quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

CAROLINA MORGADO LEÃO e ANA BEATRIZ DE ARAUJO LINARDI | Jabberwocky e o cinema de resistência surrealista de Jan Svankmajer

 


O surrealismo francês e sua reverberação na Tchecoslováquia

Inicialmente concebido pelo artista francês André Breton na metade da década de 1920, o Surrealismo buscou diferentes formas de representar artisticamente o irracional e o subconsciente. Como descrito por seu idealizador, almejava-se o encontro com o maravilhoso, com o efeito poético puro, numa busca pela centelha que nasce da justaposição de dois objetos de contextos díspares. Buscavam a beleza paradigmática definida nos Cantos de Maldoror de Lautréamont: belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura numa mesa de dissecação.

A publicação do Manifesto Surrealista, assinado por Breton em outubro de 1924, marcou historicamente o nascimento de um movimento que propunha a restauração dos sentimentos humanos e do instinto como ponto de partida para uma nova linguagem artística. Para isso, era preciso que os homens adquirissem uma visão totalmente introspectiva de si mesmos e encontrassem o lugar do espírito no qual ambas as realidades, interna e externa, seriam percebidas completamente isentas de contradição. (BRETON, 2001).

O espírito subversivo do movimento surrealista reunia raízes comuns a outros movimentos artísticos do início do século XX, como a rejeição às formas artísticas estagnadas em modos de representação amplamente conservadores e a revolta contra a moral hipócrita de uma sociedade intolerante e opressiva. Seus adeptos defendiam a transgressão dos valores sociais e morais dominantes e julgavam a academia irrelevante. Além disso, ainda que participassem de um movimento de cunho artístico, apoiavam também a dessacralização do próprio artista e de sua importância.

Na Tchecoslováquia, o surrealismo foi berço para diversas manifestações artísticas de resistência ao repressivo contexto político. O cinema, em particular, se destacava como uma plataforma que conseguia habilmente, através de seus meios particulares, “dar vida” (animação, anima) aos ideais deste movimento.

É importante salientar que o movimento surrealista tcheco não obteve reconhecimento mundial como o francês. Este cinema – assim como a literatura e demais artes – sofreu não apenas com as barreiras linguísticas existentes entre os idiomas ocidentais mais clássicos e as línguas eslavas do leste europeu, mas também com as barreiras políticas que o contexto do “Muro de Ferro” da Guerra Fria impunha ao longo da segunda metade do século XX. Assim sendo, para que possamos analisar com mais propriedade a animação foco deste artigo, torna-se interessante uma breve exposição da história do movimento surrealista tcheco, tão pouco difundida na história ocidental.

A Tchecoslováquia foi o primeiro país a ressoar o movimento surrealista francês. Podemos citar, entre os muitos artistas que se engajaram ativamente no desenvolvimento dessa corrente artística no país, Karel Teige, Nezval, Jindrich Styrsky e Toyen. [1] Em suas frequentes viagens à França, este grupo de artistas estabeleceu importantes laços com a vanguarda surrealista francesa, em especial André Breton e Paul Eluard. Após esse primeiro intercâmbio, foi a vez de Breton viajar à Tchecoslováquia, a convite de Teige, Nezval e do grupo “Frente de Esquerda”, onde ministrou palestras e conferências no intuito de fortalecer e internacionalizar o movimento. Os textos “A Posição Política da Arte de Hoje” e “Situação Surrealista do Objeto”, ambos de 1935, foram produzidos em conferências ministradas por Breton em suas visitas à Tchecoslováquia.

Uma vez em terras tchecas, o surrealismo encontrou terreno fértil no descontentamento político presente entre seus artistas. Para aqueles que aderiram ao movimento, a arte precisava ser subvertida. A subversão se mostrava a única maneira de quebrar com as correntes artísticas dominantes na época, que não se mostravam suficientes na sua forma para expressar as aflições de um duro momento pós-guerra, ou tampouco exprimir as amarguras posteriormente vividas no longo período sob controle ditatorial comunista soviético (1945-1990). O sofrimento de toda uma geração, até então reprimido, se tornou combustível para uma nova e contestatória forma de arte, que parecia permitir ao inconsciente humano emergir e agir como em um sonho.

Entre os artistas que aderiram a essa subversiva proposta artística estava o animador tcheco Jan Švankmajer, que em 2016 concedeu uma entrevista a respeito da influência surrealista na sua obra e de seus compatriotas.

 

Há muitos mal-entendidos sobre o surrealismo. Historiadores de arte o incluíram entre as direções de avant-garde dos artistas da primeira metade do século XX. Do ponto de vista deles, o surrealismo está morto há pelo menos sessenta anos. O termo surrealismo entrou no vocabulário geral como descrição de algo sem sentido, absurdo. Primeiramente, é importante dizer que o surrealismo não é arte. Não há pintura surrealista ou filme surrealista, podemos falar sobre o surrealismo na arte, na pintura ou no cinema. Isso ocorre porque não existe uma estética surrealista, nenhum método surrealista ou escola. O surrealismo é uma maneira de perceber a vida e o mundo. Eu descreveria isso como uma visão mágica da vida e do mundo. Eu aprendi três coisas com o surrealismo: primeiro, ele (o surrealismo) me libertou do medo da coletividade, porque o surrealismo é uma aventura coletiva. Em segundo lugar, desenvolveu minha imaginação de maneiras imprevisíveis e, finalmente, ensinou-me que há apenas um tipo de poesia e que não importa o que significa, o que importa é que escolhemos compreendê-lo. [2]

 

Nessa entrevista, Švankmajer procura deslocar o surrealismo presente em seu trabalho do movimento inscrito na história da arte, ampliando seu sentido para além do oficialmente estabelecido pela crítica acadêmica. Referindo-se ainda ao fato do termo ter entrado para o léxico, ele afirma que o surrealismo pode até encontrar manifestação nas mais diversas artes, mas não se configura propriamente como estilo, nem porta regras que o mantenham restrito ao que muitos compreendem como um movimento. O que ele considera digno de nota, segundo suas declarações, é a potencialidade presente no surrealismo de permitir o fluir da imaginação e a liberdade de seu processo criativo.

 

O movimento surrealista e a psicanálise

Não obstante a enorme influência que o contexto político-econômico europeu do início do século XX exerceu no desenvolvimento da arte surrealista, foram os textos de Sigmund Freud que forneceram ao movimento uma parte considerável de sua inspiração e teoria. Um tema em particular da obra de Freud foi amplamente absorvido pelos artistas surrealistas: a importância dos sonhos. Os mecanismos básicos da lógica onírica, tal como tematizados por Freud, fascinaram aqueles envolvidos com o movimento surrealista, que acreditavam ser possível construir uma forma de arte baseada em tais princípios. Intentavam mimetizar – no plano artístico e a seu modo – os processos psíquicos e analíticos descritos por Freud.

Tais mecanismos são valiosos para a compreensão das escolhas estéticas surrealistas, que tanto enfatizam os processos e dispositivos do inconsciente e exploram a linguagem e o funcionamento dos sonhos. Por trabalhar com tal repertório de símbolos freudianos, o surrealismo sugere a existência de mitos e fantasias coletivas que teriam predominância na vida social e psíquica da época. Uma vez que a teoria freudiana destaca-se, portanto, como um dos pilares bibliográficos do próprio surrealismo, algumas temáticas freudianas merecem, por consequência, ser enfatizadas por sua recorrência tanto nos trabalhos surrealistas em geral quanto na estética do próprio Švankmajer que buscava sugerir um tipo de fantasia coletiva ou estabelecer mitos que predominavam na vida social e psíquica da época.


