Uma nova introdução
Os sete textos
escritos por Suzanne Césaire para Tropiques,
durante a II Guerra Mundial, numa periferia da América, [1] reunidos por Daniel Maximin (Seuil, 2009), acabam de ser publicados,
em tradução para o português, sob o título A
Grande camuflagem. Escritos de Dissidência, em setembro deste ano, pela editora
Papéis selvagens (UFRJ). O volume recentíssimo, com tradução de Júlio Castanón,
inclui ainda um posfácio, assinado por mim, apresentando Suzanne Césaire e a mítica
revista-laboratório da Martinica ao público brasileiro.
Para
não repetir simplesmente, agora na Agulha
Revista de Cultura, o que vem de sair, retoma-se aqui a figura de Suzanne Césaire
sob outra ótica. Ou seja: a partir de um poema de fim de vida de Aimé Césaire. Os
interessados poderão ler os textos de Suzanne integralmente, consultando a bela
edição de Papéis Selvagens.
Quarenta
anos mais tarde, o poeta Aimé Césaire revisita a sua juventude e a exaltante experiência
coletiva vivida durante os anos 1941-1945, uma vez mais, sob a luz “diferente” de
Lautréamont e do surrealismo. O poema em questão, intitulado “Le rocher de la femme
endormie”, foi publicado pela primeira vez numa revista pouco conhecida, Poésie, em 1989, e integra o volume inédito
Comme un malentendu de salut… [2] publicado em Aimé Césaire, La Poésie (Seuil, 1994), edição estabelecida por Daniel
Maximin e Gilles Carpentier.
Reproduzimos
abaixo o poema com o estranho título duplo (o segundo aparecendo em itálico), sem
nenhum sinal de pontuação (nem mesmo o ponto final), acompanhado por uma proposta
de tradução em português. Suzanne Césaire morreu em 1966, aos 59 anos, vítima de
um tumor no cérebro e ela, que se fora voluntariamente em abril de 1963, retornou
à casa da família para morrer entre os seus.
Rocher de la femme endormie
ou
Belle comme l’exaspération de la sécession
Rescapée rescapée
C’est toi la retombée
D’un festin de volcans
D’un tourbillon de lucioles
D’une fusée de fleurs d’une fureur de rêves
Très pure loin de toute cette jungle
La traîne de tes cheveux ravivée
Jusqu’au fond la barque solaire
Exaspération de la sécession
De temps en temps à travers la brume de sable
Qui s’éclaircit
A travers les jeux cicatriciels du ciel
Je la vois qui bat des paupières
Histoire de m’avertir qu’elle comprend mes signaux
Qui sont d’ailleurs en détresse des chutes de soleil
Très ancien
Les siens je crois bien être le seul à les capter encore
Plus d’une fois j’ai enhardi la vague
À franchir la limite qui nous separe toujours
Mais le dragon gouverne le cap de cette eau interdite
Même si c’est souvent un inoffensif caret-plongeur
Qu’il survient respirer à la surface maudite
Alors quel oiseau sacrificiel aujourd’hui
Te dépêcher
Rescapée rescapée
Toi exil mien et reine des décombres
Fantôme toujours inapte à parfaire son royaume [3]
Césaire,
neste poema, recria a paisagem de uma localidade ao Sul da Martinica chamada Le
Diamant. Aí, uma grande pedra, a Sudoeste da ilha, barra parcialmente a visão do
Oceano aberto, [4] evocada por um espectador-amante
que retorna, vezes sem conta, à contemplação do rochedo denominado “A Mulher adormecida”.
O
poema junta expressões muito coloquiais (“Histoire de m’avertir…, “d’ailleurs”,
por exemplo) à evocação de vários e diferentes mitos da Antiguidade clássica (Egito
antigo ou Grécia clássica) – inclusive o mito de Orfeu, prestes a descer ao reino
de Hades, em busca de Eurídice perdida, e o do Adamastor transformado em pedra que
chora, perdidamente apaixonado por uma ninfa fugidia –, jogando ainda, com ironia
e humor, com a miniaturização do monstro, guardião infernal, sob a forma de uma
tartaruga marinha. [5]
Leia-se
abaixo em um ensaio de tradução, a versão em português, seguida de algumas breves
notas, talvez necessárias, para leitores brasileiros:
Rochedo da mulher adormecida
ou
Bela como a exasperação
da secessão
Resgatada resgatada
És a recaída
De um festim de vulcões
De um turbilhão de pirilampos
De um jorro de flores
de um furor de sonhos
Muito pura longe de
toda esta selva
A cauda rediviva dos
teus cabelos
Até no fundo da barca
solar
Exasperação da secessão
De tempos em tempos
através da bruma da areia
Que se ilumina
Através dos jogos cicatriciais
do céu
Vejo-a bater as pálpebras
Para me avisar que percebe
os meus sinais
Aliás em perigo por
causa das quedas do sol
Muito antigo
Os seus sinais creio
que sou o único a captá-los ainda
Mais de uma vez encorajei
a onda
A ultrapassar o limite
que nos separa para sempre
Mas o dragão governa
o cabo desta água proibida
Mesmo se é muita vez
sob a forma de uma inofensiva tartaruga marinha
Que acontece vir respirar
à superfície maldita
Então que pássaro sacrificial
hoje
Enviar-te
Resgatada resgatada
Tu exílio meu e rainha
dos destroços
Fantasma sempre inapto
a refazer o reino (Tradução de Lilian Pestre de Almeida)
O
poema levanta evidentemente inúmeros problemas de leitura. Como sempre, no caso
dos poemas de Césaire, criador atento à oralidade coloquial e também particularmente
erudito, cujos textos são, na maioria das vezes, não só “móveis” (o conceito é de
Ernstpeter Ruhe), apresentando diferentes e múltiplas versões, como ainda constituem
verdadeiros palimpsestos que sobrepõem camadas e camadas de significação que se
imbricam umas nas outras.
Vários
mitos se articulam, no poema, de forma subliminar: o da barca fúnebre que leva a
morta com a sua longa cabeleira ainda viva, para o além; o da mulher amada que se
transforma em pedra fria e inerte; o do rochedo, no final da praia de areia, que
ainda dá sinais imperceptíveis de vida secreta; a secessão, não de um país em guerra
fratricida, mas a secessão de um casal, que vivera muito tempo em relação fusional,
e que se desfez/quebrou, antes da morte; a queda do sol, a cada noite, no Ocidente
para ressurgir, no Oriente, na madrugada seguinte; o dragão que guarda e impede
a passagem do viajante/peregrino, escondido sob a metamorfose banal de uma tartaruga
marinha; o pássaro como mensageiro ao amor perdido e a identificação do eu despedaçado do narrador com a ausente (“exílio meu e rainha dos destroços”). Note-se
sobretudo a genial e audaciosa inversão da última estrofe: quem é o fantasma do
último verso “sempre inapto a refazer o reino” perdido para sempre, senão aquele
que segue ainda vivo, o próprio poeta-narrador? Não é a primeira vez que o poeta
se apresenta como fantasma: isso ocorre, sobretudo, em alguns dos seus últimos poemas.
