Desnos passou parte da infância e da adolescência
na rue Saint-Martin. Quando ali residia, perto da igreja de Saint-Martin,
tornou-se cinéfilo. Frequentava, cotidianamente, o Cine Opéra e os cinemas dos Grands
Boulevards.
Ao chegar a Les Halles, admirei a grande praça
com muitos bancos de concreto e caminhos designados por nomes de poetas. Pela rue
des Lombards, cheguei à rue Saint-Martin e encontrei o número 11, edifício onde
Robert Desnos viveu a infância (de 1902 a 1913). Prédio alto, com pequenas varandas
de grades, no terceiro e no sexto andares. Naquela área antiga de Paris, onde predominam
as vultosas arquiteturas da portentosa igreja de Saint-Eustache e do metálico e
envidraçado Centre Pompidou, estão situadas as residências de infância de Nerval
e de Desnos.
Na praça lateral, decorada, ao centro, por uma
fonte desfigurada, existia o cemitério dos Inocentes, dos tempos de Philippe Auguste,
com dois milhões de sepulturas, extinto em 1785. Cruza-se a rue Saint-Denis, transitada
apenas por pedestres, chega-se à rue Saint-Martin. Alguns passos mais, aparecem,
na rue du Cloître Saint-Merri, a velha igreja do mesmo nome e uma pequena praça
com esculturas modernas, ao pé do industrioso Pompidou.
As engrenagens do Centro Pompidou contrastam
com a velha Tour Saint-Jacques, que deparamos nas imediações da rue Nicolas Flamel.
A torre é uma magnífica coluna erguida, como um alto farol, no itinerário dos peregrinos.
Na esquina
da rue des Lombards com a rue de Saint-Denis, havia o restaurante Le Boeuf, onde
Desnos e Breton se reuniam com seus colegas surrealistas (o estabelecimento hoje
se chama Arena Café).
Daquela área, caminhei a pé até a rue de Turbigo,
nº 68, onde estudou Desnos. Depois de passar em frente à estação do metrô Arts et
Métiers e às encardidas paredes, impregnadas de fuligem, da velha igreja de Saint-Nicolas
des Champs, avistei o lycée Turgot, entre as rue des Fontaines e a rue Sainte-Élisabeth.
Liceu com grandes janelas e cinco andares, ocupando quase a metade da quadra.
Aos 17 anos, Desnos trabalhou como empregado de uma
farmácia na rue Pavée, no Marais. Em seguida, foi secretário do jornalista e editor
Jean de Bonnefon, ocasião em que conheceu o movimento dadaísta. Em 1920, com 20
anos, Robert Desnos fez o serviço militar em Chaumont, onde recebeu correspondência
de seu amigo Benjamin Péret, convidando-o a um encontro em Paris, tão logo ele tivesse
um período de recesso nas obrigações da caserna. Desnos vai ao Marrocos, completar
a missão militar, durante dois anos. Ao regressar a Paris, alojou-se no apartamento
dos pais, na rue de Rivoli, nº 9, no sexto andar. Conheceu, então, por intermédio
de Benjamin Péret, o pessoal da revista Littérature:
Éluard, Soupault, Crevel, Ernst, Péret e Vitrac, numa taberna chamada Certa, na
rue de Richelieu. Logo iniciaria sua participação nas sessões de escrita automática
e sonhos hipnóticos, no domicílio de André Breton, na rue Fontaine, tendo se tornado
um dos maiores ativistas do surrealismo e o principal redator da revista La Revolution Surréaliste.
Desnos tinha o hábito de passear pelas ruas desertas
das noites de Paris, especialmente pela Île Saint-Louis, para observar o brilho
luminoso das janelas, com os raios de luz filtrados pelas venezianas. Nessas deambulações,
nasciam-lhe ideias criativas sobre os mundos do sonho e da vigília. Queria decifrar
o estado que Nerval chamava de “supernaturaliste”, que, desde sempre, inspirou os
grandes poetas.
