O
exemplo de Maura Baiocchi também é oportuno como incentivo num momento em que muitos
fazedores teatrais se desanimam diante da frente reacionária que há anos vem se
erguendo contra todas as formas de arte experimental. Afinal, trata-se de uma artista
que persegue sem desalento há mais de 30 anos seu caminho muito pessoal nas artes
cênicas, sem se deixar intimidar pela resistência à singularidade idiossincrática
de sua prática, tanto por parte de instituições estatais quanto do lado do próprio
meio cultural, que frequentemente insiste em exigir mensagens políticas claras do
teatro.
Por
último, mas não menos importante, o livro chega num momento em que a consciência
de que o verdadeiro teatro do mundo se passa na Europa Central, mais precisamente
na Alemanha e arredores, e ainda mais precisamente em Berlin-Mitte, parece cada
vez menos sustentável. Por muitos e cada vez mais, a ideia centro-europeia do teatro
é vista como ultrapassada; e no teatro, na dança e na performance – como há muito
tem sido o caso no cinema –, os impulsos vindos das bordas sul e leste da Europa,
da América Latina, do Japão, da China ou do Líbano, para citar apenas alguns, são
cada vez mais reconhecidos como a expressão realmente autêntica de nosso tempo.
A
maior abertura a essas formas cênicas distintas (que, espera-se, irá beneficiar
este livro) mantém uma relação direta com a crescente consciência de que o Alfa
e o Ômega da problemática de nosso tempo, denominada de forma somente muito abstrata
como “mudança climática”, passou a ser a relação entre os seres humanos e seu ambiente
natural.
O
trabalho da Taanteatro Companhia
pode ser considerado
como uma única grande expedição de pesquisa nesta área. Trate-se de nada menos do
que da tentativa sempre renovada de promover uma nova “coexistência” entre o ser
humano e a natureza. Em suas encenações, plantas, animais, pedras e água estão situados
no mesmo nível do agente humano. É um teatro radicalmente “verde” que formula uma
crítica abrangente de nossa civilização. Nesse sentido, a referência a Antonin Artaud
em várias de suas obras mais recentes não é nada acidental.
Desde
a década de 1980, Maura Baiocchi realiza performances e obras de dança-teatro, exposições,
projetos site-specific, e muito mais. A dimensão política de sua obra pode
ser esclarecida a partir de uma bela formulação de Heiner Müller. Em “Pomba e Samurai”,
um breve texto sobre Robert Wilson, Müller fala “da sabedoria dos contos de fadas,
[em] que a história dos homens não pode ser separada da história dos animais (plantas,
pedras, máquinas), a não ser ao preço da desgraça.” [1]
Para
definir a forma do político neste teatro de Maura Baiocchi, também é possível referir-se
a Jean-François Lyotard (que não é mencionado, mas aparentemente foi estudado),
que desenvolve o conceito da intensidade para uma estética desconstrutiva. Também
para ele, o político não equivale, como de costume, a uma prática em torno ou com
as instituições, tampouco a uma esfera de elaboração de utopias, mas trata-se simplesmente
da “determinação de uma superfície de jogo para intensidades libidinais, afetos,
paixões”, uma “experimentação que, atualmente
espalhada pelo mundo inteiro, une práticas e experiências de todos os tipos”. [2]
O
discurso sobre teatro que o leitor aqui encontra se baseia fundamentalmente nos
estudos de Gilles Deleuze. Isso tem vantagens: a linguagem de Deleuze, inspirada
em Nietzsche, busca sem cessar dissolver a fixação quase inevitável de processos
em oposições reificadas, que na verdade só existem no Entre de estados corporais
de fluxo. Desse modo, a linguagem da teoria dá um grande passo na captura de elementos
alheios à teoria, como a dinâmica dos estados físicos de tensão, a “tensão” perceptível
de vários estados musculares etc. Seria um mal-entendido, entretanto, se se pensasse
os termos teóricos como a expressão de uma metalinguagem sobreposta ao físico. Aqui,
um termo como metacoreografia significa antes a detecção de estados energéticos
ou ideias poéticas a partir das quais a coreografia foi inicialmente criada.