É
de notar-se os inúmeros jogos intra- e intertextuais, com a literatura clássica
e com a literatura do próprio Césaire. A paisagem é a das ilhas antilhanas com seus
vulcões peleanos ou maternos, [6] as
suas duas faces voltadas para o mar, ora para o largo atlântico, ora para o mediterrâneo
interno, sua fauna sobretudo marinha. E o subtítulo em itálico é uma nova variação
de uma das proposições de Césaire ao apresentar o Comte de Lautréamont aos seus
conterrâneos, no longínquo ano de 1943.
Explicando
melhor: no número duplo VI-VII de Tropiques,
datado de fevereiro de 1943, Césaire, diretor da revista, em 19 curtos parágrafos,
apresenta Isidore Ducasse aos leitores da Martinica, retomando o jogo da comparação
inédita e surpreendente. O exemplo inicial está no próprio título: “A poesia de
Lautréamont, bela como um decreto de expropriação”. E o poeta cria, a seguir, frases
de exaltação ao montevideano que se tornaram modelos de comparação inédita: “Príncipe
severo das contorções”, “Príncipe fulgurante das cesarianas”, [7] “Deu nascimento, como seu fruto natural,
à lógica do absurdo e ao grotesco da lógica”, “O primeiro a compreender a inquietante
demiúrgica inversão da lógica.”
O
título do artigo de 1943, “Bela como um decreto de expropriação” joga, para o leitor
atento, com o título de agora, “Bela como uma exasperação de secessão”. [8]
O tema da bela
adormecida é um dos centros ocultos do poema “Batouque” [9] dos primórdios, que volta agora, de forma bastante elíptica
e alusiva, na poética de Césaire, à espera da morte.
Um outro jogo, ainda mais sutil, se faz,
dirigido aos “happy few”: Proust, no seu
grande ciclo romanesco A la recherche du temps
perdu, tem dois romances intitulados respectivamente Albertine disparue e Albertine
retrouvée,
[10] antes da grande coda barroca de Le temps retrouvé. Césaire evoca, aqui, Suzanne desaparecida, numa perspectiva
mais trágica, a do não-reencontro embora possa contemplar a sua metamorfose em rochedo
à beira-mar. É ele o fantasma vivo que lamenta o seu “exílio”, sem que possa alcançar a regeneração do “reino” antigo. O poeta épico faz aqui um
dos seus mais belos poemas líricos dedicado à “resgatada, resgatada” na sua memória. O rochedo da mulher adormecida
nasce “de um festim de vulcões, de um turbilhão de pirilampos, de um jorro de flores,
de um furor de sonhos.”
1. A musa ou a mulher paisagem
Muita gente, inclusive o poeta Daniel Maximin, seu futuro editor
na Seuil, não chegou a conhecer pessoalmente Suzanne. Foi a edição anastática de
Jean-Michel Place, especialista em reprint,
de 1978, que difundiu as primeiras imagens da mulher de Aimé Césaire pelo grande
público. Até então, o rosto e o aspecto físico de Suzanne eram quase desconhecidos,
assim como, antes, os de Rimbaud ou os de Ducasse-Lautréamont, nos finais do século
XIX, suscitando o aparecimento de retratos “imaginários”. [11]
Muitos celebraram a sedução e beleza
de Suzanne Césaire. Entre a reedição de Tropiques
dirigida por Jacqueline Leiner (1978) e a edição de Seuil por Daniel Maximin (2009),
[12] de vez em quando, encontravam-se
referências esparsas a Suzanne, elogios rasgados de André Breton ou de Michel Leiris,
trechos de cartas trocadas com o ensaísta alemão Janheinz Jahn (1918-1973), poemas
a ela dedicados, sua silhueta esbelta ou seu perfil de escultura “senoufo” entrevista
em pequenas fotos coletivas de amador, feitas em Fort-de-France, Nova York ou Port-au-Prince.
Muitos
reproduzem a frase de Breton sobre Suzanne, “bela como a chama do ponche”. Ina Césaire,
sua quinta (sic) filha, [13] recorda,
num poema, o apelido dado pelos alunos da sua mãe, na França, que a ela se referiam
como “a pantera negra”. René Ménil descreve, em Tropiques, uma visão encantada numa
clareira da floresta de Absalão, através do jogo surrealista do “belo como”: [14] belo como o encontro na floresta antilhana,
no coração de uma clareira iluminada por uma fina luz sangrenta, de um canibal e
de uma mulata [15] de pele cor de cinza.”
Na frase de Ménil, o canibal é Césaire e a mulata de pele clara é Suzanne. Ou seja,
como se diz na Martinica: une chabine. E antes de todos ainda, Senghor numa correspondência
familiar, falava de “uma negra branca” de olhos verdes.
Mas
é a nota de Michel Leiris, no seu diário, depois da guerra, em fevereiro de 1946,
que parece melhor apreendê-la, física e moralmente, num primeiro encontro em que
o etnólogo francês, interessado pela Martinica, convida o casal Césaire para jantar
e a descreve no seu diário, no final da noite:
Mme Césaire tem a pele
dourada e situa-se nos confins mais extremos da fineza e da selvageria; sente-se
prazer em estar diante dela, como diante de uma paisagem maravilhosa que fosse inteligente. [16]
2.
Numa revista-laboratório, a pantera negra
que faz a diábase
O que é exatamente uma diábase? A palavra não se encontra nos
dicionários e os glossários especializados sobre o vocabulário de Césaire [17] não fornecem indicações que permitam a leitura do texto. Mas o neologismo
“diábase” joga com dois termos clássicos: “catábase” e “anábase”. A primeira significa
uma descida ao reino dos Infernos, percurso de vários heróis épicos para encontrar
e ouvir mortos. A segunda, do ponto de vista etimológico, é a ação de subir, de
retornar à fonte, às origens. [18] Daí,
diábase ser o movimento de passar através. Mas através do quê? Cabe ao leitor resolver
o enigma: Suzanne, como mais tarde Exu através do tempo e do espaço, passa através
dos textos de todos os outros colaboradores de Tropiques.