Robert Desnos mostrou, desde cedo, seu talento para
os libérrimos voos da imaginação, como o demonstram os textos de Nouvelles Hébrides, que Francis Picabia ilustrou,
livro pleno de referências aos amigos surrealistas e repleto de humor e filigranas
semânticas.
Minha ida ao endereço de Desnos, na rue Rivoli, resultou
em uma das mais extensas caminhadas que fiz em Paris. Procedente do Louvre, passei
pela place du Châtelet e vi a coluna cingida pelo anjo que porta a coroa da glória.
Segui até a torre Saint-Jacques, pontilhada de estátuas, com o santo peregrino em
seu pináculo, cajado à mão, mirando na direção de Compostela. Um arauto vivo, com
o brilho cinzelado de suas incrustações. Medito sobre o tempo em que existiu, ao
pé desse alto minarete, a igreja de Saint-Jacques de la Boucherie, de onde partiam
os milhões de peregrinos de todas as nacionalidades para visitar o túmulo do Apóstolo.
Cruzo a esquina da rue Saint-Martin com a rue Rivoli, onde Prévert se refere às
suas recordações de Desnos, no poema que fez em sua homenagem. Vejo, adiante, o
portentoso Hôtel de Ville, de cem janelas, entre as estátuas dos próceres da cidade
(Bailly, Ledru Rollin, D’Alembert, Richelieu, Le Sueur e outros), esculpidas numa
floresta de símbolos. Cruzo a
rue du Pont Louis-Philippe e depois a rue Tiron. Por fim, encontro o vistoso edifício de número 9 da rue
Rivoli, no impecável estilo neoclássico parisiense, de varandas pequenas nas janelas
estreitas. Vejo no alto a janela do apartamento de cobertura, no sexto andar, onde
viveu Desnos. Avisto dali, a cem metros, a fachada da igreja de Saint-Paul, de alta
nave iluminada por belos candelabros. Entro pela estreitíssima rue du Prévot para
contemplar, por trás da igreja, o prédio antigo onde funcionou o lycée Charlemagne,
na rua do mesmo nome desse colégio em que Gautier e Nerval estudaram.
No tempo das experiências com a escrita automática,
Robert Desnos publica Deuil pour deuil,
no ano de 1922, com um discurso profético, em que se notam suas ousadas metáforas,
concebidas com o desgarrado delírio verbal que será sua marca permanente. Essas
características se confirmariam nos livros seguintes, a saber: L’Aumonyme e Langage cuit, escritos em 1923, e marcados pela fluência dos jogos verbais
com a similitude das palavras e a homonímia.
Em seu romance La liberté ou l’amour!, de 1924, que tem
como epígrafe o poema Les veilleurs, de
Rimbaud, nota-se, pela agressividade da linguagem em alguns trechos, a influência
de Lautréamont. Diversas referências a Paris aparecem no discurso caótico de exacerbada
imaginação, que caracteriza o ideário surrealista na obra de Robert Desnos.
A personagem Louise Lame corresponde
à Nadja, de André Breton. Diversos lugares de Paris são referidos no romance, narrado,
alternativamente, na primeira pessoa do singular ou de forma impessoal.
O narrador declara que vai pela
rua des Pyramides ao jardin des Tuileries, encontra Louise Lame sob as arcadas da
rue de Rivoli e, em seguida, mantém com ela uma experiência erótica no Bois de Boulogne.
Páginas adiante, Corsaire Sanglot
e Louise Lame vão do jardin des Tuileries, pela rue Mont-Thobor, a “une ‘fiambre’
d’hôtel” que os hospeda para que desfrutem de momentos eróticos. Corsaire Sanglot
tenta salvar uma mulher de um incêndio na rue de Rivoli.
Sua linguagem onírica se faz
notar quando Louise Lame, já sepultada no cemitério de Montparnasse, é avistada
pelo Corsaire na place de la Concorde, mas não fica evidente se o episódio se refere
a um sonho ou a um fantasma. Outras visões fantásticas e atemporais são descritas:
pelo boulevard des Batignoles, olhando o rastro carbonífero dos trens que saem da
Gare Saint-Lazare, ele avista Jack, o Estripador; da rue Royale à place de la Concorde,
ele vê o rei Louis XVI caminhando em direção ao cadafalso.
