eu te lanço
estiolada no tempo e nos confins assistindo a teu severo assalto
brusco e espectral
sobre meu
sangue lúcido entre os lúcidos.
AIMÉ CÉSAIRE
Pelas beiradas do tempo teimosamente tudo difere: o
tamanho das perdas, a largura da dor, o diâmetro da felicidade, a altura do riso;
em qualquer direção, tudo espanta: a insistência das preces, a teimosia do outro,
a lábia esticada do pranto, o milagre afogueado da messe; sem retoques e sem contornos,
segue o tempo, ansiosamente, a se deslocar num ritual que modula as feições travessas
do humano.
Pelas miríades do pensamento, o tempo fertiliza o espaço
com seu cardume de verbos: um espaço de amplas moradas, ocupado centímetro a centímetro
por um bando de sonhos; um espaço de insólitas fotografias, gerado milímetro a milímetro
por um lampejo de percepções; um espaço, ainda assim, metamorfoseado pela ambição
temporal dos sortilégios que por toda parte, todos os metros, busca apreender o
destrinçar inconstante da imaginação.
Pelas curvas do imaginário, o mistério da magia confabula
vertiginosamente com o encantamento da palavra; pé ante pé, devagar e sem pressa,
devagarinho, a imaginação, compassadamente, remexe as labaredas dos desejos: imaginar
o tempo e o espaço nos confins do pensar, sentir o encanto inextrincável do cântico
e fazer ressoar em todas as coisas o longo fio da poesia que avança pelas matas,
sem medo algum, do sem-fim.
O sem-fim é ponto de partida, vice-versa da chegada,
inflexão dos meios; o princípio do trajeto, transfiguração dos vícios, rumor faminto
da urgência. O sem-fim é tempo, espaço e imaginação com febris atalhos de nunca
chegar, apenas seguir, indiferente a todo olhar encardido pela mesmice das coisas,
atento à urdidura dos mitos e às pelejas dos seres em sua explícita evocação dos
fenômenos naturais. O sem-fim é escritura que se converte em vida, vice-versa do
viver, vocabulário das águas, rio sensorial dos afetos, floresta assombrosa dos
anseios; livro de magia atiçando em patamares da memória a imensidão da liberdade,
por inteira, na extensão sem limites da poesia.
E no acontecer da poesia, o poeta se basta, rente a
suas férteis lembranças; espécie de demiurgo vai, nas cercanias do oficio, cambiando
imagens e vivências, construindo, com minúcias, artefatos verossímeis de pedaços
de lendas tão afeitos aos costumes das gentes. O poeta esparramado na realidade
entressonha o texto entre usos e costumes, com uma abundância de surpresas deslinda
os sortilégios dos conluios: fábulas e mitos estremecem, desmesuradamente, ao menos
uma vez na vida, diante do poeta que espana o enfado enfim do medo.
E o poeta, quem é? Onde está? O que fez? O que deixou?
Como disse as coisas?
Raul Bopp nasceu em 04 de agosto de 1898, em Pinhal,
no município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O espírito andejo e viageiro
tem inicio em Tupanciretã, que com seus recantos permeados pela tranquilidade e
modorra da rua única fez crescer as vistas do garoto embriagado, desde sempre, pela
vastidão da estrada de ferro e pelos ermos lugares por onde passavam tropas e carros
de boi rangendo crepúsculos, intensificando a vontade de ir além-fronteiras. A infância
já apontava teimosa e irremediavelmente que o mundo estava muito mais adiante com
seus mistérios, encantos e remendos. Desenredar o curso das coisas, portanto, para
o menino, era só mais um susto atiçando curiosidades e despertando o fascínio guardado
pelas distâncias a trilhar. Para ele, desde então, tudo era partida: um riozinho
solicitando lendas e mitos.
