quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

NOURIT MASSON-SÉKINÉ | Para Maura, uma humanidade inteira

 


Experimentar implica transgressão. Revelar o que não aparece a olho nu. Arriscar o salto para o desconhecido e esbarrar em fronteiras nebulosas. E a transgressão atiça a fonte da investigação. Uma obsessão, talvez, para expor o que age, dissimulado no ser, acima ou abaixo da superfície. Revelar o que se tece em profundidade, o que ignora a aparência, flui da distância e do inconsciente para a encruzilhada de sincronias, entre ilusão e realidade, entre espaços dentro e fora, entre a intenção do corpo e do movimento e o sincretismo das disposições, visuais e sonoras, do espaço cênico. Todas as artes verdadeiras conhecem essas dinâmicas místicas e racionais ao mesmo tempo. O lugar onde o ego esvaecido dá lugar ao não-sabido, à emanação daquelas trevas que respondem a uma necessidade interior. Eles inspiram a ordem da criação, sem, no entanto, fixá-la. A carne é o veículo desta sinfonia cósmica de luz e cores, na sombra da noite. É então manifesto que o infinito supera a temporalidade. Um fora do tempo de seu tempo. Contemporâneo, mas sem idade.

Assim, quando Maura Baiocchi encarnou Ophelia pela primeira vez no espaço cenográfico da minha exposição no Striped House Museum de Tóquio, em 1988, ela abriu um caminho de mutações escritas ao longo de metamorfoses, como um cadáver esquisito, [1] a instantaneidade de sentido. Uma presença mantida em tensão e uma errância suspensa da qual o público, cativado, não podia tirar os olhos. Como escreve o filósofo J. L. Nancy, a dança é “uma forma de fazer sentido imediatamente com o corpo. É próprio dessa arte produzir seu sentido apartado de qualquer meio e, assim, apagar ao máximo o efeito de significação produzido por um meio”.

Para Maura, o encontro com Kazuo Ohno e com a dança Butoh no Japão foi matéria de ensinamentos e de experimentações, dança feita de carne, em estado bruto, pura, sem outra finalidade senão uma dinâmica do sendo. Em movimento, Ophelia continuou, deste modo, a viver em formas antitéticas, nunca fixas, do happening da primeira hora às performances mais exuberantes e formas mais dramatizadas, sem que uma impedisse a outra. Ao contrário, a continuação de suas pesquisas da época japonesa pôde absorver outros arquétipos, notadamente Frida Kahlo ou Cerrado, a ancestral paisagem brasileira, e, posteriormente, Artaud, tudo ao desenvolver reflexões sobre a pedagogia do corpo dançante – e, em geral, sobre a arte – para a humanidade.


O Japão foi uma etapa importante na vida de Maura. Um palco de ressonância em um corpo, certamente formado pela dança contemporânea, mas também essencialmente no mundo da macumba e do candomblé. [2] Ao mesmo tempo um lugar de história, a macumba é também um lugar interior que contém os meios de ligação com os ancestrais​​ e o seu destino, pelas formas do culto e dos rituais exaltados pela música e dança. O Candomblé apela às forças intangíveis presentes na natureza, mar, terra ou fogo, tantas ocasiões de apelo às crenças e à imaginação mística e espiritual. O Japão também é um país sincrético, com linguagem codificada e costumes ritualizados. A dança Butoh é japonesa através da morfologia do corpo japonês, do ecossistema territorial e através do imaginário cultural que uma reflexão profunda permitiu formalizar.

Maura não se fez de japonesa para praticar Butoh. Ela percebeu o caráter universal que essa corrente de dança lhe incutiu e soube, com sua inteligência intuitiva e seus saberes, converter a linguagem e a forma às alturas de sua própria identidade cultural brasileira. Uma identidade plural e sem fronteiras, entre a história do tráfico de escravos, dos indígenas e das imigrações europeias no Brasil. Todos imersos na memória de suas células. Assim, a solista Maura encarna toda essa humanidade que oscila múltiplas sombras, sob os holofotes.

 

NOTAS

Tradução de Wolfgang Pannek.

1. Cadáver esquisito (cadavre exquis) é um método coletivo de montagem desenvolvido pelos surrealistas franceses, que visa eliminar o controle racional e a autoria individual no processo da produção pictórica e literária.

2. NT: a autora usa o termo macumba como designação genérica atribuída a cultos sincréticos afro-brasileiros com influências cristãs, ameríndias e espiritistas.

 

 

NOURIT MASSON-SÉKINÉ | À Maura, une humanité au complet

 


Expérimenter implique de la transgression. Révéler ce qui n’apparaît pas à l’œil nu. Risquer le saut dans l’inconnu et se heurter à des frontières nébuleuses. Et la transgression attise le ressort de l’investigation. Une obsession, peut-être, pour débusquer ce qui agit, dissimulé dans l’être, au-delà ou en dessous de la surface. Révéler ce qui se tisse en profondeur, qui fait fi de l’apparence, s’écoule du lointain et de l’inconscient vers la croisée de synchronies, entre l’illusion et la réalité, entre les espaces du dedans et du dehors, entre l’intention du corps et du mouvement et le syncrétisme des dispositions, visuelles et sonores, de l’espace scénique.

