Neste ensaio, Artaud traça vividamente
uma analogia impensável, examinando uma história de contágios fatais que rotulamos
como ‘a peste’. Artaud chega à observação epônima de que é aqui – no método ambíguo de aparecimento e reaparecimento
da própria peste, da invasão corporal individual e no terror e
colapso da sociedade – que podemos de fato encontrar a raison d’être do próprio teatro.
Assim como a peste destrói tudo o que escraviza o homem
em seus grilhões diários
de normas, regras e realidades construídas que o privam das verdades essenciais
encontradas em seu interior, assim o teatro deve agir como esse poder purgatório, esse momento de dissolução
social que permite a suas testemunhas ficarem cara a cara com um plano do ser que,
de outra forma, sempre permanece enterrado e trancado atrás das cortinas grossas
de ferro daquilo que Artaud chama de uma sociedade que inconscientemente está matando
a si mesma.
As observações do ensaio são, sem dúvida,
ousadas e estabeleceram um novo desafio para todas as gerações subsequentes de fazedores
de teatro, não apenas desafiando sua própria concepção
de por que fazem teatro, mas também
desafiando-as a se engajarem sempre de novo com este mesmo texto, O Teatro
e a Peste, seu
simbolismo, sua linguagem, suas imagens e visões intransigentes.
É este o desafio
que Wolfgang Pannek assumiu e compartilhou com o grupo internacional de performers,
artistas e acadêmicos
que se reuniram para sua própria e
oportuna interpretação cinematográfica de O Teatro
e a Peste. [1]
Mantendo a
tradição virtuosa do artista como a voz poética que aborda
as maldições de sua época, Wolfgang
escolheu o texto ideal para cravar nossos dentes enquanto o mundo está literalmente
em um confinamento de pandemia, lutando contra a última “peste”; enquanto nós
tivemos de reconfigurar não apenas nossos métodos e meios,
mas também reservar um tempo para repensar a natureza
de nosso trabalho como pessoas cujas vidas dependem do espaço público.
Deste modo,
nasceu este projeto, uma coleção audiovisual de dezoito narrativas cinematográficas,
cada uma lendo um trecho do ensaio em sua própria língua com colaboradores de cinco continentes,
todos filmando e gravando com os recursos disponíveis durante o ano de 2020, algumas
até mesmo em condições de lockdown total.
A coleção
foi então reeditada em um longa-metragem completo pelo próprio
Wolfgang, dando-nos uma leitura integral do ensaio de Artaud, passando de uma língua
a outra, de um país a outro, de uma imagem a outra, criando uma interpretação audiovisual caleidoscópica do texto
justaposto às condições de pandemia muito reais observadas por este coletivo.
O filme abre
com o segmento O Grande Santo Antônio, de Florence
de Mèredieu, em que uma colagem de imagens sequenciais – que vão de ambientes
domésticos obscuros a ilustrações históricas e mapas de Marselha com sobreposições do assustador
Nosferatu de Murnau – prepara o cenário para o que será claramente uma desenfreada
jornada de exploração audiovisual. No entanto, o impacto total do que está sendo
apresentado aqui começa a despontar com a primeira mudança para o segundo segmento,
Sintomas de Nabil Chahhed, conforme passamos da língua francesa para o árabe,
de Paris para Oueslatia na Tunísia, e para além dos esforços
criativos individuais de cada artista, começamos a experimentar a tapeçaria intercultural
tecida por Wolfgang Pannek, imitando, por sua vez, os próprios
meandros de Artaud no texto, enquanto ele tenta rastrear os movimentos indetectáveis
da peste através
de eras e civilizações.
As cidades
que habitamos e os espaços sob ataque de forças desconhecidas também
são temas explorados em segmentos como Uma linha imaginária, de Wolfgang Pannek, mostrando imagens
de uma Paris deserta, e O ator trágico permanece encerrado num círculo perfeito,
de Or Kittikong, sediada em Khon Kaen, na Tailândia, que termina em uma imagem muito
mundana, mas ameaçadora, de uma fechadura comum, colocando-nos face a face, de uma
maneira dolorosamente vívida, com a parte ‘lock’ (fechadura) da palavra ‘lockdown’. Só para imediatamente
ser subvertido pelas palhaçadas de Jürgen Müller-Popken
em Paroxismo. 12 / Caminhada, em que ele brinca com uma variedade de símbolos,
o sino, a corda bamba, a figura mascarada em um barco, onde somos levados a desambiguar
uma aparente liberdade que pode ser escravizada em seus próprios
comportamentos repetitivos para então retornar a uma outra cidade, desta vez Brisbane,
na Austrália, onde o mais escravizador dos brinquedos tecnológicos
domésticos, a televisão de tela plana, é usado com pleno efeito por Shane Pike
em Com saúde esplêndida.