Dos Bopp e dos Kroeff, pois, um Raul se fez presente,
construindo suas andanças sem temor, muito menos hesitando frente ao impossível,
afinal de contas, a aventura poética já sinalizava: o aqui pode ser tão somente
um passo a mais para se alcançar o imaginário imemorial do distante. O que de cá
se avista, feito retrato amarelecido, pode muito bem gerar horizontes; e assim foi.
Raul Bopp, com sua índole viandante, pegou a estrada, atravessou fronteiras, delirou
caminhos e de uma ponta a outra do direito, de Porto Alegre, Recife, Belém e Rio
de Janeiro, entortou, de vez, a poesia com a sua radicalidade criativa e a sua mente
livre de todas as amarras consubstanciadas pelos cânones da perdição. Uma poesia
de autêntica maravilha que em sonhos, magia e liberdades desperta tantas proezas,
por menos que isso, apenas a opulência das nuvens a dinamitar os roteiros: uma arvorezinha
a mais sonhando um novo chão.
E parte do mundo seguiu com o poeta: terras de outras
línguas, das lonjuras do oriente, da sedução europeizante, das proximidades da latino-américa,
tudo tão perto para uma mente sempre atenta aos movimentos exteriores do corpo sumarento
da linguagem. Japão, Lisboa, Zurique, Barcelona, Guatemala, Berna, Viena, Lima…
vagões saídos daqueles desengonçados trilhos, dádiva da mãe terra de tupã. Por todos
os caminhos, o poeta, de um ramo a outro do tempo, costurou seu olhar com fina linha
de ensolarada potência. Entre seres encouraçados em tantos ais, cumpriu sua primeira
e definitiva lei: potencializar poeticamente o sonho criador, materialização de
todo devir. Por isso mesmo, sempre vigilante ao tempo, não se deixou enredar nas
malhas bolorentas do bagaço verbal do receituário fácil.
Numa realidade bem pronunciada, o tempo, que no dizer
do poeta Saúl Dias é “esse doido que nos foge”, por vezes, sem deixar pegadas, ou
como assevera María Zambrano: “o tempo é caminho, mas também um passo, uma porta,
um porto”, Raul Bopp caminhou, e muito, para conquistar seu quinhão de sonho, abrindo
portas, atravessando portos, vertiginosamente ocupando os espaços que o real, com
todas as suas reentrâncias e vertentes, se afigura a cada um como desafio maior
do existir: decifrar o percurso dos mitos ciciado na orelha da imaginação. Raul
Bopp realizou-se poeticamente, pois, entrou “no reino da liberdade e do tempo, onde,
sem violência, o ser humano se reconhece e se redime”, eis o vero sentido da realização
poética, na sábia constatação da filósofa e escritora espanhola, acima mencionada.
Datas, bah, quem há de se importar? Umas mais, apenas,
ainda assim para complementar este giro. Das obras publicadas, distribuídas ao longo
dos anos, têm-se: Cobra Norato (1931);
Urucungo (poemas negros, 1932); Notas de Viagens (1960); Notas de um Caderno Sobre o Itamaraty (1960);
Movimentos Modernistas no Brasil (1966);
Memórias de um Embaixador (1968); Putirum (poesias e coisas do folclore, 1969);
Coisas do Oriente (viagens, 1971). De
uma ponta a outra da travessia, lá, do remoto 1898, chega-se à marcação de 02 de
junho de 1984, passagem de Raul Bopp para as terras férteis do Sem-fim. O poeta
que foi um modernista de primeira hora, saído do grupo verde-amarelo, onde pontuavam
nomes como Menotti del Picchia, Plinio Salgado e Cassiano Ricardo, entre outros,
irmana-se intensamente a Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, para expressar com
toda força a antropofagia de um “mundo não datado. Não rubricado”, onde “a alegria
é a prova dos nove” “no matriarcado de Pindorama” e a humana aventura, “no país
da cobra grande”, foge dos estados tediosos e das escleroses urbanas. Raul Bopp
assobiou compassadamente para o tempo e a poesia se fez total.
Desde os primórdios, o poeta, com a sua liturgia de
diversidades, acendeu as chamas enviesadas do pensamento umbigado a terras por desvendar.
