quinta-feira, 24 de março de 2022

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Suzanne Césaire, a desaparecida que se tornou rochedo no mar ou a musa escritora que faz a diábase em Tropiques



Uma nova introdução

Os sete textos escritos por Suzanne Césaire para Tropiques, durante a II Guerra Mundial, numa periferia da América, [1] reunidos por Daniel Maximin (Seuil, 2009), acabam de ser publicados, em tradução para o português, sob o título A Grande camuflagem. Escritos de Dissidência, em setembro deste ano, pela editora Papéis selvagens (UFRJ). O volume recentíssimo, com tradução de Júlio Castanón, inclui ainda um posfácio, assinado por mim, apresentando Suzanne Césaire e a mítica revista-laboratório da Martinica ao público brasileiro.

Para não repetir simplesmente, agora na Agulha Revista de Cultura, o que vem de sair, retoma-se aqui a figura de Suzanne Césaire sob outra ótica. Ou seja: a partir de um poema de fim de vida de Aimé Césaire. Os interessados poderão ler os textos de Suzanne integralmente, consultando a bela edição de Papéis Selvagens.

Quarenta anos mais tarde, o poeta Aimé Césaire revisita a sua juventude e a exaltante experiência coletiva vivida durante os anos 1941-1945, uma vez mais, sob a luz “diferente” de Lautréamont e do surrealismo. O poema em questão, intitulado “Le rocher de la femme endormie”, foi publicado pela primeira vez numa revista pouco conhecida, Poésie, em 1989, e integra o volume inédito Comme un malentendu de salut… [2] publicado em Aimé Césaire, La Poésie (Seuil, 1994), edição estabelecida por Daniel Maximin e Gilles Carpentier.

Reproduzimos abaixo o poema com o estranho título duplo (o segundo aparecendo em itálico), sem nenhum sinal de pontuação (nem mesmo o ponto final), acompanhado por uma proposta de tradução em português. Suzanne Césaire morreu em 1966, aos 59 anos, vítima de um tumor no cérebro e ela, que se fora voluntariamente em abril de 1963, retornou à casa da família para morrer entre os seus.

 

Rocher de la femme endormie

ou

Belle comme l’exaspération de la sécession

 

Rescapée rescapée

C’est toi la retombée

D’un festin de volcans

D’un tourbillon de lucioles

D’une fusée de fleurs d’une fureur de rêves

 

Très pure loin de toute cette jungle

La traîne de tes cheveux ravivée

Jusqu’au fond la barque solaire

Exaspération de la sécession

 

De temps en temps à travers la brume de sable

Qui s’éclaircit

A travers les jeux cicatriciels du ciel

Je la vois qui bat des paupières

Histoire de m’avertir qu’elle comprend mes signaux

Qui sont d’ailleurs en détresse des chutes de soleil

Très ancien

 

Les siens je crois bien être le seul à les capter encore

Plus d’une fois j’ai enhardi la vague

À franchir la limite qui nous separe toujours

Mais le dragon gouverne le cap de cette eau interdite

Même si c’est souvent un inoffensif caret-plongeur

Qu’il survient respirer à la surface maudite

 

Alors quel oiseau sacrificiel aujourd’hui

Te dépêcher

 

Rescapée rescapée

Toi exil mien et reine des décombres

Fantôme toujours inapte à parfaire son royaume [3]

 

Césaire, neste poema, recria a paisagem de uma localidade ao Sul da Martinica chamada Le Diamant. Aí, uma grande pedra, a Sudoeste da ilha, barra parcialmente a visão do Oceano aberto, [4] evocada por um espectador-amante que retorna, vezes sem conta, à contemplação do rochedo denominado “A Mulher adormecida”.

O poema junta expressões muito coloquiais (“Histoire de m’avertir…, “d’ailleurs”, por exemplo) à evocação de vários e diferentes mitos da Antiguidade clássica (Egito antigo ou Grécia clássica) – inclusive o mito de Orfeu, prestes a descer ao reino de Hades, em busca de Eurídice perdida, e o do Adamastor transformado em pedra que chora, perdidamente apaixonado por uma ninfa fugidia –, jogando ainda, com ironia e humor, com a miniaturização do monstro, guardião infernal, sob a forma de uma tartaruga marinha. [5]

Leia-se abaixo em um ensaio de tradução, a versão em português, seguida de algumas breves notas, talvez necessárias, para leitores brasileiros:

 

Rochedo da mulher adormecida

ou

Bela como a exasperação da secessão

 

Resgatada resgatada

És a recaída

De um festim de vulcões

De um turbilhão de pirilampos

De um jorro de flores de um furor de sonhos

 

Muito pura longe de toda esta selva

A cauda rediviva dos teus cabelos

Até no fundo da barca solar

Exasperação da secessão

 

De tempos em tempos através da bruma da areia

Que se ilumina

Através dos jogos cicatriciais do céu

Vejo-a bater as pálpebras

Para me avisar que percebe os meus sinais

Aliás em perigo por causa das quedas do sol

Muito antigo

 

Os seus sinais creio que sou o único a captá-los ainda

Mais de uma vez encorajei a onda

A ultrapassar o limite que nos separa para sempre

Mas o dragão governa o cabo desta água proibida

Mesmo se é muita vez sob a forma de uma inofensiva tartaruga marinha

Que acontece vir respirar à superfície maldita

 

Então que pássaro sacrificial hoje

Enviar-te

 

Resgatada resgatada

Tu exílio meu e rainha dos destroços

Fantasma sempre inapto a refazer o reino (Tradução de Lilian Pestre de Almeida)

 

O poema levanta evidentemente inúmeros problemas de leitura. Como sempre, no caso dos poemas de Césaire, criador atento à oralidade coloquial e também particularmente erudito, cujos textos são, na maioria das vezes, não só “móveis” (o conceito é de Ernstpeter Ruhe), apresentando diferentes e múltiplas versões, como ainda constituem verdadeiros palimpsestos que sobrepõem camadas e camadas de significação que se imbricam umas nas outras.

Vários mitos se articulam, no poema, de forma subliminar: o da barca fúnebre que leva a morta com a sua longa cabeleira ainda viva, para o além; o da mulher amada que se transforma em pedra fria e inerte; o do rochedo, no final da praia de areia, que ainda dá sinais imperceptíveis de vida secreta; a secessão, não de um país em guerra fratricida, mas a secessão de um casal, que vivera muito tempo em relação fusional, e que se desfez/quebrou, antes da morte; a queda do sol, a cada noite, no Ocidente para ressurgir, no Oriente, na madrugada seguinte; o dragão que guarda e impede a passagem do viajante/peregrino, escondido sob a metamorfose banal de uma tartaruga marinha; o pássaro como mensageiro ao amor perdido e a identificação do eu despedaçado do narrador com a ausente (“exílio meu e rainha dos destroços”). Note-se sobretudo a genial e audaciosa inversão da última estrofe: quem é o fantasma do último verso “sempre inapto a refazer o reino” perdido para sempre, senão aquele que segue ainda vivo, o próprio poeta-narrador? Não é a primeira vez que o poeta se apresenta como fantasma: isso ocorre, sobretudo, em alguns dos seus últimos poemas.

