Em Kansuke Yamamoto poesia e plástica
se mesclam na evocação de uma metáfora da liberdade e na crítica refinada da sociedade
contemporânea, firmando os postulados do Surrealismo no sentido de uma recusa da
dicotomia entre realidade e pensamento. Ele também criou uma revista de poesia,
Yoru no Funsui (Fonte da noite), porém ao sair o quarto número foi forçado, pela Polícia
do Pensamento, a fechá-la. A este respeito, observa a crítica Meghan Maloney:
Em 1939, Yamamoto foi forçado pelos Tokko a parar de
imprimir sua revista de poesia surrealista Yoru no Funsui (A Fonte da Noite) depois
de apenas quatro edições. No entanto, ele continuou a cultivar uma obra ampla e
experimental que variava em técnica entre fotografias tradicionais, impressão combinada,
fotogramas e colagens. Como antes, Yamamoto usou a metáfora como dissidência, concentrando-se
em motivos de expressão sufocada e na dissipação de formas humanas, misturando-as
em paisagens. Ele foi profundamente inspirado pelas obras de René Magritte e André
Breton, com quem se encontrou pela primeira vez na Exposição de Obras Surrealistas
de Tóquio em 1937. Grande parte de seu trabalho, incluindo Madame Q.
(1950) e mais expressamente My Thin-Aired Room (1956) (seguindo de perto Man With
Newspaper de Magritte [1928]) foi inspirado por esses e outros artistas
europeus contemporâneos. Mantendo-se membro de várias associações de fotografia,
ele pôde continuar distribuindo seu trabalho e participando da cultura fotográfica
japonesa.
Kansuke começou a escrever poemas em
1930, e no ano seguinte acrescentou a seus valores criativos a fotografia, já claramente
interessado em descobrir suas perspectivas surrealistas. Em 1931 ele reuniu um grupo
de fotógrafos, em torno de uma Associação Independente de Pesquisa em Fotografia
(Dokuritsu Shashin Kenkyukai). Segundo
ele, a sua principal fonte de estímulo foi a Exposição de Trabalhos Surrealistas
Ultramarinos (Kaigai Chogenjitsushugi Sakuhinten, 1937), que inclusive o teria levado
a conceber o jornal Yoru no Funsui. Dentre
suas outras atividades, quase sempre destacando a fotografia, se incluem a criação
de um outro grupo de fotógrafos, Seidosha, 1938, e sua participação no grupo de
poetas vanguardistas, VOU, criado em 1939 e que teria uma ação bastante duradoura
até 1978. Kansuke atua tanto na organização de exposições como na publicação de
um diário do grupo, onde inclui seus poemas. Em sua fotografia, ele se utilizou
de várias técnicas surrealistas, como a colagem e a fotomontagem, experiências com
fotogramas e fotografias seriadas, porém organizando essas técnicas na direção de
uma busca de motivos e interesses da cultura japonesa.
Em 1953, ele próprio diria: O surreal existe dentro
do real. A incansável experimentação com a nova fotografia leva à criação de uma
nova beleza. Sua poesia foi publicada em uma série de cartões postais e também
em livros mesclados com fotografias e desenhos, tais como Yoruno Funsui (1938), Batafurai
(1970) e Photographs and texts (2017),
este último póstumo.
Além do já referido grupo
VOU, cabe também mencionar seu envolvimento com outro encontro de artistas, o VIVI,
em 1948. Sobre suas intensas e incansáveis atividades, ao longo de décadas, reproduzo
uma vez mais palavras da neozelandesa Meghan
Maloney, também ela uma fotógrafa:
Yamamoto conseguiu evitar o destino de alguns outros
artistas e dissidentes políticos da época. Em 1945, após a derrota do Japão na Segunda
Guerra Mundial, o país adotou um estilo de governo militarista menos repressivo.
Yamamoto se envolveu recentemente com ainda mais grupos de fotografia e surrealistas
e formou vários de sua autoria, incluindo VIVI (1948-1950), Mado (Windows) (1953-1958)
e a Federação de Fotografia Subjetiva do Japão (1956). De 1965 a 1975, ele orientou
jovens membros da Chubu Photography Federation of Students. Ele manteve uma devoção
ao longo da vida para escrever poesia, e até mesmo começou a pintar em seus últimos
anos. À medida que envelheceu, o tom sombrio e fortemente metafórico de seu trabalho
aumentou, e a relação de cada peça com seu respectivo título ficou ainda mais bizarra,
como em Magnifying Glass Rendezvous (1970).