Consideremos, por um instante, “ele”,
o misterioso, o sem nome, que passa através, num dos poemas de Césaire dedicados
a Wifredo Lam, seguido de uma tradução:
passages
(la necessité de la spéciation
n’étant acceptable que dans la mesure
où ele legitime les plus audacieuses transgressions)
passer dit-il
et que dure chaque meurtrissure
passer
(penser est trop rapide)
de tout paysage garder intense la transe
du passage
passer
anabase et diabase
déjà
se dégage du fouillis au loin
tribulation d’un volcan
la halte d’une vive termitière (In
La Poésie)
Ver, abaixo, uma proposta de tradução
em português:
passagens
(a necessidade da especiação
só
aceita na medida
em
que legitima as mais audaciosas transgressões)
passar
diz ele
e
que dure cada contusão
passar
mas
não ultrapassar as memórias vivas
passar
(pensar
é rápido demais)
de
qualquer paisagem guardar intenso o transe
da
passagem
passar
anábase
e diábase
já
se
destaca do fervilhar ao longe
tribulação
de um vulcão
a pausa de um vivo cupinzeiro (Tradução de
Lilian Pestre de Almeida)
Esse
poema que faz parte do “túmulo” de Wifredo Lam, em moi, laminaire… (= eu, laminária…) explica poeticamente a ação paradoxal
de passar através do tempo e do espaço. [19]
Na
produção de Suzanne há três tipos de textos, todos em prosa: os de teoria, os de
crítica feroz e os poéticos. Nada melhor do que percorrê-los sem filtros impostos.
O que faremos aqui é simplesmente apresentar o contexto e sugerir algumas intertextualidades.
Inclusive, boa parte daqueles – ou melhor,
daquelas – que se apresentam, hoje, nas Antilhas, como herdeiras de Suzanne Césaire,
leram-na tardiamente, a posteriori, depois
da publicação em reprint de 1978 ou até
mesmo depois da edição de 2009, de Daniel Maximin. Por outras palavras: descobriram,
pelo menos e na melhor das hipóteses, só a partir dos anos 80, uma antepassada da
qual não tinham feito, provavelmente, qualquer leitura durante os seus anos de formação.
Eis a lista dos sete ensaios publicados
por Suzanne Césaire em Tropiques:
1 “Léo Frobenius et le problème des civilisations”,
in Tropiques I (abril de 1941);
2 “Alain et l’esthétique”, in Tropiques
II (julho de 1941);
3 “André Breton, poète…”, in Tropiques
III (outubro de 1941);
4 “Misère d’une poésie: John Antoine Nau”, in Tropiques IV (janeiro de 1942);
5 “Malaise d’une civilisation”, in Tropiques
V (abril de 1942);
6 “1943: le Surréalisme et nous”, in Tropiques
VIII-IX (outubro de 1943) e
7 “Le Grand camouflage”, in Tropiques
XIII-XIV (maio de 1945)
2.1 “Léo Frobenius e o problema das civilizações”, in Tropiques I (abril de 1941)
Suzanne aborda, de saída, teoria. E anuncia o que aparece, mais
tarde, na obra do seu marido. A distinção entre civilização etíope e hamítica [20] será retomada, dois anos mais tarde, por Aimé Césaire, no Congresso
de Port-au-Prince, no seu texto “Poésie et connaissance” (in Tropiques, nº XII). E a árvore constitui provavelmente o símbolo
mais frequente e importante de toda a sua obra poética, o seu modelo imaginário
de vida.
A segunda forma de Paideuma (a palavra
também aparece em Senghor) corresponderia à civilização do homem-animal, ativo e
combatente, “à conquista do direito de viver pela luta.”
Suzanne analisa ainda a tomada de consciência
desses dois tipos opostos de civilizações graças a uma “súbita apreensão”, espécie
de revelação fulgurante.
O fecho do primeiro ensaio teórico articula-se
com a poesia de Césaire em dois níveis:
a) por um lado, Suzanne cita Césaire [21] e este cita, sem aviso prévio ao leitor, uma passagem de São
Paulo que remete, não só ao tema frequente do Novo Testamento, como ao Antigo Testamento
(Salmos e Jó em particular) sobre o guerreiro que cinge a sua espada, e
b) por outro lado, depois de por em realce
o “etíope”, ligado à planta e ao ciclo da vegetação, Suzanne remete, no final do
seu texto, o seu leitor, à luta, portanto ao homem “hamítico”. No fundo, ela propõe
a articulação da prática etíope à prática “hamítica” para alcançar maior eficácia
na vida social e política.
Enfim, se considerarmos o primeiro poema
de Césaire, neste mesmo número inaugural de Tropiques,
o profundo entendimento do casal se revela claramente. Nas últimas estrofes do poema,
intitulado ainda “Fragmentos de um poema”, o narrador identifica-se, enquanto antilhano,
como um verdadeiro “etíope”. Veja-se em particular a última estrofe do poema, de
que propomos uma tradução em português:
E cresço, como uma planta
sem remorso e sem distorção
para as horas distensas do dia
puro e seguro como uma planta
sem crucificação
para as horas distensas da noite!
O fim! Que tolice!
Meus pés, avançam o verminoso caminhar
Planta!
Meus membros lenhosos transportam estranhas seivas
Planta! Planta!
(in Tropiques , I)
O casal de escritores – Aimé e Suzanne
– apresenta assim, desde o primeiro número de Tropiques, dois textos que se respondem perfeitamente, um teórico e
em prosa (o de Suzanne), o outro, poético (o do seu marido), ela anunciando a necessidade,
também, do “hamítico”, ele identificando-se liricamente com o “etíope”.
2.2. “Alain e a estética”, in Tropiques II (julho de 1941)
O segundo texto de Suzanne, uma vez mais, aborda teoria e crítica.
Aí, a redatora joga um outro jogo, o da citação oculta sob a forma de uma “coda”
barroca que inverte o início do texto, surpreendendo o leitor.
Consideremos o seu texto, no fundo, bastante
astucioso. O artigo cobre cerca de oito páginas e meia. Nas primeiras seis páginas
e meia, Suzanne parece aderir com inteligência e simpatia à visão “clássica” de
Alain,
[22] até ao elogio, inclusive, de Paul Valéry. No final da sua sexta
página, Suzanne muda o tom: “mas deixemos de lado o nosso guia…” e faz o salto,
imprevisto,
[23] para Rimbaud, Lautréamont, Breton.
Note-se, de passagem, que Césaire só
abordará Lautréamont num número mais tardio (Tropiques, nº VI-VII, fevereiro de 1943). Assim, aqui também, Suzanne
antecipa-se a todos os demais colaboradores e anuncia outras referências literárias
posteriores. Ela opõe, aliás, de maneira inesperada, Alain e Breton, a partir de
uma lição de Leonardo da Vinci. Sugiro ao leitor que releia o final da passagem
“Um encontro curioso… até a estranha conclusão: “Em todo o caso, em todas as artes,
o velho horizonte se amplia e recua para além do concebível”.
Qualquer leitor de Césaire reconhece a imagem: trata-se de uma citação
oculta do final do Cahier: “o horizonte se desfaz, recua e se amplia.” Qualquer
um diria que, conhecendo muito bem o poema de Césaire, Suzanne cita-o de memória,
quase sem disso se dar conta. Entretanto, escrevendo em 1941, ela ainda não conhece
esse final do poema porque, muito simplesmente, ele não existe ainda e fará parte
dos acréscimos das edições de Brentano’s (pronta em 1943 e só publicada em janeiro
de 1947, em Nova York) e de Présence Africaine (Paris, 1956).
O conhecimento das diferentes versões
do Cahier, este poema “móvel” [24] entre todos, permite-nos afirmar sem qualquer dúvida que é ele,
o poeta Aimé Césaire, que desenvolve o texto escrito e publicado pela sua mulher
em 1941.
[25] Isso nos faz descobrir que, se Suzanne, nas suas epígrafes ou
conclusões, retoma passagens de poemas de Césaire, este, igualmente, retoma textos
de sua mulher, quer desenvolvendo-os, quer resumindo-os. Aliás, não é o único a
fazê-lo, como se verá a seguir.
2.3. “André Breton, poeta…”, in Tropiques III (outubro de 1941)
O terceiro texto
de Suzanne é uma apresentação da poesia de André Breton, ao mesmo tempo como teórico
do Surrealismo e poeta da felicidade. Breton responde-lhe, no mesmo número, com
um magnífico poema em prosa evocando, ao mesmo tempo, a beleza de Suzanne e das
pequenas “chabines” [26] antilhanas.
Notemos os “semas” ligados ao fogo para evocar/pintar Suzanne: depois do elogio
muito citado “bela como a chama do ponche” e ainda o retrato simbólico “um rosto
de cinza clara e de brasas”, o nome de solteira de Suzanne, Roussi, parece fazer
sentido e ganhar em simbolismo profundo. Um iniciado do candomblé no Brasil ou da
santería em Cuba, diria provavelmente que ela é filha de Iansã, o orixá feminino
iorubá do vento que precede a tempestade, seu sobrenome de solteira, Roussi, [27] desvelando simbolicamente uma filiação
sagrada.
2.4. “Miséria de uma poesia:
John Antoine Nau”, in Tropiques IV (janeiro
de 1942)
O quarto texto
é um ataque de uma ferocidade inédita. Leiris provavelmente acertou em cheio ao
referir-se, no seu diário, à selvageria
de Suzanne. Nenhum dos seus colegas homens de Tropiques vai tão longe na crítica e no desprezo insolente. Ela desmonta,
sem nenhuma condescendência, os lugares-comuns da poesia lírica de língua francesa
sobre as ilhas exóticas, paraísos sonhados. Até mesmo os clássicos amados pelos
“professores coloniais, pobres patetas”: os parnasianos Leconte de l’Isle e José
Maria Hérédia, ambos nascidos em ilhas [28]
e ainda Francis Jammes, [29] cuja morte
é bastante recente. No final, Suzanne encontra o fecho que ficará em todas as memórias
e fará descendência: “A poesia da Martinica será canibal ou não será”.
2.5. “Malestar de uma civilização”,
in Tropiques V (abril de 1942)
No quinto número,
ou seja, no número seguinte, três meses depois, René Ménil, num artigo intitulado
“Deixai passar a poesia…”, escreve literalmente: “A poesia da Martinica será viril.
A poesia da Martinica será canibal. Ou não será”, o que constitui claramente uma
citação de Suzanne, tirada do número anterior, sem indicação de fonte ou autor.
Apenas a pontuação estabelece uma diferença.
Suzanne,
no mesmo número V, volta à teoria e retoma a noção do homem-planta de Frobenius,
revisita ainda o problema da literatura oral (os críticos haitianos diriam da “oralitura”),
explica o trágico erro coletivo sobre a crença introjectada na superioridade dos
colonos/colonizadores que faz surgir, no colonizado, a tentação da “pseudomorfose”
(a palavra aparece primeiramente no Cahier)
e aborda enfim a questão da paisagem. Deste ponto de vista, ela articula análise
marxista e anuncia a problemática da paisagem. Suzanne explora ainda a identidade
secreta, na Martinica, entre o homem e a planta: “é exaltante imaginar nessas terras
tropicais, entregues finalmente à sua verdade interna, o acordo durável e profundo
do homem e do solo. Sob o signo da planta”.
2.6. “1943: o Surrealismo
e nós”, in Tropiques VIII-IX (outubro
de 1943)
No nº duplo anterior de Tropiques VI-VII, de fevereiro do mesmo ano, Suzanne não publica nada.
Ela sai de um longo período de doença.
Em
outubro do mesmo ano, o seu sexto texto aparece, precedido por uma longa epígrafe
tirada do poema “Batouque”, outra citação explícita de uma obra, ainda em gestação,
do seu marido. Trata-se uma vez mais de um texto particularmente móvel e excepcionalmente opaco, do qual o
leitor poderá ter uma leitura em livro já publicado. [30]
Guardemos,
no entanto, a imagem final da epígrafe, tal como se apresenta no segundo semestre
de 1943 e da qual propomos uma tradução em português:
Liberdade meu único
pirata, água do ano novo minha única sede,
Amor, minha única sampana,
Mergulharemos nossos
dedos de riso e de cabaça d’água
Entre os dentes gelados
da bela adormecida no bosque.
Chamamos
a atenção, neste verdadeiro palimpsesto, para o desvio que Suzanne provoca, na reescritura
já anteriormente feita pelo seu marido, do conto infantil da bela adormecida. Numa
versão outra, agora exaltante, Suzanne propõe a identificação Bela = Surrealismo/Liberdade.
No caso, evidentemente, Bela acorda da sua catalepsia.
Sua
primeira frase é reveladora: “Muitos acreditaram que o Surrealismo estava morto.
Muitos escreveram isso…” A lealdade de Suzanne e da sua adesão em relação a Breton
e ao Surrealismo visto como meio e caminho para alcançar a Liberdade, parecem totais.
No
final do artigo, Suzanne aborda a situação concreta dos negros no mundo em guerra
e na Martinica recém-saída da Dissidência. Leia-se a passagem de dois parágrafos
que começa “Milhões de mãos negras…” e termina “… as nossas insólitas comunhões”.
Note-se sucessivamente:
a)
o ultrapassar das “sórdidas antinomias”, o que corresponde ao ultrapassar de toda
distinção étnica à partida, tema presente igualmente no Cahier;
b)
a presença dos temas da água [31] e do
fogo [32] remetendo ao trabalho do ferreiro
mítico, característico do Rei-ferreiro dos bantos e
c)
a evocação do “arma cortante de aço” (tranchant d’acier), metonímia da figura do
guerreiro “homem valente” que cinge a sua espada, ou seja, o primeiro texto de Suzanne
em Tropiques I, apelando, uma vez mais,
ao homem “hamítico” que se articularia
com o tipo “etíope”, de profunda integração
no ciclo da natureza.
A
frase final, muitas vezes citada – “Surréalisme, corde raide de notre espoir” –
tem quase a tonalidade de uma declaração de fé: corda e rígida (ou esticada) evocam uma situação tensa e perigosa, em que a imagem do funâmbulo
que dança aparece claramente. O que é o funâmbulo? Aquele que se lança no ar sobre
um fio estreito e perigoso unindo dois pontos separados.
2.7. “A Grande camuflagem”,
in Tropiques XIII-XIV (maio de 1945)
Sem indicação
de data, na verdade maio de 1945, o ensaio, o mais longo texto conhecido de Suzanne,
fecha o último número de Tropiques.
O
texto é uma verdadeira diábase não apenas
do Cahier (Diário de um retorno ao país natal),
mas igualmente do poema publicado no primeiro número de Tropiques, “Os puros sangues” (Les
Pur-sang, no original, ainda não traduzido para o português), sugerindo ainda,
de forma elíptica e discreta, a “grande cena
primitiva” que dará nascimento ao poema “Batouque”. Aqui, Suzanne evoca o arco
das Antilhas em geral – Haiti, Porto Rico, Cuba, Martinica etc. – anunciando já
uma poética do espaço/paisagem que será a de Edouard Glissant, muitos anos mais
tarde.
Escrito
logo depois do retorno do casal de Haiti, [33]
o texto constitui uma síntese espantosa tanto do ponto de vista poético como analítico
e não só das Antilhas como das Américas em geral. O ensaio estabelece ainda relações
intertextuais complexas com a produção do seu marido, em particular com os longos
poemas que lhe são mais ou menos contemporâneos: as duas versões do Cahier dos anos 40 (Brentano’s e Bordas,
ambas publicadas em 1947, em duas cidades diferentes, Nova York e Paris, com três
meses de intervalo, em janeiro e março), [34]
mas igualmente com os poemas mais tarde publicados, por Seuil, no volume Les Armes miraculeuses: “Le Grand Midi”,
“Les pur-sang” e sobretudo “Batouque”. [35]
Vejamos
inicialmente o seu título, meio enigmático, “A grande camuflagem”: ligado ao clima
da guerra, que continua do outro lado do Atlântico, o leitor só encontrará a explicação
no último parágrafo onde se fala do “grande jogo de esconde-esconde.” Uma vez mais,
o leitor, como Édipo, [36] está diante
de um enigma que deve decifrar. A beleza das Antilhas, grande sedutora, impede de
ver e ouvir, encanta o viajante mas o engana.
O
último ensaio de Suzanne, extremamente poético, abre-se “à altura do gavião”: [37] identificando-se com o olhar de uma
grande ave de rapina sobrevoando as ilhas, Suzanne retoma por cinco vezes “há” (il
y a) justapondo imagens do Haiti e da Martinica natal. No final da descrição, literalmente
a voo de pássaro, o leitor confronta-se uma cena terrível: um cavalo morre fulminado
pelo raio no planalto de Hinche [38]
e o cavaleiro, depois dessa exibição da demência da natureza, “contempla e pensa
nas outras ilhas”. Por detrás do pensador solitário que medita sobre o cadáver do
animal morto pelo raio, se esconde sem dúvida nenhuma a imagem ideal do poeta.
No
parágrafo seguinte, um ciclone põe-se a rodar pelo mar das Caraíbas e “com a sua
bela cauda varre ritmadamente o semicírculo das Antilhas”. Todos os leitores aí
reconhecem a descrição inicial do Cahier.
O mar incha. O ciclone caminha de Porto Rico ao Sudeste do Haiti, continuando a
caminho da Flórida. Depois da tempestade, vem o sol ardente. E as cigarras do Haiti
cantam até a morte. As ilhas, vistas de um avião da Pan American Airways revelam
então a “sua verdadeira dimensão de pequenas conchas.” A descrição joga com o grande
e o minúsculo, o mítico e o banal, o telúrico e a conchinha.
A
introdução está terminada. Segue-se a recordação pessoal da adolescente Suzanne
Roussi que emprega, pela primeira vez, o pronome eu. Quinze anos atrás, a jovem teve a revelação da beleza das Antilhas,
do flanco leste da montanha Pelée, o grande vulcão da Martinica. [39]
Assim,
Aimé e Suzanne, ambos, no verão de 1944, retomam consciência da “intolerável beleza”
das ilhas sem conhecerem nem explicitarem ainda a sua função oculta.
Suzanne
faz então uma viragem abrupta: depois de 2 páginas sobre as ilhas, vistas e imaginadas
do alto em justaposição, seu olhar ganha uma “lucidez total”: a trama dos desejos
e sonhos não realizados criou uma armadilha para as Antilhas e a América, o que
não só é muito bem observado como, de certa forma, totalmente novo. O Novo Mundo
– ou seja o continente inteiro denominado América que se estende no sentido dos
meridianos do extremo Norte ao extremo Sul – nasceu da Europa, sob, segundo e contra
o olhar do Velho Mundo. Uma frase é fundamental na análise sintética:
Há três séculos que
a aventura colonial continua – as guerras de Independência são apenas um episódio
– e os povos americanos cujo comportamento em relação à Europa permanece muitas
vezes infantil e romântico, não se libertaram ainda do domínio do velho continente.
Escrita
em 1945, o comentário nos aparece gritantemente verdadeiro. Mudemos por um instante
o numeral e, no lugar de três, ponhamos
quatro séculos e a análise vale para a
América toda, do Norte ao Sul, a América dita latina e o Brasil aí entrando sem
dificuldade.
No
parágrafo seguinte, Suzanne volta às ilhas francesas e faz o inventário de duas
classes opostas da sociedade crioula da Martinica: os békés (a aristocracia “branca” embora a palavra béké não seja citada) e o sub-proletariado
da usina ou do banguê.
A
descrição dos békés na Metrópole é cruel
e quase se ouvem a voz e o estilo de Frantz Fanon. [40] Os békés estariam prontos
para todas as traições se os Americanos do Norte não duvidassem da pureza do seu
sangue. Quanto ao sub-proletariado negro, este continua a viver miseravelmente e
o espetáculo da cidadezinhas coloniais antilhanas dá “náuseas”. E Suzanne retorna
ao Leitmotiv da beleza das ilhas.
Suzanne
apresenta, em seguida, os diferentes tipos humanos que povoam as Antilhas francesas:
os chamados metropolitanos (os “métros”), o pequeno-burguês de cor, os negrinhos
doidos por carros de luxo e os camponeses vivendo em pequenas vilas de antigos libertos.
Seus exemplos serão sempre apresentados como grupo, no plural, com exceção do burguês
de cor:
a)
os “funcionários metropolitanos” [41]
nunca adaptados a essas “velhas terras francesas” de além-mar, para os quais levanta-se
o problema do “herdeiro antilhano que grita ou não grita ‘meu pai”; [42]
b)
o mulato antilhano, descrito cruelmente pela autora, “bisneto de um colono e de
uma negra escrava”, com a “sua dupla força e sua dupla ferocidade” sempre em equilíbrio
instável;
c)
os negrinhos fascinados pelo automóvel de luxo e que se transformarão em operários
autodidatas, fonte provável de Revolução e
d)
os camponeses dos burgos que trabalham a terra de outrem mas se pensam donos/filhos
da terra e permanecem sensíveis ainda ao apelo noturno dos tambores. [43]
O seu grito [o dos tambores]
clama em voz rouca e larga que a África está lá, presente, à espera, imensamente
virgem apesar da colonização, tormentosa, devoradora de brancos.
Nesta
frase final, lida integralmente no interior do seu parágrafo – que aconselhamos
reler com atenção – encontra-se talvez a explicação do misterioso dançarino wolof
que dança na ponta do mastro no fim do poema “Batouque”, de Césaire. É a África,
invisível, mas presente, presença subterrânea e devoradora de brancos, ela também canibal.
Vejamos,
por um instante, os quatro grupos:
a)
as pessoas do primeiro grupo, não pesam nem decidem, estão sempre prontas, malas
feitas, a voltarem para a França ao menor problema;
b)
o segundo grupo, duplamente forte e feroz, seria, segundo Suzanne, o adversário
por excelência a combater;
c)
os operários autodidatas ligam-se à mudança possível e finalmente
d)
os camponeses mantêm o elo forte e essencial, embora inconsciente, com a África.
Restam-nos
apenas os dois parágrafos do final do texto a percorrer. O penúltimo parágrafo sobre
a floresta de Absalão, evoca poeticamente o passeio iniciático feito em 1941 pelos
“nativos” da Martinica (o casal Césaire juntamente com René Ménil e Gratiant), em
companhia daqueles que acabavam de chegar pelo barco Capitaine Paul Lemerle a Fort-de-France:
os viajantes André e Jacqueline Breton, Wifredo Lam e Helena Holtzer, André Masson.
Depois dos encantos da floresta (frescor e rumores, vistas e odores), os visitantes
deveriam aceder “às fomes, aos ódios, à ferocidade queimando no âmago das colinas.”
O
último parágrafo traz a solução ao enigma inicial, explicando o título A grande camuflagem: nas Antilhas, a beleza
da paisagem e da terra é um jogo de esconde-esconde que tem sucesso quando os viajantes
e habitantes não percebem a outra face, a verdadeira, desse mundo miserável e trágico,
doloroso e cruel. Incapazes de compreender, os homens guardam então os seus olhos
“indecifradores”: o neologismo, que aparece pela primeira vez na versão de Brentano’s,
faz forçosamente alusão ao mito de Édipo. [44]
Neste caso, a um Édipo que permanece na escuridão do engano e da ignorância. É preciso
decifrar o enigma para ter a vida salva.
Resumamos:
o jogo perverso de esconde-esconde baralha as vozes que se tornam inaudíveis e cegam
os espectadores de passagem, ignorantes do drama secreto das Antilhas porque estão
unicamente fascinados pela sua beleza. Silêncio e cegueira percebidos só por aqueles
que sabem ver e podem escutar.
Pequena conclusão
provisória: Suzanne Césaire, diábase.
Nas literaturas
clássicas, usam-se dois termos de origem grega, que se articulam para descrever
viagens realizadas por heróis a outros mundos e espaços: anábase e catábase. A primeira
supõe o remontar às origens longínquas e a outra, a descida perigosa ao mundo inferior,
subterrâneo ou infernal. Leitor de latim e grego, Césaire emprega, num dos seus
poemas finais, uma terceira palavra, criação sua, com significado especial: diábase,
ou seja, o movimento de passar através do espaço e do tempo, e dos outros.
Relendo
de um fôlego os sete textos assinados por Suzanne Roussi, tornada Suzanne Césaire
pelo casamento, publicados em apenas 4 anos, entre 1941-1945, o leitor não pode
ignorar nem a força nem o brilho da sua inteligência nem a qualidade da sua prosa
ao mesmo tempo crítica e poética, provocadora e profética, analítica e expressionista.
No grupo de Tropiques, ela é a que atravessa
as obras do seu marido e dos seus companheiros, e também a de Breton. Suzanne os
dialectiza, os interpela pelo seu rigor e lhes fornece fórmulas que os marcam e
que, por vezes, eles retomam sem indicarem, aliás, a fonte. Ou seja, a autora. Com
e ao lado de René Ménil, ela estabelece as bases teóricas de uma revista-laboratório
coletiva. É Suzanne e não seu marido que, em 1943, assegura ao chefe de fila do
Surrealismo, em nome do grupo, a sua adesão e fidelidade coletivas ao movimento.
Vimos,
muito de passagem como Suzanne deixou a sua marca não só sobre o poema Diário de um retorno ao país natal [45]
(como em outros poemas da primeira fase de Césaire, aliás), marca que se pode
entrever por leituras cruzadas e o estudo da mobilidade do poema, com seus acréscimos
e modificações inúmeras até às terceiras provas da edição dita definitiva, de 1956.
