quinta-feira, 24 de março de 2022

MÁRCIO CATUNDA | A poesia de Robert Desnos e a fascinação do enigma

 


Robert Desnos nasceu em Paris no dia 4 de julho de 1900, no boulevard Richard-Lenoir, nº 32, próximo à Bastille. Seu pai, Lucien Desnos, era comerciante de alimentos no Quartier des Halles. Sua mãe se chamava Claire Guillais. Sua irmã mais velha, Lucienne. Aos 13 anos de idade, abandonou os estudos na Escola Municipal Superior de Turgot (rue de Turbigo, 68) para se tornar um autodidata, a partir dos 13 anos de idade.

Desnos passou parte da infância e da adolescência na rue Saint-Martin. Quando ali residia, perto da igreja de Saint-Martin, tornou-se cinéfilo. Frequentava, cotidianamente, o Cine Opéra e os cinemas dos Grands Boulevards.

Ao chegar a Les Halles, admirei a grande praça com muitos bancos de concreto e caminhos designados por nomes de poetas. Pela rue des Lombards, cheguei à rue Saint-Martin e encontrei o número 11, edifício onde Robert Desnos viveu a infância (de 1902 a 1913). Prédio alto, com pequenas varandas de grades, no terceiro e no sexto andares. Naquela área antiga de Paris, onde predominam as vultosas arquiteturas da portentosa igreja de Saint-Eustache e do metálico e envidraçado Centre Pompidou, estão situadas as residências de infância de Nerval e de Desnos.

Na praça lateral, decorada, ao centro, por uma fonte desfigurada, existia o cemitério dos Inocentes, dos tempos de Philippe Auguste, com dois milhões de sepulturas, extinto em 1785. Cruza-se a rue Saint-Denis, transitada apenas por pedestres, chega-se à rue Saint-Martin. Alguns passos mais, aparecem, na rue du Cloître Saint-Merri, a velha igreja do mesmo nome e uma pequena praça com esculturas modernas, ao pé do industrioso Pompidou.

As engrenagens do Centro Pompidou contrastam com a velha Tour Saint-Jacques, que deparamos nas imediações da rue Nicolas Flamel. A torre é uma magnífica coluna erguida, como um alto farol, no itinerário dos peregrinos.

 Na esquina da rue des Lombards com a rue de Saint-Denis, havia o restaurante Le Boeuf, onde Desnos e Breton se reuniam com seus colegas surrealistas (o estabelecimento hoje se chama Arena Café).

Daquela área, caminhei a pé até a rue de Turbigo, nº 68, onde estudou Desnos. Depois de passar em frente à estação do metrô Arts et Métiers e às encardidas paredes, impregnadas de fuligem, da velha igreja de Saint-Nicolas des Champs, avistei o lycée Turgot, entre as rue des Fontaines e a rue Sainte-Élisabeth. Liceu com grandes janelas e cinco andares, ocupando quase a metade da quadra.

Aos 17 anos, Desnos trabalhou como empregado de uma farmácia na rue Pavée, no Marais. Em seguida, foi secretário do jornalista e editor Jean de Bonnefon, ocasião em que conheceu o movimento dadaísta. Em 1920, com 20 anos, Robert Desnos fez o serviço militar em Chaumont, onde recebeu correspondência de seu amigo Benjamin Péret, convidando-o a um encontro em Paris, tão logo ele tivesse um período de recesso nas obrigações da caserna. Desnos vai ao Marrocos, completar a missão militar, durante dois anos. Ao regressar a Paris, alojou-se no apartamento dos pais, na rue de Rivoli, nº 9, no sexto andar. Conheceu, então, por intermédio de Benjamin Péret, o pessoal da revista Littérature: Éluard, Soupault, Crevel, Ernst, Péret e Vitrac, numa taberna chamada Certa, na rue de Richelieu. Logo iniciaria sua participação nas sessões de escrita automática e sonhos hipnóticos, no domicílio de André Breton, na rue Fontaine, tendo se tornado um dos maiores ativistas do surrealismo e o principal redator da revista La Revolution Surréaliste.

Desnos tinha o hábito de passear pelas ruas desertas das noites de Paris, especialmente pela Île Saint-Louis, para observar o brilho luminoso das janelas, com os raios de luz filtrados pelas venezianas. Nessas deambulações, nasciam-lhe ideias criativas sobre os mundos do sonho e da vigília. Queria decifrar o estado que Nerval chamava de “supernaturaliste”, que, desde sempre, inspirou os grandes poetas.

Robert Desnos mostrou, desde cedo, seu talento para os libérrimos voos da imaginação, como o demonstram os textos de Nouvelles Hébrides, que Francis Picabia ilustrou, livro pleno de referências aos amigos surrealistas e repleto de humor e filigranas semânticas.

Minha ida ao endereço de Desnos, na rue Rivoli, resultou em uma das mais extensas caminhadas que fiz em Paris. Procedente do Louvre, passei pela place du Châtelet e vi a coluna cingida pelo anjo que porta a coroa da glória. Segui até a torre Saint-Jacques, pontilhada de estátuas, com o santo peregrino em seu pináculo, cajado à mão, mirando na direção de Compostela. Um arauto vivo, com o brilho cinzelado de suas incrustações. Medito sobre o tempo em que existiu, ao pé desse alto minarete, a igreja de Saint-Jacques de la Boucherie, de onde partiam os milhões de peregrinos de todas as nacionalidades para visitar o túmulo do Apóstolo. Cruzo a esquina da rue Saint-Martin com a rue Rivoli, onde Prévert se refere às suas recordações de Desnos, no poema que fez em sua homenagem. Vejo, adiante, o portentoso Hôtel de Ville, de cem janelas, entre as estátuas dos próceres da cidade (Bailly, Ledru Rollin, D’Alembert, Richelieu, Le Sueur e outros), esculpidas numa floresta de símbolos. Cruzo a rue du Pont Louis-Philippe e depois a rue Tiron. Por fim, encontro o vistoso edifício de número 9 da rue Rivoli, no impecável estilo neoclássico parisiense, de varandas pequenas nas janelas estreitas. Vejo no alto a janela do apartamento de cobertura, no sexto andar, onde viveu Desnos. Avisto dali, a cem metros, a fachada da igreja de Saint-Paul, de alta nave iluminada por belos candelabros. Entro pela estreitíssima rue du Prévot para contemplar, por trás da igreja, o prédio antigo onde funcionou o lycée Charlemagne, na rua do mesmo nome desse colégio em que Gautier e Nerval estudaram.

No tempo das experiências com a escrita automática, Robert Desnos publica Deuil pour deuil, no ano de 1922, com um discurso profético, em que se notam suas ousadas metáforas, concebidas com o desgarrado delírio verbal que será sua marca permanente. Essas características se confirmariam nos livros seguintes, a saber: L’Aumonyme e Langage cuit, escritos em 1923, e marcados pela fluência dos jogos verbais com a similitude das palavras e a homonímia.

Em seu romance La liberté ou l’amour!, de 1924, que tem como epígrafe o poema Les veilleurs, de Rimbaud, nota-se, pela agressividade da linguagem em alguns trechos, a influência de Lautréamont. Diversas referências a Paris aparecem no discurso caótico de exacerbada imaginação, que caracteriza o ideário surrealista na obra de Robert Desnos.

A personagem Louise Lame corresponde à Nadja, de André Breton. Diversos lugares de Paris são referidos no romance, narrado, alternativamente, na primeira pessoa do singular ou de forma impessoal.

O narrador declara que vai pela rua des Pyramides ao jardin des Tuileries, encontra Louise Lame sob as arcadas da rue de Rivoli e, em seguida, mantém com ela uma experiência erótica no Bois de Boulogne.

Páginas adiante, Corsaire Sanglot e Louise Lame vão do jardin des Tuileries, pela rue Mont-Thobor, a “une ‘fiambre’ d’hôtel” que os hospeda para que desfrutem de momentos eróticos. Corsaire Sanglot tenta salvar uma mulher de um incêndio na rue de Rivoli.

Sua linguagem onírica se faz notar quando Louise Lame, já sepultada no cemitério de Montparnasse, é avistada pelo Corsaire na place de la Concorde, mas não fica evidente se o episódio se refere a um sonho ou a um fantasma. Outras visões fantásticas e atemporais são descritas: pelo boulevard des Batignoles, olhando o rastro carbonífero dos trens que saem da Gare Saint-Lazare, ele avista Jack, o Estripador; da rue Royale à place de la Concorde, ele vê o rei Louis XVI caminhando em direção ao cadafalso.

