quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

HANS-THIES LEHMANN | Um teatro radicalmente “verde”

 


Este livro aparece no momento apropriado. Sua publicação ocorre em uma época em que – ao lado da problemática contínua do corpo – a teorização do afetivo nos estudos teatrais ganhou em importância quando comparada ao aspecto racional da transmissão de sentido.

O exemplo de Maura Baiocchi também é oportuno como incentivo num momento em que muitos fazedores teatrais se desanimam diante da frente reacionária que há anos vem se erguendo contra todas as formas de arte experimental. Afinal, trata-se de uma artista que persegue sem desalento há mais de 30 anos seu caminho muito pessoal nas artes cênicas, sem se deixar intimidar pela resistência à singularidade idiossincrática de sua prática, tanto por parte de instituições estatais quanto do lado do próprio meio cultural, que frequentemente insiste em exigir mensagens políticas claras do teatro.

Por último, mas não menos importante, o livro chega num momento em que a consciência de que o verdadeiro teatro do mundo se passa na Europa Central, mais precisamente na Alemanha e arredores, e ainda mais precisamente em Berlin-Mitte, parece cada vez menos sustentável. Por muitos e cada vez mais, a ideia centro-europeia do teatro é vista como ultrapassada; e no teatro, na dança e na performance – como há muito tem sido o caso no cinema –, os impulsos vindos das bordas sul e leste da Europa, da América Latina, do Japão, da China ou do Líbano, para citar apenas alguns, são cada vez mais reconhecidos como a expressão realmente autêntica de nosso tempo.

A maior abertura a essas formas cênicas distintas (que, espera-se, irá beneficiar este livro) mantém uma relação direta com a crescente consciência de que o Alfa e o Ômega da problemática de nosso tempo, denominada de forma somente muito abstrata como “mudança climática”, passou a ser a relação entre os seres humanos e seu ambiente natural.

O trabalho da Taanteatro Companhia pode ser considerado como uma única grande expedição de pesquisa nesta área. Trate-se de nada menos do que da tentativa sempre renovada de promover uma nova “coexistência” entre o ser humano e a natureza. Em suas encenações, plantas, animais, pedras e água estão situados no mesmo nível do agente humano. É um teatro radicalmente “verde” que formula uma crítica abrangente de nossa civilização. Nesse sentido, a referência a Antonin Artaud em várias de suas obras mais recentes não é nada acidental.

Desde a década de 1980, Maura Baiocchi realiza performances e obras de dança-teatro, exposições, projetos site-specific, e muito mais. A dimensão política de sua obra pode ser esclarecida a partir de uma bela formulação de Heiner Müller. Em “Pomba e Samurai”, um breve texto sobre Robert Wilson, Müller fala “da sabedoria dos contos de fadas, [em] que a história dos homens não pode ser separada da história dos animais (plantas, pedras, máquinas), a não ser ao preço da desgraça.” [1]

Para definir a forma do político neste teatro de Maura Baiocchi, também é possível referir-se a Jean-François Lyotard (que não é mencionado, mas aparentemente foi estudado), que desenvolve o conceito da intensidade para uma estética desconstrutiva. Também para ele, o político não equivale, como de costume, a uma prática em torno ou com as instituições, tampouco a uma esfera de elaboração de utopias, mas trata-se simplesmente da “determinação de uma superfície de jogo para intensidades libidinais, afetos, paixões”, uma “experimentação que, atualmente espalhada pelo mundo inteiro, une práticas e experiências de todos os tipos”. [2]


O princípio tensão pode ser entendido como o cerne do trabalho. O nome taanteatro se refere à raiz  indo-europeia tan, que significa tensão e da qual deriva o termo dança. Wolfgang Pannek, seu fiel companheiro – alguns diriam: seu dramaturgo –, encarregou-se de transpor a obra de Baiocchi para uma linguagem teórica que, naturalmente, é mais acessível a quem já conhece seu trabalho concreto.

O discurso sobre teatro que o leitor aqui encontra se baseia fundamentalmente nos estudos de Gilles Deleuze. Isso tem vantagens: a linguagem de Deleuze, inspirada em Nietzsche, busca sem cessar dissolver a fixação quase inevitável de processos em oposições reificadas, que na verdade só existem no Entre de estados corporais de fluxo. Desse modo, a linguagem da teoria dá um grande passo na captura de elementos alheios à teoria, como a dinâmica dos estados físicos de tensão, a “tensão” perceptível de vários estados musculares etc. Seria um mal-entendido, entretanto, se se pensasse os termos teóricos como a expressão de uma metalinguagem sobreposta ao físico. Aqui, um termo como metacoreografia significa antes a detecção de estados energéticos ou ideias poéticas a partir das quais a coreografia foi inicialmente criada.

É claro que o trabalho meritório de conceituação do teatro físico está sempre ameaçado por um perigo do qual esta publicação também não escapa por inteiro. Nomeadamente, que aquilo, que deveria controlar o emudecimento da fala face ao corpo, se perca, por sua vez, em uma grade conceitual hipertrófica. Seria, pois, uma sugestão aos leitores, após a leitura da introdução, saltar primeiro ao concreto, isto é, estudar com atenção a descrição e as imagens do trabalho cênico concreto e só então estudar a parte teórica.