É de notar-se os inúmeros jogos intra- e intertextuais, com a literatura clássica e com a literatura do próprio Césaire. A paisagem é a das ilhas antilhanas com seus vulcões peleanos ou maternos, [6] as suas duas faces voltadas para o mar, ora para o largo atlântico, ora para o mediterrâneo interno, sua fauna sobretudo marinha. E o subtítulo em itálico é uma nova variação de uma das proposições de Césaire ao apresentar o Comte de Lautréamont aos seus conterrâneos, no longínquo ano de 1943.

Explicando melhor: no número duplo VI-VII de Tropiques, datado de fevereiro de 1943, Césaire, diretor da revista, em 19 curtos parágrafos, apresenta Isidore Ducasse aos leitores da Martinica, retomando o jogo da comparação inédita e surpreendente. O exemplo inicial está no próprio título: “A poesia de Lautréamont, bela como um decreto de expropriação”. E o poeta cria, a seguir, frases de exaltação ao montevideano que se tornaram modelos de comparação inédita: “Príncipe severo das contorções”, “Príncipe fulgurante das cesarianas”, [7] “Deu nascimento, como seu fruto natural, à lógica do absurdo e ao grotesco da lógica”, “O primeiro a compreender a inquietante demiúrgica inversão da lógica.”

O título do artigo de 1943, “Bela como um decreto de expropriação” joga, para o leitor atento, com o título de agora, “Bela como uma exasperação de secessão”. [8]


Consideremos brevemente os dois títulos, semelhantes embora separados por mais de 45 anos (1943-1989). Decreto é uma decisão legal, emitida por uma autoridade superior; expropriação é retirar, legalmente, a propriedade de um bem imóvel a alguém. Exasperação é um estado de agitação ou de irritação do espírito. Secessão é inicialmente um termo de história romana: diz-se das três épocas em que a plebe se retirou, em armas, para fora da cidade de Roma, forçando o Senado a reconhecer os seus direitos. E ainda mais: secessão é a separação de um estado confederado que se retira da confederação de que faz parte. Por exemplo: a secessão do Sul dos Estados Unidos levou à guerra civil; do latim secessionem, de se (= à parte) e do verbo cedere (= ir). Quem fez a secessão? Aquela que abandonou a casa e deixou a família. A bela adormecida, transformada em rochedo no mar, é nova versão do conto infantil da Bela adormecida. Mas uma versão muito melancólica, sem final feliz.

O tema da bela adormecida é um dos centros ocultos do poema “Batouque” [9] dos primórdios, que volta agora, de forma bastante elíptica e alusiva, na poética de Césaire, à espera da morte.

Um outro jogo, ainda mais sutil, se faz, dirigido aos “happy few”: Proust, no seu grande ciclo romanesco A la recherche du temps perdu, tem dois romances intitulados respectivamente Albertine disparue e Albertine retrouvée, [10] antes da grande coda barroca de Le temps retrouvé. Césaire evoca, aqui, Suzanne desaparecida, numa perspectiva mais trágica, a do não-reencontro embora possa contemplar a sua metamorfose em rochedo à beira-mar. É ele o fantasma vivo que lamenta o seu “exílio”, sem que possa alcançar a regeneração do “reino” antigo. O poeta épico faz aqui um dos seus mais belos poemas líricos dedicado à “resgatada, resgatada” na sua memória. O rochedo da mulher adormecida nasce “de um festim de vulcões, de um turbilhão de pirilampos, de um jorro de flores, de um furor de sonhos.”

 

1. A musa ou a mulher paisagem

Muita gente, inclusive o poeta Daniel Maximin, seu futuro editor na Seuil, não chegou a conhecer pessoalmente Suzanne. Foi a edição anastática de Jean-Michel Place, especialista em reprint, de 1978, que difundiu as primeiras imagens da mulher de Aimé Césaire pelo grande público. Até então, o rosto e o aspecto físico de Suzanne eram quase desconhecidos, assim como, antes, os de Rimbaud ou os de Ducasse-Lautréamont, nos finais do século XIX, suscitando o aparecimento de retratos “imaginários”. [11]

Muitos celebraram a sedução e beleza de Suzanne Césaire. Entre a reedição de Tropiques dirigida por Jacqueline Leiner (1978) e a edição de Seuil por Daniel Maximin (2009), [12] de vez em quando, encontravam-se referências esparsas a Suzanne, elogios rasgados de André Breton ou de Michel Leiris, trechos de cartas trocadas com o ensaísta alemão Janheinz Jahn (1918-1973), poemas a ela dedicados, sua silhueta esbelta ou seu perfil de escultura “senoufo” entrevista em pequenas fotos coletivas de amador, feitas em Fort-de-France, Nova York ou Port-au-Prince.

Muitos reproduzem a frase de Breton sobre Suzanne, “bela como a chama do ponche”. Ina Césaire, sua quinta (sic) filha, [13] recorda, num poema, o apelido dado pelos alunos da sua mãe, na França, que a ela se referiam como “a pantera negra”. René Ménil descreve, em Tropiques, uma visão encantada numa clareira da floresta de Absalão, através do jogo surrealista do “belo como”: [14] belo como o encontro na floresta antilhana, no coração de uma clareira iluminada por uma fina luz sangrenta, de um canibal e de uma mulata [15] de pele cor de cinza.” Na frase de Ménil, o canibal é Césaire e a mulata de pele clara é Suzanne. Ou seja, como se diz na Martinica: une chabine. E antes de todos ainda, Senghor numa correspondência familiar, falava de “uma negra branca” de olhos verdes.