Na página 62 do romance acima mencionado, Desnos revela a intuição da sua morte precoce: “Il n’est pas de jour où l’image ridicule de la mort n’intervienne dans le décor mobile de mes rêves. Elle ne me touche guère, la mort matérielle, car je vis dans l’éternité”.

Desnos era um visionário total. Via fantasmas, em suas frenéticas inspirações. Aragon testemunhava que Desnos fechava os olhos e falava um turbilhão de profecias que agitavam o Oceano. De fato, em seus Trois livres de prophéties, de 1925, ele prevê a longevidade de Aragon e a brevidade da vida de Éluard. Breton louvava a aura frenética e o exaltado fanatismo poético de Desnos, comparável ao de Isidore Ducasse. Certa ocasião, Desnos teve uma alucinação em que se deparou com Robespierre. Durante outro de seus transes oníricos, perseguiu Éluard, com uma faca, no jardim de uma casa, na cidade de Saint-Brice. Depois desse episódio grotesco, ao perceber que o desquilíbrio mental ameaçava os adeptos do surrealismo, Breton suspendeu temporariamente as sessões de sonhos e escrita automática.

Em 1925, Robert conheceu, no Olympia, Yvonne George, vedete belga e estrela do “music-hall” parisiense. Bastou ver Yvonne num concerto, cantando canções de marinheiro, para ficar encantado com sua energia vibrante e sua sensualidade. Em artigo escrito em louvor da artista, ele declara admirar sua faculdade de dar vida a tudo o que não é senão múmia num deserto de areia (DESNOS, Robert. Oeuvres, Gallimard). Escreveu dois livros em intenção de Yvonne, a saber: À la misterieuse, publicado, em primeira versão, na revista La Révolution Surréaliste, número 7, em junho de 1926, quando ele trabalhava no jornal Paris-Soir, e Les Ténèbres, escrito em 1927, quando ele era redator do jornal Paris-Matinal.

Acontecimento relevante em sua biografia foi sua viagem a Havana, em março de 1928, para participar do VII Congresso da Imprensa Latino-Americana. Fato curioso: sua missão foi defender a imprensa latino-americana, como delegado do jornal La Nación, de Buenos Aires.


Data desse período sua amizade com Antonin Artaud, que o admirava. Desnos ajudou Artaud nos momentos críticos de perturbação mental, sobretudo na tentativa de eretorar aquele amigo do hospício de Rodez, na década de 1940. Desnos foi parceiro do artista plástico e cineasta Man Ray, ao produzir o cenário para o filme L’étoile de mer, realizado em 1928. Foi redator do Paris Matinal, até 1929. Reunia-se, nesse tempo, com a confraria da rue du Château, 54 (Marcel Duhamel, André Breton, André Masson, Paul Éluard, Jacques Prévert, Raymond Queneau e Louis Aragon). Recusou-se sempre, no entanto, a atender às convocações de reuniões, por Breton e Aragon, para esclarecer as posições políticas dos surrealistas. E decidiu não aderir ao Partido Comunista, embora instado com ênfase pelos colegas de ofício literário.

Após esse período na república dos artistas da rue du Château, ele passou uma temporda na rue Blomet, nº 45, em Montparnasse, vizinho ao ateliê de Miró.

Frequentou o café Le Dôme, onde conheceu o casal Foujita (o pintor japonês e sua namorada, Youki, modelo parisiense, cujo nome de batismo era Lucie Badoul), que morava na rue du parc Montsouris. O ano de 1929 marca o momento de seu encantamento por Youki, a qual, após a partida de Tsuguharu Foujita para o Japão, converteu-se na musa sirène, cujo canto inebriante seduzia o poeta boêmio, adepto do cabaret Le Bal Nègre, na rue Blomet, nº 33 (que hoje se denomina Le Bal Blomet e promove concertos de jazz e de música clássica).

 

Il n’était pas une fois

un beau chateau au centre d’un désert

nul ne tentait d’en franchir l’accès

dans un bassin

y nageait une sirène.

