quinta-feira, 24 de março de 2022

ROGERIO LUZ | Alberto Giacometti: a tarefa interminável

 


Exploro aqui o princípio formulado por Winnicott: a agressividade é fundamental na constituição do psiquismo. O impulso motor do bebê, quando aceito e acolhido por um meio ambiente favorável, que funciona como suporte para esse impulso, mas também como resistência a ele, dará gradualmente à criança o sentimento que o mundo existe e que ela também existe, nesse espaço que une e relaciona, e ao mesmo tempo separa e isola, o sujeito e o mundo.

Estamos acostumados a pensar a agressividade como reação à frustração, diante da carência ou da recusa do meio. Mas, já que aqui abordamos a experiência de arte, que Winnicott nos ensinou a relacionar com o que há de mais arcaico no próprio surgimento do psiquismo humano, gostaríamos de lembrar que ele nos fala do que pode haver de terrível para o bebê na satisfação. Esta pode ser sentida pelo bebê como um analgésico: com seu leite, a mãe pôs o bebê fora de combate. Satisfeito, ele se sente privado de seus impulsos. Nessa fase primitiva do desenvolvimento afetivo, quando se identifica ao próprio objeto de satisfação, o bebê desaparece junto com o objeto que não é mais desejado. Com isso, Winnicott nos chama a atenção para a função do ambiente, que deve não apenas sobreviver à destruição, mas ser capaz de manter o bebê, quando satisfeito, em uma vigília de relaxamento e quietude, até o sono, ou até que um novo impulso integre seus movimentos na direção de um objeto que possa ser experimentado.

Como nos diz Winnicott, quando o objeto desaparece como resultado da satisfação, estamos diante de um movimento extremamente aterrorizador, sendo esta a única aniquilação verdadeira (Cf. Winnicott 1945). Creio que a arte se dá em algum ponto entre esse extremo aniquilador e o polo de atração de uma completude fascinante. Ela se aproxima perigosamente deles, para recusá-los talvez no último instante e assim poder erigir uma obra.

Difícil tensão, portanto, entre desaparição e surgimento, que descreve a frágil e provisória consistência própria de nossa natureza, humana e finita. O que diz a arte sobre tal condição, ou melhor, sob tal condição, pressionada por ela?

A presente vinheta, que não é clínica mas, digamos, estética, trata do caso Giacometti, o eterno insatisfeito, aquele que faz continuamente aparecer e desaparecer o objeto, isto é, aquele que sempre deseja, e o que deseja é impossível.

Alberto Giacometti, artista plástico nascido em Borgonovo, no sudoeste da Suíça, em 1901, e falecido em janeiro de 1966, é aqui lembrado para servir não como exemplo, mas como testemunho de uma trajetória singular, que se estabelece entre a destrutividade e a criação da forma. Ele concentrou todo seu esforço em estabelecer uma relação com a realidade, em representar aquilo que via.

Como representar a realidade? Tal tarefa fora abandonada em 1925, pela impossibilidade, segundo ele, de esculpir e pintar aquilo que via, tentando então captar a realidade pelo viés do imaginário surrealista. Excluído e excluindo-se do grupo surrealista, é essa a tarefa que ele retoma, em 1935, no ateliê da rua Hippolyte Maindron, em Paris, um ateliê atulhado, empoeirado e miserável que, apesar da fama posterior, ele conservará até a morte.

No início dos anos quarenta, Giacometti encontra, na Suíça – para onde viaja regularmente – Annette Arm, que se torna sua companheira de toda a vida e um de seus modelos preferidos e, se quiserem, mais perseguidos, buscados em sua realidade ao mesmo tempo objetiva e fugidia. Volta a expor seus trabalhos em público somente em 1947. A partir dos anos cinquenta, reaparece com toda a força na cena das artes. É essa segunda fase que vai nos interessar: a fase do confronto do artista com a realidade que ele vê e que é impossível de representar, em especial a realidade do retrato – cabeça, busto, corpo inteiro – de alguém que está posando à sua frente.