Mas é a nota de Michel Leiris, no seu diário, depois da guerra, em fevereiro de 1946, que parece melhor apreendê-la, física e moralmente, num primeiro encontro em que o etnólogo francês, interessado pela Martinica, convida o casal Césaire para jantar e a descreve no seu diário, no final da noite:

 

Mme Césaire tem a pele dourada e situa-se nos confins mais extremos da fineza e da selvageria; sente-se prazer em estar diante dela, como diante de uma paisagem maravilhosa que fosse inteligente. [16]

 

2. Numa revista-laboratório, a pantera negra que faz a diábase

O que é exatamente uma diábase? A palavra não se encontra nos dicionários e os glossários especializados sobre o vocabulário de Césaire [17] não fornecem indicações que permitam a leitura do texto. Mas o neologismo “diábase” joga com dois termos clássicos: “catábase” e “anábase”. A primeira significa uma descida ao reino dos Infernos, percurso de vários heróis épicos para encontrar e ouvir mortos. A segunda, do ponto de vista etimológico, é a ação de subir, de retornar à fonte, às origens. [18] Daí, diábase ser o movimento de passar através. Mas através do quê? Cabe ao leitor resolver o enigma: Suzanne, como mais tarde Exu através do tempo e do espaço, passa através dos textos de todos os outros colaboradores de Tropiques.

Consideremos, por um instante, “ele”, o misterioso, o sem nome, que passa através, num dos poemas de Césaire dedicados a Wifredo Lam, seguido de uma tradução:

 

passages

 

(la necessité de la spéciation

n’étant acceptable que dans la mesure

où ele legitime les plus audacieuses transgressions)

passer dit-il

et que dure chaque meurtrissure

passer

(penser est trop rapide)

de tout paysage garder intense la transe

du passage

passer

anabase et diabase

déjà

se dégage du fouillis au loin

tribulation d’un volcan

la halte d’une vive termitière (In La Poésie)

 

Ver, abaixo, uma proposta de tradução em português:

 

passagens

 

(a necessidade da especiação

só aceita na medida

em que legitima as mais audaciosas transgressões)

passar diz ele

e que dure cada contusão

passar

mas não ultrapassar as memórias vivas

passar

(pensar é rápido demais)

de qualquer paisagem guardar intenso o transe

da passagem

passar

anábase e diábase

se destaca do fervilhar ao longe

tribulação de um vulcão

a pausa de um vivo cupinzeiro (Tradução de Lilian Pestre de Almeida)

 

Esse poema que faz parte do “túmulo” de Wifredo Lam, em moi, laminaire… (= eu, laminária…) explica poeticamente a ação paradoxal de passar através do tempo e do espaço. [19]

Na produção de Suzanne há três tipos de textos, todos em prosa: os de teoria, os de crítica feroz e os poéticos. Nada melhor do que percorrê-los sem filtros impostos. O que faremos aqui é simplesmente apresentar o contexto e sugerir algumas intertextualidades.

Inclusive, boa parte daqueles – ou melhor, daquelas – que se apresentam, hoje, nas Antilhas, como herdeiras de Suzanne Césaire, leram-na tardiamente, a posteriori, depois da publicação em reprint de 1978 ou até mesmo depois da edição de 2009, de Daniel Maximin. Por outras palavras: descobriram, pelo menos e na melhor das hipóteses, só a partir dos anos 80, uma antepassada da qual não tinham feito, provavelmente, qualquer leitura durante os seus anos de formação.

Eis a lista dos sete ensaios publicados por Suzanne Césaire em Tropiques:

1 “Léo Frobenius et le problème des civilisations”, in Tropiques I (abril de 1941);

2 “Alain et l’esthétique”, in Tropiques II (julho de 1941);

3 “André Breton, poète…”, in Tropiques III (outubro de 1941);

4 “Misère d’une poésie: John Antoine Nau”, in Tropiques IV (janeiro de 1942);

5 “Malaise d’une civilisation”, in Tropiques V (abril de 1942);

6 “1943: le Surréalisme et nous”, in Tropiques VIII-IX (outubro de 1943) e

7 “Le Grand camouflage”, in Tropiques XIII-XIV (maio de 1945)

 

2.1 “Léo Frobenius e o problema das civilizações”, in Tropiques I (abril de 1941)

Suzanne aborda, de saída, teoria. E anuncia o que aparece, mais tarde, na obra do seu marido. A distinção entre civilização etíope e hamítica [20] será retomada, dois anos mais tarde, por Aimé Césaire, no Congresso de Port-au-Prince, no seu texto “Poésie et connaissance” (in Tropiques, nº XII). E a árvore constitui provavelmente o símbolo mais frequente e importante de toda a sua obra poética, o seu modelo imaginário de vida.


A civilização etíope, segundo o antropólogo alemão que alcançou grande sucesso nos anos 30 e 40, está ligada à planta e ao ciclo da vegetação. Encontramos aí, de certa forma, o grande regime simbólico que Gilbert Durand, no seu livro Les structures anthropologiques de l’imaginaire (1ª edição, PUF, 1960), hoje um clássico do imaginário, chamará mais tarde o “regime noturno dramático” que afirma a dupla postulação da raiz que se afunda no solo e da árvore cujos ramos se erguem para o céu. Por outras palavras: para crescer para cima é preciso descer mais fundo para baixo.

A segunda forma de Paideuma (a palavra também aparece em Senghor) corresponderia à civilização do homem-animal, ativo e combatente, “à conquista do direito de viver pela luta.”

Suzanne analisa ainda a tomada de consciência desses dois tipos opostos de civilizações graças a uma “súbita apreensão”, espécie de revelação fulgurante.

O fecho do primeiro ensaio teórico articula-se com a poesia de Césaire em dois níveis:

a) por um lado, Suzanne cita Césaire [21] e este cita, sem aviso prévio ao leitor, uma passagem de São Paulo que remete, não só ao tema frequente do Novo Testamento, como ao Antigo Testamento (Salmos e Jó em particular) sobre o guerreiro que cinge a sua espada, e

b) por outro lado, depois de por em realce o “etíope”, ligado à planta e ao ciclo da vegetação, Suzanne remete, no final do seu texto, o seu leitor, à luta, portanto ao homem “hamítico”. No fundo, ela propõe a articulação da prática etíope à prática “hamítica” para alcançar maior eficácia na vida social e política.

Enfim, se considerarmos o primeiro poema de Césaire, neste mesmo número inaugural de Tropiques, o profundo entendimento do casal se revela claramente. Nas últimas estrofes do poema, intitulado ainda “Fragmentos de um poema”, o narrador identifica-se, enquanto antilhano, como um verdadeiro “etíope”. Veja-se em particular a última estrofe do poema, de que propomos uma tradução em português:

 

E cresço, como uma planta

sem remorso e sem distorção

para as horas distensas do dia

puro e seguro como uma planta

sem crucificação

para as horas distensas da noite!

O fim! Que tolice!

Meus pés, avançam o verminoso caminhar

Planta!

Meus membros lenhosos transportam estranhas seivas

Planta! Planta! (in Tropiques , I)

 

O casal de escritores – Aimé e Suzanne – apresenta assim, desde o primeiro número de Tropiques, dois textos que se respondem perfeitamente, um teórico e em prosa (o de Suzanne), o outro, poético (o do seu marido), ela anunciando a necessidade, também, do “hamítico”, ele identificando-se liricamente com o “etíope”. 

