Quanto a Marte, o antigo deus da guerra,
inclino-me a acreditar que, no tempo do feudalismo, ele teria conservado seus antigos
hábitos na qualidade de cavaleiro de brigada. O esguio vestfaliano Schimmelpenning,
sobrinho do carrasco de Münster, encontrou-o em Bologna como executor de altas obras.
Algum tempo depois, Marte serviu como lansquenete sob as ordens do general Frondsberg,
e assistiu à tomada de Roma. Deve certamente ter sentido um cruel pesar ao ver destruírem
com tanta ignomínia sua querida cidade e os templos onde ele próprio havia sido
adorado, assim como os templos dos deuses seus primos. (HEINE, 2006)
Assim,
para Heine, Marte teria se adaptado ao exílio atuando em uma área de atividades com a qual estava bastante habituado:
a guerra. De certa forma, o deus perdeu seu protagonismo, mas não sua essência ou
mesmo sua inevitabilidade, de forma que não foi relegado ao esquecimento
– o destino mais cruel que um deus poderia ter, segundo o autor. Mas essa perda
é compensada pela descoberta de uma sobrevivência potencial para esses seres que
antes representavam certos fluxos e configurações presentes na Natureza e na existência
dos seres vivos, não tendências universais, complexas e uniformes. Como escreveu
outro crítico do cristianismo, nostálgico do universo mítico do paganismo, Fernando
Pessoa (adotando o heterônimo António Mora), a confusa pluralidade do paganismo
obedece certa disposição natural e do homem, de sua realidade: “A religião pagã é politeísta. Ora, a natureza é plural. A natureza, naturalmente, não nos surge
como um conjunto, mas como muitas coisas,
como pluralidade de coisas.” (PESSOA, 2017). Portanto, Ares, que sobreviveu no universo romano como Marte,
sofreu mais uma reconfiguração após o triunfo do cristianismo, tornando-se soldado,
mercenário, ativo participante das inúmeras guerras sangrentas que varriam a Europa
desde o final da Idade Média, carrasco que executava as penas mais cruéis nas cidades-estados
italianas antes e depois do Renascimento. Essa adaptação pode ser compreendida,
antes de mais nada, como um disfarce, uma estratégia de ocultamento na qual
a divindade trabalha a camuflagem de sua essência aparentemente imortal, elidindo
à curiosidade humana, pois tais seres mortais e finitos desconfiam quando do surgimento
do extraordinário em seu meio, reagindo em geral com violência impulsionada pelo
pavor. Mas tal processo, por mais bem feito que seja, sempre será incompleto; Marte
fica amargurado e triste ao contemplar as ruínas de seus antigos templos em sua
antiga Roma. Aliás, tal sensação ocorre ao ter diante de si as ruínas devastadas
dos templos de outros deuses, seus parentes. Por mais que as estratégias de disfarce,
de ocultamento, sejam eficazes, elas jamais significarão a completa alteração da
essência do exilado, seu rebaixamento ao nível humano, a normalização de seus atos
e essência. E embora, em Heine, tenhamos a descrição do exílio e da clandestinidade
dos deuses, parece evidente que se trata de uma visão mais ampla e geral dada por
um autor que era, ele mesmo, um proscrito, alguém que vivia a realidade do
exílio em seu cotidiano. Nesse sentido, Heine mimetiza seus deuses exilados e torna-se
um estranho modelo de autor em suspensão entre duas culturas, que buscam neutralizar
certos aspectos e potencializar outros ao sabor de agendas, ideários e propagandas.
É
conhecida a anedota de que o poema “Loreley”, de
Heine, teria sido publicado em uma coletânea de canções populares alemãs à época do nazismo, com o nome do autor obliterado por um “Dichter unbekannt”, poeta desconhecido (cf. ROSENBERG, 2007). [2] Trata-se, nesse sentido, de uma obliteração complexa, deliberada,
do autor em seu exílio – semelhante àquilo que Heine identificava como o esquecimento
e o distanciamento agia em seus deuses pagãos que buscavam sobreviver em um universo
que não fazia questão em os compreender.