Em uma de suas milhares de anotações fragmentárias, que ele registrava em qualquer papel, espalhava por todo canto e logo abandonava, Giacometti nos dá esse testemunho impressionante:

 

Não sei mais quem eu sou, onde estou, não me vejo mais, penso que meu rosto deve aparecer como uma vaga massa esbranquiçada, frágil, que só se mantém inteira sustentada por andrajos informes que caem até o chão. Aparição incerta. Não me vejo mais, nem o que me cerca: copos, vidros, rostos, cores aqui e ali, sim, cores muito brilhantes, um pires em cima de uma mesa, as costas de uma cadeira. Os objetos, sobretudo, me parecem reais, o copo bem menos precário que a mão que o segura, que o levanta, que o descansa, que desaparece. Os objetos têm uma outra consistência. As cabeças, as personagens são apenas movimento contínuo do dentro, do fora, elas se refazem sem parar, não têm verdadeira consistência, seu lado transparente. Elas não são nem cubo, nem cilindro, nem esfera, nem triângulo. Elas são massa em movimento, forma mutante e nunca totalmente apreensível. São também ligadas por um ponto interior que nos olha através dos olhos e que parece ser a realidade delas, uma realidade sem medida, em um espaço sem limites e que parece ser diferente do espaço em que esta xícara se mantém diante de mim ou a realidade criada por esta xícara. Elas não têm, além disso, nenhuma cor definida. (Giacometti 1990)

 

Este movimento incessante das coisas, na metamorfose de revelação e ocultamento, de aparição fascinante e obscuridade da noite mais opaca, lança-nos, no caso de Giacometti, a uma espacialidade de outra ordem que a espacialidade da experiência quotidiana. Não nos remete a um horizonte de possibilidades, mas a um espaço originário, ilimitado e indeterminado, sem origem discernível nem apreensível. Imagem sem repouso e ao mesmo tempo estática e vertical, cuja forma é obtida por meio de toda sorte de ataques, distorções e subtrações.

O escritor francês Jean Genet, um dos grandes amigos do artista, fala sobre essa outra origem, espacial mas também temporal, que é convocada pela escultura de Giacometti:

 

As estátuas dir-se-ia pertencerem a uma idade defunta, descobertas depois de a noite e o tempo – que as trabalharam com inteligência – as haverem corroído, dando-lhes o ar doce e duro da eternidade que passa. (Genet 1999)

 

E mais adiante:

 

Cada escultura parece regressar a – ou vir de – uma noite tão distante e espessa que se confunde com a morte (…). (Genet 1999)

 

Giacometti confidenciou ao escritor francês que pensara enterrar uma escultura para não a descobrirem, ou para só a descobrirem muito mais tarde, quando ele próprio e até mesmo a lembrança de seu nome houvessem desaparecido.

Em sua apresentação dos escritos de Giacometti, intitulada significativamente “Uma escrita sem fim”, Jacques Dupin enfatiza o uso, pelo artista, do desenho, da pintura, da escultura, mas também da escrita como essencial na elaboração sempre incompleta de sua obra, de forte componente gráfico: traços, rabiscos, infinitas garatujas em busca da Figura.


As diferenças inerentes aos meios de expressão desaparecem e se fundem na demanda de uma verdade única, que abre caminho indo da confidência à provocação, do reconhecimento à destruição, até um derradeiro limite no qual esse fluxo se detém, onde o homem adormece por esgotamento, onde a obra continua a seguir seu curso subterrâneo… Porque a obra não contém seu fim, não imagina o triunfo de um termo conclusivo ou de uma realização – e a frase nunca chega ao fim, nem o busto de Annette é terminado… (Giacometti 1990)

Estaria Giacometti, em seu trabalho, orientado pela culpa, a qual o impediria de dar por terminado o mais simples trabalho? Winnicott nos adverte:

 

O artista ou pensador criativo pode, na verdade, falhar em compreender, ou pode mesmo desprezar o sentimento de preocupação que motiva uma pessoa menos criativa; e dos artistas se pode dizer que alguns não têm capacidade de sentir culpa e ainda assim atingiram uma socialização através de seu talento excepcional. As pessoas habitualmente governadas pelo sentimento de culpa acham isso surpreendente; ainda assim têm um secreto respeito pela falta de piedade, a qual leva o artista, de fato, em tais circunstâncias, a conseguir mais do que o trabalho orientado pela culpa. (Winnicott 1958)