É
claro que o trabalho meritório de conceituação do teatro físico está sempre ameaçado
por um perigo do qual esta publicação também não escapa por inteiro. Nomeadamente,
que aquilo, que deveria controlar o emudecimento da fala face ao corpo, se perca,
por sua vez, em uma grade conceitual hipertrófica. Seria, pois, uma sugestão aos
leitores, após a leitura da introdução, saltar primeiro ao concreto, isto é, estudar
com atenção a descrição e as imagens do trabalho cênico concreto e só então estudar
a parte teórica.
Conheci
o trabalho de Baiocchi no Brasil quando fiz com Helene Varopoulou uma turnê de palestras
organizada por Wolfgang Pannek. Ficamos impressionados com a cultura performativa
quase nobre da artista, que era capaz de combinar performance, dança, butoh. A multiformidade
teoricamente explicável tornou-se nela uma realidade prática que enfeitiçou o espectador.
A artista parecia autêntica porque sabia comunicar a necessidade interna de seus
atos ao espectador. Isso tem a ver com o fato de que nós, como espectadores, temos
a chance de deixar a experiência da artista com seu tema se transformar em nossa
experiência.
NOTAS
Tradução
de Wolfgang Pannek.
O
presente texto traz pela primeira vez em língua portuguesa a tradução do prefácio
de Hans-Thies Lehmann ao livro Choreographic theater of tensions: forces &
forms de Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek (São Paulo: Transcultura, 2020).
1. Heiner Müller Material:
Texte und Kommentare. Reklam Verlag, 1989.
2. Jean-François Lyotard. Intensitäten. Berlin: Merve
Verlag, 1978.
HANS-THIES LEHMANN
| Geleitwort
Nicht zuletzt aber kommt das Buch in einem Moment, da das Bewußtsein, das eigentliche
Theater der Welt finde doch in Mitteleuropa statt, genau genommen in Deutschland
und Umgebung und noch genauer in Berlin-Mitte, immer weniger haltbar erscheint.
Die zentraleuropäische Theateridee gilt vielen mehr und mehr als outdated; und in
Theater, Tanz und Performance finden – wie es im Film schon lange der Fall ist –
Impulse von den südlichen und östlichen Rändern Europas, aus Lateinamerika, Japan,
China oder dem Libanon, um nur einige zu nennen, immer öfter Anerkennung als der
eigentlich authentische Ausdruck unserer Zeit.
Die größere Aufgeschlossenheit diesen andersgearteten Spielformen gegenüber
(von der man hoffen kann, dass der vorliegende Band von ihr profitieren wird) steht
in direktestem Zusammenhang mit dem geschärften Bewußtsein dafür, dass das Alpha
und Omega der Problematik unserer Zeit, die mit dem Stichwort Klimawandel nur sehr
abstrakt benannt ist, das Vehältnis des Menschen zur natürlichen Umwelt geworden
ist. Die Arbeit des taanteatro kann als eine einzige große Forschungsreise in diesem
Terrain angesehen werden. Es ist nichts geringeres als der immer wieder
erneuerte Versuch, ein neues “Mitsein” von Mensch und Natur zu befördern. Pflanzen,
Tiere, Steine und Wasser stehen in seinen Aufführungen auf einer Ebene mit dem menschlichen
Akteur. Es ist ein radikal “grünes” Theater, das eine durchgreifende Kritik unserer
Zivilisation formuliert. In diesem Sinne ist die Bezugnahme auf Antonin Artaud in
einer der neuesten Performances alles andere als zufällig.
Seit den
1980er Jahren veranstaltet Maura Baiocchi Performances und Tanztheaterstücke, Ausstellungen,
site-specific Projekte und vieles mehr. Die politische Dimension dieser Arbeit lässt
sich mit einer schönen Formulierung von Heiner Müller erläutern. In “Taube und Samurai”,
einem kleinen Text über Robert Wilson, ist die Rede von “der Weisheit der Märchen,
daß die Geschichte des Menschen von der Geschichte der Tiere (Pflanzen, Steine,
Maschinen) nicht getrennt werden kann außer um den Preis des Untergangs.” (Müller
Material 50). Um die Art des Politischen in diesem Theater von Maura Baiocchi zu
bestimmen, könnte man sich auch auf Jean Francois Lyotard beziehen (der zwar nicht
erwähnt wird, aber offenbar auch rezipiert wurde), der den Intensitätsbegriff für
eine dekonstruktive Ästhetik entwickelt hat. Auch ihm gilt das Poltische nicht wie
üblich als Praxis um die oder mit den Institutionen, auch nicht als Sphäre der Ausarbeitung
von Utopien, sondern es geht einfach um die “Bestimmung einer Spielfläche für libidinöse
Intensitäten, Affekte, ‘Leidenschaften’”, ein “Experimentieren, das derzeit verstreut
über die ganze Welt Praktiken und Erfahrungen aller Art verbindet” (Lyotard, Intensitäten
59).
Freilich
droht der verdienstvollen Arbeit an der Verbegrifflichung des Körpertheaters stets
eine Gefahr, der auch die vorliegende Schrift nicht ganz entgeht. Dass nämlich das,
was dem Verstummen der Rede angesichts des Körpers steuern sollte, sich seinerseits
in ein hypertrophes Begriffsraster verliert. Es wäre daher ein Vorschlag an die
Leser, nach der Lektüre der Einleitung zunächst in das Konkrete zu springen, also
die Schilderung und die Bilder der konkreten Theaterarbeit aufmerksam zu studieren
und erst danach den theoretischen Teil.
Ich habe
die Arbeit von Baiocci kennengelernt in Brasilien, als ich mit Helene Varopoulou
eine Vortragsreise unternahm, die Wolfgang Pannek für uns organisiert hatte. Beeindruckt
waren wir von der beinah vornehm zu nennenden Spielkultur der Künstlerin, die es
vermochte, Performance, Tanz, Butoh zu vereinen. Die theoretisch explizierbare Vielförmigkeit
wurde bei ihr zur praktischen Wirklichkeit, die den Zuschauer in den Bann zog. Authentisch
wirkte die Künstlerin, weil sie es verstand, die innere Notwendigkeit ihres Tuns
dem Zuschauer zu kommunizieren. Es hat damit zu tun, dass wir als Zuschauer die
Chance haben, die Erfahrung der Künstlerin mit ihrem Gegenstand selbst zur Erfahrung
werden zu lassen.
HANS-THIES LEHMANN | Professor emérito de estudos teatrais da Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt am Main. Membro da Academia das Artes de Berlim e presidente da Sociedade Internacional Bertolt Brecht, Lehmann estabeleceu o conceito do teatro pós-dramático em seu livro Teatro Pós-dramático (1999). Entre as demais publicações do palestrante internacional figuram Escritura Política no Texto Teatral (2009) e Tragédia e Teatro Dramático (2013).
CANDELARIA SILVESTRO | Artista argentina nacida en Córdoba, en 1977. Expone desde el año 1998 en salas de arte, galerías y Museos públicos y privados. Su obra forma parte de colecciones públicas y privadas, nacionales e internacionales de Argentina, Brasil, Holanda, Estados Unidos. Desde el año 2000 colabora con la Compañía Taanteatro de Sao Paulo en la realización de escenografía, vestuario, video animación, objeto escénico y performer. Sus trabajos más recientes son una participación en el film internacional La Peste de Antonin Artaud junto a la Compañía Taanteatro, en 2020; además de una participación especial en el Festival de Ecoperformance 2021 (Compañía Taanteatro); una exposición de pinturas de gran formato inspirada en el paisaje de la Mar Chiquita “Bandada de Flamencos”; la performance Ophelia de Ansenuza, concepción, dirección y coreografía de Maura Baiocchi (Compañía Taanteatro); y participación en el filme Apokalypsis, dirección de Maura Baiocchi y Wolfgang Pannek – todo esto en 2021.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 03
Número 202 | fevereiro de 2022
Artista convidada: Candelaria Silvestro (Argentina, 1977)
Traduções de Wolfgang Pannek e Vadim Nikitin
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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