Conheci o trabalho de Baiocchi no Brasil quando fiz com Helene Varopoulou uma turnê de palestras organizada por Wolfgang Pannek. Ficamos impressionados com a cultura performativa quase nobre da artista, que era capaz de combinar performance, dança, butoh. A multiformidade teoricamente explicável tornou-se nela uma realidade prática que enfeitiçou o espectador. A artista parecia autêntica porque sabia comunicar a necessidade interna de seus atos ao espectador. Isso tem a ver com o fato de que nós, como espectadores, temos a chance de deixar a experiência da artista com seu tema se transformar em nossa experiência.

 

NOTAS

Tradução de Wolfgang Pannek.

O presente texto traz pela primeira vez em língua portuguesa a tradução do prefácio de Hans-Thies Lehmann ao livro Choreographic theater of tensions: forces & forms de Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek (São Paulo: Transcultura, 2020).

1. Heiner Müller Material: Texte und Kommentare. Reklam Verlag, 1989.

2. Jean-François Lyotard. Intensitäten. Berlin: Merve Verlag, 1978.

 

 

HANS-THIES LEHMANN | Geleitwort

 


Dieses Buch kommt zur rechten Zeit. Seine Publikation fällt in eine Zeit, wo – neben der fortdauernden Problematik des Körpers – die Theoretisierung des Affektiven in der Wissenschaft vom Theater an Bedeutung zugenommen hat gegenüber dem rationalen Aspekt der Übermittlung von Sinn. Auch kommt das Beispiel von Maura Baiocchi gerade recht als Ermutigung in einem Moment, da viele Theatermacher verzagen angesichts der reaktionären Front, die sich seit Jahren gegen alle experimentelle Kunst aufbaut. Handelt es sich doch um eine Künstlerin, die seit mehr als 30 Jahren unbeirrt ihren sehr persönlichen Weg im Theater geht, ohne sich einschüchtern zu lassen durch Widerstände gegen die idiosynkratische Singularität ihrer Praxis, sowohl von Seiten der staatlichen Institutionen als auch häufig aus dem eigenen kulturellen Umfeld, wo immer wieder vom Theater eindeutige politische Botschaften verlangt werden.

Nicht zuletzt aber kommt das Buch in einem Moment, da das Bewußtsein, das eigentliche Theater der Welt finde doch in Mitteleuropa statt, genau genommen in Deutschland und Umgebung und noch genauer in Berlin-Mitte, immer weniger haltbar erscheint. Die zentraleuropäische Theateridee gilt vielen mehr und mehr als outdated; und in Theater, Tanz und Performance finden – wie es im Film schon lange der Fall ist – Impulse von den südlichen und östlichen Rändern Europas, aus Lateinamerika, Japan, China oder dem Libanon, um nur einige zu nennen, immer öfter Anerkennung als der eigentlich authentische Ausdruck unserer Zeit.

Die größere Aufgeschlossenheit diesen andersgearteten Spielformen gegenüber (von der man hoffen kann, dass der vorliegende Band von ihr profitieren wird) steht in direktestem Zusammenhang mit dem geschärften Bewußtsein dafür, dass das Alpha und Omega der Problematik unserer Zeit, die mit dem Stichwort Klimawandel nur sehr abstrakt benannt ist, das Vehältnis des Menschen zur natürlichen Umwelt geworden ist. Die Arbeit des taanteatro kann als eine einzige große Forschungsreise in diesem Terrain angesehen werden. Es ist nichts geringeres als der immer wieder erneuerte Versuch, ein neues “Mitsein” von Mensch und Natur zu befördern. Pflanzen, Tiere, Steine und Wasser stehen in seinen Aufführungen auf einer Ebene mit dem menschlichen Akteur. Es ist ein radikal “grünes” Theater, das eine durchgreifende Kritik unserer Zivilisation formuliert. In diesem Sinne ist die Bezugnahme auf Antonin Artaud in einer der neuesten Performances alles andere als zufällig.

Seit den 1980er Jahren veranstaltet Maura Baiocchi Performances und Tanztheaterstücke, Ausstellungen, site-specific Projekte und vieles mehr. Die politische Dimension dieser Arbeit lässt sich mit einer schönen Formulierung von Heiner Müller erläutern. In “Taube und Samurai”, einem kleinen Text über Robert Wilson, ist die Rede von “der Weisheit der Märchen, daß die Geschichte des Menschen von der Geschichte der Tiere (Pflanzen, Steine, Maschinen) nicht getrennt werden kann außer um den Preis des Untergangs.” (Müller Material 50). Um die Art des Politischen in diesem Theater von Maura Baiocchi zu bestimmen, könnte man sich auch auf Jean Francois Lyotard beziehen (der zwar nicht erwähnt wird, aber offenbar auch rezipiert wurde), der den Intensitätsbegriff für eine dekonstruktive Ästhetik entwickelt hat. Auch ihm gilt das Poltische nicht wie üblich als Praxis um die oder mit den Institutionen, auch nicht als Sphäre der Ausarbeitung von Utopien, sondern es geht einfach um die “Bestimmung einer Spielfläche für libidinöse Intensitäten, Affekte, ‘Leidenschaften’”, ein “Experimentieren, das derzeit verstreut über die ganze Welt Praktiken und Erfahrungen aller Art verbindet” (Lyotard, Intensitäten 59).