Entre os temas freudianos mais recorrentes na estética surrealista se encontra a noção de “estranhamento”. Este conceito, presente em seu texto “O Estranho” (unheimlich), foi desenvolvido por Freud com base na leitura do conto “O Homem de Areia”, [3] de E.T.A. Hoffmann, no qual a figura do pai pune seus filhos arrancando-lhes os olhos. Em termos simples, Freud compreendia o fenômeno do “estranhamento” como a resultante de um processo de profunda repressão inconsciente (recalque) de algo que já nos foi, um dia, familiar. O “estranho” seria, dessa maneira, algo familiar à psique – mas incompatível com o eu – que o recalque reprimiu e transformou em incômodo. Ao emergir, o “estranho” assumiria com frequência uma forma figurativa (comum em traumas na infância) e se manifestaria na forma de uma sensação de terror ou mal-estar.

Além da noção de “estranhamento”, são também comuns nas obras surrealistas as referências à “loucura e histeria”, sobretudo quando ligadas à imagem e papel social da mulher e também inspiradas na discussão que Freud faz sobre o tema. Mas, especialmente devido à sua presença constante na obra de Švankmajer, é o conceito de “canibalismo” o ponto de confluência que mais nos interessa. Assim o define a psicanálise moderna, a partir dos estudos freudianos:

 

Termo empregado para qualificar relações de objeto e fantasmas (fantasia) correlativos da atividade oral, por referência ao canibalismo praticado por certos povos. O termo exprime de modo figurado as diferentes dimensões da incorporação oral: amor, destruição, conservação do interior de si mesmo e apropriação das qualidades do objeto. (LAPLANCHE E PONTALIS, 1986)

 

Em Totem e Tabu (1912-13) a noção de “canibalismo” foi primeiramente exposta. Acerca dessa prática dos “povos primitivos”, Freud sublinha a crença de que a ingestão de partes do corpo de uma pessoa concede igualmente a apropriação das propriedades que a elas pertenceram, o que o levou a conceber os conceitos de "parricídio primordial" e "refeição totêmica", noções freudianas de considerável alcance.

 

Um dia, os irmãos [...] reuniram-se, mataram e devoraram o pai, pondo desse modo fim à horda primitiva [...]. No ato de devorar realizaram a identificação com ele, pois cada um se apropriou de uma parte da sua força. (LAPLANCHE E PONTALIS, 1986)

 

Qualquer que seja o valor da perspectiva antropológica de Freud, o termo "canibalismo” assumiu na psicologia psicanalítica uma clara acepção. Na edição de 1915 dos seus “Três Ensaios”, Freud introduz a ideia de “organização oral”. Essa fase do desenvolvimento psicossexual seria primordialmente caracterizada pelo “canibalismo”. Na sequência, Freud expõe o que entendia por “fase oral”, sublinhando "[...] determinadas características da relação do objeto e das suas qualidades. As relações estreitas que existem entre a relação do objeto oral e os primeiros modos de identificação estão implicadas na própria noção de canibalismo." (LAPLANCHE E PONTALIS, 1986)

Mesmo com a discordância manifestada por Freud quanto à apropriação de suas teorias pela corrente artística surrealista, elas inegavelmente garantiram certa homogeneidade ao movimento, uma vez que não se pode falar exatamente em unidade de estilo nas obras surrealistas, como muito bem sublinhou Jan Švankmajer em seu depoimento. Embora cada artista surrealista manifestasse características estéticas bem próprias em seus trabalhos, era a intensa presença do universo onírico nas mais diferentes obras destes artistas que garantia considerável coesão e convergência à sua arte. O surrealismo propunha assim, coletivamente, se comunicar através da ruptura com o mundo real e moderno, numa fusão do mundo externo com o interno. Esperavam retratar ao observador um mundo interior imaginário que resultasse na desorientação das expectativas habituais – algo que o artista e a animação focos de nosso artigo realizam com maestria.

 

A arte pela arte já não satisfazia mais os ideais artísticos, além de subvertê-la era necessário transformar o mundo. Se, como dito anteriormente, o principal motivo da atividade surrealista é encontrar o ponto de união entre o consciente e o inconsciente, a arte vai se estabelecer como o meio mais adequado para alcançar tal objetivo, pois o inconsciente se pensa por imagens e arte formula imagens. É importante ressaltar que o inconsciente não é apenas uma dimensão psíquica explorada com maior facilidade pela arte devido a sua familiaridade com a imagem, mas uma configuração da própria dimensão da arte. A arte é a comunicação vital do indivíduo por meio de símbolos. (BENJAMIN, 1993)

 

Podemos perceber que o surrealismo emerge em um momento de crise da civilização, negando a arte pela arte. Perante a repressão imposta pela ditadura comunista, era preciso mais do que apenas a subversão da arte. Fazia-se necessário também uma mudança brusca e urgente da vida social e política. Foi através desta urgência por transformação que o surrealismo despontou como força motriz e filosófica, cuja finalidade era revolucionar o século XX.

Não surpreendentemente, esse opressivo cenário político e cultural e o espírito subversivo que ele suscitou impulsionou Švankmajer a seguir, como outros, um caminho estético de resistência em seu trabalho: engajado social e politicamente e profundamente reflexivo quanto aos rumos da humanidade.

 

Gostaria de dizer que considero todos os meus filmes muito engajados politicamente. Mas eu nunca os reduzi a um sistema totalitário, como, por exemplo, um artista dissidente faria. Porque percebi que se a civilização permite a criação e a existência de algo tão doente como o Fascismo ou Stalinismo, então toda a civilização é doente, algo está errado. Eu sempre quis penetrar no núcleo desse problema. Não apenas concentrar na superfície da atividade política. Portanto, meus filmes são universais, eles podem se comunicar com audiências fora da República Tcheca. Então, só porque a situação política mudou na Tchecoslováquia, não significa que o universo ou a civilização mudou ao mesmo tempo. Estou tanto quanto preocupado que não há razão para mudar meu inimigo. Ele sempre será o mesmo. (JACKSON, 1997. The Surrealist conspirator: an interview with Jan Svankmajer. In: Animation World Magazine.)

 

Foi sob forte influência desse sentimento que se construiu o cinema de Jan Švankmajer. Seus filmes buscam ilustrar e enfraquecer tal cenário amargo e autoritário através de uma iconografia dura, sombria e realista, mas não inteiramente esvaziada de esperança quanto à potencialidade de fuga proporcionada pelos sonhos.

A oposição entre a realidade severa e a fuga propiciada pelos sonhos é uma contradição típica presente não somente na obra deste diretor, mas na produção cinematográfica de todos os países sob influência comunista. Nesses territórios, a possibilidade de liberdade artística de expressão residia, quase que inteiramente, numa visão e retrato metafórico do mundo.

 

O grotesco

Não seria prudente fomentar uma reflexão mais detalhada sobre a obra de Jan Švankmajer sem antes discutir brevemente o grotesco, categoria estética bastante aplicada em suas animações.

O grotesco surgiu e foi definido a partir da descoberta, durante escavações na Roma do século XVI, de um tipo de pintura ornamental presente nas paredes de porões de antigos palácios romanos (assim a referência à grota – galeria escura, subterrânea). Esse tipo de pintura apresentava seres híbridos, assimetrias e outros atributos que anulavam as ordens da natureza. O desconforto que essas representações causavam fez com que fosse cunhado o adjetivo “grotesco”, que designava o que era monstruoso, irreal. O sentido do adjetivo foi posteriormente estendido e passou a descrever também aquilo que possuí caráter lúgubre, abismal, diante do qual se sente certa vertigem.