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| É interessante observar que o Surrealismo adentra a cultura japonesa pelo universo
de sua profusão de imagens e não por algum interesse que lhe tenha despertado o
inconsciente. E se trata de uma aproximação imediata ao surgimento do Surrealismo
na Paris de 1919, quando era coincidente a residência francesa de muitos artistas
japoneses. Os primeiros nomes de destacada afinidade foram Junzaburó Nishiwaki (1894-1982),
Kitasono Katue (1902-1978) e Shuzo Takiguchi (1903-1979). No entanto, foi tanta
a afluência – Takiguchi, em sua correspondência com André Breton, lhe disse que
no Japão havia mais de 500 artistas que se declaravam surrealistas – que dificulta
a identificação de suas origens. Ou torna o tema em si muito controverso, incluindo
aí a dificuldade de aceitação pela parte japonesa de uma influência ocidental e
o próprio movimento parisiense olhava para o tema como pouco provável ou consistente.
Acrescente-se ainda que a singularidade do surrealismo no Japão não poderia jamais
ser entendida como uma imitação. Ou mesmo uma consequência das peculiaridades ortodoxas
francesas.
No livro de John Solt ele observa bem
as distinções entre linguagens e interesses estéticos que caracterizaram o surrealismo
de afinidade japonesa e aquele evocado na França. No Japão está melhor nutrida a
discussão estética, os efeitos da imagem na composição tanto plástica quanto poética.
Inclusive considerando aí os mecanismos do inconsciente. Um desses poetas que considero
centrais, Kitasono Katue, disse certa vez: A
poesia é o passaporte para todas as artes. Qualquer um que queira fazer algo no
mundo da arte precisa entender sua própria poesia. Todas as artes nada mais são
do que uma variação de poesia. A começar pelo fato de que, se nos detivermos
atentamente a observar suas obras (poesia, fotografia, colagem), veremos que era
impossível plasmar uma ortodoxia considerando que eles estavam abertos a todas as
experiências das vanguardas europeias, isto sem deixar de cotejá-las, ainda que
inconscientemente, com a própria tradição.
Dois outros aspectos cabem mencionar:
as revistas japonesas e as traduções. Yoru
no funsui é talvez o destaque maior dentre as publicações periódicas surrealistas.
Mas não se pode esquecer que em 1927 surge Fukuiku
Taru Kafu Yo, considerada a primeira revista de poesia surrealista no Japão.
E outras tiveram seu grau de importância, como Shi to shiron, Panteon, Orufeon, dentre outras. No que diz respeito
às traduções, talvez a referência maior seja Gekka no ichigun (Grupo sob a lua), coletânea de poesia francesa publicada
em 1925 por Horiguchi Daigaku. Mas é preciso salientar que Shuzo Takiguchi, que
conhecia muito bem os manifestos surrealistas e o livro Os campos magnéticos, foi o responsável pela introdução no Japão dos
ensaios de Breton, no caso do livro Surrealismo
e pintura. Takigushi inclusive foi o curador da Exposição de Trabalhos Surrealistas
Ultramarinos.
Uma pergunta a ser feita agora: houve
um movimento surrealista no Japão? Não é tão simples a resposta. Houve raras pinceladas
de ortodoxia (elas sempre existem). Houve uma identificação com aspectos imagéticos.
Houve uma atenção à importância das vanguardas europeias – não apenas o Surrealismo
–, em especial no que elas propiciavam de experimentações de novas técnicas. A combinação de conceitos desconhecidos defendida
por Kansuke Yamamoto fez do Surrealismo no Japão uma espécie de celebração do fugaz,
um elogio da transitoriedade, e nisto as imagens surgidas em poemas, colagens e
fotos deram a esse surrealismo uma singularidade
que ia mais além do diálogo com a matriz – até porque não houve registro algum de
um surrealista no Ocidente que tenha declarado sua afeição por artistas japoneses.
Ou seja, há aí uma questão cultural muito delicada que se insere no ambiente da
discriminação. A resposta à pergunta com que se inicia o parágrafo abre um ambiente
ambíguo, talvez próprio do Surrealismo, que nunca soube explicar até onde o seu
imaginário se confundia com as suas cartas marcadas, muitas delas ideológicas.