 

2.2. “Alain e a estética”, in Tropiques II (julho de 1941)

O segundo texto de Suzanne, uma vez mais, aborda teoria e crítica. Aí, a redatora joga um outro jogo, o da citação oculta sob a forma de uma “coda” barroca que inverte o início do texto, surpreendendo o leitor.

Consideremos o seu texto, no fundo, bastante astucioso. O artigo cobre cerca de oito páginas e meia. Nas primeiras seis páginas e meia, Suzanne parece aderir com inteligência e simpatia à visão “clássica” de Alain, [22] até ao elogio, inclusive, de Paul Valéry. No final da sua sexta página, Suzanne muda o tom: “mas deixemos de lado o nosso guia…” e faz o salto, imprevisto, [23] para Rimbaud, Lautréamont, Breton.

Note-se, de passagem, que Césaire só abordará Lautréamont num número mais tardio (Tropiques, nº VI-VII, fevereiro de 1943). Assim, aqui também, Suzanne antecipa-se a todos os demais colaboradores e anuncia outras referências literárias posteriores. Ela opõe, aliás, de maneira inesperada, Alain e Breton, a partir de uma lição de Leonardo da Vinci. Sugiro ao leitor que releia o final da passagem “Um encontro curioso… até a estranha conclusão: “Em todo o caso, em todas as artes, o velho horizonte se amplia e recua para além do concebível”.

Qualquer leitor de Césaire reconhece a imagem: trata-se de uma citação oculta do final do Cahier: “o horizonte se desfaz, recua e se amplia.” Qualquer um diria que, conhecendo muito bem o poema de Césaire, Suzanne cita-o de memória, quase sem disso se dar conta. Entretanto, escrevendo em 1941, ela ainda não conhece esse final do poema porque, muito simplesmente, ele não existe ainda e fará parte dos acréscimos das edições de Brentano’s (pronta em 1943 e só publicada em janeiro de 1947, em Nova York) e de Présence Africaine (Paris, 1956).

O conhecimento das diferentes versões do Cahier, este poema “móvel” [24] entre todos, permite-nos afirmar sem qualquer dúvida que é ele, o poeta Aimé Césaire, que desenvolve o texto escrito e publicado pela sua mulher em 1941. [25] Isso nos faz descobrir que, se Suzanne, nas suas epígrafes ou conclusões, retoma passagens de poemas de Césaire, este, igualmente, retoma textos de sua mulher, quer desenvolvendo-os, quer resumindo-os. Aliás, não é o único a fazê-lo, como se verá a seguir.

 

2.3. “André Breton, poeta…”, in Tropiques III (outubro de 1941)

O terceiro texto de Suzanne é uma apresentação da poesia de André Breton, ao mesmo tempo como teórico do Surrealismo e poeta da felicidade. Breton responde-lhe, no mesmo número, com um magnífico poema em prosa evocando, ao mesmo tempo, a beleza de Suzanne e das pequenas “chabines” [26] antilhanas. Notemos os “semas” ligados ao fogo para evocar/pintar Suzanne: depois do elogio muito citado “bela como a chama do ponche” e ainda o retrato simbólico “um rosto de cinza clara e de brasas”, o nome de solteira de Suzanne, Roussi, parece fazer sentido e ganhar em simbolismo profundo. Um iniciado do candomblé no Brasil ou da santería em Cuba, diria provavelmente que ela é filha de Iansã, o orixá feminino iorubá do vento que precede a tempestade, seu sobrenome de solteira, Roussi, [27] desvelando simbolicamente uma filiação sagrada.

 

2.4. “Miséria de uma poesia: John Antoine Nau”, in Tropiques IV (janeiro de 1942)

O quarto texto é um ataque de uma ferocidade inédita. Leiris provavelmente acertou em cheio ao referir-se, no seu diário, à selvageria de Suzanne. Nenhum dos seus colegas homens de Tropiques vai tão longe na crítica e no desprezo insolente. Ela desmonta, sem nenhuma condescendência, os lugares-comuns da poesia lírica de língua francesa sobre as ilhas exóticas, paraísos sonhados. Até mesmo os clássicos amados pelos “professores coloniais, pobres patetas”: os parnasianos Leconte de l’Isle e José Maria Hérédia, ambos nascidos em ilhas [28] e ainda Francis Jammes, [29] cuja morte é bastante recente. No final, Suzanne encontra o fecho que ficará em todas as memórias e fará descendência: “A poesia da Martinica será canibal ou não será”.

 

2.5. “Malestar de uma civilização”, in Tropiques V (abril de 1942)

No quinto número, ou seja, no número seguinte, três meses depois, René Ménil, num artigo intitulado “Deixai passar a poesia…”, escreve literalmente: “A poesia da Martinica será viril. A poesia da Martinica será canibal. Ou não será”, o que constitui claramente uma citação de Suzanne, tirada do número anterior, sem indicação de fonte ou autor. Apenas a pontuação estabelece uma diferença.

Suzanne, no mesmo número V, volta à teoria e retoma a noção do homem-planta de Frobenius, revisita ainda o problema da literatura oral (os críticos haitianos diriam da “oralitura”), explica o trágico erro coletivo sobre a crença introjectada na superioridade dos colonos/colonizadores que faz surgir, no colonizado, a tentação da “pseudomorfose” (a palavra aparece primeiramente no Cahier) e aborda enfim a questão da paisagem. Deste ponto de vista, ela articula análise marxista e anuncia a problemática da paisagem. Suzanne explora ainda a identidade secreta, na Martinica, entre o homem e a planta: “é exaltante imaginar nessas terras tropicais, entregues finalmente à sua verdade interna, o acordo durável e profundo do homem e do solo. Sob o signo da planta”.

 

2.6. “1943: o Surrealismo e nós”, in Tropiques VIII-IX (outubro de 1943)

 No nº duplo anterior de Tropiques VI-VII, de fevereiro do mesmo ano, Suzanne não publica nada. Ela sai de um longo período de doença.

Em outubro do mesmo ano, o seu sexto texto aparece, precedido por uma longa epígrafe tirada do poema “Batouque”, outra citação explícita de uma obra, ainda em gestação, do seu marido. Trata-se uma vez mais de um texto particularmente móvel e excepcionalmente opaco, do qual o leitor poderá ter uma leitura em livro já publicado. [30]

Guardemos, no entanto, a imagem final da epígrafe, tal como se apresenta no segundo semestre de 1943 e da qual propomos uma tradução em português:

 

Liberdade meu único pirata, água do ano novo minha única sede,

Amor, minha única sampana,

Mergulharemos nossos dedos de riso e de cabaça d’água

Entre os dentes gelados da bela adormecida no bosque.