Assim define Wolfgang Kayser:

 


Na palavra grotesco, como designação de uma determinada arte ornamental, estimulada pela Antiguidade, havia para a Renascença não apenas algo lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas, concomitantemente, algo angustioso e sinistro em face de um mundo em que as ordenações de nossa realidade estavam suspensas, ou seja: a clara separação entre os domínios dos utensílios, das plantas, dos animais e dos homens, bem como da estática, da simetria, da ordem natural das grandezas. O fato se manifesta na segunda designação que surgiu para o grotesco no século XVI: sogni dei pittori. (KAYSER, 1986)

 

O termo migrou para a literatura e através dos séculos se manifestou, com maior ou menor vigor, nos mais diversos ramos das artes. W. Kayser assim demonstra a manifestação do grotesco em E.T.A Hoffmann e seus contos:

 

Contrastes agudos que nos tiram o chão debaixo dos pés, os jogos macabros com as figuras de cera e os mecanismos endemoninhados, o horror sempre do novo reconfigurado ante um mundo que se vai alheando e, com exemplos mais gritantes, as visões abismais no Discurso do Cristo morto proferido do alto do edifício cósmico, segundo o qual não existe Deus. (KAYSER, 1986)

 

Freud contribuiu fornecendo dimensões psicanalíticas a essa categoria ao abordar, no já citado “O Homem de Areia”, de Hoffmann, a ideia de estranhamento. A noção de grotesco acabou sendo extremamente útil ao movimento artístico surrealista, considerando sua luta contra a lógica e o racionalismo, em cuja jaula teria sido comprimida a cultura moderna. O grotesco não somente é um dos elementos de grande presença na corrente surrealista como também marca, certamente, a animação de Svankmajer, seja através de seus elementos oníricos, da sua subversão da lógica ou do estranhamento que ele provoca ao dar vida a seres inanimados. Bonecas e roupas que se movimentam, seres híbridos, o devorar, a histeria e os duplos são todos temas recorrentes na obra do animador tcheco que nos causam essa vertigem própria dos elementos grotescos.

Após esta breve exposição sobre as questões sócioculturais tchecas que precederam e motivaram a produção dessas animações de notável relevância artística, prosseguiremos para um aprofundamento da análise das estruturas e elementos mais presentes no trabalho do diretor Jan Švankmajer, no intuito de melhor compreender o compêndio de símbolos e referências – surrealistas, grotescas e estranhas – utilizadas na elaboração de suas animações.

Em nossa tentativa de compreender os mecanismos utilizados neste cinema de relações associativas, analisaremos a lúcida visão do diretor Jan Švankmajer e do compositor Zdeněk Liška a respeito de suas escolhas estéticas, sempre buscando elucidar os significados obtidos na interação entre imagem e som. Focaremos, consequentemente, em entender como o discurso sonoro proposto pelo compositor busca se articular às peculiares imagens presentes em Jabberwocky.

 

A construção do cinema de animação de Jan Svankmajer em Jabberwocky

Uma das características mais marcantes da arte surrealista de Jan Švankmajer é sua habilidade de manipular, de forma muito expressiva, os recursos fílmicos característicos da animação com a finalidade de produzir, no espectador, efeitos, sensações e sentimentos específicos. Através de calculadas estratégias de produção [4] que se utilizam de um conjunto de regras estabelecidas pelo diretor, a obra não apenas sugere ao público possíveis interpretações para seus elementos e sentido, mas conscientemente o direciona. Muitos dos contornos aparentemente incompreensíveis ou non-sense dos elementos presentes na animação foram, na realidade, conscientemente concebidos e aplicados por Švankmajer com a finalidade de transmitir ao espectador – na fantasia do irreal – um determinado sentido para o mundo (real) em que vivemos. É essa sutil relação de subordinação em que se encontra o espectador de Jabberwocky um dos pontos que mais interessa à nossa análise.

Como exposto anteriormente, muito desse processo de direcionamento é fruto das relações associativas que emergem da fusão entre imagem e som. É no confronto entre imagens e sons aparentemente desconexos que se cria uma narrativa capaz de fornecer sentidos que muito transcendem os signos que tais elementos originalmente carregariam quando isolados uns dos outros. Esta articulação possibilita, em outras palavras, “relações associativas que vão além dos domínios das representações padronizadas do tempo e do espaço, privilegiando o psicológico e emocional” (WELLS, 1998).

Seja ela resultante de processos de justaposição, fusão, contraponto ou paralelo, a tensão provocada por essa articulação entre o campo imagético e sonoro constitui um dos efeitos mais interessantes tanto dessa obra em específico quanto da animação surrealista de Švankmajer como um todo. A determinação surrealista em subverter a arte acabou por subverter, consequentemente, os próprios métodos tradicionais de se contar histórias.

Tradicionalmente, recai ao som a função dramática específica de estabelecer o clima e a atmosfera de um filme, primordialmente através da escolha do ritmo e sua ênfase. Nas animações surrealistas de Švankmajer, entretanto, a trilha sonora é responsável ainda por criar o vocabulário através do qual os códigos visuais do filme são compreendidos e os significados ocultos da narrativa afloram. Como discorreremos adiante no texto, a função que a trilha sonora desempenha nessa animação merece uma abordagem consistente e cuidadosa, considerando sua capacidade de expressar sentimentos íntimos e complexos de serem representados, como a repressão, as imposições de gênero, a educação autoritária, a busca frenética pela padronização como solução para a rejeição ao que é diferente etc.

Os mecanismos surrealistas utilizados na composição desta animação – em parte característicos do movimento, em parte específicos ao estilo de Švankmajer – despertam em seu público, independentemente das diferenças culturais existentes entre a obra e seus espectadores, sentimentos universais como repulsa, desconforto, comicidade e até choque. Como o próprio diretor explica em entrevista acima mencionada, suas animações visam referenciar problemas políticos universais pertinentes e pertencentes ao conjunto da civilização, ao invés de abordar realidades políticas limitadas a um contexto histórico-geográfico específico. Afinal, como o próprio Švankmajer afirma, a existência do Fascismo e Stalinismo seria prova de que não apenas uma parte, mas a totalidade da civilização estaria na realidade doente.

 

Jan Svankmajer, Zdenek Liska e Jabberwocky

A animação em stop-motion Jabberwocky (1971) é livremente inspirada pelo poema homônimo de Lewis Carroll, encontrado no livro Through the Looking-Glass and What Alice Found There (Alice Através do Espelho e o Que Ela Encontrou Lá – 1871). [5]

Em aspectos gerais, essa animação, assim como o poema, é um compêndio de símbolos. Predominam imagens que tiveram suas formas habituais e cotidianas subvertidas pelo grotesco e uma trilha sonora pouco comum em termos de timbres, desenvolvimento temático e dissonâncias. Interligadas, essas imagens e sons conferem a esta obra contornos peculiares. Essa fusão pouco habitual de imagens e sons comuns que em outros contextos nos seriam cotidianamente familiares almeja ressignificar a realidade. Consequentemente, as possibilidades de sentido são tão múltiplas quanto em um quebra-cabeça ainda não montado.

O universo imagético dessa animação é, em larga medida, constituído por objetos da cultura de massa antiga/não-contemporânea, onde brinquedos inanimados – produtos dessa produção massificada – comportam-se dotados com uma pós-vida (mortos-vivos), como previamente referido por Freud em seu estudo, O Estranho (1919).

A temática da animação gira em torno de uma crítica à educação infantil e o papel designado ao gênero na definição ditatorial de comportamentos. Através de uma inculturação viciosa de valores, garotas seriam educadas para serem pacíficas e submissas, enquanto garotos seriam incentivados a adotarem comportamentos bélicos e imperialistas. A animação também denuncia os reflexos automáticos de obediência retratados no comportamento mimético das bonecas – que acabam revelando-se objetos ideais para ilustrar a transformação das mulheres em autômatos, nesse caso sujeitos às manipulações do animador. Há aqui um empoderamento do artista pela oportunidade de condensar em um só elemento as ideias e mensagens que ele deseja transmitir, a forma que escolhe transmiti-las e a forma propriamente dita do gênero stop-motion. Ao controlar o avanço das imagens quadro por quadro, ele demonstra não estar apenas sob controle absoluto, também quadro a quadro, de todos os movimentos das bonecas, como revela ser igualmente capaz de manipular, como um marionetista das emoções, os sentimentos dos espectadores para um estado de grande desconforto, estranhamento.

É importante ter consciência do papel que os recursos oferecidos pela técnica do stop-motion tiveram nas escolhas estéticas do diretor. Devido às particularidades desta técnica, o espectador é direta e constantemente confrontado por uma construção desarticulada e staccata [6] do que normalmente pareceria fluido e natural na superfície fílmica (ainda que esta aparência em si seja sempre uma ilusão, não importa a quantidade de quadros por segundo). Em cada mudança de quadro existe o testemunho da interferência do artista no quadro anterior. Há uma constante presença estranha, uma assombração que está por trás de cada imagem animada em Jabberwocky. Objetos aparecem e desaparecem em um piscar de olhos, quase como se fossem invisíveis. Torna-se nítido o fato de que, nos trabalhos de Švankmajer, a ilusão de fluidez raramente é o efeito desejado.


A articulação entre a trilha sonora e as imagens em stop-motion é chave significativa na determinação e caracterização de um ritmo para a animação. Esse efeito pode apenas ser alcançado através de uma interação cuidadosamente planejada entre imagem e som. A animação é moldada conforme o compositor constrói um discurso rítmico diverso e contrastante que, ao longo da animação se revela uma propriedade típica por toda a história. Nesta animação, em particular, o compositor escolheu aplicar uma larga variedade de andamentos, fórmulas de compasso e intensidades, nem sempre em conformidade com a imagem apresentada, emoldurando assim uma já inconstante e desarticulada animação com uma trilha sonora igualmente contrastante.

A respeito do ritmo fornecido por Zdeněk Liška, o diretor comenta:

 

Nos primeiros filmes que fiz com Liška, não havia muitas ações em si. Foi ele quem colocou toda a ação principal na música. O ritmo sempre foi muito importante para mim, e ele encontrou ritmo nos meus filmes, sem eu fazer ideia de que estavam lá. Foi fascinante. Ele escolhia muitos ritmos mais sutis que eu não tinha consciência alguma. "Ritmos inconscientes", ele os chamava. [7]

 

Além desta contribuição rítmica, a trilha musical utiliza-se uma construção que se afasta, de certo modo, dos padrões (códigos) culturais cinematográficos, por meio de combinações pouco habituais de timbres e articulações audiovisuais inesperadas. Uma simples mudança nos arranjos da melodia principal transforma o que uma vez soou belo e familiar – aos ouvidos do espectador – em bizarro e estranho. O tema principal da trilha musical de Jabberwocky cria e assim está em uma relação paralela com a ideia imagética da animação, através da composição de mesmos significados na medida que se transforma; ao decorrer do filme, esta melodia principal se relaciona de forma intrínseca à trama através da repetição melódica, da incorporação de novos elementos musicais e variações sobre o mesmo tema, através da demarcação estrutural narrativa, [8] contribuindo assim para um significado único obtido através da somatória som e imagem, impossibilitando assim qualquer forma de dissociação entre elas.

 

Figura 1 – Tema principal

 

A figura 1 transcreve a melodia principal da animação. Executado pela primeira vez em voz feminina, este motivo musical é trabalhado diversas vezes ao longo da obra, podendo por isso ser considerado o tema principal do filme. Ao longo de suas demais exposições, esta melodia é modulada, transposta para voz masculina e incorporada a elementos eletroacústicos, numa constante reconfiguração de sua forma inicial. Devido a essa variedade de formas, o tema acaba desenvolvendo funções antagônicas: por vezes abranda determinadas cenas, em outras intensifica momentos de clímax e reforça a sensação de estranhamento.

Ainda que aproveite múltiplas oportunidades para trabalhar a repetição do mesmo tema e de suas variações, é nítida a escolha que o compositor faz por sempre executá-lo em uma voz. A opção por utilizar a voz como um instrumento (sem palavras) não é aleatória, sendo uma constante no trabalho de Liška, que foi pioneiro na utilização das vozes como um recurso puramente instrumental.

 

Ele foi realmente o primeiro compositor a usar a voz humana propriamente como parte integral da música instrumental, ou seja, sem palavras. Afirmou o mestre de coro Pavel Kuhn no documentário de 2000. Como ele mesmo [Z.Liska] dizia, a voz acrescenta certa expressividade e emoção à peça instrumental, tornando-a mais humana. [9]

 

É possível entender mais profundamente o impacto da subversão das formas e funções tradicionais da trilha sonora proposta por Liška se considerarmos o papel da trilha musical no cinema narrativo clássico como delineado na teoria de Claudia Gorbman. Em sua obra, Gorbman (1987) argumenta que a trilha musical – no que entendemos como cinema narrativo tradicional – teria como principal função envolver emocionalmente o espectador, desarmando seu espírito crítico e permitindo-o “adentrar”" o filme. A absorção da música pelo público seria, sob essa perspectiva, uma ação passiva e inconsciente.

Como já salientado anteriormente, a concepção de Liška sobre o papel da trilha musical caminhava em direção oposta. A trilha sonora neste caso, deveria ser elaborada para ser ativa e conscientemente ouvida pelo público, pois caberia ao som, como recorrentemente demonstrado por Liška ao longo de Jabberwocky, fornecer à obra sentidos não sugeridos originalmente só pela imagem [10] e que contribuísse assim para um expectador ciente dos eventos. De acordo com a teoria de valor adicionado [11] idealizada por Michel Chion (1994), todo som, qualquer que seja, quando incorporado a uma imagem, fornece à mesma um significado específico. Em outras palavras, a manipulação dos sons que dialogam com as imagens podem alterar significativamente o caráter de uma obra. Até mesmo o silêncio compartilha desse potencial narrativo transformador, como podemos bem observar em Jabberwocky.

Mas as divergências entre o que Gorbman percebe como sendo função primordial da trilha sonora e o papel que Liška delega à sua composição em Jabberwocky vão ainda mais além. A trilha musical, no entendimento de Gorbman, deveria induzir o espectador a – inconscientemente – sentir que ele escuta uma música que os personagens não ouvem, mas que revela sua história, fantasias e intimidade. Essa noção, que ela denomina “inaudibilidade”, contribuiria ainda para transformar enunciação em ficção e reduzir a percepção do público quanto à natureza tecnológica do discurso fílmico, garantindo assim um maior envolvimento do espectador com a obra.

As implicações dessa noção no desenvolvimento de trilhas musicais são significativas. Segundo Gorbman, a consciência do conceito de “inaudibilidade” leva muitos compositores a elaborarem trilhas sonoras que visam influenciar as ações narrativas de um filme sem ocupar, no entanto, o primeiro plano. Nesse casos, a escolha dos materiais, timbres, técnicas e estilos de composição passa a depender gradativamente da eficácia da composição em cumprir (dentre outras) essa função.

Esse não é o caso da ‘audível’ trilha sonora desenvolvida por Liška para Jabberwocky, que contraria e subverte o comportamento convencional das trilhas musicais do cinema clássico. Os dois artistas tchecos em questão parecem decididos a primar pela consciência do espectador também sobre o que ele ouve, gerando uma somatória de elementos não-fluidos (imagem) e audíveis (som). Sobre o papel assumido pelas trilhas sonoras de Zdeněk Liška e a forma como cooperavam, Jan Švankmajer comenta:

 

A maioria dos meus filmes tiveram a música composta por Zdeněk Liška. Entendemos juntos, porque ele não era a favor de trilha musical conhecida como atmosférica, que simplesmente evoca na audiência sentimentos de extrema emotividade, assim como o papel de um violino em cenas de amor americanas. Liška era um compositor de minha inteira confiança. Nós concordamos em geral sobre o caráter da música e, em seguida, ele a compunha livremente. Não me lembro de pedir para refazer algo. Ele encontrou ritmos que eu desconhecia nos meus filmes, ritmos, originados intuitivamente. [12] (KUBÁTOVÁ. 2013)

 

Por ser Jabberwocky (1971) fundamentalmente uma animação de caráter surreal, dotada de simbologias complexas e propostas audiovisuais pouco convencionais, uma minuciosa decupagem, pontuada por partes, dos elementos usados – e sentidos produzidos – pela interação entre som e imagem pode mostrar, com mais clareza, os significados sugeridos pela animação e ainda indicar caminhos para um melhor entendimento das outras obras produzidas pela parceria entre Jan Švankmajer e Zdeněk Liška.

