas mãos da parede. Bem moderno e surrealista, não acaba no que indiquei a sua complexidade, já que as linhas do violoncelo, de arredondadas curvas, lembram um corpo de mulher.

Tocar, com Isabel Meyrelles, chama em nós o que há de mais terno e originário como o ovo, que é curvo, deu origem à forma oval, tem embrião dentro, por isso tanto aparece no surrealismo. Na obra de Isabel Meyrelles, também, o ovo surge diversas vezes, sempre intacto na sua cápsula de linhas curvas, apto o nascituro a tocar a vida. Seja a A barca de ísis (terracota pintada sobre madeira, 2013) exemplo marcante do assunto, no seu fácies quase minimalista, a barca branca a carregar um ovo brilhante, de cor escura. A oferta (1991) é um trabalho de espírito surrealista – a mão dentro de uma luva preta oferece um ovo branco. As linhas curvas, as superfícies esféricas, os pomos redondos são os que despertam em nós o desejo de amorosamente acariciar. Mas não esqueçamos que o ovo, ao ser a origem da criação, remata o que presidiu ao seu próprio começo: a vontade de tocar.

 


MARIA ESTELA GUEDES | Escritora, cultiva géneros vários, entre eles, teatro, poesia e ensaio (diversos títulos, em Portugal e no estrangeiro). Nascida em Portugal, em 1947. Dirige o Triplov e a Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências (www.triplov.com). Títulos recentes, em poesia, a antologia bilingue, português e romeno, Dracula draco, Curtea de Arges, 2017; Clitóris Clítoris, Urutau, 2019, Esta noite dormimos em Tânger Urutau, 2021; Clitóris clitóris, edição trilingue, português, espanhol e francês, Cintra e ARC Edições. Númeras Letras, uma coleção de ensaios, saiu também m um coedição Cintra e ARC Edições (Brasil), 2021.

 


JAN DOČEKAL | Historiador de arte e artista, nascido em Třebíč, República Tcheca, em 1943. Formado como metalúrgico, estudou história da arte e estética, foi operário, tecnólogo, publicitário, diretor de vendas em uma gráfica e professor de educação artística. Preparou mais de cem exposições de arte e foi comissário do Simpósio de Esculturas Mladá tvorba Žďár nad Sázavou (2000). Colaborou com a Galeria Moravian de Stanislava Macháčková por 25 anos. É membro do grupo surrealista Stir up e já realizou trinta exposições originais. Livros e catálogos publicados: Jaroslav Vyskočil (1996), Horácka Fine Arts Club (1999), Horácka Fine Arts Club (2000), About Graphics (2001), Max Švabinský Graphics (2001), Everyday Things / Beyond the Art of Arts (2004), Reviews Texts Interviews (2005), Interviews 2005-2013 (2014), Josef Kremláček (monografia, 2020). É coautor do Dicionário de Belas Artistas Tchecas e Eslovacas (1998) e editor do livro Vlastimil Toman, Life Journey (2015).
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 02

Número 201 | janeiro de 2022

Artista convidado: Jan Dočekal (República Tcheca, 1943)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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