(Desnos, “Sirène”, In: Youki, Poésie, 1930).

 

Ele evoca a república dos artistas da rue Blomet, nº 45, num ensaio em que diz haver ocupado um quarto que era de André Masson:

 

C’était un phénomène parisien, un clos herbu, planté d’un lilas qui doit y fleurir encore chaque année et d’une vigne que le gérant, qui avait des idées esthétiques, fit arracher parce que cela faisait sale. (Desnos, Oeuvres, 1999).

 

Fui num táxi até a avenue du Maine, porque em Paris imperava o caos da greve dos metrôs. Comecei a caminhar do ponto em que o boulevard Montparnasse deriva à direita para dar lugar à rue de Vaugirard, que forma um triângulo com ele e com a avenue du Maine. Três quadras depois desse movimentado ponto de circulação, vi a torre ebúrnea de Montparnasse. Segui caminhando pela rue Vaugirad, contornei o formidável Port-Royal pelo boulevard Pasteur. Por fim, chego à rue Lecourbe, que me desvenda a rua Blomet. Não é a rue Lecourbe que é curva, mas a própria Blomet, que dela nasce e vai sinuosa e estreita, à extensão de um trecho de seu percurso, até retificar-se mais adiante. Nessa exaustiva travessia, aproximou-se de mim um cidadão de cabelos grisalhos, surpreso de me ver fazendo anotações em plena rua, num dia 24 de dezembro, e perguntou minha profissão. Contei-lhe minha aventura de peregrino da poesia e ele achou interessantíssimo o meu projeto de escrever sobre poetas e seus endereços em Paris. Que poetas? Citei alguns. Ele perguntou se faço fotos. E se admirou ainda mais ao conhecer um brasileiro tão interessado em literatura francesa. Quando eu ia indagar a respeito dele, o homem se evadiu. E eu segui adiante, até deparar a placa e o toldo vermelhos do Le Bal Blomet, na esquina com a estreitíssima rue Copreaux. Com sua cobertura, a velha casa de espetáculos parece um chalé. Fotografei o local.

Segui andando até o número 45, onde morou Desnos, de 1926 a 1930 (hoje, um jardim público e um muro com a placa em que se informa que “ce milieu cosmopolite et convivial a participé de la naissance du mouvement surréaliste”). Além do nome de Desnos, mencionam-se os de vários artistas que tiveram ateliês no local, entre os quais Joan Miró e André Masson, bem como os poetas Michel Leiris, Antonin Artaud, que frequentaram aquele espaço. Joan Miró ofereceu à cidade de Paris a escultura em bronze L’Oiseau Lunaire, ali disposta em 1974, como souvenir do “45, rue Blomet”, e em homenagem a Desnos.

Discordâncias, não apenas no tocante ao uso dos recursos tradicionais da poesia, mas sobretudo de natureza política, suscitaram susceptibilidades entre os combativos surrealistas. Para Desnos, os surrealistas estavam mais próximos do anarquismo do que do comunismo. Em 1929, Desnos passou a colaborar na revista Documents, de Georges Bataille.

Breton e Aragon haviam convidado os escritores a uma reunião num bar da rue du Château, em março de 1929, para que dessem conta do alinhamento político de suas literaturas, apresentando-lhes um questionário. Desnos respondeu que tinha absoluto desprezo por toda atividade literária ou artística ou antiliterária ou antiartística, e absoluto pessimismo no que concerne a uma atividade social. Recusava-se, também, a colaborar em atividade comum e aceitar palavras de ordem e disciplina, quase sempre demasiado arbitrárias.

Em dezembro de 1929, no último número da revista La Révolution Surréaliste, André Breton publicou o Segundo Manifesto Surrealista, no qual, com um texto irônico e prolixo, exclui Desnos do Movimento. A relutância de Desnos em não se enfileirar naquele momento entre os membros do Partido Comunista provocou, efetivamente, a ruptura entre ambos.


Desnos respondeu, em janeiro de 1930, com um texto violento, intitulado Thomas l’imposteur, incluído no panfleto Un cadavre, em que diversos escritores batem forte no lombo de Breton. Apoda-o de fantasma pútrido, desprezível e intrigante, por disseminar vilanias e infâmias contra Soupault, Aragon e Éluard (de quem Breton chegou a queimar os livros porque Éluard não lhe emprestou dez mil francos). Acusou Breton de jamais haver escrito nada criativo e de não ter condições de se fazer passar por chefe de moralidade nem exemplo de vida, já que suas atitudes estavam motivadas por vantagens materiais.