Essa violência estabelecida contra o
que Kitasono Katue havia situado como o passaporte
de todas as artes ia muito além do que na França se pudesse imaginar como uma
reação de Estado contra o Surrealismo. A liberdade almejada pelo movimento, em sua
origem, ao se estender por várias culturas e realidades geográficas, requeria algo
mais do que um senso de mistério ou uma meada de inovações dramáticas. A liberdade
era impossível ou apenas a liberdade era impossível no Japão, naquele momento? O
governo japonês foi terminante ao proibir toda e qualquer forma de surrealismo no
país. Em 2013, Hollis Goodall, curador da mostra Drawing Surrealism, salienta que o surrealismo que esses artistas trouxeram consigo da Europa, e o que havia
sido transmitido nos anos anteriores ao Japão através de revistas e exposições,
foi misturado através de um filtro do estilo absurdo Dadá, juntamente com os modos
de pintura futurista. A Europa nunca deu pela importância do Surrealismo no
Japão.
Os versos de Kansuke Yamamoto eram uma
extrapolação de sentidos, o lugar de uma corrente elétrica que fazia com que o olhar
começasse a jorrar como uma emanação de imagens aparentemente fora de propósito.
Ele vestia a sua imagem como um relâmpago, o que acaba por impedir a prática de
eleger uma passagem de seu poema. O poema era uma entidade autônoma, completo em
sua vertente – ele mesmo respirava intimamente como algo de impossível fragmentação:
um vidro
mapa
alguma coisa
coisas facilmente quebráveis
estavam alinhadas
um vazio
como cadeira
como cidade
linha ionizada simples
com tanta pressa
irremediavelmente
tomando mão do tempo
por acaso calculado
forma é apresentada
como um quarto
voltado para
meu ombro
de repente quebrando e
caindo
soa como
parecida com o riso
alguma coisa
frágil
A transfiguração entre corpo e paisagem,
que Kansuke magistralmente revelava em sua fotografia, era como que transcrita para
o universo imagético de sua poesia escrita, como no caso desse poema datado de 1940:
“Lenda de um Templo Budista”,
uma
gaiola sem um pássaro e
de
um jardim sem gaiola com um pássaro
inúmeras
faíscas se levantam
como
o apocalipse de um santo hindu
ao
longo da linha do Coliseu branco
sacudindo
o ainda mais grotesco Colossus
enviando
um sinal do festival da noite
o
corpo se contorce como um beija-flor
inclinando
uma bochecha nos dedos de um pagão
dando
uma dormência feroz
Impressiona observar esse poema em
sua publicação ao lado de uma fotografia que evoca uma paisagem urbana (toda uma
cidade) e sobre ela uma gigantesca gaiola vazia com seus metais forçados sugerindo
a fuga de um pássaro. No livro-catálogo Japan’s
Modern Divide: The Photographs of Hiroshi Hamaya and Kansuke Yamamoto, 2013, editado por Judith Keller e Amanda Maddox – Hiroshi
(1915-1999), contemporâneo de Kansuke, foi outro destacado fotógrafo japonês –,
em sua apresentação encontramos que
a gaiola é um motivo recorrente na fotografia e na poesia
de Yamamoto. Ele pensava no pássaro como o mais avançado de todos os seres porque
tem a capacidade e a liberdade de voar. A imagem atual da jaula, suas barras enferrujadas
destroçadas e queimadas, é sobreposta a uma cidade japonesa para criar uma imagem
evocativa das consequências devastadoras da bomba atômica. Como abrigo para um animal, a gaiola está conectada às casas
humanas embaixo, aludindo ao aprisionamento da população invisível da cidade abaixo.
Neste trabalho e em muitas de suas outras fotocolagens surrealistas, Yamamoto comunica
sua frustração com o estado de espírito japonês, os regulamentos de liberdade e
liberdade de expressão e a ocupação pós-guerra das forças militares dos EUA. Apesar
de suas implicações muitas vezes sombrias, o simbolismo de pássaro/gaiola de Yamamoto
talvez carregue alguns tons esperançosos. A gaiola na fotocolagem, assim como no
poema acima, está decididamente vazia; nenhum pássaro é pego dentro, sugerindo que
há esperança para o Japão e seu povo. Yamamoto estava tentando acordar o Japão para
incentivá-lo a sonhar.