Movendo-se
das cidades sempre mais longe, sempre mais fundo, para as zonas arquetípicas do
inconsciente, ao longo da última metade do ensaio, vemos os artistas construindo
um repertório de gestos performativos que rompem
com os mesmos pressupostos sociais com os quais Artaud estava engajado. Em Símbolos,
Candelaria Silvestro nos leva de volta a um tempo primordial de pinturas rupestres
e imagens de fauno, retratando uma aura mística que também é envolvida por Trausti Ólafsson em Este delírio contagioso, em que imagens religiosas se
contrapõem às frias gravações de vídeo de um espaço liminar que
só poderia
ser habitado por almas perdidas.
O sentido
de ritual e sacrifício continua a ser explorado, desta vez com fogo e caminhada
sobre fogo por Jürgen Müller-Popken
e Insa Popken na Canção de Anabella:
“Não é que eu chore de arrependimento”, levando
ao que pode ser a primeira imagem libertadora desta narrativa fragmentada, enquanto
o palhaço e a figura mascarada deixam o fogo e o sino alarmante para trás para entrar
no rio em seu barco emblemático.
É como se
nossa busca coletiva no escuro por uma saída tivesse sido instintivamente explorada
por Reha Bliss e Théophile Choquet,
em Perigo absoluto e Uma noção superior do teatro, respectivamente,
já que ambos exploram a imagem da mão tentando abrir a fechadura da porta, uma para
encontrar o mundo ameaçador do terror bioquímico do lado de fora, a outra para descobrir
a criatura vulnerável e contorcida por dentro, duas visões de uma humanidade em
desespero ou talvez uma visão de outra coisa, algo além
da humanidade, um horror irreconhecível liberado que temos nos esforçado para alcançar,
afinal.
Estou ciente
de que, ao longo da jornada desta crítica, concentrei minhas observações mais no
aspecto visual do que nos elementos sonoros e linguísticos desta coleção, mas posso
enquadrar isso aqui na etapa final da jornada. À medida que escorregávamos como aquele pequeno barco no rio
com um palhaço e uma figura encapuzada, do francês
ao árabe, ao islandês e changana,
e nossos próprios ouvidos iam sendo desafiados cada
vez mais através de onze línguas, pela
novidade e musicalidade de cada novo código, não poderíamos
ter imaginado o poder que iria nos assaltar quando a leitura de Maura Baiocchi do
segmento final do texto, A questão, chegasse
aos nossos ouvidos em português. A imensidão
de suas sibilantes prolongadas e fricativas surdas e ásperas nos acompanha tanto
quanto sua performance neste destino final liminar, um lugar entre lugares, rural
e selvagem, com um céu azul infinito
acima, mas também emoldurado por linhas elétricas
paralelas que se estendem, acima de hectares de silvicultura, de torres metálicas
gigantes, fazendo com que a presença das distantes cidades maquínicas fosse sentida
até mesmo aqui. Sílaba após sílaba, nossa jornada é levada à sua conclusão
nesta paisagem impossível que Baiocchi
impõe
sobre si mesma em seu vestido branco e cabelos esvoaçantes ao abraçar essa liminaridade
sobrenatural e estender as mãos para o céu, para além
dos campos elétricos em uma ambição digna do teatro
imaginado por Antonin Artaud.
Em seu ensaio,
Artaud explica como, em seu envolvimento com a peste, ele chegou a concluir que,
em última análise, estávamos olhando
para uma “fisionomia espiritual” e não apenas biológica.
Arrebatado por esta obra, é esta ‘fisionomia espiritual’ que se sente, visto que,
embora afastado pelas condições da época, este
coletivo de performers, artistas e acadêmicos se reuniu
com os meios disponíveis para compartilhar uma visão do teatro, da cultura e da
própria arte para além
dos limites assumidos pelo estado atual do mundo, fazendo com que todos nós
realmente reconsideremos uma noção superior do teatro.
NOTAS
Tradução de Wolfgang
Pannek.
