Indagada sobre
sua memória da capital brasileira – cujo início da construção se dá no mesmo ano
em que ela nasce, a cidade nova, como a denominou o crítico Mário Pedrosa –, nossa
amiga lembra do cenário que a muitos da época era familiar: candangos nas construções
no cerrado desbastado, redemoinhos de poeira, secura no ar.
O grandioso
e o monumental não lhe chamaram tanto a atenção quanto esse surgir de superquadras,
viadutos e agitação com novos matizes num espaço em expansão. Nessa cidade concebida
pelo urbanista Lúcio Costa, de uma circulação de carros e pessoas inéditas em qualquer
cidade do mundo, sob o impacto da arquitetura de Oscar Niemeyer e do paisagismo
de Burle Marx, Maura cresceu, ao lado do irmão Rômulo e dos pais César Baiocchi
e Josephina Desounet. Se quisermos entender a história: Maura é a diva que ensina,
a pioneira de formas plurais de existência ou a mulher de cabelos ao vento descrita
por Clarice Lispector, um patrimônio material vivente e que dança.
São João do
Cauiá, seu porto de origem, pequena cidade do norte do Paraná, tem hoje pouco mais
de sete mil habitantes. Caiuá, que vem da língua tupi, é não só o nome dos indígenas
que moravam na região. Também se traduz como aquele que mora no mato; ou ainda:
errante, nômade. Nômade é um dos especiais atributos dessa mulher que viveu também
no Japão, Alemanha e viajou meio mundo. Em cena e no conjunto da obra, Maura é internacional,
versátil, multimídia, mulher dos mundos contrastantes e simbólicos, das artes ancestrais
e futuristas, das danças transgressoras e secretas.
Em Brasília,
antes de completar os doze anos, Maura passa a frequentar o Clube de Vizinhança
próximo ao apartamento da família. A concepção original de Lúcio Costa (uma metrópole
desenhada em dois eixos fundamentais, na forma de uma cruz ou de um avião e ainda
de uma borboleta, como surgiu em sonho para o inventor) estabelecia, além dos blocos
de seis andares com seus pilotis, áreas ajardinadas, parquinhos. Propunha, para
cada quadra do Plano Piloto, uma escola infantil, uma igreja, um pequeno clube,
com variações que se acentuaram com o tempo.
No Clube da
Vizinhança, nas entrequadras 108/109 Sul, Maura aproveitou as aulas de balé clássico.
Era a garota mais alta da turma e, ao mesmo tempo, já tinha passado dos padrões
de idade pela rígida concepção de ensino do balé clássico. Como toda dançarina que
se preza, Maura achava as aulas “uma tortura”. Entre suas primeiras professoras,
Maura recorda de Lucia Toller, bailarina e coreógrafa em atividade até os dias mais
recentes. Toller fez a direção e Maura estava no elenco de O Pássaro de Fogo,
a partir da música de Stravinski. Nesta obra de impacto até hoje atual a dançarina
percebeu que também havia, além dos clássicos dos cisnes e fadas, uma dança moderna.
Em várias de suas performances cênicas, ela é muitas vezes um pássaro de fogo.
A dança moderna
transa diretamente com o teatro e esse cruzamento é decisivo. Maura vai se deparar
com o teatro no Colégio Pré-Universitário, onde havia um grupo de ensaios e produções
com a professora e encenadora Laís Aderne, mulher da arte-educação fundamental na
iniciante vida cultural brasiliense. Maura atuou numa montagem de Marat/Sade,
de Peter Weiss (1963), uma febre na época encenada por dezenas de companhias pelo
mundo, e também num musical inspirado nas canções de Rita Lee. Por um curto tempo,
também estudou piano e cantou num coral. Contudo, procurava um lugar em que se manifestasse
com mais desenvoltura.
Em breve, Maura
estaria tomada por aquilo que ela define como uma dança contaminada e alguns anos
depois definirá como teatro coreográfico de tensões. Conecta-se, convive e trabalha
com nomes como Hugo Rodas e Yara de Cunto. Surge um grupo independente novo na cidade,
o Asas e Eixos, e uma das coreografias de lançamento da trupe Bumerangue
– assinada por Maura Baiocchi, e que também vai para os palcos – tem como tema e
fundamento o próprio viver na tal cidade nova ora provinciana, ora cosmopolita.
As asas sul e norte definem o eixo residencial. Os eixos rodoviário e monumental
configuram o principal esquema da cidade. Uma cidade “puramente teatral”, como enxergou
o sociólogo Gilberto Freyre.
Outros nomes
e experiências marcam os anos 70, 80 e 90 de Maura em Brasília: aulas, criação de
estúdio, experimentos com a artista plástica Sônia Paiva, o ensino para crianças
e o intercâmbio com diretores como Ary Pararraios. Máxima é a concentração nos trabalhos
que se engendram. Aliás, um parêntese: o lugar que torna Maura Baiocchi adulta e
definitiva em seu trajeto é o que hoje se chama Espaço Cultural 508 Sul, na época
erguido precariamente na ponta da quadra 508 Sul, porém uma ocupação de primeira
dimensão. Um lugar mais vibrante para diversas práticas culturais marcado pela pluralidade
de linguagens: da gravura à dança, das oficinas aos espetáculos. Do contato direto
de Maura com nomes como Wladimir Murtinho, embaixador e então secretário de Cultura
ou Alex Chacon, designer que também dirigiu com garra o Centro de Criatividade,
vieram desdobramentos em oficinas, eventos e espetáculos.