Musa
inspiradora, analista lúcida e inteligente, feroz e sedutora, autora de textos teóricos
e poéticos que anunciam e prefiguram o que seus colegas homens retomam ou desenvolvem
mais tarde, Suzanne Césaire é um verdadeiro motor em Tropiques. Só podemos lastimar o seu silêncio depois de 1945, ocupada
pelas sucessivas maternidades e pela família numerosa, e pelo seu trabalho de professora
de liceu, e também o desaparecimento – ao que parece irremediável – da sua peça
teatral.
Quando
Césaire, na sua velhice, a identifica com a “Mulher adormecida” na ponta do Diamant,
ela se transforma em rochedo, como outrora o Adamastor, e como tal, para o poeta,
torna-se um símbolo poderoso da sua Martinica natal. Na ilha que tem forma de salamandra,
[46] ela é o rochedo da Bela adormecida
no horizonte marinho dos seus conterrâneos. É a sua última metamorfose. Despertá-la
é preciso e tarefa de todos.
NOTAS
1. Atribuiu-se a de
Gaulle a frase, “entre l’Amérique et l’Europe, je ne vois que poussière” (=
Entre a América e a Europa, só vejo poeira).
2. São 22 poemas: “Stèle obsidienne pour Alioune Diop”; “Passage”;
“Références”; “Suprême masque”; “Vertu des lucioles”; “Ruminations”; “Parole
due”; “Parcours”; “Dyali”; “Espace-rapace”; “Fantasmes”; “Dérisoire”;
“Cratères”; “Conciliabules”; “Paroles d’îles”; “Comme un malentendu de salut”;
“Rumination de caldeiras”; “À travers…”; “Rocher de la femme endormie”; “Faveur
des alizés”; “Pour un cinquantenaire”; “Configurations”.
3. Ibid.
4. Oceano aberto
porque a Martinica, que, vista do alto, tem forma de uma “salamandra”, é
banhada por dois mares diferentes: a sua costa ocidental dá para o mar interno
das Caraíbas, a sua costa sul e oriental dá para o Atlântico selvagem.
5. Outro exemplo da palavra caret
no volume Soleil cou coupé (de 1948):
“va caret couché dur le dos par la main perfide du sable” (in “Dévoreur”).
6. Vulcões peleanos
com o vulcão da Martinica (La Pelée) que explode e destrói, vulcões maternos
como o vulcão da Guadalupe (La Soufrière) cuja lava escorre e fertiliza.
7. Talvez mesmo uma
declaração de filiação intelectual jogando com a semelhança do seu próprio nome
(Césaire) e um parto sangrento (césarienne).
8. O sintagma
“exasperação de secessão” fecha a segunda estrofe do poema, como uma espécie de
refrão.
9. O poema é
analisado no capítulo III, intitulado “Le sucre du mot Brésil au fond du
marécage”, do nosso Césaire hors
frontières. Poétique, intertextualité et litt´retaure comparée.
Königshausen & Neumann, 2015.
10. Albertina desaparecida e Albertina reencontrada, antes do último
volume O Tempo reencontrado.
11. Vejam-se, entre
outros, os retratos imaginários de Rimbaud por Picasso e o de Lautréamont, aos
19 anos, por Salvador Dalí.
12. Note-se que
mais de 30 anos separam as duas publicações.
13. Aimé e Suzanne
Césaire são pais de família numerosa: seis filhos (quatro rapazes e duas
meninas).
14. Na verdade, o
jogo “belo como…”, retoma uma
passagem de Lautréamont (Chants de
Maldoror, Canto VI).
15. Nas Antilhas,
diz-se chabine: é uma mulata clara,
de traços finos, de pele cinza claro, muitas vezes de olhos verdes. A “chabine”
é sempre Suzanne Césaire, tanto em Breton como em Ménil.
16. In VÉRON, Kora. Aimé Césaire.
Seuil, 2021.
17. Há dois glossários mais conhecidos: o de René Hénane, Glossaire des termes rares dans l’oeuvre
d’Aimé Césaire. Place, 2004 e o de Papa Samba Diop, La poésie d’Aimé Césaire. Propositions de lecture accompagnées d’un
lexique de l’œuvre.Champion, 2010.
18. Um dos volumes de Saint-John Perse, outro poeta antilhano, intitula-se Anabase, de 1924, que retoma o título a
Xenofonte.
19. Sobre o conjunto de poemas dedicado a Wifredo Lam, ler: “Regards croisés sur la
poétique de deux créateurs caribéens: Aimé Césaire et Wifredo Lam”, in Présence Africaine, nº 184, 2º semestre
2011, e ainda “Tombeau du peintre: Lam”, in
Mémoire et métamorphose. Aimé Césaire entre l’oral et l’écrit. Königshausen& Neumann, 2010.
20. O termo foi
formado a partir de Ham, filho mais jovem de Noé. O seu nome é igualmente
grafado como Cam. Adotamos Ham, seguindo a lição de Frobenius, que opõe, na sua
obra, etíope a hamítico (sic). Enfim,
comentários de exegetas rabínicos indicam que a tradução Cam, a mais comum,
gerando “camítico” e o preconceito contra os de pele “queimada”, não se
justificaria do ponto de vista etimológico. Enfim, a grafia Cam justificaria o
preconceito.
21. O número de citações, em
particular, do Antigo Testamento, em toda a obra de Césaire, é bastante
elevado. O Antigo Testamento, segundo testemunho do próprio autor, é altamente
poético. Ver nossas entrevistas com Césaire: “Deux entretiens
avec Aimé Césaire”, in África.
Revista do Centro de Estudos Africanos da USP, nº 6, 1983. São Paulo, USP.
22.
Alain, do seu nome verdadeiro Emile-Auguste Chartier (1868-1951), ainda em vida
no momento da publicação de Tropiques,
é um filosofo francês, jornalista e professor de filosofia. É racionalista,
individualista e crítico: corresponde ao modelo da intelligentsia francesa da primeira metade do século XX. No início da II
Guerra assinou uma declaração pacifista, considerando a colaboração
“pétainiste” um mal menor para o país vencido e ocupado parcialmente. O censor
da revista Tropiques não percebeu que
o artigo tinha um outro alcance, mais subversivo.
23. Mudar
bruscamente de direção é uma das características do texto de Suzanne: a técnica
comprovaria a sua autoria em resenhas não-assinadas, de Tropiques.
24. A mobilidade do
texto de Césaire foi analisada em particular por Ernstpeter Ruhe.
25. Se o leitor
estiver interessado na demonstração, pode consultá-la, na íntegra, no nosso Vampire liminaire: de Lautréamont aux
Césaire. Konisgshausen& Neumann, 2019.