Na página 62 do romance acima
mencionado, Desnos revela a intuição da sua morte precoce: “Il n’est pas de jour
où l’image ridicule de la mort n’intervienne dans le décor mobile de mes rêves.
Elle ne me touche guère, la mort
matérielle, car je vis dans l’éternité”.
Desnos era um visionário total. Via fantasmas, em
suas frenéticas inspirações. Aragon testemunhava que Desnos fechava os olhos e falava
um turbilhão de profecias que agitavam o Oceano. De fato, em seus Trois livres de prophéties, de 1925, ele
prevê a longevidade de Aragon e a brevidade da vida de Éluard. Breton louvava a
aura frenética e o exaltado fanatismo poético de Desnos, comparável ao de Isidore
Ducasse. Certa ocasião, Desnos teve uma alucinação em que se deparou com Robespierre.
Durante outro de seus transes oníricos, perseguiu Éluard, com uma faca, no jardim
de uma casa, na cidade de Saint-Brice. Depois desse episódio grotesco, ao perceber
que o desquilíbrio mental ameaçava os adeptos do surrealismo, Breton suspendeu temporariamente
as sessões de sonhos e escrita automática.
Em 1925, Robert conheceu, no Olympia, Yvonne George,
vedete belga e estrela do “music-hall” parisiense. Bastou ver Yvonne num concerto,
cantando canções de marinheiro, para ficar encantado com sua energia vibrante e
sua sensualidade. Em artigo escrito em louvor da artista, ele declara admirar sua
faculdade de dar vida a tudo o que não é senão múmia num deserto de areia (DESNOS,
Robert. Oeuvres, Gallimard). Escreveu
dois livros em intenção de Yvonne, a saber: À
la misterieuse, publicado, em primeira versão, na revista La Révolution Surréaliste, número 7, em junho
de 1926, quando ele trabalhava no jornal Paris-Soir,
e Les Ténèbres, escrito em 1927, quando
ele era redator do jornal Paris-Matinal.
Acontecimento relevante em sua biografia foi sua
viagem a Havana, em março de 1928, para participar do VII Congresso da Imprensa
Latino-Americana. Fato curioso: sua missão foi defender a imprensa latino-americana,
como delegado do jornal La Nación, de
Buenos Aires.
Após esse período na república dos artistas da rue
du Château, ele passou uma temporda na rue Blomet, nº 45, em Montparnasse, vizinho
ao ateliê de Miró.
Frequentou o café Le Dôme, onde conheceu o casal
Foujita (o pintor japonês e sua namorada, Youki, modelo parisiense, cujo nome de
batismo era Lucie Badoul), que morava na rue du parc Montsouris. O ano de 1929 marca
o momento de seu encantamento por Youki, a qual, após a partida de Tsuguharu Foujita
para o Japão, converteu-se na musa sirène,
cujo canto inebriante seduzia o poeta boêmio, adepto do cabaret Le Bal Nègre, na
rue Blomet, nº 33 (que hoje se denomina Le Bal Blomet e promove concertos de jazz
e de música clássica).
Il n’était pas une fois
un beau chateau au centre d’un désert
nul ne tentait d’en franchir l’accès
dans un bassin
y nageait une sirène.
(Desnos, “Sirène”, In: Youki, Poésie, 1930).
Ele evoca a república dos artistas da rue Blomet,
nº 45, num ensaio em que diz haver ocupado um quarto que era de André Masson:
C’était un phénomène parisien, un clos herbu, planté d’un lilas qui doit y fleurir
encore chaque année et d’une vigne que le gérant, qui avait des idées esthétiques,
fit arracher parce que cela faisait sale. (Desnos,
Oeuvres, 1999).