Tous les arts vrais connaissent ces dynamiques mystiques et rationnelles à la fois.

Le lieu où l’ego évanoui laisse place à l’insu, à l’émanation de ces ténèbres qui répondent à une nécessité intérieure. Elles inspirent l’ordre de la création, sans pour autant la fixer.

La chair est le véhicule de cette symphonie cosmique de la lumière et des couleurs, dans l’ombre de la nuit. Il est alors manifeste que l’infinité surpasse la temporalité.

Un hors temps de son temps. Contemporain mais sans âge.

Aussi quand Maura Baiocchi a incarné Ophélia pour la première fois dans l’espace scénographique de mon exposition au Striped House Museum de Tokyo, en 1988, elle a ouvert une voie de mutations où s’écrivaient au fil des métamorphoses, comme un cadavre exquis, l’instantanéité du sens. Une présence maintenue en tension et une errance en suspend dont le public, captivé, ne pouvait détacher les yeux. Comme l’écrit le philosophe J.L. Nancy, la danse est une manière de faire immédiatement du sens avec le corps. Le propre de cet art est de produire son sens en retrait de tout medium et, par là, d’effacer le plus possible l’effet de signification que produit un medium.

Pour Maura, la rencontre avec Ohno Kazuo et le Butoh au Japon a été matière d’enseignements et d’expérimentations, de la chair faite danse à l’état brut, pure, sans finalité autre qu’une dynamique de l’étant.

En mouvement, Ophélia a, de ce fait, continué à vivre sous des formes antithétiques, jamais fixes, du happening de la première heure à des performances plus exubérantes et des formes plus dramatisées, sans que l’un n’empêche l’autre.

Au contraire, la continuité de ses recherches à l’époque japonaise a pu absorber d’autres archétypes, notamment Frida Kahlo ou Cerrado, le paysage brésilien ancestral et, plus tard, Artaud, tout en développant des réflexions sur la pédagogie du corps dansant – et globalement sur l’art – pour l’humanité.

Le Japon a été une étape importante dans la vie de Maura.

Une étape de résonnance dans un corps, certes formé à la danse contemporaine mais aussi essentiellement à l’univers de la macumba et du canbomblé. À la fois un lieu d’histoire, la macumba est aussi un lieu intérieur qui contient le moyen de se relier aux ancêtres et à sa destinée, par les chemins de cultes et de rituels exaltés par la musique et la danse. Le candomblé fait appel aux forces immatérielles présentes dans la nature, mer, terre ou feu, autant d’occasions de solliciter les croyances et l’imaginaire mystique et spirituel.


Le Japon est également un pays syncrétiste, au langage codifié et aux mœurs ritualisées. La danse Butoh est japonaise par la morphologie du corps japonais, l’écosystème territorial et par l’imaginaire culturel qu’une profonde réflexion a permis de formaliser.

Maura ne s’est pas faite japonaise pour pratiquer le Butoh.

Elle a perçu le caractère universel que ce courant de danse lui a insufflé et a su, avec son intelligence intuitive et ses connaissances, en convertir le langage et la forme aux cimes de sa propre identité culturelle, brésilienne. Une identité plurielle et sans frontière, entre l’histoire de la traite des noirs, des autochtones et des migrations européennes au Brésil.

Tous baignent dans la mémoire de ses cellules.

Ainsi la soliste Maura incarne-t-elle cette humanité au complet qui oscille d’ombres multiples, sous les feux de la rampe.

 

 


NOURIT MASSON-SÉKINÉ | Artista transdisciplinar residente em Estrasburgo, França. Pintora e fotógrafa com exposições na França, Alemanha, Japão, China, Brasil, entre outros países. Especialista em dança Butoh, é coautora de Butoh: Shades of Darkness (com Jean Viala, ed. Shufunotomo, 1988 e 2000). Autora do livro Le courage de vivre pour mourir [A coragem de viver para morrer], (2000) e editora-fundadora da coleção de livros Prophète en son pays [Profeta em seu país] da editora Origine.
 

 


CANDELARIA SILVESTRO | Artista argentina nacida en Córdoba, en 1977. Expone desde el año 1998 en salas de arte, galerías y Museos públicos y privados. Su obra forma parte de colecciones públicas y privadas, nacionales e internacionales de Argentina, Brasil, Holanda, Estados Unidos. Desde el año 2000 colabora con la Compañía Taanteatro de Sao Paulo en la realización de escenografía, vestuario, video animación, objeto escénico y performer. Sus trabajos más recientes son una participación en el film internacional La Peste de Antonin Artaud junto a la Compañía Taanteatro, en 2020; además de una participación especial en el Festival de Ecoperformance 2021 (Compañía Taanteatro); una exposición de pinturas de gran formato inspirada en el paisaje de la Mar Chiquita “Bandada de Flamencos”; la performance Ophelia de Ansenuza, concepción, dirección y coreografía de Maura Baiocchi (Compañía Taanteatro); y participación en el filme Apokalypsis, dirección de Maura Baiocchi y Wolfgang Pannek – todo esto en 2021.
 

 

Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 03

Número 202 | fevereiro de 2022

Artista convidada: Candelaria Silvestro (Argentina, 1977)

Traduções de Wolfgang Pannek e Vadim Nikitin

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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