Das Prinzip Spannung kann als Kern der Arbeit verstanden werden. Der Name taanteatro weist auf die indogermanische Wurzel ‘tan’ hin, die soviel wie Spannung bedeutet, von der der Begriff Tanz sich herleitet. Wolfgang Pannek, ihr getreuer Eckart, ihr Wegbegleiter, manche würden sagen: ihr Dramaturg, hat es auf sich genommen, die Arbeit von Maura Baiocci in eine Theoriesprache zu übertragn, die sich freilich dem am ehesten erschließt, der ihre konkrete Arbeit bereits kennt. Der Diskurs über das Theater, den der Leser hier vorfindet, ist wesentlich durch das Studium von Gilles Deleuze geprägt. Das hat Vorteile: Die Sprache von Deleuze versucht unablässig, inspiriert von Nietzsche, die beinahe unvermeidliche Festschreibung vom Prozessen in verdinglichte Gegensätze aufzulösen, die in der Tat allein im Zwischen körperlicher Zustände, im Flux existieren. Die Sprache der Theorie kommt auf diese Weise einen großen Schritt voran beim Erfassen theoriefremder Elemente wie der Dynamik körperlicher Spannungszustände, der wahrnehmbaren ‘Tension’ verschiedener muskulären Zustände usw. Es wäre allerdings ein Mißverständnis, wollte man die Theoriebegriffe als Ausdruck einer das Körperliche überlagernde Metasprache denken. Ein Begriff wie Metachoreographie bedeutet hier vielmehr das Aufspüren energetischer Zustände oder poetischer Ideen, aus denen die Choreographie allererst entstand.

Freilich droht der verdienstvollen Arbeit an der Verbegrifflichung des Körpertheaters stets eine Gefahr, der auch die vorliegende Schrift nicht ganz entgeht. Dass nämlich das, was dem Verstummen der Rede angesichts des Körpers steuern sollte, sich seinerseits in ein hypertrophes Begriffsraster verliert. Es wäre daher ein Vorschlag an die Leser, nach der Lektüre der Einleitung zunächst in das Konkrete zu springen, also die Schilderung und die Bilder der konkreten Theaterarbeit aufmerksam zu studieren und erst danach den theoretischen Teil. 

Ich habe die Arbeit von Baiocci kennengelernt in Brasilien, als ich mit Helene Varopoulou eine Vortragsreise unternahm, die Wolfgang Pannek für uns organisiert hatte. Beeindruckt waren wir von der beinah vornehm zu nennenden Spielkultur der Künstlerin, die es vermochte, Performance, Tanz, Butoh zu vereinen. Die theoretisch explizierbare Vielförmigkeit wurde bei ihr zur praktischen Wirklichkeit, die den Zuschauer in den Bann zog. Authentisch wirkte die Künstlerin, weil sie es verstand, die innere Notwendigkeit ihres Tuns dem Zuschauer zu kommunizieren. Es hat damit zu tun, dass wir als Zuschauer die Chance haben, die Erfahrung der Künstlerin mit ihrem Gegenstand selbst zur Erfahrung werden zu lassen.

 

 


HANS-THIES LEHMANN | Professor emérito de estudos teatrais da Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt am Main. Membro da Academia das Artes de Berlim e presidente da Sociedade Internacional Bertolt Brecht, Lehmann estabeleceu o conceito do teatro pós-dramático em seu livro Teatro Pós-dramático (1999). Entre as demais publicações do palestrante internacional figuram Escritura Política no Texto Teatral (2009) e Tragédia e Teatro Dramático (2013).
 

 


CANDELARIA SILVESTRO | Artista argentina nacida en Córdoba, en 1977. Expone desde el año 1998 en salas de arte, galerías y Museos públicos y privados. Su obra forma parte de colecciones públicas y privadas, nacionales e internacionales de Argentina, Brasil, Holanda, Estados Unidos. Desde el año 2000 colabora con la Compañía Taanteatro de Sao Paulo en la realización de escenografía, vestuario, video animación, objeto escénico y performer. Sus trabajos más recientes son una participación en el film internacional La Peste de Antonin Artaud junto a la Compañía Taanteatro, en 2020; además de una participación especial en el Festival de Ecoperformance 2021 (Compañía Taanteatro); una exposición de pinturas de gran formato inspirada en el paisaje de la Mar Chiquita “Bandada de Flamencos”; la performance Ophelia de Ansenuza, concepción, dirección y coreografía de Maura Baiocchi (Compañía Taanteatro); y participación en el filme Apokalypsis, dirección de Maura Baiocchi y Wolfgang Pannek – todo esto en 2021.
 

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 03

Número 202 | fevereiro de 2022

Artista convidada: Candelaria Silvestro (Argentina, 1977)

Traduções de Wolfgang Pannek e Vadim Nikitin

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022 

 





 

 

 contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário