O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,
mas de vontade
e árvore de vontade
que anda,
voltará.
Existiu, e voltará.
Porque a grande
mentira foi fazer do homem um organismo,
ingestão, assimilação,
incubação, excreção,
o que existia
criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam
ao domínio da
vontade decisiva,
a vontade que
em cada instante decide de si;
porque assim
era a árvore humana que anda,
uma vontade que
decide a cada instante de si,
sem funções ocultas,
subjacentes, que o inconsciente rege.
O início do texto “O Homem-Árvore” de Antonin Artaud é
um dos tantos em que o pensador francês proclama seu niilismo e sua desesperança.
Ele fala da ancestralidade do homem, muito antes que fosse consumido por sua própria
humanidade. É um pensamento avesso à lógica, mas tão profundo que nos faz pensar
o que nunca pensamos. A exemplo de tantos outros, o sentido crítico atinge memórias
insondáveis, um vômito da psiquê que dói e pragueja, trazendo a estranha beleza
do impalpável que aponta a aceitação do absurdo pelo homem que deixou de ser árvore.
Poeta, dramaturgo
e um dos pensadores mais importantes do século 20, Artaud nasceu em 4 de setembro
de 1896 e, ao longo da vida, por problemas de saúde, acabou viciado em opiáceos
e foi considerado louco. Morreu em 4 de março de 1948, aos 51 anos, no hospício
de Ivry (França), agarrado a um sapato. A cena de sua morte é a representação da
solidão de um crítico da cultura de seu tempo e dos padrões da sociedade ocidental.
Ele não poupava a ciência nem os métodos da psiquiatria que teve que encarar nos
diversos períodos de internamento.
Seu rosto estava convulsionado de angústia e seus cabelos,
empapados de suor. Seus olhos dilatavam-se, seus músculos enrijeciam-se, seus dedos
lutavam para conservar a agilidade. Fazia-nos sentir sua garganta seca e queimando,
o sofrimento, a febre, o fogo de suas entranhas. Estava na tortura. Uivava. Delirava.
Representava sua própria morte, sua crucificação.
As pessoas foram
saindo uma a uma, rindo, zombando da cena, não sobrou quase ninguém a não ser Anaïs
Nin, o Dr. Allendy, que convidava intelectuais e artistas para sua exposição de
Novas Ideias na universidade, sua mulher e dois casais.
A incompreensão
sempre atravessou a vida de Artaud e também sua morte. Ainda hoje, poucos atingem
o que ele propôs e quis comunicar porque é preciso uma visceralidade humana e animal,
humana e vegetal, humana e mineral para atingir o espectro de um ser em convulsão
que fazia da angústia existencial a sua arte!
Em 2015, o grupo
Taanteatro Companhia concebeu uma trilogia, dirigida por Wolfgang Pannek e Maura
Baiocchi, tendo como ponto de partida o trabalho artístico de Artaud. O título era
cARTAUDgrafia, uma combinação da palavra cartografia com o nome de Artaud,
e a proposta era fazer um mapeamento da sua obra através de coreografias. Composta
de três espetáculos – cARTAUDgrafia 1: Uma Correspondência; cARTAUDgrafia
2: Viagem ao México e cARTAUDgrafia 3: Retorno do Momo –, o grupo levou
à cena, numa composição difícil, a ancestralidade, a originalidade, a força da pré-linguagem
que permeia a obra do pensador. [1]
Esse foi um dos vários trabalhos sobre a obra do pensador que fazem parte
da trajetória do grupo; houve outros antes e também depois. Ainda se veria Maura
Baiocchi em Artaud – Le Momo, em 2016, compreendido como um “monólogo teatrocoreográfico
multimídia”. A dramaturgia mostra “a luta do poeta, ator e dramaturgo francês contra
a institucionalização das formas de vida e sua tentativa de conquistar o corpo soberano”.
Artaud é atual, é o olho que nos mostra a mediocridade das relações “limpinhas”
do homem-árvore convertido no homem que ele propunha desconstruir ainda que fosse
com os vômitos da psiquê para “levar as pessoas à força a um estado poético”, como
escreveu Anaïs Nin ao defender seu amigo dos golpes da Sorbonne. Artaud morreu abraçado
ao sapato da solidão e da incompreensão. A cena talvez também mostre que na mente
profunda dos “loucos” brilha a poética nunca atingida pelos “normais”.
NOTA
1. Nota editorial: as documentações audiovisuais de cARTAUDgrafia estão disponíveis no canal Vimeo da Taanteatro Companhia: https://vimeo.com/user9504695.
CÉLIA MUSILLI | Jornalista, cronista e poeta. É autora dos livros de poesia Sensível Desafio (2006) e Todas as Mulheres em Mim (2010). Participou de coletâneas de crônicas e poemas, tem textos publicados em diversas revistas literárias. É editora de cultura do jornal Folha de Londrina e mestre em Literatura Brasileira pela Unicamp.
CANDELARIA SILVESTRO | Artista argentina nacida en Córdoba, en 1977. Expone desde el año 1998 en salas de arte, galerías y Museos públicos y privados. Su obra forma parte de colecciones públicas y privadas, nacionales e internacionales de Argentina, Brasil, Holanda, Estados Unidos. Desde el año 2000 colabora con la Compañía Taanteatro de Sao Paulo en la realización de escenografía, vestuario, video animación, objeto escénico y performer. Sus trabajos más recientes son una participación en el film internacional La Peste de Antonin Artaud junto a la Compañía Taanteatro, en 2020; además de una participación especial en el Festival de Ecoperformance 2021 (Compañía Taanteatro); una exposición de pinturas de gran formato inspirada en el paisaje de la Mar Chiquita “Bandada de Flamencos”; la performance Ophelia de Ansenuza, concepción, dirección y coreografía de Maura Baiocchi (Compañía Taanteatro); y participación en el filme Apokalypsis, dirección de Maura Baiocchi y Wolfgang Pannek – todo esto en 2021.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 03
Número 202 | fevereiro de 2022
Artista convidada: Candelaria Silvestro (Argentina, 1977)
Traduções de Wolfgang Pannek e Vadim Nikitin
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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