A primeira parte, ou introdução, começa com uma marcante pulsação em ¾, explicitada por uma grande mão adulta dando três palmadas – em sincronia com o pulso musical – nas nádegas de um bebê. Na parada brusca destas palmadas, essas batidas rítmicas continuam a ecoar, como se alguém estivesse a bater à porta de um grande salão vazio. As batidas que marcam o pulso inicial do filme também se espaçam, visual e auditivamente, por um espaço interior misterioso e inquietante. O mistério aterrorizante do que estaria por trás da porta fechada reflete o mistério, não menos perturbador, do choque e trauma que a dicotomia entre o fascínio da infância e seu assombramento provoca na psique humana quando colocada entre a inocente nádega do bebê e a punitiva mão adulta. Culpa e inocência refletem, nesse momento da animação, paradoxos definidores da educação infantil. Surge então uma misteriosa voz lírica feminina, que entoa a melodia principal da animação e nos conduz à segunda parte da obra.

Nesta segunda parte, a voz entusiasmada de uma garota (Alice?) nos introduz o poema Jabberwocky (1871), que dá nome à animação. Podemos supor se tratar da própria personagem Alice, do conto de Lewis Carrol. Neste trecho recitativo não há nenhuma trilha sonora acompanhando a voz da menina, o que evidencia a preferência por deixar a poesia em primeiro plano, com total atenção à entonação da criança e ao ritmo que decorre de uma combinação de palavras dotadas de forte efeito musical, porém sem significado conhecido. Sobre os primeiros signos formados por meio do poema, Ellestrom conclui:

 

Obviamente, este poema está longe de ter sentido. Ainda que muitas palavras não possam ser facilmente descritas e se refiram a objetos que o leitor tem a liberdade de criar, o poema exibe uma ampla gama de características de mídia evocadas por sinais simbólicos e sua própria disposição no texto. De um ponto de vista formal, o poema claramente apresenta uma estrutura simétrica em suas sete estrofes com quatro linhas dispostas em um padrão simples, sendo a primeira e a última estrofe idênticas (com exceção de uma letra, provavelmente um erro de impressão). Ao ler o poema, pode-se discernir um claro e consistente ritmo iâmbico, juntamente com o som de rimas bastante regulares e rimas internas, como aliterações e assonâncias. Essas características formais de mídia interagem com o conteúdo criado na mente do receptor quando os sinais simbólicos visuais do poema são decodificados. As palavras descrevem claramente alguns personagens, suas interações e uma série de eventos, o que significa que o poema forma uma narração. [13] (ELLESTROM, 2014)

 

Estes neologismos carregam sonoridades que se articulam com imagens em nosso imaginário, possibilitando assim uma interpretação para os mesmos. [14]

 

Na terceira parte, ainda com a trilha sonora em momento recitativo, a animação nos mostra um quarto repleto de objetos antigos. Uma marcante fotografia de um senhor, enquadrada na parede, e um grande guarda-roupas estão cenograficamente em evidência. O tema musical principal (já introduzido na cena das palmadas) é retomado pela voz lírica feminina, desta vez acompanhada de outros instrumentos. [15] Uma menina aparece e desaparece rapidamente da imagem enquanto aparenta brincar com sua boneca. Pouco depois, o segmento recitativo se encerra.

Na sequência, o quarto aparece quase esvaziado. A imagem foca a boneca, o retrato e o guarda-roupas. A boneca ganha vida momentânea. Pouco depois, o guarda-roupas, aberto, revela uma roupa de menino (um macacão) que também ganha vida e passa a dançar alegremente frente a um fundo simples. Uma síntese simples para representar o simples propósito da infância: brincar. Enquanto a cena se desenrola de forma bem-humorada e lúdica, o tema principal passa a ser vocalizado também por um intérprete masculino. Ao se contraporem, as vozes costuram as primeiras variações sobre o tema central.

Até este momento, a animação basicamente propõe ao espectador uma metáfora para o crescimento. À medida que o garoto dança e brinca ao redor do quarto, galhos secos de árvore emergem das paredes. Aos poucos, os ramos ganham folhas e frutos, que com o tempo amadurecem e caem. Uma vez no chão, os frutos revelam estar cheios de larvas, podres por dentro. No ciclo da vida representado nessa cena, o amadurecimento e envelhecimento externos são acompanhados, internamente, pela inevitável perda da inocência. Ao fim, a instância da morte.

Não muito depois, as mesmas vozes param, seguidas pela percussão. Um marcante silêncio domina os próximos poucos segundos e antecipa uma mudança importante e iminente. Essa atmosfera de espera captura bem a atenção consciente do espectador. Na tela, a imagem de um quebra-cabeças, algo como um quadro que se monta e desmonta, seguido de uma linha que passa a percorrer – erroneamente – um labirinto. Ao espectador cabe aguardar – inquieto – o desfecho. A trilha sonora retorna repentinamente, como num grito de susto, acompanhando a imagem repentina de um gato preto que aparece na tela. Dessa vez, a voz masculina é acompanhada por diferentes instrumentos de percussão.

Na quarta parte, o tema retorna mais uma vez na voz feminina, acompanhado da guitarra, baixo e percussão, numa instrumentação idêntica ao início. A articulação do tema aqui já é dotada de um contraste interessante: remete concomitantemente à infância, na lembrança da agradável cena anterior, e ao grotesco e bizarro, provocado pela forma naturalizada com que a música adorna a incômoda imagem de uma grande boneca sendo rasgada por outras bonecas menores que nascem em seu interior. Deste momento em diante, muitas imagens e sons perturbadores serão utilizados para distorcer, retorcer e ressignificar, de forma crescente, as lembranças guardadas em nossa psique.

Na quinta parte, apresenta-se pela primeira vez um tema musical diferente dos até aqui trabalhados. O novo tema fomenta sensações contrastantes ao apresentar formas musicais antagônicas. Isoladamente, a melodia possui um timbre pungente, jocoso e com moderada distorção. Acompanhada pelo baixo, torna-se dissonante, bizarra, grotesca e ligeiramente desagradável (fig. 2). Para reforçar ainda mais a sensação de mal-estar, um ruído grave que remete a um motor é adicionado à variação deste tema. A imagem, por sua vez, nos mostra as bonecas nascidas na cena anterior indo a uma casa de bonecas, onde se movimentam de forma esquizofrênica [16] numa tentativa de arrumar a casa. Ao tocar de um sino (manipulado pelo macacão do menino), estas bonecas simplesmente se atiram desmedidamente em um moedor de café, sem questionamento algum. Sugere-se, dessa maneira, uma intensa crítica à educação infantil calcada nos mais nocivos estereótipos de gêneros perpetuados pela sociedade. Às mulheres restaria a submissão e o sofrimento de uma obediência forçada. Vale lembrar que a aparição inicial das bonecas as retrata como brinquedos perfeitamente inocentes e acontece em um trecho da animação em que tanto trilha sonora quanto imagem sugerem, de forma leve e lúdica, a pureza da infância. Entretanto, o que vemos são as mesmas bonecas rapidamente sendo transformadas em seres submissos cujo nefasto destino é serem moídas em uma grotesca exibição canibal do círculo da vida. As lembranças esperançosas da infância dão assim lugar aos retrógrados papéis reservados às mulheres no processo educativo: viverão seus dias como trabalhadoras domésticas e “parideiras”.

 

Figura 2

 

É importante notar que o clímax musical acontece ao mesmo tempo em que se atinge o ápice da crítica à educação feminina. Ao mesmo tempo em que a música se encontra em um maravilhoso frenesi, nossos olhos vislumbram bonecas desmembradas sendo cozidas em um fogão. Esse retorno ao tema musical principal recorre a uma instrumentação similar à utilizada inicialmente, sendo, porém, executado agora em 6/8, o que fornece um balanço, ritmo e exaltação não demonstrados até então pelo tema. O ruído, imitando uma espécie de trem, pontua o tempo marcando sempre o um e dois do 6/8.

Sozinha, a imagem já instiga fortes sensações de absurdo (pela própria natureza da cena), mas quando contraposta à trilha sonora, a já perturbadora cena ganha ainda mais contornos de surrealismo macabro. Se assemelha a um pesadelo infernal instigado pelas lembranças de um trauma coletivo de abuso e dominação, resultado de um processo educacional autoritário e impiedoso.

A sexta parte retrata um casual encontro de bonecas, algo como um chá da tarde. Salta aos olhos o tom natural e cotidiano com que é representada uma cena de canibalismo em que o alimento dividido são as bonecas cozinhadas na cena anterior. A trilha sonora se renova com a volta do tema musical principal, retomado agora em ¾ – como proposto no início – porém com a guitarra dessa vez executando arpejos e contrapondo liricamente a melodia. A naturalidade dessa cena, articulada à retomada do tema principal original, sugere um retorno ao ciclo vicioso da educação comportamental da mulher.

Na sequência, temos o retorno da montagem do quadro com enigma, que reaparece acompanhado de uma percussão que o pontua como blocos de madeira se movimentando para um possível encaixe. A cena seguinte, obedecendo à montagem anterior, mostra o labirinto sendo erroneamente preenchido, acompanhado de um profundo silêncio. A trilha sonora é repentinamente retomada com a reaparição do gato. Esta sequência se repete algumas vezes na animação, demonstrando uma contenção e em sua última aparição, a fuga. Esta repetição pode ser compreendida como um mecanismo consciente do diretor que nos remete inevitavelmente à reflexão de Sigmund Freud sobre o tema em questão:

 

Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma ‘compulsão à repetição’, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de pacientes neuróticos. Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima ‘compulsão à repetição’ é percebido como estranho. (FREUD, 1996)

 

Na sétima parte, uma pequena entrada de flauta piccollo dá início à execução de uma variação do tema musical principal por uma banda marcial. O tema, desta vez em 4/4, adota uma postura rígida com a marcação sempre no tempo forte dos 4 tempos, criando uma atmosfera masculina, rígida e inflexível. A imagem mostra um pequeno exército de soldados de brinquedo saindo da manga da roupa da criança mostrada anteriormente. O exército de brinquedo marcha sobre uma escrivaninha infantil de maneira ordenada e implacável. Após esse desfile militar vemos a aparição de um forte, montado por peças de brinquedo de madeira, do qual sai uma espécie de barco que batalha com os soldados que marchavam. Evidencia-se nessa sequência a visão menos drástica que Švankmajer tinha sobre o destino que a educação tradicional reservava aos meninos, especialmente quando comparado à submissão que se esperava das mulheres. Dos meninos cobrava-se um futuro mais relevante, sendo a infância um primeiro treinamento para que desenvolvessem um comportamento agressivo, calcado no militarismo, que os permitiria no futuro desempenhar funções socialmente mais importantes. Na animação, o desenvolvimento dos meninos é representado por símbolos como o macacão de marinheiro, o cavalo de brinquedo e o massacre dos soldados de brinquedo. Ao menino não é dado um corpo, como é feito com as meninas-bonecas (embora seus corpos não sejam realmente seus próprios). Ao invés disso, ele é representado apenas por roupas (macacão), com o cabide que fica em sua cabeça e ombros garantindo ao modelo uma forma básica humana.

Ainda que os símbolos escolhidos para representar os papéis masculinos sejam mais brandos do que os usados para os papéis feminino, o objetivo dessas representações é único: denunciar, pela exposição grotesca dos códigos de vestimenta e papéis sociais pré-determinados, uma educação tradicional moralista e autoritária que condena o indivíduo à infelicidade ao retirar dele a liberdade de escolha do futuro que almeja e do consequente papel social que deseja exercer.

Após a cena militar, há uma nova aparição do enigma e da imagem do labirinto, seguido por uma reaparição repentina do gato preto.

Uma dançante valsa em 6/8 inicia a oitava parte, com um um novo tema musical apresentado pela guitarra, acordeón, voz e percussão. Acompanhando visualmente a valsa temos a imagem de uma pequena estátua colada a uma faca executando piruetas e dançando de forma estranha. Inesperadamente, a faca corta o próprio objeto (uma estátua feminina) e o que vemos é um banho de sangue sobre a toalha branca. Tanto a morte pela lâmina quanto o sangue sobre a toalha confrontam o espectador com o ápice da violência simbólica, reforçando novamente as relações entre violência e submissão do gênero feminino.

Após esta sequência, somos novamente levados à montagem do enigma, a qual dá lugar, mais uma vez, à imagem do labirinto. Pela terceira vez, a linha que o percorre o labirinto não encontra a saída, sendo, como das outras vezes, interrompida pela repentina aparição do gato preto, que desmonta a cena.

Começa então a nona parte. O quarto, que inicialmente era cheio de objetos, encontra-se quase vazio, com exceção da presença de uma pequena escrivaninha, papéis e a fotografia do velho homem na parede. Os papéis escolares de uma pasta ganham vida e tornam-se navios e aviões em origami. A trilha musical retoma o tema principal, desta vez ligeiramente modificada pela presença de intervalos menores harmônicos e pelo acompanhamento de arpejos em uma guitarra. Na sequência, um close no chamativo homem do retrato na parede o mostra colocando sua língua para fora e cuspindo peças de um jogo de dominós. A trilha musical continua com a voz lírica feminina em primeiro plano, porém agora como um mickeymousing representando o homem do quadro (que neste momento age de forma rebelde), acompanhado por uma voz masculina que contrapõe a feminina. Vemos então diferentes ações acontecendo simultaneamente ao longo do próximo minuto. Enquanto as peças cuspidas de dominó e os origamis se juntam aos seus pares para formar diferentes imagens, uma boneca dança freneticamente em uma cadeira. O tema principal retorna, dessa vez com intervalos maiores, transmitindo ao espectador uma sensação de júbilo. Trompetes passam então a anunciar a alegria que sentimos enquanto aviões de origamis alçam voo pela janela aberta e barquinhos de papel encontram um lugar para navegar. Tudo parece funcionar como deveria, com os objetos finalmente praticando as funções reais que supostamente deveriam exercer. Não surpreendentemente, somos, como espectadores, tomados por uma sensação de alívio.

A décima – e última – parte começa mostrando mais uma vez o enigma seguido da linha percorrendo o labirinto. Dessa vez, porém, não há gato preto, pois a linha finalmente se liberta de seu confinamento. Podemos ouvir a trilha sonora sendo transformada em um alegre canto de vitória, com um ritmada flauta acompanhando um coro que vibra a fuga do labirinto. A linha, agora livre, segue para as paredes do quarto e, como em um último e desafiador lampejo de juventude, rabisca toda a fotografia do homem sério emoldurada na parede. Com o quadro todo infantilmente rabiscado, o guarda-roupa da primeira cena reaparece. Um forte e grave ruído pontua a abertura de suas portas. Dentro do guarda-roupas podemos ver o gato preto preso em uma pequena gaiola. Ao fundo, apenas uma voz masculina e uma percussão. Pendurado agora no cabideiro do armário se encontra um terno de negócios. O macacão, inevitavelmente substituído, se encontra esquecido em um canto do armário. A vida adulta finalmente tomou o lugar da infância.