1. Veja o website do projeto Antonin Artaud’s The Theatre
and the Plague: https://oteatroeapeste.wixsite.com/taanteatro
ANTON BONNICI | A review
of the audio-visual cinematic reading of Antonin Artaud’s The Theatre and the Plague
by Wolfgang Pannek
Of
all the essays in Artaud’s seminal collection, The Theatre and its Double,
there is one work that leaves an indelible impact not only on its readers but also
on the rest of Antonin Artaud’s work itself. Its reverberations reach out to redefine
both what came before it and what would come after, an essay of such gravity and
insight, into the heart of theatre and the pits of man, that attempts to do nothing
short of tracing the ambitions at the limits of all our artistic endeavours. In
this essay Artaud vividly draws an unthinkable analogy, sifting through a history
of fatal contagions we label as ‘the plague’, Artaud comes to the eponymous observation
that it is here, in the plague’s own ambiguous method of appearance and reappearance,
of individual bodily invasion, and of societal terror and collapse that we may actually
find theatre’s own raison d’etre. Just as
the plague destroys all of that which enslaves man in his daily shackles of norms,
rules and constructed realities which deprive him of the essential truths found
within, so should theatre act as this purgatory power, this moment of societal dissolution
which allows its witnesses to come face to face with a plain of being otherwise
always buried and locked away behind the thick iron curtains of what Artaud calls
a society which is unknowingly killing itself. The essay’s observations are undoubtedly
bold and set a whole new challenge for all the forthcoming generations of theatre
makers, not only challenging their very conception of why they make theatre but
also challenging them to engage again and again with this very text, Theatre and
the Plague, its symbolism, its language, its images and uncompromising visions.
It is this challenge that Wolfgang Pannek has taken up and shared with the international
group of performers, artists and academics that have come together for their own
timely filmic interpretation of Theatre and the Plague.
Keeping to the virtuous tradition of the artist
as the poetic voice that addresses the curses of his own day and age, Wolfgang has
chosen the ideal text to sink our teeth into whilst the world is literally on pandemic
lockdown, fighting the latest ‘plague’ as we had to reconfigure not only our methods
and means but also take time to rethink the nature of our work as people who’s lives
depend on the public space. Thus, was born this project, an audio-visual collection
of eighteen cinematic narratives, each reading a segment of the essay in their own
language with contributors from five continents, all filming and recording with
the available resources during 2020, some even under full lockdown conditions. The
collection was then re-edited in a full feature film by Wolfgang himself, giving
us a complete reading of Artaud’s essay, moving from language to language, country
to country, image to image creating a kaleidoscopic audio-visual interpretation
of the text juxtaposed to the all too real pandemic conditions as observed by this
collective.
The film opens with the segment Le Grand
San Antoine by Florence de Mèredieu, where a collage of sequential images ranging
from obscure domestic environments, to historical illustrations and maps of Marseille
with superimpositions of Murnau’s creepy Nosferatu set the stage for what will clearly
be an unrestrained journey of creative audio-visual exploration. Yet the full impact
of what is being presented here starts to dawn on you with the first shift into
the second segment, Symptoms by Nabil Chahhed, as we go from the French language
to Turkish, from Paris to Oueslatia in Tunisia, and beyond the individual creative
efforts of each artist we start to experience the inter-cultural tapestry woven
by Wolfgang Pannek, mimicking in turn Artaud’s own meanderings in the text as he
attempts to trace the untraceable movements of the plague across eras and civilizations.
The cities we inhabit and spaces under attack
by unknown forces are also themes explored in segments such as An Imaginary Line
by Wolfgang Pannek showing images of a desolate Paris, and Tragic Actor remains
enclosed within a Perfect Circle by Or Kittikong, based in Khon Kaen in Thailand,
which ends on a very mundane yet threatening image of an ordinary lock, bringing
us face to face with the ‘lock’ part of the word ‘lockdown’ in a painfully vivid
manner. Only to be immediately subverted by the clownish antics of Jürgen Müller-Popken in Paroxysm.12/Walk as he plays
with a variety of symbols, the bell, the tightrope, the masked figure in a boat,
where we are made to disambiguate an apparent freedom which might be enslaved in
its own repetitive behaviours only to then return to another city, this time Brisbane
in Australia where that most enslaving of domestic technological toys, the flat
screen television, is used to full effect by Shane Pike in In Splendid Health.
From the cities moving always further, always
deeper, into archetypal zones of the unconscious, over the latter half of the essay
we see the artists building a repertoire of performative gestures that break the
same social assumptions Artaud was engaging with. In Symbols, Candelaria
Silvestro takes us back to a primordial time of cave paintings and faun like images,
depicting a mystical aura which is also engaged with by Trausti Ólafsson in This
Contagous Delirium, as religious imagery is pitted against the cold video recordings
of a liminal space which could only be inhabited by lost souls. The sense of ritual
and sacrifice continues being explored this time with fire and fire walking by Jürgen Müller-Popken
and Insa Popken in Anabella’s Song: “It’s not that I cry
out of repentance” leading to what might be the first liberating
image of this fragmented narrative as the clown and the masked figure leave the
fire and the alarming bell behind to wade out onto the stream in their emblematic
boat.
It’s as if our collective search in the dark
for a way out has been instinctively tapped into by Reha Bliss and Théophile Choquet
in Absolute Danger and A Superior Notion
of the Theatre respectively as both exploit the image of the hand tentatively
reaching out to open the locked door, one to find the threatening world of bio-chemical
terror outside, the other to discover the squirming, vulnerable creature within,
two visions of a humanity in despair or maybe a vision of something else, something
beyond humanity, a liberated unknowable horror which we have been striving to reach
after all.
I’m aware that over the journey of this review
I have focused my observations more on the visual aspect than the sound and linguistic
elements of this collection, yet I may bring this into frame here on the final step
of the journey. As we slipped like that small boat on a stream with a clown and
a hooded figure, from French to Turkish, to Icelandic and Changana and our own ears
were challenged more and more through eleven languages, by the novelty and musicality
of each new code, we couldn’t have imagined the power that was going to assault
us when Maura Baiocchi’s reading of the final text segment, The Question, reaches our ears in Portuguese. The immensity of her drawn
out sibilants and harsh unvoiced fricatives accompany us as much as her performance
into this final liminal destination, a place in between places, rural and wild,
with an infinite blue sky above, yet also framed in parallel electrical lines stretching
above acres of forestry from giant metallic towers making the presence of the far
off machine-like cities felt even here. Syllable after syllable, our journey is
drawn out to its conclusion in this impossible landscape which Maura inflicts herself
upon in her white dress and flow of hair as she embraces this unearthly liminality
and reaches out to the sky beyond the electrical fields in an ambition worthy of
the theatre as envisioned by Antonin Artaud.
As brought together by Wolfgang Pannek, this
audio-visual cinematic reading of Artaud’s essay, Theatre and the Plague,
achieves a significance beyond the sum of its parts, leaving an impact that moves
its viewers into a fresh, contemporary engagement with the text and many of its
ramifications. In his essay, Artaud explains how in his engagement with the plague
he was bound to conclude that it was ultimately a ‘spiritual physiognomy’ that we
were looking at and not merely a biological one. It is this ‘spiritual physiognomy’
that one feels enraptured in this work, since though held apart by the conditions
of the times this collective of performers, artists and academics has been brought
together with what means they found available to share a vision of theatre and culture
and art itself beyond the limits assumed by our current state of the world, making
all of us truly reconsider a superior notion of the theatre.
ANTON BONNICI | Escritor, educador e criador teatral radicado em Paris, onde trabalha como professor no Instituto de Pensamento Crítico de Paris. M.A. em Literatura e Crítica Moderna e Contemporânea e Bacharel em Psicologia, ambos pela Universidade de Malta. Além disso, é o co-diretor artístico do Paris Fringe International Theatre Festival e fundador de Of Potters’ Demons, um laboratório internacional de pesquisa colaborativa e criatividade com foco em texto, imagem e performance.
CANDELARIA SILVESTRO | Artista argentina nacida en Córdoba, en 1977. Expone desde el año 1998 en salas de arte, galerías y Museos públicos y privados. Su obra forma parte de colecciones públicas y privadas, nacionales e internacionales de Argentina, Brasil, Holanda, Estados Unidos. Desde el año 2000 colabora con la Compañía Taanteatro de Sao Paulo en la realización de escenografía, vestuario, video animación, objeto escénico y performer. Sus trabajos más recientes son una participación en el film internacional La Peste de Antonin Artaud junto a la Compañía Taanteatro, en 2020; además de una participación especial en el Festival de Ecoperformance 2021 (Compañía Taanteatro); una exposición de pinturas de gran formato inspirada en el paisaje de la Mar Chiquita “Bandada de Flamencos”; la performance Ophelia de Ansenuza, concepción, dirección y coreografía de Maura Baiocchi (Compañía Taanteatro); y participación en el filme Apokalypsis, dirección de Maura Baiocchi y Wolfgang Pannek – todo esto en 2021.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 03
Número 202 | fevereiro de 2022
Artista convidada: Candelaria Silvestro (Argentina, 1977)
Traduções de Wolfgang Pannek e Vadim Nikitin
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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