Desnos publicou, também, provocativamente, o Terceiro Manifesto Surrealista, em 1930, no Le Courrier Littéraire. Nesse ano, ele edita Corps et biens, onde consta Le Poème à Florence, o que mais aprecio, dentre seus formidáveis textos. Consite numa elegia, escrita em memória de uma jovem amiga, falecida em acidente automobilístico. Seus primeiros versos fazem pensar na incerteza do destino:

 

Comme un aveugle s’en allant vers les frontières.

 

Há, na sequência, o sentimento de finitude e desilusão, que o poeta sublima com um clamor dionisíaco, hedonista:

 

Voici venir les jours où les oeuvres sont vaines

Où nul bientôt ne comprendra ces mots écrits

Mais je bois goulûment les larmes de nos paines

Quitte à briser mon verre à l’ écho de tes cris

Je bois joyeusement faisant claquer ma langue

Le vin tonique et mâle et j’invite au festin

Tous ceux-là que j’aimai. Ayant brisé leur cangue

Qu’ils viennent partager mon rêve et mon butin.

Buvons joyeusement ! chantons jusqu’à l’ivresse!

Nos mains ensanglantées aux tessons des bouteilles

Demain ne pourront plus étreindre nos maîtresses.

Les verroux sont poussés aux pays des merveilles.

 

Esse poema é uma profecia sobre seu descomunal destino. Os ferrolhos seriam cerrados e se acabaria o acesso ao país das maravilhas de sua infância e juventude. Aragon expressou, num poema a Desnos dedicado, a ideia dessa profecia de que a vida seria tão breve para aquele amigo iluminado, que ele teria de aproveitar tudo nos poucos dias que lhe restavam para viver.

Começa, então, um período de prolífica criatividade em que Desnos escreve artigos de crítica de cinema e de música, mantém intercâmbio com Picasso, Hemingway, Artaud e John dos Passos e incrementa seu interesse por assuntos políticos. Sua militância no jornalismo foi-se voltando para a crítica ao fascismo que campeava na Europa.

Viaja com Youki duas vezes à Espanha: em 1932 e 1935. Na segunda viagem, conheceu García Lorca por intermédio de Pablo Neruda. A partir de 1934, morou com Youki no imóvel nº 19, da rue Mazarine, próximo à esquina com a rue Dauphine, onde recebia escritores e outros artistas. Bebia o vinho cotidiano nos bistrôs ali próximos, na rue Saint-Merri. Publicou Les sans cou, com a ressonância dos “romans noirs”, ilustrado por André Masson. Trabalhava, então, na Radio-Luxembourg, como redator de programas radiofônicos sobre poesia. Com a colaboração de Alejo Carpentier, produziu uma série de emissões sobre a poesia de Walt Whitman. Escrevia letras para canções de Darius Milhaud e textos sobre cinema.

Foi então que ele gravou, com Artaud, o poema La complainte de Fantômas, parafraseando o romance popular, publicado em folhetim, em 1911, de autoria de Pierre Souvestre e Marcel Allain, que põe em evidência o marginal perseguido pelo comissário Juve. O poema, editado em Corps et biens, menciona diversos pontos da cidade, onde o delinquente Fantômas perpetrou suas façanhas. Foi musicado por Kurt Weill e está no disco da coleção Poètes & Chansons, graças à louvável iniciativa de Marc Robine e Bernard Ascal, aos quais devemos uma série de poemas musicados dos principais poetas franceses. Aqui transcrevo alguns excertos:

 

Un beau jour des fontaines

Soudain chantèrent à Paris,

Le monde était surpris,

Ignorant que ces sirènes

De la Concorde enfermaient

Un roi captif qui pleurait.

       (...)

Du Dôme des Invalides

On volait l’or chaque nuit,

Qui c’était? Mais c’était lui,

L’auteur de ce plan cupide.

User aussi mal son temps

quand on est intelligent!

        (…)

Dans la nuit sinistre et sombre,

À travers la Tour Eiffel,

Je v’poursuit le criminel.