 

Estaria Giacometti buscando, sem esperança, reparar o objeto danificado pelo impulso agressivo? Talvez uma angústia mais primitiva o assolasse. De qualquer modo, não se trata de explicar sua obra por uma eventual psicobiografia. Um estado psíquico alterado indica antes a mobilização total do artista em sua atividade de apreender a verdade de um novo modo. E mais do que nossas explicações, são instrutivas suas palavras:

 

… a realidade continua exatamente tão virgem e desconhecida como na primeira vez que tentaram representá-la. Isto é, toda representação que se fez dela até o momento foi apenas parcial. O mundo exterior, seja ele uma cabeça ou uma árvore, eu não o vejo exatamente como as representações que se fizeram dele até hoje. Parcialmente, sim, mas existe ainda alguma coisa que eu vejo que não está dada, nas pinturas e esculturas do passado. Isto, desde o dia em que eu comecei a ver … Porque antes eu via através de uma tela, isto é, através da arte do passado e depois, pouco a pouco, fui vendo um pouco sem essa tela e o conhecido tornou-se desconhecido, o desconhecido absoluto. Aí então foi o deslumbramento e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de restituí-lo. (Giacometti 1990)

 

Winnicott acentua esse aspecto arcaico da experiência de arte, ao relacioná-la com a psicose:

 

Através da expressão artística, há a esperança de manter contato com nossos selves primitivos, onde se originam os sentimentos mais intensos e sensações amedrontadoramente agudas e ficamos realmente empobrecidos se formos apenas sadios. (Winnicott 1945)

 

Giacometti persegue a verdade insondável da natureza, que nenhuma obra particular – nenhum desenho, nenhuma escultura, nenhum modelo – é capaz de deter, deter em seu sentido duplo: captar e conservar, mas também interromper. A obra escapa em sua deriva infinita e por isso o artista dá sua vida, substitui sua vida por essa tarefa.

Aparentemente culpado e frustrado, Giacometti estará sempre grafando e apagando, construindo e destruindo para construir, na impossível operação de dar por concluída uma obra que captasse o “desconhecido absoluto” da natureza real.

Um exemplo concreto dessa operação sempre repetida é contado pelo professor de filosofia, amigo e modelo de Giacometti, o filósofo japonês Isaku Yanaihara, que, parece, não conseguiu finalmente levar para casa seu retrato pintado pelo artista:

 

Giacometti descansou os pincéis lá pelas seis e meia da tarde. Já estava tudo escuro, e então, examinando seus quadros à luz da lâmpada elétrica, ele gritou: “Está péssimo, péssimo! De fato! Mas isso não tem importância. Hoje a coisa vai mal, mas amanhã certamente eu vou avançar. É verdade, sim! Embora você não pareça acreditar muito nisso, amanhã ficará inteiramente convencido”.

Eu, que tinha continuado a posar durante tanto tempo, estava muito cansado para poder responder o que quer que seja – comenta o filósofo. O retrato, que continuava sempre uma massa indiscernível de cinzento, não me parecia nada melhor que ontem. Em geral, era eu que encorajava Giacometti quando ele se sentia desmoralizado. Naquele dia, foi justamente o contrário.

Olhando meu rosto cheio de dúvidas, ele me dirigiu essas palavras: “Tenho certeza: por pouco que seja, avancei mais que ontem. Amanhã isso deve andar ainda muito melhor, estou certo disso… Mesmo se eu achar que está bom, pode ser que isso não lhe agrade. Nunca tinha pensado nessa possibilidade, mas nesse caso não há nada a fazer.”. (Giacometti 1990)

 

E, mais adiante, diz-nos Yanaihara:

 

Ele manipulou os pincéis sem dizer nada durante algum tempo. De repente, dirigindo-me um sorriso como o de uma criança que pregou uma peça em alguém, perguntou-me: “Sabe o que estou fazendo agora?” “O que é que você fez?” “Apaguei os olhos que tinha pintado há pouco; não os pintei de propósito, mas os olhos apareceram sozinhos. Era a primeira experiência. Claro, eram olhos irreais, por isso eu os apaguei. Agora, não se vê mais quase nada na tela. Mas se eu conseguir captar a arquitetura do rosto, os olhos aparecerão de novo imediatamente, mil vezes mais bonitos!”. (Giacometti 1990)