Dos Versos Antigos (1916-1930) tão plenos
de “cálidos harpejos”, tangidos ao “som lascivo dos epitalâmios” e fustigados por
“um rumor de lendas pelo ar”, “como sonâmbula fosforescência”, intimamente, eles
transcendem os espaços intranquilos do mistério: árvore-mãe que transpira linguagens
de eras outras e de costumes desatados. Os versos de antiga extração plantaram sementes
febris na urgência da escritura, a nada negligenciando, nem mesmo os rituais assombrosos
do coração, com suas tibiezas, seus vícios, sua plasticidade domada, sua saudade
dormente, sua tristeza raquítica, seus choros ao longo dos corredores da solidão
com sua nostalgia, suas reminiscências adubadas com regozijos líricos e incontestada
louçania linguística.
Ao menos uma vez na vida, a fadiga do passado assanha
o frescor do novo e de novo, lá das profundezas da noite, o linguajar da mais alta
linhagem se faz presente. O que antes era pura estranheza gerada nos berços das
formas assentadas e cultuadas ad infinitum
pelos vates de plantão, com os charmosos, torneados e perfeitos versos, tão afeitos
a uma audiência dormente e inebriada apenas pela musicalidade amestrada das palavras
aprisionadas nos edifícios dos sonetos, dos madrigais e das baladas, ganha corpo
e espessura ampliando a vastidão imemorial dos sentidos. Raul Bopp, já na madurez
de sua juventude, vestiu sua poesia, vagarosamente e para sempre, com um estirão
de imagens “livres e cheias de sol como um verso moderno”. O poeta, lambendo e beliscando
cada vocábulo, tomado, paradoxalmente por uma aflição de velocidade e de posse do
mapa das peles, aponta direções outras para uma outra espécie de epos. Um epos que já vinha anunciado, e muito bem, nas esquinas remotas das duas
décadas iniciais do século XX.
Nos Versos Antigos,
onde “todo o corpo se ilumina/num fulgor de porcelana” e “o corpo em flor de tâmara
macia” esquadrinha as esquisitices mais convidativas do indivíduo, “a alma de prata
das estrelas/pirilampeia na penumbra” e o poeta muda a trajetória “por onde os sonhos
todos vão…” “com seu vago olhar tristonho/parece a mãe-d’água do sonho/boiando numa
lagoa”. Raul Bopp com saborosos, surrealizantes e firmes passos transforma radicalmente
a pele da poesia. Uma pele amorosamente elastecida com fartura de conhecimento,
sabedoria, sentimento, técnica, estilo, imaginação, liberdade e, sobretudo, a aventura
do viver intensa e inteiramente o poético do mundo. Nesses antigos e inventivos
versos, o epos de uma época por vir já
se fazia presente na quina saliente dos poemas que, mais para frente, serpenteariam
nas matas, os medos e as conquistas de Cobra
Norato.
Lá está a quina a ser transposta ou transferida de lugar:
Temporal Amazônico, No Amazonas, Cidade Selvagem, Mãe-Febre e Pântano, poemas
onde a “floresta uiva e se arqueia” e “nos largos céus ensombrados/Nuvens recuam,
em bando/Como crustáceos perseguidos” por uma espécie de um deus resmungão que não
consegue decifrar os segredos da natureza que ele próprio criou e habita; o mesmo
habitat “onde as orquídeas lânguidas balançam/Movem-se
as folhas do açaí, como pernas de aranha espetadas num caule”, num espaço assim,
com olhos selvagens, os deuses se enfurecem, não se apiedam dos mortais, não se
comovem quando “adoecem os horizontes…”, para eles, “melhor é que a tarde role,
encaroçada em nuvens de ouro” e embaralhem tudo: o pântano de febre, a mãe selvagem,
a cidade amazônica no temporal espetaculoso do grande rio. E o grande e vasto rio
é a Poesia em febre criada por Raul Bopp que queima e resiste ao tempo, seu nome:
Cobra Norato (1931).