E
assim, através do exílio de deuses da guerra e de Heinrich Heine, o
cronista dessa estranha forma de desterro, encontramos o polígrafo surrealista,
judeu e romeno, Dolfi Trost (1916-1966), um percurso que ele compartilhou com seus
companheiros do grupo surrealista local Infra Noir e com outros autores de vanguarda
em seu país e na Europa. Ele teria de lidar com os rigores do exílio e da guerra
em suas mais diversas configurações: inicialmente desterrado ainda em sua Romênia
natal pelas imposições da Segunda Guerra Mundial, pela sua origem em um país dominado
por intenso antissemitismo e pela opção de negar o nacionalismo doentio, próprio
do Zeitgeist daquele momento histórico, ao optar por escrever suas obras
em francês, afirmando o próprio cosmopolitismo. Depois, experimentaria a necessidade
da fuga, de abandonar definitivamente seu país e sua nacionalidade diante das restrições
draconianas de expressão impostas pelo novo regime entronizado na Romênia, o comunismo.
Por fim, seu último exílio coincidiria com a aniquilação de sua obra. Ainda antes
desse percurso, ou calvário, Trost elaboraria sua utopia pessoal, a configuração
de um mundo onírico sem limitações ou freios interpretativos, a província na qual
sonhava descansar seus ossos – um território que surge, por inteiro, em seu opúsculo
Vision dans le cristal.
O
exílio não é apenas um deslocamento espacial, uma mudança
na paisagem em que se está inserido. Trata-se, de fato, de um deslocamento de identidade,
realizado concomitantemente ao mesmo anteriormente à mudança espacial. Como postularam
Richard K. Ashley e R. B. J. Walker – a partir das reflexões de Julia Kristeva e Michel Foucault
– a mudança imposta pelo exílio resulta em um redimensionamento identitário, que
naturalmente se volta para a própria percepção da realidade (garantida pela linguagem)
como um tipo de resistência ao estabelecido:
Portanto,
percorrer esses “espaços e tempos da marginalidade” não
é algo que acontece apenas no momento em que o exilado abandona sua casa, algumas
vezes sua família, e se coloca em movimento, buscando um outro lugar. O primeiro
deslocamento do exilado se dá em fronteiras intangíveis – no pensamento, na linguagem,
na identidade. Nesse sentido, a escolha de uma outra linguagem para a própria expressão
possui um significado poderoso: trata-se de uma forma de negação dos poderes que
impõem uma prática reconhecida, aparentemente inescapável, a forma de uma língua
materna. Autores como Franz Kafka ou György Lukács, por exemplo, marcaram sua posição político-existencial pela escolha do
idioma de seus textos. O mesmo valeria para o já mencionado Heinrich Heine e para
Samuel Beckett, com o francês. Por outro lado, é necessário destacar o que, nessa
escolha, implica em uma percepção geral de submissão diante de um outro poder
estabelecido: o do prestígio. No Brasil, a opção pelo francês como idioma de criação
e publicação feita pelos simbolistas brasileiros em algumas de suas obras – como
foi o caso de Alphonsus de Guimarães na revista Horus, publicada em Belo
Horizonte – costuma ser vista menos como uma opção pelo exílio e muito mais como
a escolha de um signo de distinção na complicada trama do status cultural.