São os tempos
do projeto Cabeças, de apresentações ao ar livre pela cidade, dos contatos com Wagner
Hermuche, artista plástico, e Néio Lucio, ator e fundador do Cabeças e seus chamados
concertos. Seu personagem de rua chama-se Lili Manicure. Ela cria projetos como
Jazz Livre e desdobra-se em inúmeras atividades, navegando contra a corrente do
que costumava denominar como o vazio cultural da cidade que nascera para ser um
polo de irradiação. Seu lema desses tempos é “ative seus anticorpos ou deixe-se
possuir”.
Cumpre registrar
que um dado singular do teatro e da dança em Brasília é a preponderância de nomes
femininos como mestras e fundadoras. Da pioneira Gisèle Santoro, da criação de uma
faculdade pela diva Dulcina de Moraes, da invenção teatral da autora e diretora
Sylvia Orthof, Maura trouxe/representou Isadora Duncan, Marta Graham e Pina Bausch,
em diálogos inteligentes de reverência e desafio.
Du-Elo pode ser incluído
na lista dos dez mais importantes trabalhos cênicos na história da arte brasiliense
e, feliz coincidência, impressionou um dos mestres do Butoh japonês, Kazuo Ohno,
que aqui fez mágicas apresentações no Teatro Nacional. E, ao assisti-las numa sessão
particular no foyer da Sala Villa-Lobos, sorriu pela dança de Maura e Eliana, dedicando-lhes
um belo e definitivo texto de apreciação. A sintonia foi tão fina e afinada que
nove meses depois, Maura vai para o Japão, para a cidade de Yokohama, onde Kazuo
Ohno tem seu ateliê instalado. Ela deixou um vazio na cidade e voltou com uma vívida
bagagem de técnicas, inspirações e dramaturgia. Intensa como sempre, criou aqui
e em São Paulo uma série admirável de espetáculos.
Feito este breve
relato, é preciso contextualizar em breves palavras a potência do devir-Maura. Artaudiana,
nietzscheana, sensual e incorporada, ela trabalha com mitologias e cosmogonias diversas,
de ícones como Frida Kahlo, das divindades do candomblé e das grandes lendas orientais;
filha de santo e engajada, ela continua atuando e instigando Brasília, porque aqui
sempre voltou, com a excelente Mostra Butoh e Teatro Pesquisa de 1995, com Zaratustra,
com DAN, em que se expõe nua à paisagem lunar da Chapada dos Veadeiros. Vir
a ser, desde a infância e todas as idades, ser por dons genéticos, por sensibilidade
transparente, impulsos poéticos que, aliás, lhe fazem escrever sonhando.
Não importa
agora concluir com esse presente em 2021 no qual nossa atroz mulher da dança e do
teatro continua atuando. Maura transborda limites e joga com todos os charmes e
chamamentos de um mundo de utopia e afirmação da vida. Repertório extenso, desdobrável,
para todos os públicos, abrindo veredas inimagináveis. Dança de esqueletos sutis,
construção esfuziante de personas plurais, imersão ousada nas águas da natureza
e do futuro.
Assim, também
se tornou a dançarina que mais lançou livros, concluindo seu mestrado pela PUC de
São Paulo, explicitando seu método sempre em avanços desde o primeiro Butoh –
Dança Veredas da Alma, a outros que se seguiram assinados em parceria com o
ator, encenador e pensador Wolfgang Pannek, com quem criou o estúdio-residência
da companhia Taanteatro, na mata atlântica de São Lourenço da Serra, no estado de
São Paulo. [1] Apesar da pandemia que
a todos afetou e continua pontuando um tempo de horror, Maura Baiocchi segue em
plena atividade, lendo, planejando, ensaiando, filmando, jogando com as cartografias
do impensável. Todos os santos de bela linhagem passam por seu terreiro criador.
Para ela, além de palmas, deixamos os saravás, saravés, ararás e axés.
NOTA
1. Nota editorial: São
Lourenço da Serra é um município da região metropolitana da cidade de São Paulo.
CELSO ARAÚJO | Maranhense nascido em 1954, vive em Brasília desde 1968. Cursou Psicologia no Ceub e no último ano do curso iniciou sua atividade no jornalismo, abandonando a graduação. Foi crítico de teatro nos principais jornais do DF, atuou em teatro como autor, ator e diretor. Também atuou como compositor na banda Akneton por mais de quinze anos. Publicou livros sobre artes e a história do teatro em Brasília.
CANDELARIA SILVESTRO | Artista argentina nacida en Córdoba, en 1977. Expone desde el año 1998 en salas de arte, galerías y Museos públicos y privados. Su obra forma parte de colecciones públicas y privadas, nacionales e internacionales de Argentina, Brasil, Holanda, Estados Unidos. Desde el año 2000 colabora con la Compañía Taanteatro de Sao Paulo en la realización de escenografía, vestuario, video animación, objeto escénico y performer. Sus trabajos más recientes son una participación en el film internacional La Peste de Antonin Artaud junto a la Compañía Taanteatro, en 2020; además de una participación especial en el Festival de Ecoperformance 2021 (Compañía Taanteatro); una exposición de pinturas de gran formato inspirada en el paisaje de la Mar Chiquita “Bandada de Flamencos”; la performance Ophelia de Ansenuza, concepción, dirección y coreografía de Maura Baiocchi (Compañía Taanteatro); y participación en el filme Apokalypsis, dirección de Maura Baiocchi y Wolfgang Pannek – todo esto en 2021.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 03
Número 202 | fevereiro de 2022
Artista convidada: Candelaria Silvestro (Argentina, 1977)
Traduções de Wolfgang Pannek e Vadim Nikitin
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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