Pois, então,
psiu. Entre os “muitos eteceteras por aí”, Cobra
Norato pede passagem, acordando a floresta, esse mundo provocantissimamente
aflorado por lendas, mitos, magias, fábulas, mistérios e estradeiros alumbramentos.
A epicidade boppiana não cede ao receituário fácil dos modismos, aquele que colado
à novidade só consegue narrar a mesma coisa da mesmice: simulacros de sombras empoeiradas
sob o sol. A força criativa do autor, oriunda das vivências libertárias da poesia,
traduz a complexa e primitiva natureza do humano que se espraia pr’aquelas bandas
do sem fim da grande vida. De raspão, uma fala, entre tantas de tantas que apreciaram
esta obra, pode muito e de diferentes maneiras resumir o conteúdo literariamente
mágico de Cobra Norato. Ela vale, e muito,
pela abrangência e poder de síntese, uma visão maiúscula e reluzente que merece
uma longa e inteira citação. Registre-se, desse modo, o comentário da imensa crítica
Luciana Stegagno Picchio (2004) que afirma:
O poemeto (São Paulo, 1931) nasce do clima da “Antropofagia”
e, num tom fabulístico de história para crianças, numa língua “primitiva” ritmada
por onomatopeias, cria com extraordinária e sugestiva plasticidade a paisagem amazônica.
O herói mata o Cobra Norato, introduz-se na sua
pele de seda elástica e parte em busca da filha da rainha Luzia, Entra na floresta,
suporta as provas, interroga os passantes, alcança o Cobra Grande, o Grande Serpente,
no momento em que este está para desposar a filha da rainha Luzia, mata-o, e pode
desposar a filha da rainha Luzia. A dimensão irônica e onírica do relato, o jogo
linguístico e o encaixe de folclore […] emprestam à floresta amazônica sombras escuras
como a noite das lendas indígenas, fazem-na úmida de águas subterrâneas, onde “sapos
beiçudos espiam no escuro”, onde “bocejam árvores sonolentas”. Cada verso é uma
invenção; a floresta gera serpentes, as raízes desdentadas das árvores mastigam
lama; na escola, as árvores estudam geometria, constroem-se rios, o vento faz cócegas
nos ramos e anula escritas indecifradas. No alto, a lua tem olheiras, um solzinho
infantil cresce gorducho e alegre. Entrelaçam-se diálogos sem personagens, vozes
da floresta. E, em toda parte, diminutivos (“riozinho”, “florestinhas”), que marcam,
a cada nível, até as formas verbais (“Quero estarzinho com ela”), e imagens surrealistas
de tom modernista: a floresta ventríloqua que restaura o verso para a cidade, as
palmeiras encaracoladas que se abanam, as árvores encapuçadas que libertam fantasmas:
mas também árvores que se telegrafam, ou sapos que estudam o abecedário da floresta.
Se cada verso é uma invenção, o poema inteiro é uma
galáxia de saberes e criativa construção poético-existencial reverberando a ciência
do novo com suas infinitas temporalidades. Se cada verso é uma invenção, o todo
do poema inunda o universo inteiro com os fragmentos das utopias gerando naturalmente
referências e dicções de um espaço outro. Sim, se cada verso é uma invenção, o inteiro
poema se renova e se reinventa a cada linha multiplicada no estremecer das formas
inconclusas. Cobra Norato, até o limite
da exaustão, se desdobra, nos perdidos do nunca mais, a esbanjar desconcertantes
imagens surrealistas. Uma profusão de imagens que captura o sentido afortunado de
liberdade e amor transfigurado pela necessidade de uma originalíssima poesia. Imagens
saídas do útero da floresta, bem quentinhas e devagarzinho, anunciando que a poesia
encheu-se de assombros e, como tal, vem a trote para revelar a potência sedutoramente
febril da imaginação. Imagens não rubricadas, não mimetizadas, não acomodadas, não
ajuizadas pelos árbitros de plantão. Afinal, desde priscas eras, “já tínhamos a
língua surrealista” esmiuçada diuturnamente “no país da cobra grande”, onde a consciência
de uma Revolução Surrealista é a humana aventura ferozmente válida.