Partindo da ideia de Brito Broca de que escrever em francês, no caso do simbolismo
brasileiro, era uma forma de se distanciar de uma “massa ignara”, Luiz Antônio Paganini
afirma: “Alguns intelectuais brasileiros da época viviam sonhando com Paris e ignorando
a realidade circundante.” (PAGANINI, 2001). Embora a afirmação de Paganini seja,
de fato, verdadeira, ela não pode ser vista apenas em seu sentido mais evidente,
crítico e negativo; pois, como vimos, a escolha do idioma de expressão de um autor
– notadamente quando o exílio físico ainda não ocorreu – representa um momento de
tensão, de abandono das determinações mais evidentes pelo risco da negação
por parte dos compatriotas (que não vão aceitar esse abandono da língua materna tão facilmente) em troca de uma distinção cultural,
de um valor de mercado, de uma possibilidade mais ampla de comunicação. Ao escrever
em um idioma diferente de sua língua materna, ainda que por motivos imediatamente
mercadológicos ou de distinção em termos sociais, é feita a escolha de não pertencimento
– pois o resultado obtido é o afastamento tanto da tradição nacional na qual tal
autor originalmente se enquadraria quanto da tradição cultural do idioma adotado,
o qual sempre será externo, opcional, indireto. Sobre isso, e tratando diretamente
de Trost e seus companheiros do grupo Infra Noir, escreveu Catherine Hansen:
Além disso, uma vez que Infra Noir foi
inscrita a partir de e dentro das margens das tradições literárias de vanguarda
francesas e romenas, qualquer tentativa de contar sua história requer atenção diante
dos campos geográficos e culturais de tensão nos quais o grupo se movimentava de
forma incerta. Seus membros fizeram escolhas substancialmente diferentes, para dar
um exemplo, no que dizia respeito à linguagem de expressão e, em alguns casos, linguagem
de exílio: Gherasim Luca fez uma famosa declaração, na qual dizia que o francês,
idioma o qual escolheu de forma ambivalente, é um ‘bégaiement poétique’ (gaguejo poético) que gira em si mesmo, como fragmentos
metamórficos; já Gellu Naum, por outro lado, entrou em conflito com seus colegas
em mais de uma ocasião por conta de sua recusa em escrever em francês. (HANSEN, 2015).
Nessa
estranha encruzilhada entre opção e recusa, entre a tática segura (e
universalista) e a afirmação de identidade, o caso dos vanguardistas romenos como
Luca e Trost tornou-se ainda mais delicado por conta da Segunda Guerra Mundial.
Com a guerra, a Romênia, sob comando do Marechal Ion Antonescu, o conducător (ou Führer
local), alinhou-se com a Alemanha de Hitler, seguindo com dedicação cada um dos
postulados do nazismo. Sendo assim, com o recrudescimento do antissemitismo mais
virulento, os vanguardistas romenos – que, como Luca ou Trost, eram em sua maioria
judeus – tiveram de se recolher ao silêncio, ao abandono de todas as opções linguísticas
se quisessem garantir a sobrevivência. Pois todos esses artistas se sentiam naquilo
que Krzysztof Fijalkowski denomina “limiar do desastre” – um período de temor, de
ódio por uma Bucareste tão transtornada pelas correntes ideológicas de inspiração
fascista que até mesmo suas fundações pareciam estar abaladas e apodrecidas, uma
vez que a cidade foi abalada por um temível terremoto, que marcou 7,4 graus na escala
Richter, em 10 de novembro de 1940. [3] Nesse sentido, curiosamente, encontramos a primeira diferença
entre Trost e seu amigo e colaborador Gherasim Luca, cujo fascínio por Paris era
encarado por ele próprio como uma espécie de “mania de perseguição” (cf. FIJALKOWSKI,
2008). A opção pelo idioma francês, nesse sentido, surge com certa naturalidade
mas coloca um novo problema: até que ponto essa opção era tão clara para alguém
menos obcecado por Paris ou pela cultura francesa, como Trost. É necessário destacar
que essa obsessão não era exclusiva de Luca: grandes vanguardistas de ascendência
judaica (como Benjamin Fondane) buscaram o exílio em uma capital bem mais cosmopolita
que a provinciana imitação de Paris que era Bucareste no início do século
XX. Mesmo quando os sentimentos evocados pela França, seu idioma e sua capital eram
ambivalentes, havia certa idolatria, certa busca de um ideário; assim, temos E.
M. Cioran, outro célebre émigré romeno cuja posição política era completamente oposta
à de seus compatriotas vanguardistas, uma vez que Cioran se aproximou inicialmente
da Guarda de Ferro, grupo fascista romeno conhecido por seu virulento antissemitismo.