Fui num táxi até a avenue du Maine, porque em Paris
imperava o caos da greve dos metrôs. Comecei a caminhar do ponto em que o boulevard
Montparnasse deriva à direita para dar lugar à rue de Vaugirard, que forma um triângulo
com ele e com a avenue du Maine. Três quadras depois desse movimentado ponto de
circulação, vi a torre ebúrnea de Montparnasse. Segui caminhando pela rue Vaugirad,
contornei o formidável Port-Royal pelo boulevard Pasteur. Por fim, chego à rue Lecourbe,
que me desvenda a rua Blomet. Não é a rue Lecourbe que é curva, mas a própria Blomet,
que dela nasce e vai sinuosa e estreita, à extensão de um trecho de seu percurso,
até retificar-se mais adiante. Nessa exaustiva travessia, aproximou-se de mim um
cidadão de cabelos grisalhos, surpreso de me ver fazendo anotações em plena rua,
num dia 24 de dezembro, e perguntou minha profissão. Contei-lhe minha aventura de
peregrino da poesia e ele achou interessantíssimo o meu projeto de escrever sobre
poetas e seus endereços em Paris. Que poetas? Citei alguns. Ele perguntou se faço
fotos. E se admirou ainda mais ao conhecer um brasileiro tão interessado em literatura
francesa. Quando eu ia indagar a respeito dele, o homem se evadiu. E eu segui adiante,
até deparar a placa e o toldo vermelhos do Le Bal Blomet, na esquina com a estreitíssima
rue Copreaux. Com sua cobertura, a velha casa de espetáculos parece um chalé. Fotografei
o local.
Segui andando até o número 45, onde morou Desnos,
de 1926 a 1930 (hoje, um jardim público e um muro com a placa em que se informa
que “ce milieu cosmopolite et convivial a participé de la naissance du mouvement
surréaliste”). Além do nome de Desnos, mencionam-se os de vários artistas que tiveram
ateliês no local, entre os quais Joan Miró e André Masson, bem como os poetas Michel
Leiris, Antonin Artaud, que frequentaram aquele espaço. Joan Miró ofereceu à cidade
de Paris a escultura em bronze L’Oiseau Lunaire, ali disposta em 1974, como souvenir
do “45, rue Blomet”, e em homenagem a Desnos.
Discordâncias, não apenas no tocante ao uso dos recursos
tradicionais da poesia, mas sobretudo de natureza política, suscitaram susceptibilidades
entre os combativos surrealistas. Para Desnos, os surrealistas estavam mais próximos
do anarquismo do que do comunismo. Em 1929, Desnos passou a colaborar na revista
Documents, de Georges Bataille.
Breton e Aragon haviam convidado os escritores a
uma reunião num bar da rue du Château, em março de 1929, para que dessem conta do
alinhamento político de suas literaturas, apresentando-lhes um questionário. Desnos
respondeu que tinha absoluto desprezo por toda atividade literária ou artística
ou antiliterária ou antiartística, e absoluto pessimismo no que concerne a uma atividade
social. Recusava-se, também, a colaborar em atividade comum e aceitar palavras de
ordem e disciplina, quase sempre demasiado arbitrárias.
Em dezembro de 1929, no último número da revista
La Révolution Surréaliste, André Breton
publicou o Segundo Manifesto Surrealista,
no qual, com um texto irônico e prolixo, exclui Desnos do Movimento. A relutância
de Desnos em não se enfileirar naquele momento entre os membros do Partido Comunista
provocou, efetivamente, a ruptura entre ambos.
Desnos publicou, também, provocativamente, o Terceiro Manifesto Surrealista, em 1930,
no Le Courrier Littéraire. Nesse ano, ele edita Corps et biens, onde consta Le
Poème à Florence, o que mais aprecio, dentre seus formidáveis textos. Consite
numa elegia, escrita em memória de uma jovem amiga, falecida em acidente automobilístico.
Seus primeiros versos fazem pensar na incerteza do destino:
Comme un aveugle s’en allant vers les frontières.