De mansinho e sem mais dizer, a vontade do herói épico,
paradoxalmente, em sua assanhada “sangria lírica”, dá as caras, com fina e rebuscada
simplicidade:
Um dia
hei de morar nas terras do Sem-fim.
Vou andando caminhando caminhando
Me misturo no ventre do mato mordendo raízes
Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato
(Canto I)
O grande rio da história começa sua travessia gerundiando
dizeres, colhendo silêncios, acendendo caminhos, misturando enredos, singrando assombros
e, sempre e sempre caminhando, caminhando… andando por veredas de começos incomuns.
Pois, um dia é mais que um dia nas terras fabulosas do Sem-fim com seus afortunados
feitiços, suas beberagens suas mezinhas… “Vou buscar puçanga/pra distorcer o mau-olhado”
(Canto XXX) não interessa a lonjura das moradas, nesse “estirão mal-assombrado”,
o herói tece a tapeçaria atrativa dos
seus amores mordendo e enfrentando seus medos para, de uma vez por todas, conquistar
a filha da rainha Luzia. Longas trilhas e densas matas, uma nova dimensão se avizinha,
o coração selvagem ”a correr mundo”, sem amarras e inabalavelmente livre na selva
ardente e graciosa da poesia:
Começa agora a floresta cifrada
A sombra escondeu as árvores
Sapos beiçudos espiam no escuro
Aqui um pedaço de mato está de castigo
Arvorezinhas acocoram-se no charco
Um fio de água lambe a lama
(Canto II)
A sustança onírica de Cobra Norato vem sob a forma de amplas e sugestivas metáforas, excêntricas
alegorias e contagiantes fantasias gestadas no grandioso berço dos diminutivos incomuns.
Um brevíssimo apanhado deste jeito de acarinhar a fala atiça a imaginação e revela
o onipresente poder da inocência. No mundo mítico de Raul Bopp, os diminutivos entre
-inhos, -zinhas, -zitos, -otes, -ulos etc, voejam e saltitam com doçura: arvorezinhas,
plantinhas, florestinhas, riozinho, ventinho, trovãozinho, solzinho, mansinho, devagarinho,
golinho, pouquinho, sozinho, doizinho, tapetinho espelhinho, titinho, baixinho,
vestidinho, saracurinhas, sororoquinhas, garcinha, marreca-toicinho, Joaninha Vintém,
maninha, sozinha, coitadinha, piquininha, nuinha, fumadinha, Tatizinha, gargalhadinhas,
esperazinho, estarzinho, querzinho …de ficar junto como uma flor parideira de prazeres
pela vida afora, fio fértil de imagens.
O mundo mítico, alucinado e fantasmagórico de Cobra Norato se conjuga na ação perene dos
seres que intercambiam suas diferenças, numa troca constante de experiências as
mais autênticas possíveis. Nessa geometria de afetos, a realidade é tão somente
uma máscara a esbanjar sinuosos semblantes de uma eventual atmosfera que se desrealiza
a cada investida de primitivos olhares. Por entre os desvãos do verbo, os gerúndios
enovelados despem uma generosa eroticidade arraigada à reiteração, por vezes irônica
e frequentemente insólita. Enfileirar, de súbito, aqui, perífrases com gerúndio
projeta, um tiquinho apenas, do todo de uma comunhão mágica que se espraia ao longo
dos trinta e três cantos da rapsódia boppiana. Eis alguns fragmentos das peripécias
do verbo: “andando caminhando caminhando”, “afundando afundando”, “monologando e
resmungando”, “parindo cobras”, “estudando geometria”, “fabricando terra”; sempre
ele, o verbo, segue estrondando silêncios na mata virgem do ser onde se espreguiçam
as cidades elétricas “com fome mastigando estalando” às margens beiçudas do sonho.