En vain guette-t-il son ombre.

Faisant un suprême effort

Fantômas échappe encore.

        (…)

Allongeant son ombre immense

Sur le monde et sur Paris,

quel est ce spectre aux yeux gris

qui surgit dans le silence?

Fantômas, serait-ce toi

qui te dresses sur les toits.

 

Outro momento marcante da vida de Desnos foi sua participação, em janeiro de 1937, juntamente com Neruda e Vallejo, na Casa da Cultura da AEAR (Associação de Escritores e Artistas Revolucionários), na homenagem a García Lorca, fuzilado pelos franquistas em 18 de outubro de 1936. Desnos inaugurou, na rádio Le Post-Parisien, em 1938, o programa La Clef des Songes, no qual se estudava o mistério dos sonhos por meio de entrevistas a cientistas estudiosos do tema.

Sua adesão, a um só tempo, à Frente Popular Francesa, à Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários e ao Comitê de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas (CVIA) revelou, desde 1942, seu compromisso voluntário e corajoso com a poesia participante e combativa – atividades que redundaram em sua prisão em 1939. Liberado, ele volta à militância, altercando com Louis-Ferdinand Céline, nos artigos do jornal Aujourd’hui. Desnos manteve sua convicção de lutar até à morte para que os opressores não triunfassem. Continuou escrevendo artigos e livros. São desse tempo Fortunes (1942), État de veille (1943), Contrée, Le bain avec Andromède e Trente chantefables pour les enfants sages (1944).

Em setembro de 1942, em artigo, no jornal Aujourd’hui, ele atacou Pierre Pascal, diretor da revista fascista e antisemita L’Appel. Pascal se queixou a Georges Suarez, diretor de Aujourd’hui, que passou a censurar os artigos de Desnos. Jean Paulhan manifestou-se solidário com seu protesto contra o periódico fascista. Conhecendo a ameaça que pesava sobre si, escreveu poemas de protesto, sob pseudônimos, que foram publicados em diversas revistas.


A guerra aconteceu no momento de maior produção literária de Desnos. Fortunes, livro de 1942, é uma retrospectiva de dez anos de poesia. Apoiado na própria experiência e no exemplo de Yvonne George, vítima da deterioração física e mental que as drogas acarretam, Le vin est tiré, romance de 1943, denuncia os malefícios das drogas e sua extensão inelutável.

O poeta não chegou a ver editados os três livros finais de sua obra literária: Contrée, Le bain avec Andromède e Calixto. Contrée, dedicado a Youki e ilustrado por Picasso, foi publicado em 1944, quando Desnos havia deixado o campo de Royallieu, em Compiègne, deportado ao campo de Floha, em Saxe. Le bain avec Andromède foi também publicado em 1944. Em ambos, ele usa o soneto e outras formas clássicas da rima e da métrica. Para Calixto, escrito em 1943, Desnos não teve tempo de encontrar um editor.

Em 14 de junho de 1943, publicou na revista L’Honneur des Poètes, com o pseudônimo de Pierre Andier, o poema “Ce coeur qui haissait la guerre voilà qu’il bat pour le combat et la bataille”, em que expressa sua revolta contra Hitler e seus defensores. A mesma revista edita, sob o pseudônimo de Valentin Guillois, em maio de 1944, já depois da prisão do poeta, o poema “Le veilleur du Pont-au-Change”, esse vigia que sofre com os gritos de um povo torturado pela tragédia da guerra. Eis um excerto:

 

Je suis le veilleur de la rue de Flandre,

Je veille tandis que dort Paris.

Vers le nord un incendie lointain rougeoie dans la nuit.

J’entends passer des avions au-dessus de la ville.

 

Transito pela área onde se encontra a derradeira morada de Robert Desnos, setor antigo de Paris, que escapou às reformas empreendidas por Georges-Eugène Haussmann e permanece arquiteturalmente intacto. Da rue Saint-André-des-Arts, chego à rue Mazarine, nº 19, local onde o poeta viveu até o momento em que foi preso e martirizado pela Gestapo. A placa lateral resume o trágico destino do fulgurante Robert Desnos, que, com Philippe Soupault, André Breton, Louis Aragon e Paul Eluard, inventou, com o frenesi verbal da escrita mediúnica e onírica, as filigranas imagéticas do surrealismo.