Há, na sequência, o sentimento de finitude e desilusão,
que o poeta sublima com um clamor dionisíaco, hedonista:
Voici venir les jours où les oeuvres sont vaines
Où nul bientôt ne comprendra ces mots écrits
Mais je bois goulûment les larmes de nos paines
Quitte à briser mon verre à l’ écho de tes cris
Je bois joyeusement faisant claquer ma langue
Le vin tonique et mâle et j’invite au festin
Tous ceux-là que j’aimai. Ayant brisé leur cangue
Qu’ils viennent partager mon rêve et mon butin.
Buvons joyeusement ! chantons jusqu’à l’ivresse!
Nos mains ensanglantées aux tessons des bouteilles
Demain ne pourront plus étreindre nos maîtresses.
Les verroux sont poussés aux pays des merveilles.
Esse poema é uma profecia sobre seu descomunal destino.
Os ferrolhos seriam cerrados e se acabaria o acesso ao país das maravilhas de sua
infância e juventude. Aragon expressou, num poema a Desnos dedicado, a ideia dessa
profecia de que a vida seria tão breve para aquele amigo iluminado, que ele teria
de aproveitar tudo nos poucos dias que lhe restavam para viver.
Começa, então, um período de prolífica criatividade
em que Desnos escreve artigos de crítica de cinema e de música, mantém intercâmbio
com Picasso, Hemingway, Artaud e John dos Passos e incrementa seu interesse por
assuntos políticos. Sua militância no jornalismo foi-se voltando para a crítica
ao fascismo que campeava na Europa.
Viaja com Youki duas vezes à Espanha: em 1932 e 1935.
Na segunda viagem, conheceu García Lorca por intermédio de Pablo Neruda. A partir
de 1934, morou com Youki no imóvel nº 19, da rue Mazarine, próximo à esquina com
a rue Dauphine, onde recebia escritores e outros artistas. Bebia o vinho cotidiano
nos bistrôs ali próximos, na rue Saint-Merri. Publicou Les sans cou, com a ressonância
dos “romans noirs”, ilustrado por André Masson. Trabalhava, então, na Radio-Luxembourg,
como redator de programas radiofônicos sobre poesia. Com a colaboração de Alejo
Carpentier, produziu uma série de emissões sobre a poesia de Walt Whitman. Escrevia
letras para canções de Darius Milhaud e textos sobre cinema.
Foi então que ele gravou, com Artaud, o poema La complainte de Fantômas, parafraseando
o romance popular, publicado em folhetim, em 1911, de autoria de Pierre Souvestre
e Marcel Allain, que põe em evidência o marginal perseguido pelo comissário Juve.
O poema, editado em Corps et biens, menciona
diversos pontos da cidade, onde o delinquente Fantômas perpetrou suas façanhas. Foi musicado por Kurt Weill e está no disco
da coleção Poètes & Chansons, graças
à louvável iniciativa de Marc Robine e Bernard Ascal, aos quais devemos uma série
de poemas musicados dos principais poetas franceses. Aqui transcrevo alguns excertos:
Un beau jour des fontaines
Soudain chantèrent à Paris,
Le monde était surpris,
Ignorant que ces sirènes
De la Concorde enfermaient
Un roi captif qui pleurait.
(...)
Du Dôme des Invalides
On volait l’or chaque nuit,
Qui c’était? Mais c’était lui,
L’auteur de ce plan cupide.
User aussi mal son temps
quand on est intelligent!
(…)
Dans la nuit sinistre et sombre,
À travers la Tour Eiffel,
Je v’poursuit le criminel.
En vain guette-t-il son ombre.
Faisant un suprême effort
Fantômas échappe encore.
(…)
Allongeant son ombre immense
Sur le monde et sur Paris,
quel est ce spectre aux yeux gris
qui surgit dans le silence?
Fantômas, serait-ce toi
qui te dresses sur les toits.