 

Chamamos a atenção, neste verdadeiro palimpsesto, para o desvio que Suzanne provoca, na reescritura já anteriormente feita pelo seu marido, do conto infantil da bela adormecida. Numa versão outra, agora exaltante, Suzanne propõe a identificação Bela = Surrealismo/Liberdade. No caso, evidentemente, Bela acorda da sua catalepsia.

Sua primeira frase é reveladora: “Muitos acreditaram que o Surrealismo estava morto. Muitos escreveram isso…” A lealdade de Suzanne e da sua adesão em relação a Breton e ao Surrealismo visto como meio e caminho para alcançar a Liberdade, parecem totais.

No final do artigo, Suzanne aborda a situação concreta dos negros no mundo em guerra e na Martinica recém-saída da Dissidência. Leia-se a passagem de dois parágrafos que começa “Milhões de mãos negras…” e termina “… as nossas insólitas comunhões”. Note-se sucessivamente:

a) o ultrapassar das “sórdidas antinomias”, o que corresponde ao ultrapassar de toda distinção étnica à partida, tema presente igualmente no Cahier;

b) a presença dos temas da água [31] e do fogo [32] remetendo ao trabalho do ferreiro mítico, característico do Rei-ferreiro dos bantos e

c) a evocação do “arma cortante de aço” (tranchant d’acier), metonímia da figura do guerreiro “homem valente” que cinge a sua espada, ou seja, o primeiro texto de Suzanne em Tropiques I, apelando, uma vez mais, ao homem “hamítico” que se articularia com o tipo “etíope”, de profunda integração no ciclo da natureza.

A frase final, muitas vezes citada – “Surréalisme, corde raide de notre espoir” – tem quase a tonalidade de uma declaração de fé: corda e rígida (ou esticada) evocam uma situação tensa e perigosa, em que a imagem do funâmbulo que dança aparece claramente. O que é o funâmbulo? Aquele que se lança no ar sobre um fio estreito e perigoso unindo dois pontos separados.

 

2.7. “A Grande camuflagem”, in Tropiques XIII-XIV (maio de 1945)

Sem indicação de data, na verdade maio de 1945, o ensaio, o mais longo texto conhecido de Suzanne, fecha o último número de Tropiques.

O texto é uma verdadeira diábase não apenas do Cahier (Diário de um retorno ao país natal), mas igualmente do poema publicado no primeiro número de Tropiques, “Os puros sangues” (Les Pur-sang, no original, ainda não traduzido para o português), sugerindo ainda, de forma elíptica e discreta, a “grande cena primitiva” que dará nascimento ao poema “Batouque”. Aqui, Suzanne evoca o arco das Antilhas em geral – Haiti, Porto Rico, Cuba, Martinica etc. – anunciando já uma poética do espaço/paisagem que será a de Edouard Glissant, muitos anos mais tarde.

Escrito logo depois do retorno do casal de Haiti, [33] o texto constitui uma síntese espantosa tanto do ponto de vista poético como analítico e não só das Antilhas como das Américas em geral. O ensaio estabelece ainda relações intertextuais complexas com a produção do seu marido, em particular com os longos poemas que lhe são mais ou menos contemporâneos: as duas versões do Cahier dos anos 40 (Brentano’s e Bordas, ambas publicadas em 1947, em duas cidades diferentes, Nova York e Paris, com três meses de intervalo, em janeiro e março), [34] mas igualmente com os poemas mais tarde publicados, por Seuil, no volume Les Armes miraculeuses: “Le Grand Midi”, “Les pur-sang” e sobretudo “Batouque”. [35]

Vejamos inicialmente o seu título, meio enigmático, “A grande camuflagem”: ligado ao clima da guerra, que continua do outro lado do Atlântico, o leitor só encontrará a explicação no último parágrafo onde se fala do “grande jogo de esconde-esconde.” Uma vez mais, o leitor, como Édipo, [36] está diante de um enigma que deve decifrar. A beleza das Antilhas, grande sedutora, impede de ver e ouvir, encanta o viajante mas o engana.

O último ensaio de Suzanne, extremamente poético, abre-se “à altura do gavião”: [37] identificando-se com o olhar de uma grande ave de rapina sobrevoando as ilhas, Suzanne retoma por cinco vezes “há” (il y a) justapondo imagens do Haiti e da Martinica natal. No final da descrição, literalmente a voo de pássaro, o leitor confronta-se uma cena terrível: um cavalo morre fulminado pelo raio no planalto de Hinche [38] e o cavaleiro, depois dessa exibição da demência da natureza, “contempla e pensa nas outras ilhas”. Por detrás do pensador solitário que medita sobre o cadáver do animal morto pelo raio, se esconde sem dúvida nenhuma a imagem ideal do poeta.

No parágrafo seguinte, um ciclone põe-se a rodar pelo mar das Caraíbas e “com a sua bela cauda varre ritmadamente o semicírculo das Antilhas”. Todos os leitores aí reconhecem a descrição inicial do Cahier. O mar incha. O ciclone caminha de Porto Rico ao Sudeste do Haiti, continuando a caminho da Flórida. Depois da tempestade, vem o sol ardente. E as cigarras do Haiti cantam até a morte. As ilhas, vistas de um avião da Pan American Airways revelam então a “sua verdadeira dimensão de pequenas conchas.” A descrição joga com o grande e o minúsculo, o mítico e o banal, o telúrico e a conchinha.

A introdução está terminada. Segue-se a recordação pessoal da adolescente Suzanne Roussi que emprega, pela primeira vez, o pronome eu. Quinze anos atrás, a jovem teve a revelação da beleza das Antilhas, do flanco leste da montanha Pelée, o grande vulcão da Martinica. [39]

Assim, Aimé e Suzanne, ambos, no verão de 1944, retomam consciência da “intolerável beleza” das ilhas sem conhecerem nem explicitarem ainda a sua função oculta.

Suzanne faz então uma viragem abrupta: depois de 2 páginas sobre as ilhas, vistas e imaginadas do alto em justaposição, seu olhar ganha uma “lucidez total”: a trama dos desejos e sonhos não realizados criou uma armadilha para as Antilhas e a América, o que não só é muito bem observado como, de certa forma, totalmente novo. O Novo Mundo – ou seja o continente inteiro denominado América que se estende no sentido dos meridianos do extremo Norte ao extremo Sul – nasceu da Europa, sob, segundo e contra o olhar do Velho Mundo. Uma frase é fundamental na análise sintética:

 

Há três séculos que a aventura colonial continua – as guerras de Independência são apenas um episódio – e os povos americanos cujo comportamento em relação à Europa permanece muitas vezes infantil e romântico, não se libertaram ainda do domínio do velho continente.