Em 1941, já na França, Cioran escreveria um opúsculo fragmentário, espécie de ensaio
e de notificação de um aguardado apocalipse comandado pelas tropas nazistas, De
la France. Como escreveu Alan Paruit: “Aparentemente dedicado à Queda da França, é na verdade um hino para
a França, um hino de amor. Se a palavra decadência retorna regularmente para explicar
que a França não tem futuro porque foi muito generosa, por muito
tempo, mais do que qualquer outro país no mundo (…)” (PARUIT, 2009). De fato, Cioran entendia a França
dentro da continuidade patriótica – na qual a individualidade era nacional
– que os intelectuais e ideólogos do regime nazista costumavam denominar
Völkish:
A
noção apresentada por Cioran, de coletividades nacionais
esmagando sistematicamente qualquer tentativa de escape individual – uma visão que,
em essência, inviabilizaria a própria existência do exilado, ao menos em seu status
de nômade entre diferentes territórios e idiomas –, surge como a síntese da ideologia
que impulsionou as duas guerras mundiais, com seus conflitos nacionalistas e territoriais
de natureza uniformizante e inescapável. Essa visão das guerras mundiais como eventos
atrozes impulsionados por nacionalismos conflitantes aparece, por exemplo, em alguns
ensaios de George Orwell, como “Notes on Nationalism” (1945); nesse texto, após
perceber como a própria noção de nacionalismo ganhou uma amplitude imprevista
– abarcando conceitos ainda mais abstratos como “comunismo, catolicismo político,
sionismo, antissemitismo, trotskismo e pacifismo”, o autor conclui da seguinte forma:
“Nacionalismo é uma sede de poder alimentada pelo autoengano. Todo nacionalista
é capaz da mais atroz desonestidade, mas ele também – uma vez que está convicto
de servir a algo maior que ele mesmo – mantém sua inabalável certeza de que está
do lado certo.” (ORWELL, 2000). Diante desse nacionalismo multifacetado e contínuo,
Trost teceria uma estratégia própria. Trocaria suas nações de exílio constantemente,
sem se apegar a esse sentido obsessivo evocado por Luca, uma vez que sua busca estava
menos centrada em uma linguagem, em um território (ou cidade, no caso de
Luca), mas em outro tipo de continuum. Essa busca por um local não
geográfico para o exílio seria uma obsessão de Trost; ele buscaria essa territorialidade,
em primeiro lugar, como seu amigo Luca, na dimensão da linguagem poética. Em 1940,
Trost e Virgil Teodorescu (outro membro do grupo de vanguarda Infra Noir) publicariam
um livro peculiaríssimo, em edição de um único exemplar de 50 páginas – trata-se
de Poem în leopardă, um longo poema descrevendo uma ilha selvagem, Leopardia, empregando
complexas imagens surrealistas e uma linguagem inventada, a língua do leopardo (além
da “tradução” para o romeno). Segundo Marin Mincu, citado por Michael Finkenthal,
o idioma “leoparda”, inventado por Teodorescu, é “uma espécie de Inglês básico, um esperanto de sonho poético […] um idioleto que obriga
o leitor à decifração” (FINKENTHAL, 2013). A participação
de Trost nesse livro situa-se no campo visual: ele traduziu as imagens oníricas
de Teodorescu em um processo automático de geração imagéticas, inventado por ele
mesmo, denominado stilamancie; ou seja, ilustrações feitas ao “permitir que
a pintura ou a tinta fluíssem seguindo as leis da gravidade, antes de dobrar a imagem
para obter dela um espelho. Uma mancha de Rorschach é o que vem à mente”. (CONDOUS,
2014).
Uma
das ilustrações de Trost para esse livro é justamente, um mapa,
a descrição quase esquemática de um território: “O mapa mostra, em contorno azulado,
a terra ou a ilha de ‘Leopardia’. Sua forma é grotesca, uma cabeça com pescoço maciço
que nos contempla, os restos de uma difícil decapitação”. (CONDOUS, 2014). Reproduzimos, abaixo, um fragmento do poema em seu idioma
original (“leoparda”), em romeno e em português, para que sua estranha sonoridade
demonstre com clareza a intenção de seus autores:
Sobroe algoa dooy toe founod…
Sobroe algoa dooy toe founod woo oon toe
Negaru Hora urboe revoulud finoe wilot
entroe toe twoe toe sarah dogarasbasmahi
aroe
Peste câteva
zile îţi vei găsi umbra…
Peste câteva
zile îţi vei găsi umbra care
ar orbi fără Polul Nord
între amândouă
alternativele sunt de diamant
Em poucos dias você vai encontrar a sua sombra …
Em poucos dias você vai encontrar a sombra cega e sem
o Pólo Norte
entre ambas as alternativas estará o diamante (TEDODORESCU, 2017).