Outro momento marcante da vida de Desnos foi sua
participação, em janeiro de 1937, juntamente com Neruda e Vallejo, na Casa da Cultura
da AEAR (Associação de Escritores e Artistas Revolucionários), na homenagem a García
Lorca, fuzilado pelos franquistas em 18 de outubro de 1936. Desnos inaugurou, na
rádio Le Post-Parisien, em 1938, o programa
La Clef des Songes, no qual se estudava
o mistério dos sonhos por meio de entrevistas a cientistas estudiosos do tema.
Sua adesão, a um só tempo, à Frente Popular Francesa,
à Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários e ao Comitê de Vigilância
dos Intelectuais Antifascistas (CVIA) revelou, desde 1942, seu compromisso voluntário
e corajoso com a poesia participante e combativa – atividades que redundaram em
sua prisão em 1939. Liberado, ele volta à militância, altercando com Louis-Ferdinand
Céline, nos artigos do jornal Aujourd’hui.
Desnos manteve sua convicção de lutar até à morte para que os opressores não triunfassem.
Continuou escrevendo artigos e
livros. São desse tempo Fortunes (1942),
État de veille (1943), Contrée, Le bain avec Andromède e Trente
chantefables pour les enfants sages (1944).
Em setembro de 1942, em artigo, no jornal Aujourd’hui, ele atacou Pierre Pascal, diretor
da revista fascista e antisemita L’Appel.
Pascal se queixou a Georges Suarez, diretor de Aujourd’hui, que passou a censurar os artigos de Desnos. Jean Paulhan
manifestou-se solidário com seu protesto contra o periódico fascista. Conhecendo
a ameaça que pesava sobre si, escreveu poemas de protesto, sob pseudônimos, que
foram publicados em diversas revistas.
O poeta não chegou a ver editados os três livros
finais de sua obra literária: Contrée,
Le bain avec Andromède e Calixto. Contrée, dedicado a Youki e ilustrado por Picasso, foi publicado em
1944, quando Desnos havia deixado o campo de Royallieu, em Compiègne, deportado
ao campo de Floha, em Saxe. Le bain avec Andromède
foi também publicado em 1944. Em ambos, ele usa o soneto e outras formas clássicas
da rima e da métrica. Para Calixto, escrito
em 1943, Desnos não teve tempo de encontrar um editor.
Em 14 de junho de 1943, publicou na revista L’Honneur des Poètes, com o pseudônimo de
Pierre Andier, o poema “Ce coeur qui haissait la guerre voilà qu’il bat pour le
combat et la bataille”, em que expressa sua revolta contra Hitler e seus defensores.
A mesma revista edita, sob o pseudônimo de Valentin Guillois, em maio de 1944, já
depois da prisão do poeta, o poema “Le veilleur du Pont-au-Change”, esse vigia que
sofre com os gritos de um povo torturado pela tragédia da guerra. Eis um excerto:
Je suis le veilleur de la rue de Flandre,
Je veille tandis que dort Paris.
Vers le nord un incendie lointain rougeoie dans la nuit.
J’entends passer des avions au-dessus de la ville.
Transito pela área onde se encontra a derradeira
morada de Robert Desnos, setor antigo de Paris, que escapou às reformas empreendidas
por Georges-Eugène Haussmann e permanece arquiteturalmente intacto. Da rue Saint-André-des-Arts,
chego à rue Mazarine, nº 19, local onde o poeta viveu até o momento em que foi preso
e martirizado pela Gestapo. A placa lateral resume o trágico destino do fulgurante
Robert Desnos, que, com Philippe Soupault, André Breton, Louis Aragon e Paul Eluard,
inventou, com o frenesi verbal da escrita mediúnica e onírica, as filigranas imagéticas
do surrealismo.
Revejo
o maciço portal e a fachada de bonitas janelas do edifício da estreita rue Mazarine,
que faz um triângulo com a rue Dauphine, onde seu amigo Jacques Prévert foi seu
vizinho, no número 37.
Da rue Mazarine avista-se a pomposa e dourada
cúpula do Institut de France, diante do qual o Sena escorre suas águas tranquilas.