Com a engenharia silente do tempo, “nadando nadando”, pausadamente, vislumbra-se
a paisagem encharcada de urgências que, mesmo assim, não se exaure; com parcimônia,
o movimento do verbo, este pajé de extensas asas, em suas habilidosas artimanhas
continua seu trajeto “assobiando baixinho fiu… fiu… fiu…” e de fininho vai saindo
rumo a outros horizontes, quiçá, para os braços da encantada filha da rainha Luzia.
Em Cobra Norato, o movimento é tudo: tripla
ação do amor, da liberdade e da poesia.
A esta altura da viagem, já quase chegando “na ponta
do Escorrega”, em que o “vento correu correu/mordendo a ponta do rabo”, vale “contar
histórias/escrever nomes na areia/pro vento brincar de apagar”; antes, pois, que
tal aconteça, um parêntesis e uma saudação a três momentos incontestavelmente ímpares
relativos aos estudos da obra de Raul Bopp: Cobra
Norato – O poema e o mito, de Othon M. Garcia, 1962; Cobra Norato e a Revolução Caraíba, de Lígia Averbuck, 1985 e Poesia Completa de Raul Bopp, Organização
e notas de Augusto Massi, 2013, numa segunda edição de grande abrangência crítica,
com uma minuciosa pesquisa de fontes contendo notas preciosas que percorrem o trajeto
dos poemas boppianos desde as primeiras publicações, Versos Antigos, passando por Urucungo
até desaguar em Parapoemas.
Não querendo mais esticar a pele elástica da serpente,
no entanto, tentado pela cósmica natureza da palavra, uma derradeira anotação seja
incorporada a este tópico crítico, recolhido do exemplar, inspirador e magnífico
estudo do ensaísta e poeta Othon M. Garcia que escrutinou estilisticamente o poema
Cobra Norato em toda sua realização verbal,
palmilhando a ossatura metafórica do texto, o encantamento profundo do mito, as
sementes atávicas do humano, a geografia sem fim – quase atemporal – dos caminhos,
as árvores grávidas com suas feições épicas e não menos dramáticas num mundo em
que a onipresença da paisagem líquida encharca o poema de abrasadíssimos prazeres.
Neste universo fantástico e em gestação, árvores, águas e terras por entre lamas,
raízes, galhos, chuvas e outros intumescem a libido da imaginação. O ensaísta, em
seu esplêndido texto, esmiuça o mito serpentário, a simbologia onírica, o caráter
predominantemente visual, o jogo de palavra-puxa-palavra, o imagismo, o animismo,
o concretismo, o virtuosismo metafórico e os aspectos da expressão verbal de Cobra Norato, de maneira absolutamente sedutora.
Uma admirável simbiose pode ser apreciada, na análise encetada por Othon M. Garcia,
que faz jus as suas próprias palavras, quando afirma: “poesia é também, grandemente,
associação de ideias, é também jogo de palavra-puxa-palavra” e que “não é possível
crítica sem imaginação”, resguardando, é claro, a inteireza da obra sob o prismático
jogo entre objetividade e sensibilidade dos olhares.