O
destino do livro demonstrará a inviabilidade desse primeiro projeto
de busca por outras províncias para o exilado, fora das duríssimas determinações
impostas pelas nações, línguas, culturas: “O livro original permaneceu com Virgil
Teodorescu até 17 de novembro de 1959, quando oficiais do governo realizaram uma
incursão em sua residência e confiscaram quase todos os seus livros”. (CONDOUS,
2014). A febril construção poética, que chega ao limite de elaborar outra linguagem,
oferecia uma recompensa minguada diante dos poderes diante dos quais o exilado busca
a fuga, um recomeço. Assim, Trost buscaria em outros limiares esse tipo de exílio
intelectual, mental, que antecipa e corre paralelo ao exílio de fato, caminho que
logo trilharia. A segunda tentativa se daria na província do sonho, especialmente
em seu breve tratado Vision dans le cristal. Oniromancie obsessionelle et neuf
graphomanies entoptiques, publicado pela Les Éditions de l’Oubli em 1945, ano em que a guerra terminava e os romenos viviam
certa euforia de liberdade, transitória é claro, diante da libertação do jugo fascista.
O livro apresenta-se como um tratado ilustrado sobre os sonhos, tanto em sentido
teórico quanto prático: em suas 96 páginas, Trost não apenas esboça uma concepção
geral do sonho, como ilustra essa concepção com descrições de sonhos de considerável
potência imagética e interpretações desses sonhos que fogem aos procedimentos analíticos
usuais, transformando-se em comentários poéticos. Agregado a esse material, nove
ilustrações obtidas pela técnica de “grafomania entóptica”; segundo o pesquisador
de Ithell Colquhoun, que também empregava essa técnica, trata-se de um “método desenvolvido
pelos surrealistas de Bucareste, no qual um ponto é feito no local em que se localiza
cada impureza ou diferença de cor em uma folha de papel em branco, e então linhas
são traçadas entre esses pontos”. [4] Trata-se de mais uma técnica dentro do chamado “super-automatismo”
proposto pelos surrealistas romenos, no qual o automatismo reivindicado pelos surrealistas
era radicalizado por metodologias ainda mais complexas e abstratas, que tornavam
a criação um jogo determinado por interações complexas (e inconscientes) com a Natureza
e o Mundo. Condous destaca que as edições de luxo do livro, realizadas em um papel
medieval – o Vidalon – ressaltaram, pela simetria de suas impurezas, o caráter
abstrato das composições do autor: “Cada uma das edições de luxo continha uma grafomania
entóptica original de Trost, feita igualmente em papel medieval Vidalon, cujas impurezas
permaneciam adormecidas, a arte de Trost estando pré-determinada séculos antes de
seu nascimento”. (CONDOUS, 2014). Percebendo no sonho uma dimensão especial, um
espaço único para o deslocamento mental do exilado, Trost abordou o sonho com um
destaque temerário que parece soltar a atividade onírica de todas as suas amarras
– a repressão social, a necessidade de uma vida desperta, a análise freudiana:
Segundo
Condous, “Dolfi Trost eleva o status dos sonhos ao mesmo patamar
da vigília, combinando os dois estados, e estabelecendo diferenças entre sua teoria
e aquela de Freud.” (CONDOUS, 1945). O sonho perde sua formulação essencial, associada
a uma atividade onírica irrecuperável, irrecusável, automática, necessária – uma
espécie de contraparte da atividade cotidiana. Nesse processo de reavaliação do
sonho, a negação torna-se essencial, especialmente diante da estruturação convencional
do mundo. Mas é preciso destacar que se trata de uma negação total, um processo
que, uma vez desencadeado, se perpetua continuamente: “Tal estado continuamente
revolucionário não pode ser mantido e desenvolvido sem uma posição dialética de
permanente negação e de negação da negação, posição que pode ser amplificada
atualmente na maior amplitude concebível, envolvendo a tudo e a todos.” (TROST;
LUCA, 1945). Tal negação não se intimida diante das exigências usuais do mundo exterior
ao sonho. Assim, Trost imagina que a análise do sonho, a oniromancia, deve ter uma
nova função, uma nova articulação: ela deixaria de ser a abordagem eventual de uma
metodologia terapêutica do inconsciente (que buscaria, no sonho, apenas sintomas
de comportamentos patológicos) para se transformar em um processo de revelação contínua,
na qual o sonhador atingiria dimensões e esferas de desejos usualmente reprimidos.
Portanto, a análise proposta de Trost desdobra-se como um segundo sonho,
um delírio simbólico interpretativo:
O método de interpretação escolhido
para tais sonhos excepcionais é direcionado, em primeiro
lugar, pelo acaso objetivo como função criptestésica.
Como no caso da análise, retomei cada sentença relacionada à
sintomatologia, mas em vez de definir a associação mnemônica de ideias abri ao acaso,
utilizando uma faca, certo manual de patologia erótica, considerando o texto que
surgisse diante de meus olhos como a interpretação da sentença lida imediatamente
antes. Percebi nesta oniromancia uma maneira de colocar o sonho em conjunto com
a realidade externa, e tendo em vista seu aspecto obsessivamente erótico, uma maneira
concreta de encontrar o conteúdo sexual latente, atribuindo-lhe aleatoriamente um
valor criptestésico simultaneamente
objetivo e subjetivo. (TROST, 1945).
É
necessário, contudo, tentar situar todo esse esforço teórico
de redimensionamento da importância do sonho, do balanceamento entre o sonho e realidade
vivida; afinal, o que pretendia Trost e seus amigos vanguardistas do grupo Infra
Noir? De fato, a descoberta do território selvagem do sonho, de sua transcrição
e interpretação delirante não foi apenas, no caso dos surrealistas romenos, a descoberta
de um universo de exílio, de uma chance de fuga que logo fracassaria, uma vez que
ela seria apenas para a mente. A proposta inicial, expressa nesses breves e raros
opúsculos, toda uma complexa produção subterrânea que apenas, aos poucos, em pleno
século XXI, a ser analisada e estudada, era a quebra do automatismo imagético que
gerou o pensamento repressivo e totalitário na base da Segunda Guerra Mundial, pois
a aposta de Trost e seus amigos era menos nas promessas de reforma e reestruturação
da sociedade – algo que os regimes totalitários europeus, do fascismo ao stalinismo,
fizeram em excesso –, mas a libertação dos desejos mais primitivos através do sonho,
uma libertação que, por sua dimensão onírica, não implicaria em morte ou destruição.
Essa proposta definitiva de revolução, que não teria metas objetivas que facilitassem
a configuração de tiranos e tiranias, foi muito bem percebida por Michael Finkenthal:
As sociedades totalitárias que dominavam
o mundo pré-Segunda Guerra pareciam prometer mudanças sociais e políticas, mas provaram
ser totalmente ineficazes no que dizia respeito à implementação de mudanças profundas,
estruturais, na psiquê. De fato,
o ódio, os instintos nacionalistas, a inveja e a crueldade foram manipulados pela
direita e pela esquerda, mas não havia nada de realmente novo nisso. Os membros
do grupo surrealista na Romênia do pós-guerra estavam animados pelo desejo profundo
em realizar um verdadeiramente radical reordenamento das estruturas profundas presentes
na alma humana. Tratava-se, claro, de uma ideia utópica, mas seus esforços eram
inteiramente consistentes com as aspirações surrealistas. O ensaio de Trost [“Vision dans le cristal”] é uma perfeita
ilustração desse esforço. (FINKENTHAL, 2017).
Mas
a verdade é que essa metodologia, novamente fracassaria; não tanto
por sua impossibilidade, mas por sua razoabilidade. Diante desse fato, um
ainda otimista Trost – que finaliza seu grande ensaio sobre os sonhos de forma poética,
defendendo a universalização do prazer proporcionado no delírio interpretativo [5] – está diante de um novo fracasso: com o fim do breve período
de euforia e liberdade após o final da Segunda Guerra Mundial, a dura realidade
política volta a se impor. O sufocante clima imposto pelas autoridades soviéticas
e pelos comunistas romenos obrigam Trost ao exílio de fato, físico. Inicialmente
ele se estabelece em Israel, no recém-criado Estado judeu, no início dos anos 1950,
antes de tentar a França e depois, definitivamente, os EUA. Nitidamente, sua consciência
pulsante estava abalada. Em um longo manuscrito que Trost e Luca enviaram de Israel
em 1951 para André Breton, um manifesto entitulado L’Âge de la rêverie, a
primeira frase do texto diz claramente: “No ponto em que estamos, torna-se necessário
reconsiderar os meios e os fins de nossas ações. (TROST; LUCA, 2017). Os meios e
os fins das propostas dos surrealistas romenos eram aparentemente irreconciliáveis.
Diante disso, Trost opta pela última instância do exílio: a aniquilação. Em uma
carta para Mirabellei Dors, enviada pouco antes de seu exílio final nos EUA, Trost
anunciava o seguinte: “Como estou liquidando todo o material surrealista,
envio-lhe estas imagens que colecionei ao longo dos anos. Pode ser que haja entre elas algo que lhe interesse, a você ou Rapin (Maurice,
mais tarde marido de Mirabellei Dors). Bonjour,
Trost.” [6] Mas mesmo essa autoaniquilação não seria convencional;
sua ruptura com o passado não culminou nem com uma conversão eventualmente religiosa
– aos moldes do que aconteceu a J. K. Huysmans, por exemplo – nem no imediato suicídio,
destino de tantos exilados romenos como ele, de Paul Celan ao seu velho amigo Gherasim
Luca, ambos poetas exilados em Paris que se atiraram no Rio Sena. Após abandonar,
destruir, sua criação, seu passado, Trost mergulhou no mistério: um exílio de dez
anos nos EUA. Sua morte viria em 1966, em Chicago. O que esse autor que, em uma
obra breve, mas intensa como a explosão dos morteiros que abalaram a Europa à época
fez nesses dez anos de exílio no Novo Mundo é um enigma que nem os mais bem preparados
especialistas imaginam como resolver.
NOTAS
1. De fato, a narrativa
de Marte no exílio, escrita por Heine, seria bem mais extensa. Na versão em alemão
do texto, que por motivos diversos apresenta significativas diferenças da versão
em francês, há uma narrativa mais longa sobre Marte, de quando foi carrasco em Pádua.
Trata-se da jornada de um jovem da Vestfália que acompanha o velho deus da guerra,
em novo emprego, em uma jornada de final horripilante, debaixo de um patíbulo, ao
modo de Manuscrito encontrado em Zaragoza de Jan Potocki. (Cf. HEINE, 2006).
2. O mesmo autor destaca
que, por outro lado, como a interpretação francesa de Heine, em muitos casos
– especialmente após a morte do autor – buscou cristianizá-lo, anulando tanto o
judaísmo quanto a ironia cáustica do autor (cf. ROSENBERG, 2007).
3. Esse terremoto, transfigurado
de modo similar aos acontecimentos evocador por August Strindberg em seu célebre
diário Inferno, foi evocado em um dos mais célebres trabalhos de Gherasim
Luca, Le Vampire passif; “Acordei as 4 da manhã por causa de um pavoroso
terremoto: as paredes tremiam, armários eram arremessados pelo quarto, objetos e
vidraças foram estilhaçados. Durante todo o terremoto, permaneci gritando que sabia
o que estava acontecendo. Esses poderes de predição, que eu descobria pela primeira
vez, apenas ampliavam meu terror”. (LUCA, 2008).
4. O local original da
citação está indisponível, mas o site em que ela aparece, o 50Watts.com (especializado
na reprodução de obras de arte contemporâneas impressas e digitalizadas) ainda está
disponível no seguinte endereço: http://50watts.com/filter/dolfi-trost/Dolfi-s-Graphomania.
5. “Os olhos no espelho,
nos olhos nos olhos, os olhos na água, nos lançamos em nosso inexprimível delírio
de interpretação, que interpreta a si mesmo e o universo inteiro através de nossos
abraços”. (TROST, 1945).
6. Material privado, cujo
acesso e transcrição foi feito por Catherine Hansen, citado por FINKENTHAL, 2013.
Bibliografia
ASHLEY, Richard K.; WALKER, R. B. J. “Introduction: Speaking the Language of Exile: Dissident
Thought in International Studies”. In: International Studies Quarterly. Vol. 34, No. 3, Special Issue: Speaking the Language of Exile: Dissidence
in International Studies (Sep., 1990).
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(edição digital em formato EPUB, com paginação variável).
CONDOUS, Andrew. Letters from Oblivion. Bucharest/Düsseldorf: Les Éditions de L’Oubli/Zagava, 2014.
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LUCA, Gherasim. The Passive Vampire. Prague: Twisted Spoon Press, 2008.
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visului și visul ca realitate. București: Tracus Arte, 2013 (edição digital em formato EPUB, com paginação variável).
___. “Trost’s Journey from Reality as a Dream to the Dream as Reality”.
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HANSEN, Catherine. Blacker in Black: The Romanian Surrealist Group and Postwar Surrealism. A Dissertation Presented to the Faculty of Princeton
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TROST.
Vision dans le cristal. Oniromancie obsessionelle et neuf
graphomanies entoptiques. Bucharest: Les Éditions de l’Oubli, 1945.
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LUCA, Gherasim. Dialetique de la dialetique: message addresse
au movement surrealiste international. Bucharest: S, 1945.
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___. L’Âge de la rêverie. Manuscrito digitalizado, disponível em https://goo.gl/dQqL8u, acesso em 20/06/2017.
ALCEBÍADES DINIZ MIGUEL | Graduado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2000), com mestrado, doutorado e pós-doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (com estágio na Brunel University, em Londres). Trabalha com questões de literatura, discurso e ficção, tendo experiência como docente (pela Unicamp), supervisor técnico (como revisor gramatical e de conteúdo), tradutor (tanto de textos técnicos e manuais quanto de obras literárias como de J. G. Ballard, H. G. Wells ou Nathanael West) e pesquisador em diversos centros como o Grupo de Pesquisa da Discriminação (USP), o Margens (IEL-Unicamp) e da Fundação Biblioteca Nacional. Também criou roteiros, animações, contos e interfaces de jogos. O núcleo de suas pesquisas gira em torno da Literatura Fantástica e dos deslocamentos provocados pelo exílio e seus efeitos na narrativa e na linguagem, atuando principalmente nos seguintes temas: antissemitismo, literatura, teatro e cinema.
J. KARL BOGARTTE | Nacido el 8 de septiembre de 1944, de ascendencia holandesa e irlandesa, formado en antropología, fotografía y diversas tradiciones esotéricas. Ha sido un participante activo en el surrealismo internacional durante más de 50 años. Actualmente vive en Santa Fe, Nuevo México. Bogartte, es a la vez artista y poeta, y ha publicado doce libros de escritos poéticos: While the night windmills through xylophone and…, And Still the Navigators, Spirits in the Albino Hotel Throwing Antlers, The Mirror held Up In Darkness, The Wolf House, Secret Games, Luminous Weapons, Primal Numbers, A Curious Night For A Double Eclipse, Auré, The Spindle’s Arc, and Antibodies: A Surrealist Novella. Alineado desde hace mucho tiempo con el surrealismo internacional, también es cofundador de La Belle Inutile Éditions. Su obra ha aparecido en las siguientes antologías: ANALOGON # 65, Melpomene, Hydrolith # 1 and # 2, La vertèbre et le rossignol # 4, Lithaire # 2, Peculiar Mormyrid # 2, Paraphilia, Silver Pinion and The Fiend online journal.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 04
Número 203 | fevereiro de 2022
Artista convidado: J. Karl Bogartte (Estados Unidos, 1944)
Traduções de Allan Vidigal e Susana Wald
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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