 

Escrita em 1945, o comentário nos aparece gritantemente verdadeiro. Mudemos por um instante o numeral e, no lugar de três, ponhamos quatro séculos e a análise vale para a América toda, do Norte ao Sul, a América dita latina e o Brasil aí entrando sem dificuldade.

No parágrafo seguinte, Suzanne volta às ilhas francesas e faz o inventário de duas classes opostas da sociedade crioula da Martinica: os békés (a aristocracia “branca” embora a palavra béké não seja citada) e o sub-proletariado da usina ou do banguê.

A descrição dos békés na Metrópole é cruel e quase se ouvem a voz e o estilo de Frantz Fanon. [40] Os békés estariam prontos para todas as traições se os Americanos do Norte não duvidassem da pureza do seu sangue. Quanto ao sub-proletariado negro, este continua a viver miseravelmente e o espetáculo da cidadezinhas coloniais antilhanas dá “náuseas”. E Suzanne retorna ao Leitmotiv da beleza das ilhas.


A vidente – pois se trata de um texto de vidente – ouve agora vozes na “sinfonia caribenha” e a imagem dos puros sangue impacientes (saídos do poema, ainda não publicado, em 1945, do seu marido) surgem naturalmente, à beira da savana de sal. O leitor percebe enfim a articulação simbólica com o cavalo fulminado pelo raio no início do texto.

Suzanne apresenta, em seguida, os diferentes tipos humanos que povoam as Antilhas francesas: os chamados metropolitanos (os “métros”), o pequeno-burguês de cor, os negrinhos doidos por carros de luxo e os camponeses vivendo em pequenas vilas de antigos libertos. Seus exemplos serão sempre apresentados como grupo, no plural, com exceção do burguês de cor:

a) os “funcionários metropolitanos” [41] nunca adaptados a essas “velhas terras francesas” de além-mar, para os quais levanta-se o problema do “herdeiro antilhano que grita ou não grita ‘meu pai”; [42]

b) o mulato antilhano, descrito cruelmente pela autora, “bisneto de um colono e de uma negra escrava”, com a “sua dupla força e sua dupla ferocidade” sempre em equilíbrio instável;

c) os negrinhos fascinados pelo automóvel de luxo e que se transformarão em operários autodidatas, fonte provável de Revolução e

d) os camponeses dos burgos que trabalham a terra de outrem mas se pensam donos/filhos da terra e permanecem sensíveis ainda ao apelo noturno dos tambores. [43]

 

O seu grito [o dos tambores] clama em voz rouca e larga que a África está lá, presente, à espera, imensamente virgem apesar da colonização, tormentosa, devoradora de brancos.

 

Nesta frase final, lida integralmente no interior do seu parágrafo – que aconselhamos reler com atenção – encontra-se talvez a explicação do misterioso dançarino wolof que dança na ponta do mastro no fim do poema “Batouque”, de Césaire. É a África, invisível, mas presente, presença subterrânea e devoradora de brancos, ela também canibal.

Vejamos, por um instante, os quatro grupos:

a) as pessoas do primeiro grupo, não pesam nem decidem, estão sempre prontas, malas feitas, a voltarem para a França ao menor problema;

b) o segundo grupo, duplamente forte e feroz, seria, segundo Suzanne, o adversário por excelência a combater;

c) os operários autodidatas ligam-se à mudança possível e finalmente

d) os camponeses mantêm o elo forte e essencial, embora inconsciente, com a África.

Restam-nos apenas os dois parágrafos do final do texto a percorrer. O penúltimo parágrafo sobre a floresta de Absalão, evoca poeticamente o passeio iniciático feito em 1941 pelos “nativos” da Martinica (o casal Césaire juntamente com René Ménil e Gratiant), em companhia daqueles que acabavam de chegar pelo barco Capitaine Paul Lemerle a Fort-de-France: os viajantes André e Jacqueline Breton, Wifredo Lam e Helena Holtzer, André Masson. Depois dos encantos da floresta (frescor e rumores, vistas e odores), os visitantes deveriam aceder “às fomes, aos ódios, à ferocidade queimando no âmago das colinas.”

O último parágrafo traz a solução ao enigma inicial, explicando o título A grande camuflagem: nas Antilhas, a beleza da paisagem e da terra é um jogo de esconde-esconde que tem sucesso quando os viajantes e habitantes não percebem a outra face, a verdadeira, desse mundo miserável e trágico, doloroso e cruel. Incapazes de compreender, os homens guardam então os seus olhos “indecifradores”: o neologismo, que aparece pela primeira vez na versão de Brentano’s, faz forçosamente alusão ao mito de Édipo. [44] Neste caso, a um Édipo que permanece na escuridão do engano e da ignorância. É preciso decifrar o enigma para ter a vida salva.

Resumamos: o jogo perverso de esconde-esconde baralha as vozes que se tornam inaudíveis e cegam os espectadores de passagem, ignorantes do drama secreto das Antilhas porque estão unicamente fascinados pela sua beleza. Silêncio e cegueira percebidos só por aqueles que sabem ver e podem escutar.

 

Pequena conclusão provisória: Suzanne Césaire, diábase.

Nas literaturas clássicas, usam-se dois termos de origem grega, que se articulam para descrever viagens realizadas por heróis a outros mundos e espaços: anábase e catábase. A primeira supõe o remontar às origens longínquas e a outra, a descida perigosa ao mundo inferior, subterrâneo ou infernal. Leitor de latim e grego, Césaire emprega, num dos seus poemas finais, uma terceira palavra, criação sua, com significado especial: diábase, ou seja, o movimento de passar através do espaço e do tempo, e dos outros.

Relendo de um fôlego os sete textos assinados por Suzanne Roussi, tornada Suzanne Césaire pelo casamento, publicados em apenas 4 anos, entre 1941-1945, o leitor não pode ignorar nem a força nem o brilho da sua inteligência nem a qualidade da sua prosa ao mesmo tempo crítica e poética, provocadora e profética, analítica e expressionista. No grupo de Tropiques, ela é a que atravessa as obras do seu marido e dos seus companheiros, e também a de Breton. Suzanne os dialectiza, os interpela pelo seu rigor e lhes fornece fórmulas que os marcam e que, por vezes, eles retomam sem indicarem, aliás, a fonte. Ou seja, a autora. Com e ao lado de René Ménil, ela estabelece as bases teóricas de uma revista-laboratório coletiva. É Suzanne e não seu marido que, em 1943, assegura ao chefe de fila do Surrealismo, em nome do grupo, a sua adesão e fidelidade coletivas ao movimento.