 Revejo o maciço portal e a fachada de bonitas janelas do edifício da estreita rue Mazarine, que faz um triângulo com a rue Dauphine, onde seu amigo Jacques Prévert foi seu vizinho, no número 37.

Da rue Mazarine avista-se a pomposa e dourada cúpula do Institut de France, diante do qual o Sena escorre suas águas tranquilas. Passo por um microjardim, que exibe uma estátua branca de Voltaire, e, de súbito, abrem-se os horizontes, entre as pontes do Carrousel e des Arts, a segunda com o seu passadiço de madeira, sobre a vazada estrutura de ferro.

De sobre a Pont des Arts, recoberta de vigas de madeira, vejo o istmo onde o leito do fabuloso rio se bifurca para dar lugar à Île de la Cité, que ostenta no horizonte suas torres monumentais: Sainte Chapelle, Notre-Dame, Tour Saint-Jacques e outras maravilhas.

No quai de Conti, um prédio antigo tem a inscrição de que ali existiu a Tour de Nesle, erguida por ordem do rei Philippe Auguste em 1200. Um pouco adiante, a estátua do Marquês de Condorcet, filósofo e matemático, membro da Academia das Ciências de Paris, autor do Ensaio sobre o Cálculo Integral, morto pelos jacobinos revolucionários, em 1794. Entre claras edificações, o dia ilumina a Pont Neuf, de esplêndida perspectiva, com Henri IV alçado ao pedestal, cavaleiro impecavelmente talhado em bronze.

Voltando até o boulevard Saint-Germain, almocei num restaurante, entrei na curtíssima rue de l’Éperon, e dei de cara com o número 10, um edifício recuado, em que um pátio separa as residências do grande portal, cuja placa indica que ali Théodore de Banville faleceu, no dia 13 de março de 1891.

Quando a lua, quase plena, ergue o fulgor cristalino sobre o clarão da tarde, a place Dauphine aparece, triangular e arborizada, com o registro de que, num ângulo de seu espaço, no dia 18 de março de 1314, pereceu na fogueira Jacques de Molay, o Grande-Mestre dos Templários. Na perpendicular, a magnífica fachada lateral da Conciergerie, bordada de esculturas e suas torres cônicas, voltadas para o Sena. Não pude evitar de despejar uma mijada “sous le Pont Neuf”. Paris é uma cidade desprovida de suficientes banheiros públicos. Os comerciantes dos bares e restaurantes lucram com isso, porque é preciso pagar sempre um cafezinho para eles aquiescerem à oportunidade de usarmos os banheiros dos seus estabelecimentos.

No dia 22 de fevereiro de 1944, Desnos foi detido pela Gestapo, na rue Mazarine, onde vivia com Youki. Nos dias 4 e 5 de março foi conduzido ao campo de Compiègne. Em seguida, levado a Auschwitz e, em junho, ao campo de Saxônia, onde sobreviveria durante ano. A edição das obras completas de Robert Desnos, sob o título de Oeuvres, por Quarto Gallimard, em 1999, com apresentação de Claire Dumas, reproduz depoimentos comoventes e chocantes sobre os dias finais do poeta. Sobre sua prisão, no dia 22 de fevereiro de 1944, Youki revelou que os agentes da Gestapo, que já haviam detido o poeta André Verdet, bateram à porta do apartamento da rue Mazarine, e vasculharam tudo. Encontraram a lista de nomes dos amigos “résistants” de que Desnos afirmou tratar-se de críticos literários. Levaram o poeta, ante o choro desesperado de Youki, à rue des Saussaies, reduto nazista onde torturavam os prisioneiros.

Segundo André Verdet, Desnos poderia ter fugido, mas preferiu o não fazer, temendo que os policiais, em sua ausência, prendessem Youki, em represália. Acreditava, também, que os nazistas não teriam provas flagrantes de sua atividade clandestina. Na crueza horripilante do cativeiro, Desnos sofreu espancamentos durante a prisão.

Robert Desnos e o grande místico Max Jacob foram duas das eminentes vítimas daqueles tempos tenebrosos em que a guerra matou inúmeros gênios das artes na Europa.