26. Chabine, nas Antilhas francesas, é um
tipo de mulata de pele clara e de olhos verdes.
27. Em francês, roussi significa “levemente queimado
pelo fogo”, “chamuscado”. Do verbo roussir,
“avermelhar”. Desse ponto de vista, ironicamente, Suzanne seria uma “camítica”
no sentido tradicional e pejorativo do termo, por debaixo da sua pele clara.
28. Leconte de
l’Isle, poeta aristocrata, nascido na ilha da Reunião, outra colônia francesa
no Oceano Índico (1818-Yvelines, 1894) e José Maria Hérédia, descendente de
Conquistadores, nascido em Cuba e naturalizado francês (1842-1905). São os dois
clássicos por excelência do Parnasianismo francês no século XIX.
29. Francis Jammes
(1868-1938) é essencialmente poeta da natureza. Em 1941, quando Suzanne escreve
o seu artigo, a morte Jammes é bastante recente, ocorrida há três anos.
30. Ver “Le sucre du mot Brésil au fond du marécage”, in Césaire hors frontières. Poérique, intertextualité et littérature comparée. Würzburg, Königshausen & Neumann, 2015, p. 199 – 284.
31. “Mahoulis”, no texto original, são os feiticeiros fazedores da chuva na
África ancestral. Aliás, a mesma imagem reaparece em Ménil e, também, em
Senghor.
32. O título
escolhido por Daniel Maximin para sua homenagem teatral a Suzanne Césaire junta
os dois semas da água (fonte) e do fogo (sol): “Suzanne Césaire, fontaine
solaire.”
33. O casal Césaire
chega a Port-au-Prince a 17 de maio de 1944. Suzanne permanece no Haiti, com o
marido, até final de outubro: cinco meses, portanto. Césaire prolonga a sua
estadia até meados de dezembro (sete meses). Seu trabalho: ensinar na
Universidade de Port-au-Prince e fazer conferências. René Depestre (Jacmel, 29
de agosto de 1926), então jovem estudante de 19 anos, assiste às conferências.
Depestre, que lê perfeitamente português, além do espanhol, por ter passado um
dos seus exílios no Brasil, tem dois ensaios importantes sobre as Antilhas: Bonjour et adieu à la négritude
(Laffont, 1980) e Métier à métisser
(Stock, 1999).
34. Sabe-se, hoje,
através do estudo dos manuscritos que a edição Brentano’s, saída em janeiro de
1947, estava pronta desde 1943, a versão sendo, ao mesmo tempo, a mais
diferente e a mais surrealista de todas.
35. Nenhum desses
poemas foi traduzido para o português.
36. Bom número de
poemas de Césaire têm, no seu centro, um enigma, cabendo ao leitor decifrá-lo.
Alguns poemas, inclusive, mais curtos, no final da sua produção, assemelham-se
a “adivinhações”.
37. No original,
“menfenil” é uma pequena ave de rapina típica das ilhas. Também o Cahier começa com a descrição a voo de
pássaro, da Martinica, num longo movimento do alto para baixo, das nuvens para
o solo, do geral para o particular.
38. Hinche, comuna
haitiana, cerca de 30 km da fronteira com a República Dominicana. A cidade de
Hinche, no planalto central, fundada em 1503 pelos espanhóis, foi anexada por
Toussaint Louverture ao território haitiano durante as guerras de
Independência. Tornou-se um posto avançado de Haiti.
39. Tema corrente
nas Antilhas francesas, em que todos são filhos do vulcão: filhos da montanha
destruidora, a Pelée, na Martinica ou
filhos da Soufrière materna, em
Guadalupe. Ver o ensaio de Daniel Maximin: Aimé
Césaire, frère volcan (Seuil, 2013).
40. Fanon, nascido
a 20 de julho de 1925, faz 20 anos neste ano de 1945. Peau noire, masques blancs será publicado, seis anos mais tarde, em
1951, por Seuil.
41. Hoje, esses
funcionários são ainda chamados “métros”.
42. Note-se, de
novo, a questão do Édipo coletivo.
43. Tema abordado
de leve: o que Suzanne considera o “apelo noturno dos tambores” corresponde à
permanência, aliás bastante relativa, das crenças ancestrais nas ilhas
francesas, por demais exíguas para tal. Não há espaço para um quilombismo
organizado nem para o surgimento de uma religião popular, tal como sucedeu nas
Antilhas maiores, Cuba (santería) ou
Haiti (vodu).
44. Para um estudo
da progressiva ocultação do mito de Édipo no Cahier, consultar o nosso Mémoire
et métamorphose. Aimé Césaire entre l’oral et l’écrit. Würzburg,
Königshausen & Neumann, 2010. Mas ocultar não é diminuir a sua força, muito
pelo contrário: é torná-la mais insidiosa por não ser explicitada.
45. Seria fácil
mostrar que o Diário, de Césaire,
incorpora, ao mesmo tempo, uma anábase e uma catábase. Por outras palavras, um
retorno inicial ao passado e à África ancestral. O poema termina, aliás, com o
anúncio de um outro mergulhar nas profundezas: “e o grande buraco negro onde eu
queria me afogar na outra lua/ é lá que quero pescar agora a língua maléfica da
noite na sua imóvel verrição!”
46. Na mitologia grega, as salamandras representavam o elemento fogo porque, supostamente, nasciam dele, eram capazes de viver nas chamas e se regeneravam pelo fogo.
LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Romanista de formação, ensaísta e tradutora, publica em francês e/ou português sobre literaturas francófonas, literatura comparada, iconografia e iconologia. O nº 115 da Agulha Revista de Cultura, de julho de 2018, publicou uma edição especial sobre o seu trabalho, sob o titulo “Entre o Mediterrâneo e as Caraíbas”. Últimas publicações: Vampire liminaire: de Lautréamont aux Césaire. Königshausen & Neumann, 2019, e os posfácios às traduções de Suzanne Césaire: Escritos de Dissidência (Papéis selvagens, 2021) e Sony Labou Tansi. O ato de respirar (Cultura e Barbárie, 2021).
LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensayista, y traductora. Junto a Sergio Lima y Paulo Paranaguá organizó la 13ª Expo Surrealista Internacional en São Paulo (1967). En esa época realizó dos viajes a París y tuvo un encuentro entrañable con algunos integrantes del grupo surrealista francés. Ha publicado los poemarios Cometas (1977), Poemas plásticos (1980), y A mobília violenta do ar (2020). Participó en la expo surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Reside en São Paulo.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 06
Número 205 | março de 2022
Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)
Tradução: Floriano Martins
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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