Passo por um microjardim, que exibe uma estátua branca de Voltaire, e, de súbito,
abrem-se os horizontes, entre as pontes do Carrousel e des Arts, a segunda com o
seu passadiço de madeira, sobre a vazada estrutura de ferro.
De sobre a Pont des Arts, recoberta de vigas
de madeira, vejo o istmo onde o leito do fabuloso rio se bifurca para dar lugar
à Île de la Cité, que ostenta no horizonte suas torres monumentais: Sainte Chapelle,
Notre-Dame, Tour Saint-Jacques e outras maravilhas.
No quai de Conti, um prédio antigo tem a inscrição
de que ali existiu a Tour de Nesle, erguida por ordem do rei Philippe Auguste em
1200. Um pouco adiante, a estátua do Marquês de Condorcet, filósofo e matemático,
membro da Academia das Ciências de Paris, autor do Ensaio sobre o Cálculo Integral,
morto pelos jacobinos revolucionários, em 1794. Entre claras edificações, o dia
ilumina a Pont Neuf, de esplêndida perspectiva, com Henri IV alçado ao pedestal,
cavaleiro impecavelmente talhado em bronze.
Voltando até o boulevard Saint-Germain, almocei
num restaurante, entrei na curtíssima rue de l’Éperon, e dei de cara com o número
10, um edifício recuado, em que um pátio separa as residências do grande portal,
cuja placa indica que ali Théodore de Banville faleceu, no dia 13 de março de 1891.
Quando a lua, quase plena, ergue o fulgor cristalino
sobre o clarão da tarde, a place Dauphine aparece, triangular e arborizada, com
o registro de que, num ângulo de seu espaço, no dia 18 de março de 1314, pereceu
na fogueira Jacques de Molay, o Grande-Mestre dos Templários. Na perpendicular,
a magnífica fachada lateral da Conciergerie, bordada de esculturas e suas torres
cônicas, voltadas para o Sena. Não pude evitar de despejar uma mijada “sous le Pont
Neuf”. Paris é uma cidade desprovida de suficientes banheiros públicos. Os comerciantes
dos bares e restaurantes lucram com isso, porque é preciso pagar sempre um cafezinho
para eles aquiescerem à oportunidade de usarmos os banheiros dos seus estabelecimentos.
No dia 22 de fevereiro de 1944, Desnos foi detido
pela Gestapo, na rue Mazarine, onde vivia com Youki. Nos dias 4 e 5 de março foi
conduzido ao campo de Compiègne. Em seguida, levado a Auschwitz e, em junho, ao
campo de Saxônia, onde sobreviveria durante ano. A edição das obras completas de
Robert Desnos, sob o título de Oeuvres,
por Quarto Gallimard, em 1999, com apresentação de Claire Dumas, reproduz depoimentos
comoventes e chocantes sobre os dias finais do poeta. Sobre sua prisão, no dia 22
de fevereiro de 1944, Youki revelou que os agentes da Gestapo, que já haviam detido
o poeta André Verdet, bateram à porta do apartamento da rue Mazarine, e vasculharam
tudo. Encontraram a lista de nomes dos amigos “résistants” de que Desnos afirmou
tratar-se de críticos literários. Levaram o poeta, ante o choro desesperado de Youki,
à rue des Saussaies, reduto nazista onde torturavam os prisioneiros.
Segundo André Verdet, Desnos poderia ter fugido,
mas preferiu o não fazer, temendo que os policiais, em sua ausência, prendessem
Youki, em represália. Acreditava, também, que os nazistas não teriam provas flagrantes
de sua atividade clandestina. Na crueza horripilante do cativeiro, Desnos sofreu
espancamentos durante a prisão.
Robert Desnos e o grande místico Max Jacob foram
duas das eminentes vítimas daqueles tempos tenebrosos em que a guerra matou inúmeros
gênios das artes na Europa.
Breton não se cansava de admirar a extraordinária capacidade para a experimentação
verbal de Desnos. Quando, em 1922, proferiu palestra no Ateneo de Barcelona, Breton
elogiou Desnos, ao declarar que “somente um homem de toda atadura, como ele, poderia
levar o fogo tão longe”.