Essa cena final nos apresenta uma bela metáfora de esperança para as possibilidades de reconquista da liberdade que o opressivo e enrijecido mundo adulto nos furta. A linha, até então confinada ao labirinto, não só se liberta como provoca e desafia o próprio paternalismo ao desconfigurar, como que em uma pichação, a séria figura do homem no retrato. Seria esse homem uma representação da autoridade máxima paterna, como o homem de areia mencionado no início deste texto?

Uma coisa é certa: a libertação do labirinto e o subsequente ataque a essa figura paterna, que constantemente vigiava a todos, simboliza o fim não apenas da animação, mas de uma violenta jornada de envelhecimento que gradativamente nos afasta da inocência infantil e nos transforma em adultos.

 

Reflexões finais

Em sua ânsia por exprimir a própria animosidade contra a estupidez e falta de humanidade que compreende ser produto da burocracia em todas as formas de totalitarismo, Švankmajer lança mão de composições imagéticas que unem o inanimado ao animado, ressignificam objetos, provém vida ao que não é vivo e transformam a existência dos vivos em um inferno grotesco. Seu apelo a processos mentais conscientes e inconscientes provoca no público a sensação de que o filme passeia por suas psiques, e transforma a obra em um veículo crítico perfeito para comunicar – de forma exploratória e profunda – a essência de sua mensagem.

Considerando que toda animação é resultado de um trabalho coletivo, vale ressaltar novamente a imprescindibilidade da contribuição de Zdeněk Liška à construção e sucesso de Jabberwocky (1971). A parceria entre Švankmajer e Liška foi longeva e frutífera, com os dois trabalhando juntos em inúmeros outros projetos, como Punch and Judy (1966), Et Cetera (1966), Historia Naturae (Suita) (1967), The Flat (1968), Don Juan (1969), The Ossuary (1970), Leonardo’s Diary (1972) e The Castle of Otranto (1979). [17]

A respeito da relação entre o poema Jabberwocky (1871), de L. Carrol, e a homônima animação de Jan Švankmajer, é possível notar que o diretor propõe ao poema uma nova interpretação. Uma análise mais superficial e apressada dessa relação poderia até sugerir que a animação em questão objetivava ilustrar, em determinados momentos, ideias contidas no poema de L. Carrol. Porém, um estudo mais minucioso e contundente da mesma relação revelaria que Švankmajer tinha, na realidade, objetivos bem próprios ao produzir sua animação. O diretor parece mais interessado em expor os sombrios aspectos da vida moderna e suas consequências do que trazer para sua animação os aspectos visuais do poema. Não obstante, parece haver uma forte conexão entre as duas obras na maneira como as representações simbólicas se relacionam com as representações visuais. Em ambos a linguagem se desenvolve em estreita associação à percepção e interação que temos com o mundo à nossa volta.

Como bastante evidenciado ao longo desse artigo, muitos pontos relativos a manipulação da imagem e do som em Jabberwocky (1971) merecem nossa atenção e admiração. Não obstante, o grande mérito artístico dessa obra é a capacidade demonstrada – tanto por seu diretor quanto seu compositor – de constantemente desconstruir, transmutar e resignificar elementos visuais e sonoros ao longo da animação. Seja pela habilidade de Švankmajer de dotar objetos existentes com novos significados e funções, ou pela estratégia de Liška de repetir, rearranjar ou redesignar o mesmo tema a cenas diferentes, cada vez com uma intenção e resultado distinto, não há dúvidas de que o denominador comum à contribuição dada por cada um deles é a aplicação da transmutação como meio para alterar os significados do que é usual e esperado. Ambos transformam com sucesso nossas expectativas e dotam com novos e desconfortáveis significados o que esperávamos entender e sentir.

 

NOTAS

1. Vítězslav Nezval (1900-1958) foi um dos mais prolíficos escritores tchecos de vanguarda na primeira metade do século XX. Foi co-fundador do movimento surrealista na Tchecoslováquia e também membro do grupo vanguardista de artistas Devětsil (“Nove Forças’. O nome é uma referência aos nove membros fundadores do grupo). Os membros de Devětsil foram artistas checos prolíficos em sua geração. Em 1922, o grupo Devětsil incluía Vítězslav Nezval, Jindřich Štyrský, Jaroslav Seifert, Karel Teige e Toyen (Marie Cerminová). O grupo se voltou para a França na busca por inspiração para uma possível literatura de vanguarda calcada na ideologia política marxista. Embora o Estado tchecoslovaco tenha sido formado pouco após a Primeira Guerra Mundial, predominava entre sua geração mais nova a sensação de que ainda havia espaço para melhorias e que uma solução mais radical seria necessária caso o país almejasse uma verdadeira libertação. A maioria desses intelectuais manifestou entusiasmo pela revolução ena Rússia e fidelidade a Lenin. Nezval, entretanto, assim como outros em seu grupo, não aceitaram esse regime como representativo de suas crenças e objetivos. Optaram por expressar, em seus escritos, preferência pela consciência marxista-internacionalista de solidariedade de classe. Nezval também foi figura central para o poetismo checo, uma direção dentro de Devětsil teorizada principalmente por Karel Teige. Sua produção consistia em uma série de coleções de poesia, peças experimentais, romances, memórias, ensaios e traduções. Juntamente com Karel Teige, Jindřich Štyrský e Toyen, Nezval viajou com frequência à Paris, onde pode compartilhar seus ideais com os surrealistas franceses. Sua estreita amizade com André Breton e Paul Éluard foi fundamental para a fundação, em 1934, do Grupo Surrealista da Checoslováquia, um dos primeiros grupos surrealistas fora da França.

2. ‘There are many misunderstandings about surrealism. Art historians have included it among artists avant-garde directions of the first half of the twentieth century. From their point of view, surrealism has therefore been dead for at least sixty years. The term surrealism has entered the general vocabulary as description of something nonsensical, absurd. First of all, it’s important to say that surrealism is not art. There is no surrealist painting or surrealist film, we can talk about surrealism in art, in painting, or in film. This is because there is no surrealist aesthetics, no surrealist method or school. Surrealism is a way of perceiving life and the world. I would describe it as a magical outlook on life and the world. I have learned three things from surrealism: first, it has freed me of my fear of collectivity, because surrealismo is a collective adventure. Secondly, it has developed my imagination in unforeseen ways, and finally, it has taught me that there is only one kind of poetry and that it doesn’t matter what means we choose to grasp it.’ (Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=e5Pkep8pUcc . Acessado em: 25/02/2017. ŠVANKMAJER, 2016. Entrevista On surrealism)

3. Em 1919, Freud publica um texto com o título "Das Unheimliche" (O Estranhamente Familiar). Trata-se de uma análise bastante original para a época, uma abordagem psicanalítica do conto de Hoffmann, "O Homem da Areia" (Der Sandmann). Freud foca sua análise na interpretação da questão relativa aos olhos. O ‘homem de areia’ seria aquele que vem jogar areia nos olhos das crianças.

4. Podemos entender como estratégia de produção qualquer recurso fílmico que cause impacto no espectador, como, por exemplo, metamorfose de objetos, dilatação do tempo, cenografia, fotografia, enquadramentos, planos, montagem, trilha sonora, condução narrativa, cor, as interpretações dos atores, figurinos, personagens etc.

5. ‘Through the Looking-Glass and What Alice Found There é a continuação do célebre Alice’s Adventures in Wonderland (Alice no País das Maravilhas), de 1865.