Vimos, muito de passagem como Suzanne deixou a sua marca não só sobre o poema Diário de um retorno ao país natal [45] (como em outros poemas da primeira fase de Césaire, aliás), marca que se pode entrever por leituras cruzadas e o estudo da mobilidade do poema, com seus acréscimos e modificações inúmeras até às terceiras provas da edição dita definitiva, de 1956.

Musa inspiradora, analista lúcida e inteligente, feroz e sedutora, autora de textos teóricos e poéticos que anunciam e prefiguram o que seus colegas homens retomam ou desenvolvem mais tarde, Suzanne Césaire é um verdadeiro motor em Tropiques. Só podemos lastimar o seu silêncio depois de 1945, ocupada pelas sucessivas maternidades e pela família numerosa, e pelo seu trabalho de professora de liceu, e também o desaparecimento – ao que parece irremediável – da sua peça teatral.

Quando Césaire, na sua velhice, a identifica com a “Mulher adormecida” na ponta do Diamant, ela se transforma em rochedo, como outrora o Adamastor, e como tal, para o poeta, torna-se um símbolo poderoso da sua Martinica natal. Na ilha que tem forma de salamandra, [46] ela é o rochedo da Bela adormecida no horizonte marinho dos seus conterrâneos. É a sua última metamorfose. Despertá-la é preciso e tarefa de todos.

 

NOTAS

1. Atribuiu-se a de Gaulle a frase, “entre l’Amérique et l’Europe, je ne vois que poussière” (= Entre a América e a Europa, só vejo poeira).

2. São 22 poemas: “Stèle obsidienne pour Alioune Diop”; “Passage”; “Références”; “Suprême masque”; “Vertu des lucioles”; “Ruminations”; “Parole due”; “Parcours”; “Dyali”; “Espace-rapace”; “Fantasmes”; “Dérisoire”; “Cratères”; “Conciliabules”; “Paroles d’îles”; “Comme un malentendu de salut”; “Rumination de caldeiras”; “À travers…”; “Rocher de la femme endormie”; “Faveur des alizés”; “Pour un cinquantenaire”; “Configurations”.

3. Ibid.

4. Oceano aberto porque a Martinica, que, vista do alto, tem forma de uma “salamandra”, é banhada por dois mares diferentes: a sua costa ocidental dá para o mar interno das Caraíbas, a sua costa sul e oriental dá para o Atlântico selvagem.

5. Outro exemplo da palavra caret no volume Soleil cou coupé (de 1948): “va caret couché dur le dos par la main perfide du sable” (in “Dévoreur”).

6. Vulcões peleanos com o vulcão da Martinica (La Pelée) que explode e destrói, vulcões maternos como o vulcão da Guadalupe (La Soufrière) cuja lava escorre e fertiliza.

7. Talvez mesmo uma declaração de filiação intelectual jogando com a semelhança do seu próprio nome (Césaire) e um parto sangrento (césarienne).

8. O sintagma “exasperação de secessão” fecha a segunda estrofe do poema, como uma espécie de refrão.

9. O poema é analisado no capítulo III, intitulado “Le sucre du mot Brésil au fond du marécage”, do nosso Césaire hors frontières. Poétique, intertextualité et litt´retaure comparée. Königshausen & Neumann, 2015.

10. Albertina desaparecida e Albertina reencontrada, antes do último volume O Tempo reencontrado.

11. Vejam-se, entre outros, os retratos imaginários de Rimbaud por Picasso e o de Lautréamont, aos 19 anos, por Salvador Dalí.

12. Note-se que mais de 30 anos separam as duas publicações.

13. Aimé e Suzanne Césaire são pais de família numerosa: seis filhos (quatro rapazes e duas meninas).

14. Na verdade, o jogo “belo como…”, retoma uma passagem de Lautréamont (Chants de Maldoror, Canto VI).

15. Nas Antilhas, diz-se chabine: é uma mulata clara, de traços finos, de pele cinza claro, muitas vezes de olhos verdes. A “chabine” é sempre Suzanne Césaire, tanto em Breton como em Ménil.

16. In VÉRON, Kora. Aimé Césaire. Seuil, 2021.

17. Há dois glossários mais conhecidos: o de René Hénane, Glossaire des termes rares dans l’oeuvre d’Aimé Césaire. Place, 2004 e o de Papa Samba Diop, La poésie d’Aimé Césaire. Propositions de lecture accompagnées d’un lexique de l’œuvre.Champion, 2010.

18. Um dos volumes de Saint-John Perse, outro poeta antilhano, intitula-se Anabase, de 1924, que retoma o título a Xenofonte.

19. Sobre o conjunto de poemas dedicado a Wifredo Lam, ler: “Regards croisés sur la poétique de deux créateurs caribéens: Aimé Césaire et Wifredo Lam”, in Présence Africaine, nº 184, 2º semestre 2011, e ainda “Tombeau du peintre: Lam”, in Mémoire et métamorphose. Aimé Césaire entre l’oral et l’écrit. Königshausen& Neumann, 2010.

20. O termo foi formado a partir de Ham, filho mais jovem de Noé. O seu nome é igualmente grafado como Cam. Adotamos Ham, seguindo a lição de Frobenius, que opõe, na sua obra, etíope a hamítico (sic). Enfim, comentários de exegetas rabínicos indicam que a tradução Cam, a mais comum, gerando “camítico” e o preconceito contra os de pele “queimada”, não se justificaria do ponto de vista etimológico. Enfim, a grafia Cam justificaria o preconceito.

21. O número de citações, em particular, do Antigo Testamento, em toda a obra de Césaire, é bastante elevado. O Antigo Testamento, segundo testemunho do próprio autor, é altamente poético. Ver nossas entrevistas com Césaire: “Deux entretiens avec Aimé Césaire”, in África. Revista do Centro de Estudos Africanos da USP, nº 6, 1983. São Paulo, USP.

22. Alain, do seu nome verdadeiro Emile-Auguste Chartier (1868-1951), ainda em vida no momento da publicação de Tropiques, é um filosofo francês, jornalista e professor de filosofia. É racionalista, individualista e crítico: corresponde ao modelo da intelligentsia francesa da primeira metade do século XX. No início da II Guerra assinou uma declaração pacifista, considerando a colaboração “pétainiste” um mal menor para o país vencido e ocupado parcialmente. O censor da revista Tropiques não percebeu que o artigo tinha um outro alcance, mais subversivo.

23. Mudar bruscamente de direção é uma das características do texto de Suzanne: a técnica comprovaria a sua autoria em resenhas não-assinadas, de Tropiques.