É admirável o frenesi verbal e o sentido de humor
com que Desnos pratica jogos de palavras, com aliterações e ressonâncias, que surpreendem
etimologias. Por exemplo:
Nos traditions/Notre addition.
Éveques caducs
qui baptisez les Èves aux aqueducs
Moi j’aime l’épaule de la femme
les poles de l’afamme
et ses reins froids comme les cailloux du Rhin.
De Les nuits
blanches, “Ô jeunesse” é, ao mesmo tempo, um hino à vida e uma elegia de melancólica
inflexão:
Ô jeunesse, voici que les noces s’achèvent
Midi flambant fait pressentir le crépuscule.
Le cimetière est plein d’ amis que se bouscoulent.
(...)
Les convives s’en vont des tables du banquet
Les nappes sont tachées de blanc
Et le parquet est blanchit
Par les pas des danceurs et des rêves.
Couplet
de la rue de Bagnolet, escrito em 1942, do livro État de veille, é outro de seus poemas que
admiro intensamente:
Le soleil de la rue de Bagnolet
N’est pas un soleil comme les autres
Il se baigne dans le ruisseau,
Il se coiffe avec un seau,
Tout comme les autres,
Mais, quand il me caresse les épaules,
C’est bien lui et pas un autre.
Na primeira viagem de pesquisas, no dia 25 de
maio de 2012, estive na rue de Bagnolet, à qual Desnos dedica o belo poema, e constatei
haver naquele ambiente alguma coisa misteriosa que suscita a inspiração poética.
Então, sentado num banco de um jardim daquele setor distante do centro de Paris,
escrevi este poema:
O
sol da rua de Bagnolet tem voluptuosa carícia. Banha-me os ombros, com ternuras
de enlevo. É diferente dos outros; bem o sentiu Robert Desnos, cantando-o em visões
de evasão. A rua de Bagnolet deu-lhe o alívio das florações fosforescentes e o sorriso
das musas, feito rosas que o vento beija. O sol da rua de Bagnolet convida-nos a
visitar os jardins e faz de Paris uma lâmpada amorosa. Um deleite na pele, no cérebro
e na respiração. Sol vertiginoso, de sombra benevolente, com pássaros canoros. Generoso,
qual vinho de luz; acolhedor, como os auspícios da ventura.
A inestimável contribuição de Robert Desnos para a revolução literária e
libertária das décadas de 1920 a 1940 se configura em todos os seus escritos e atitudes.
Apesar da ruptura da amizade em 1929, quando Desnos se aproxima de Bataille e do
grupo da revista Documents, Breton, em seu Perspective cavalière,
o considera o profeta do surrealismo ou o que mais se aproximou da verdade surrealista.
Um homem que sonhava alto, sem dormir, e que se inscreveu contra a vida convencional,
pois a sua inspiração não admitia limites a seu império.
Os amigos de ofício
literário deploraram as condições atrozes de sua morte. Éluard, em discurso pronunciado
em Praga, durante homenagem prestada a Desnos, afirma que sua poesia tem todas as
audácias possíveis de pensamento e de liberdade e que ele deu a vida pelo que tinha
a dizer. Sua obsessão pelo erotismo e pela ternura, e seu talento, nos jogos de
palavras e improvisações verbais, vêm, efetivamente, da fonte dos grandes mestres
da alquimia do verbo, da vidência e da fascinação do enigma.
MÁRCIO CATUNDA | Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros.
LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensayista, y traductora. Junto a Sergio Lima y Paulo Paranaguá organizó la 13ª Expo Surrealista Internacional en São Paulo (1967). En esa época realizó dos viajes a París y tuvo un encuentro entrañable con algunos integrantes del grupo surrealista francés. Ha publicado los poemarios Cometas (1977), Poemas plásticos (1980), y A mobília violenta do ar (2020). Participó en la expo surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Reside en São Paulo.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 06
Número 205 | março de 2022
Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)
Tradução: Floriano Martins
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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