Ao escrever
sobre essa interlocução desconcertante entre visível e invisível, Montse Álvarez,
evoca uma margem do olho – a margem do olho
da câmara, do olho do corpo e do olho da consciência –, lugar secreto onde Kansuke
indicava o que não pode ser retratado, a vida
interior de paisagens e superfícies. E sublinha que ele foi fundamentalmente um grande provocador e,
como tal, ele quase sempre usou a arte para crítica e rebelião, lembrando ainda
que, segundo o próprio artista deixaria escrito em seu diário, o trabalho artístico surge de um espírito desobediente
e vai contra todas as coisas pré-fabricadas que a sociedade oferece.
A seu respeito Meghan Maloney havia observado que ele influenciou profundamente o desenvolvimento do surrealismo japonês e tornou-se uma figura singularmente importante na história da fotografia japonesa. Kansuke Yamamoto escrevia como fotografava. Os corpos – o físico e da linguagem – sendo tocados pela sombra de um enigma, uma pétala de erotismo que era ao mesmo tempo o desafio de um mistério. Não ouso destacar um verso de seu poema. Uma imagem fragmentada. A magia envolvente de seus corpos, a sedução de transposição de um lugar a outro, o que ele tão bem situa em sua fotografia nós encontramos no poema, não como complemento ou ilustração, mas antes como uma interação de vertigens. Como se a imagem fosse um meio de transporte de uma realidade para outra. Talvez seja isto o que o Surrealismo tenha revelado neste imenso artista. O impossível também tem seus mecanismos de transporte. Não é propriamente a realidade que nos leva de um lugar a outro, mas antes, a nossa perspectiva, o olhar sobre ela, que determina o curso de seus deslocamentos. É o que nos diz a sua poesia. É o que nos permite entender que o Surrealismo viajou por tantos lugares que nenhum deles pode aceitá-lo como um carisma. Esta é a sua riqueza.
TRANSPORTADOR DO IMPOSSÍVEL
ele viu através
do prisma
de seu único
olho rachado
e nos levou
atrás de um espelho
mesclando sonhos
com não sonhos
suas colagens
de tons positivos e negativos
vislumbram o
mundo dos fantasmas
barcos flutuam
ao longo de seios submersos
o olho do sol
se põe no horizonte
seu rosto girando
com guarda-chuva na mão
em um quarto
chovido em calcinhas
dia a dia provocativamente
ele desencadeou
ilusões
uma cama paira
no céu como uma nuvem
convidando-nos
a reverter e despertar
FLORIANO MARTINS | Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo), e dirigiu a coleção “O amor pelas palavras” (2017-2021), parceria, de circulação exclusiva pela Amazon, entre ARC Edições e Editora Cintra. A partir de 2022 a coleção, embora mantendo seu nome, passa a ser coproduzida por ARC Edições e a revista Acrobata, destinada então à veiculação gratuita de livros em formato pdf. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura.
J. KARL BOGARTTE | Nacido el 8 de septiembre de 1944, de ascendencia holandesa e irlandesa, formado en antropología, fotografía y diversas tradiciones esotéricas. Ha sido un participante activo en el surrealismo internacional durante más de 50 años. Actualmente vive en Santa Fe, Nuevo México. Bogartte, es a la vez artista y poeta, y ha publicado doce libros de escritos poéticos: While the night windmills through xylophone and…, And Still the Navigators, Spirits in the Albino Hotel Throwing Antlers, The Mirror held Up In Darkness, The Wolf House, Secret Games, Luminous Weapons, Primal Numbers, A Curious Night For A Double Eclipse, Auré, The Spindle’s Arc, and Antibodies: A Surrealist Novella. Alineado desde hace mucho tiempo con el surrealismo internacional, también es cofundador de La Belle Inutile Éditions. Su obra ha aparecido en las siguientes antologías: ANALOGON # 65, Melpomene, Hydrolith # 1 and # 2, La vertèbre et le rossignol # 4, Lithaire # 2, Peculiar Mormyrid # 2, Paraphilia, Silver Pinion and The Fiend online journal.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 04
Número 203 | fevereiro de 2022
Artista convidado: J. Karl Bogartte (Estados Unidos, 1944)
Traduções de Allan Vidigal e Susana Wald
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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Muy buen artículo Floriano Martins; sobra decir que no conocía a este gran artista y poeta.
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