24. A mobilidade do texto de Césaire foi analisada em particular por Ernstpeter Ruhe.

25. Se o leitor estiver interessado na demonstração, pode consultá-la, na íntegra, no nosso Vampire liminaire: de Lautréamont aux Césaire. Konisgshausen& Neumann, 2019.

26. Chabine, nas Antilhas francesas, é um tipo de mulata de pele clara e de olhos verdes.

27. Em francês, roussi significa “levemente queimado pelo fogo”, “chamuscado”. Do verbo roussir, “avermelhar”. Desse ponto de vista, ironicamente, Suzanne seria uma “camítica” no sentido tradicional e pejorativo do termo, por debaixo da sua pele clara.

28. Leconte de l’Isle, poeta aristocrata, nascido na ilha da Reunião, outra colônia francesa no Oceano Índico (1818-Yvelines, 1894) e José Maria Hérédia, descendente de Conquistadores, nascido em Cuba e naturalizado francês (1842-1905). São os dois clássicos por excelência do Parnasianismo francês no século XIX.

29. Francis Jammes (1868-1938) é essencialmente poeta da natureza. Em 1941, quando Suzanne escreve o seu artigo, a morte Jammes é bastante recente, ocorrida há três anos.

30. Ver “Le sucre du mot Brésil au fond du marécage”, in Césaire hors frontières. Poérique, intertextualité et littérature comparée. Würzburg, Königshausen & Neumann, 2015, p. 199 – 284.

31. “Mahoulis”, no texto original, são os feiticeiros fazedores da chuva na África ancestral. Aliás, a mesma imagem reaparece em Ménil e, também, em Senghor.

32. O título escolhido por Daniel Maximin para sua homenagem teatral a Suzanne Césaire junta os dois semas da água (fonte) e do fogo (sol): “Suzanne Césaire, fontaine solaire.”

33. O casal Césaire chega a Port-au-Prince a 17 de maio de 1944. Suzanne permanece no Haiti, com o marido, até final de outubro: cinco meses, portanto. Césaire prolonga a sua estadia até meados de dezembro (sete meses). Seu trabalho: ensinar na Universidade de Port-au-Prince e fazer conferências. René Depestre (Jacmel, 29 de agosto de 1926), então jovem estudante de 19 anos, assiste às conferências. Depestre, que lê perfeitamente português, além do espanhol, por ter passado um dos seus exílios no Brasil, tem dois ensaios importantes sobre as Antilhas: Bonjour et adieu à la négritude (Laffont, 1980) e Métier à métisser (Stock, 1999).

34. Sabe-se, hoje, através do estudo dos manuscritos que a edição Brentano’s, saída em janeiro de 1947, estava pronta desde 1943, a versão sendo, ao mesmo tempo, a mais diferente e a mais surrealista de todas.

35. Nenhum desses poemas foi traduzido para o português.

36. Bom número de poemas de Césaire têm, no seu centro, um enigma, cabendo ao leitor decifrá-lo. Alguns poemas, inclusive, mais curtos, no final da sua produção, assemelham-se a “adivinhações”.

37. No original, “menfenil” é uma pequena ave de rapina típica das ilhas. Também o Cahier começa com a descrição a voo de pássaro, da Martinica, num longo movimento do alto para baixo, das nuvens para o solo, do geral para o particular.

38. Hinche, comuna haitiana, cerca de 30 km da fronteira com a República Dominicana. A cidade de Hinche, no planalto central, fundada em 1503 pelos espanhóis, foi anexada por Toussaint Louverture ao território haitiano durante as guerras de Independência. Tornou-se um posto avançado de Haiti.

39. Tema corrente nas Antilhas francesas, em que todos são filhos do vulcão: filhos da montanha destruidora, a Pelée, na Martinica ou filhos da Soufrière materna, em Guadalupe. Ver o ensaio de Daniel Maximin: Aimé Césaire, frère volcan (Seuil, 2013).

40. Fanon, nascido a 20 de julho de 1925, faz 20 anos neste ano de 1945. Peau noire, masques blancs será publicado, seis anos mais tarde, em 1951, por Seuil.

41. Hoje, esses funcionários são ainda chamados “métros”.

42. Note-se, de novo, a questão do Édipo coletivo.

43. Tema abordado de leve: o que Suzanne considera o “apelo noturno dos tambores” corresponde à permanência, aliás bastante relativa, das crenças ancestrais nas ilhas francesas, por demais exíguas para tal. Não há espaço para um quilombismo organizado nem para o surgimento de uma religião popular, tal como sucedeu nas Antilhas maiores, Cuba (santería) ou Haiti (vodu).

44. Para um estudo da progressiva ocultação do mito de Édipo no Cahier, consultar o nosso Mémoire et métamorphose. Aimé Césaire entre l’oral et l’écrit. Würzburg, Königshausen & Neumann, 2010. Mas ocultar não é diminuir a sua força, muito pelo contrário: é torná-la mais insidiosa por não ser explicitada.

45. Seria fácil mostrar que o Diário, de Césaire, incorpora, ao mesmo tempo, uma anábase e uma catábase. Por outras palavras, um retorno inicial ao passado e à África ancestral. O poema termina, aliás, com o anúncio de um outro mergulhar nas profundezas: “e o grande buraco negro onde eu queria me afogar na outra lua/ é lá que quero pescar agora a língua maléfica da noite na sua imóvel verrição!”

46. Na mitologia grega, as salamandras representavam o elemento fogo porque, supostamente, nasciam dele, eram capazes de viver nas chamas e se regeneravam pelo fogo. 

 

 


LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Romanista de formação, ensaísta e tradutora, publica em francês e/ou português sobre literaturas francófonas, literatura comparada, iconografia e iconologia. O nº 115 da Agulha Revista de Cultura, de julho de 2018, publicou uma edição especial sobre o seu trabalho, sob o titulo “Entre o Mediterrâneo e as Caraíbas”. Últimas publicações: Vampire liminaire: de Lautréamont aux Césaire. Königshausen & Neumann, 2019, e os posfácios às traduções de Suzanne Césaire: Escritos de Dissidência (Papéis selvagens, 2021) e Sony Labou Tansi. O ato de respirar (Cultura e Barbárie, 2021).

 

 


LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensayista, y traductora. Junto a Sergio Lima y Paulo Paranaguá organizó la 13ª Expo Surrealista Internacional en São Paulo (1967). En esa época realizó dos viajes a París y tuvo un encuentro entrañable con algunos integrantes del grupo surrealista francés. Ha publicado los poemarios Cometas (1977), Poemas plásticos (1980), y A mobília violenta do ar (2020). Participó en la expo surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Reside en São Paulo.


 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 06

Número 205 | março de 2022

Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)

Tradução: Floriano Martins

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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