 Breton não se cansava de admirar a extraordinária capacidade para a experimentação verbal de Desnos. Quando, em 1922, proferiu palestra no Ateneo de Barcelona, Breton elogiou Desnos, ao declarar que “somente um homem de toda atadura, como ele, poderia levar o fogo tão longe”.

É admirável o frenesi verbal e o sentido de humor com que Desnos pratica jogos de palavras, com aliterações e ressonâncias, que surpreendem etimologias. Por exemplo:

 

Nos traditions/Notre addition.

Éveques caducs

qui baptisez les Èves aux aqueducs

Moi j’aime l’épaule de la femme

les poles de l’afamme

et ses reins froids comme les cailloux du Rhin.

 

De Les nuits blanches, “Ô jeunesse” é, ao mesmo tempo, um hino à vida e uma elegia de melancólica inflexão:

 

Ô jeunesse, voici que les noces s’achèvent

Midi flambant fait pressentir le crépuscule.

Le cimetière est plein d’ amis que se bouscoulent.

       (...)

Les convives s’en vont des tables du banquet

Les nappes sont tachées de blanc

Et le parquet est blanchit

Par les pas des danceurs et des rêves.

 

Couplet de la rue de Bagnolet, escrito em 1942, do livro État de veille, é outro de seus poemas que admiro intensamente:

 

Le soleil de la rue de Bagnolet

N’est pas un soleil comme les autres

Il se baigne dans le ruisseau,

Il se coiffe avec un seau,

Tout comme les autres,

Mais, quand il me caresse les épaules,

C’est bien lui et pas un autre.

 

Na primeira viagem de pesquisas, no dia 25 de maio de 2012, estive na rue de Bagnolet, à qual Desnos dedica o belo poema, e constatei haver naquele ambiente alguma coisa misteriosa que suscita a inspiração poética. Então, sentado num banco de um jardim daquele setor distante do centro de Paris, escrevi este poema:

 

O sol da rua de Bagnolet tem voluptuosa carícia. Banha-me os ombros, com ternuras de enlevo. É diferente dos outros; bem o sentiu Robert Desnos, cantando-o em visões de evasão. A rua de Bagnolet deu-lhe o alívio das florações fosforescentes e o sorriso das musas, feito rosas que o vento beija. O sol da rua de Bagnolet convida-nos a visitar os jardins e faz de Paris uma lâmpada amorosa. Um deleite na pele, no cérebro e na respiração. Sol vertiginoso, de sombra benevolente, com pássaros canoros. Generoso, qual vinho de luz; acolhedor, como os auspícios da ventura.

 

A inestimável contribuição de Robert Desnos para a revolução literária e libertária das décadas de 1920 a 1940 se configura em todos os seus escritos e atitudes. Apesar da ruptura da amizade em 1929, quando Desnos se aproxima de Bataille e do grupo da revista Documents, Breton, em seu Perspective cavalière, o considera o profeta do surrealismo ou o que mais se aproximou da verdade surrealista. Um homem que sonhava alto, sem dormir, e que se inscreveu contra a vida convencional, pois a sua inspiração não admitia limites a seu império.

Os amigos de ofício literário deploraram as condições atrozes de sua morte. Éluard, em discurso pronunciado em Praga, durante homenagem prestada a Desnos, afirma que sua poesia tem todas as audácias possíveis de pensamento e de liberdade e que ele deu a vida pelo que tinha a dizer. Sua obsessão pelo erotismo e pela ternura, e seu talento, nos jogos de palavras e improvisações verbais, vêm, efetivamente, da fonte dos grandes mestres da alquimia do verbo, da vidência e da fascinação do enigma.

 

 



MÁRCIO CATUNDA | Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros.

 

 


LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensayista, y traductora. Junto a Sergio Lima y Paulo Paranaguá organizó la 13ª Expo Surrealista Internacional en São Paulo (1967). En esa época realizó dos viajes a París y tuvo un encuentro entrañable con algunos integrantes del grupo surrealista francés. Ha publicado los poemarios Cometas (1977), Poemas plásticos (1980), y A mobília violenta do ar (2020). Participó en la expo surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Reside en São Paulo.


 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 06

Número 205 | março de 2022

Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)

Tradução: Floriano Martins

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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