6. O termo Stacatto é uma palavra de origem italiana comumente utilizada no universo musical. O significado literal seria “destacado”. Porém a intenção de entendermos literalmente o significado de uma articulação que deve ser executada de forma seca ou destacada assim como na música foi o que nos levou a utilização do termo musical.

7. “In the films I made with Liška there wasn’t much action as such. It was he who put all the main action into music. Rhythm was always very important for me, and he found rhythms in them I had no idea were there. It was fascinating. He’d pick out a whole lot of subtler rhythms I was quite unaware of. ‘Unconscious rhythms’ he called them.”

8. Exemplificaremos adiante por exemplo, a repetida cena do labirinto e o gato preto como um momento de repetição que além de estar inserido no universo do ‘estranho’, contribui para uma forma mais linear da narrativa a medida que se repete, demarcando seções.

9. “He was actually the first composer to use the human voice without words as an integral part of instrumental music,” claimed choirmaster and colleague Pavel Kuhn, also in the 2000 documentary. “As he said himself, the voice adds a certain expressiveness and emotion to the instrumental play, making it more human.”

10. Podemos traçar um paralelo a respeito da escuta consciente da trilha sonora com a sensação de não fluidez e nítida aparência dos movimentos em stop motion, construídos desta forma propositalmente.

11. O valor adicionado ocorre na incorporação de uma trilha musical em uma obra audiovisual, uma vez que esta, por si só, transcende a função de simplesmente traduzir em som o que já é visto pela imagem – vai além de reforçar um signo já transmitido visualmente. Este valor adicionado pela trilha musical inclui informações novas, ainda não agregadas (adicionada/agregada). Michel Chion compreende que, além da força dramática, a música exerce outras funções, como por exemplo, adicionar signos que a imagem não mostrou à narrativa[1], gerando assim uma nova composição de significados em contraponto com a imagem, em oposição ao simples reforço de informações já transmitidas pelo visual.

12. Entrevista de Jan Švankmajer concedida por email a pesquisadora. O trabalho original encontra-se em tcheco: ‘K většině mých filmů /těch, ve kterých je hudba/ napsal hudbu Zdeněk Liška. Byl to geniální muzikant, který skládal hudbu přímo na střihacím stole. Rozuměli jsme si spolu, proto, že ani on nebyl příznivcem tak zvané atmosférické hudby, která ždímá z diváků city ve vypjatých emotivních scénách /viz housle v milostných scénách amerických kýčů/.Liška měl v psaní hudby zcela moji důvěru. Dohodli jsme se rámcově na charakteru hudby a pak měl volnou ruku. Nepamatuji se, že bych ho nechal něco předělat. On nacházel v mých filmech rytmy, o kterých jsem ani nevěděl, které vznikaly intuitivně.“

13. ‘Of course, this poem is far from true nonsense. Although many of the words escape simple explanation and refer to objects that the reader is at liberty to create herself, the poem displays a wide range of compound media characteristics called forth by the symbolic signs and their arrangement on the page. From a formal point of view, the poem clearly shows a symmetric structure with its seven stanzas all having four lines arranged in a simple pattern, and the first and the last stanza are identical (with the exception of one letter, probably a misprint). When reading the poem, an iambic rhythm is clearly and consistently discerned together with the sound of fairly regular end rhymes and internal rhymes, such as alliterations and assonances. These formal media characteristics interact with the content created in the mind of the perceiver when the visual symbolic signs of the poem are decoded. The words clearly describe a few characters, their interactions, and a series of events, which is to say that the poem forms a narration. 

14. É presente, tanto na obra de J. Svankmajer quanto nos trabalhos de L. Carrol, a preocupação em explorar as escuras e irracionais profundezas que estão por trás das aparências, através da incitação provocada pela arte, escavando assim relações absurdas e paradoxais de sentido e significado que estão subjacentes às nossas percepções cotidianas, elevando-as a uma superfície luminosa, contraditória e animada.

15. A instrumentação que entendemos nesse momento como graciosa pode ser atribuida à questão tímbrica da voz, guitarra (arpejos) e baixo elétrico, com ligeira percussão.

16. Para caracterizar esta esquizofrenia do movimento e o tom frenético com que a ação é executada pelas bonecas, o director utiliza a técnica de fast-motion.

17. A música de Z. Liška’s para a animação de J. Švankmajer, Historia Naturae (Suita), The Flat e The Ossuary, também foi utilizada no curta-metragem dos animadores americanos “Irmãos Quay”, com o título The Cabinet of Jan Švankmajer (1984).

 

Bibliografia

BENJAMIN, Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. Editora Brasiliense. 1987.

BRETON, André. Manifestos do surrealismo. Tradução e notas de Sergio Pachá. Rio de Janeiro: Nau. 2001.

CHION, M. Audio-Vision: Sound on Screen. New York: Columbia University Press. 1994.

ELLESTRÖM, Lars. Media Transformation: e Transfer of Media Characteristics Among Media. UK, Macmillan Publishers Limited. 2014.

FREUD, S. (1913). Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 13. Rio de Janeiro, Imago. 1990.

FREUD, Sigmund. O estranho, 1919. História de uma neurose infantil. Rio de Janeiro: Imago, (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17), 1996.

Gorbman, Cláudia. Unheard Melodies:: Narrative Film Music. Bloomington, Indiana University Press. 1987.

KAYSER, Wolfgang. O grotesco: SP, perspectiva.1986.

KUBÁTOVÁ, Lucie. Zvukové aspekty v krátkometrážní filmové tvorbě Jana Švankmajera. Brno: Masarykova univerzita, Filozofická fakulta, Ústav hudební vědy.(2013)

LAPLANCHE, Jean e PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise, SP: Martins Fontes, 1986.

NOHEDEN, Kristoffer. The imagination of touch: surrealist tactility in the films of Jan Švankmajer. Journal of Aesthetics & Culture. Vol. 5. 2013.

 

 

 


CAROLINA MORGADO LEÃO | Bacharel em piano, mestra e doutoranda na área de música – todos os títulos pela UNICAMP. Pesquisa som no audiovisual. Também possui carreira artística e de produção em grupos musicais.

 

 

 


ANA BEATRIZ DE ARAUJO LINARDI | Bacharel em Música pela Unicamp (modalidade composição), mestrado e Doutorado em Educação pela Unicamp na área conhecimento, linguagem e arte. Coordenadora adjunta do curso de Design da Facamp (2007-2017), coordenadora das atividades pedagógicas do Makerlab Facamp.

 

 


J. KARL BOGARTTE | Nacido el 8 de septiembre de 1944, de ascendencia holandesa e irlandesa, formado en antropología, fotografía y diversas tradiciones esotéricas. Ha sido un participante activo en el surrealismo internacional durante más de 50 años. Actualmente vive en Santa Fe, Nuevo México. Bogartte, es a la vez artista y poeta, y ha publicado doce libros de escritos poéticos: While the night windmills through xylophone and…, And Still the Navigators, Spirits in the Albino Hotel Throwing Antlers, The Mirror held Up In Darkness, The Wolf House, Secret Games, Luminous Weapons, Primal Numbers, A Curious Night For A Double Eclipse, Auré, The Spindle’s Arc, and Antibodies: A Surrealist Novella. Alineado desde hace mucho tiempo con el surrealismo internacional, también es cofundador de La Belle Inutile Éditions. Su obra ha aparecido en las siguientes antologías: ANALOGON # 65, Melpomene, Hydrolith # 1 and # 2, La vertèbre et le rossignol # 4, Lithaire # 2, Peculiar Mormyrid # 2, Paraphilia, Silver Pinion and The Fiend online journal.

 


 

Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 04

Número 203 | fevereiro de 2022

Artista convidado: J. Karl Bogartte (Estados Unidos, 1944)

Traduções de Allan Vidigal e Susana Wald

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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