Raízes desdentadas mastigam lodo
Num estirão alagado
O charco engole a água do igarapé
(Canto IV)
Açaís pernaltas
movem as folhas lentas no ar pesado
como pernas de aranha espetadas num caule
(Canto VII)
Riozinho vai pra escola
Está estudando geografia
(Canto XII)
O sol belisca a pele azul do lago
(Canto XIV)
Árvores corcundas com fome mastigando estalando
entre roncos de ventre desatufados
(Canto XIV)
Ou, mais para frente, prossegue-se caminhando por labirintos
continuamente incendiados pela pulsação incessante do espanto que, em certos momentos,
é regido por aquela “vontade de ouvir uma música mole/que se estire por dentro do
sangue” e afugente sumariamente a mal-assombrada secura do verbo. O imaginário,
em Cobra Norato, inunda o ser com a beleza
explorada nas minúcias de seus tecidos, espécie de catálogo admirável e fantástico
dos entes transfigurados no seu caminhar: a outridade
afeiçoada a uma profusão de imprevistos. Nesse novelo de assanhadas tentações, de
fininho e bem próximo de completar o trajeto, a volta no círculo sem fim das terras
boppianas, ressaltando, desde já e sempre, que conclusões não são possíveis frente
à grandeza da arte, um bocadinho mais de sonho:
A água engomada de lama
resvala devagarinho na vasa mole
(Canto XX)
Sapos com dor de garganta estudam em voz alta
Céu parece uma geometria em ponto grande
(Canto XXIII)
Jacarés em férias
mastigam estrelas que se derretem dentro d’água
(Canto XXVI)
Árvores encapuçadas soltam fantasmas
com visagem do lá-se-vai
O luar amacia o mato sonolento
Lá adiante
o silêncio vai marchando com uma banda de música
Floresta ventríloqua brinca de cidade
(Canto XXVIII)
Vento correu correu
mordendo a ponta do rabo
(Canto XXXI)
Raul Bopp com sua obra impregnada de belezas, generosamente surrealista, implacavelmente criativa e imensamente inovadora celebra a radicalidade poética em toda sua extensão misteriosa, desafiando medos, decifrando segredos, guerreando com palavras, avistando o topo das utopias a partir da plumagem do real, essa ilusória criatura de incomensuráveis disfarces. Na vida gerundiada, “há tanta coisa que a gente não entende” (Canto XXIII), histórias que quase sempre estão para além do texto, num ir e vir intenso e imemorial onde só “silêncios imensos se respondem” (Canto XVII) encantados pelo chamamento das horas. No limiar do tempo, Cobra Norato palpita, ainda e sempre, fertilizando belezas. Urucungo ecoa; porventura, um novo diálogo a ser travado. Por enquanto, arremate-se este, numa vibração surrealista, com três palavrinhas: Raul, o único.
Referências Bibliográficas
BOPP, Raul. Poesia completa. Organização
e notas de Augusto Massi. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.
___. Vida e morte da antropofagia.
Apresentação de Régis Bonvicino. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
CÉSAIRE. Aimé. Poemas. Tradução
de Nelson Ubaldo e Péricles Prade. Blumenau: Letras Contemporâneas, 2006.
DIAS, Saúl. De Ainda a Vislumbre.
São Paulo: Escritura Editora, 2007.
GARCIA, Othon M. Esfinge clara e outros
enigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
STEGAGNO PICCHIO, Luciana. História
da Literatura Brasileira. 2. ed. rev. e atualizada. Rio de Janeiro: Nova Aguillar,
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ZAMBRANO, María. O sonho e a criação
literária. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. In: O sonho e as sociedades humanas. Direção de Roger Callois e G. E. van
Grunebaum, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
R. LEONTINO FILHO | Poeta e Ensaísta. Publicou os livros de poemas Cidade Íntima (1987/ 1991/ 1999), Semeadura (1988), Sagrações ao Meio (1993), Anatomia do Ócio (2018) e A Geometria do Fragmento (Ensaios, 2008). Autor dos estudos de crítica literária, inéditos em livro, intitulados: Sob o Signo de Lumiar – Uma Leitura da Trilogia de Sérgio Campos e Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo (2005). Estudioso da poesia de Floriano Martins, tendo assinado posfácio de alguns de seus livros de poesia e ensaio.
LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensayista, y traductora. Junto a Sergio Lima y Paulo Paranaguá organizó la 13ª Expo Surrealista Internacional en São Paulo (1967). En esa época realizó dos viajes a París y tuvo un encuentro entrañable con algunos integrantes del grupo surrealista francés. Ha publicado los poemarios Cometas (1977), Poemas plásticos (1980), y A mobília violenta do ar (2020). Participó en la expo surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Reside en São Paulo.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 06
Número 205 | março de 2022
Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)
Tradução: Floriano Martins
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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