 

Para outro de seus amigos retratados, o americano James Lord, se Giacometti

 

não puder sentir que uma coisa existe verdadeiramente pela primeira vez, ela não existirá para ele. É dessa reação quase infantil e obsessiva, à natureza e à realidade aparente, que vem a originalidade autêntica de sua visão. (Lord 1998)

 

Em livro intitulado muito justamente Um retrato de Giacometti, o que inverte a relação do artista e de seu modelo, James Lord relata as dezoito sessões em que posou para Giacometti, ao fim das quais ele fotografava – muitas vezes, às escondidas – o estado em que a tela se encontrava. Não é um livro teórico, é uma descrição, divertida e dramática, da maneira como Giacometti trabalhava e dos impasses que sempre tinha de enfrentar. Giacometti adicionava grumos de gesso a suas esculturas, para logo subtraí-los, desbastando-as até quase fazê-las desaparecer. Ele também esbatia e apagava com igual vigor aquilo que inscrevera na superfície do papel ou da tela. Para descrever o que estava ocorrendo, ele utilizava frequentemente os verbos desfazer, destruir, demolir.

Representar a realidade não era, para esse artista, mergulhar em alguma profundidade psicológica do modelo e dali extrair sua verdadeira natureza. Ele abominava a ideia de retratar a interioridade.


James Lord narra a reação de Alberto Giacometti à observação de uma jovem poetisa francesa, que pretendia que ele ilustrasse seu livro de poemas. Ela dissera ao artista que devia ser estranho fazer o retrato de um americano, pois o temperamento americano é fundamentalmente diferente do temperamento europeu. Alberto respondera que não achava nem um pouco estranho e que não via nenhuma diferença. Mas ela insistira, observando que ele retratava a natureza íntima do modelo tanto quanto sua aparência exterior. Alberto retorquira: “Já tenho muito que fazer com o exterior para me ocupar com o interior”. (Lord 1998)

A intimidade que o artista buscava era mais interior que toda natureza íntima – familiaridade radicalmente desconhecida e estranha. Tal intimidade é esse ponto que olha para nós, a partir de uma realidade infinita, e que nos solicita a ver tudo pela primeira vez. É um olhar que vem de muito longe, do invisível, que nos ultrapassa, como quer Genet, e vai além no espaço e no tempo, e desaparece.

As estátuas não só caminham ao nosso encontro, como se estivessem muito longe, ao fundo, num horizonte extremamente afastado, mas também, e onde quer que nos situemos relativamente a elas, fazem com que ao olhá-las estejamos sempre num plano inferior. Estão lá longe no horizonte, sobre uma elevação, e nós no sopé. E vêm ter conosco, sequiosas desse encontro e de nos ultrapassarem. (Genet 1999)

Durante as sessões de pose com James Lord, Giacometti se referia a um pequeno buraco que ele teria conseguido escavar na natureza, muito pequeno, porém, para que pudesse esgueirar-se por ele. Abertura mínima que lhe dava esperança e desespero, porque, para ele, obter a semelhança era impossível e ao mesmo tempo necessário. Esse paradoxo, certamente vivido, alimentava o seu trabalho e fazia deste a tarefa interminável de ver e deixar escapar o que se escondia, e que ele pretendia restituir em uma tela visível também aos outros.

Para ele, a semelhança almejada era tudo menos a revelação de uma essência escondida do modelo ou de seu sentido mais global, ou a projeção da realidade psíquica mais profunda do artista, muito menos a cópia fiel de uma realidade meramente perceptiva. Tratava-se de decifrar a realidade, de restituí-la e comunicá-la na e pela obra, capturá-la nesse vaivém constante da coisa em seu aparecimento e em seu mergulho no indeterminado. E isso identificava-se totalmente ao próprio movimento do artista que era Giacometti. Ele próprio dizia sentir-se vago, sem ocupar um lugar preciso no espaço, o próprio rosto como uma pasta indiferenciada e cinzenta.

Localizar-se e não se localizar no tempo e no espaço, ser e não ser encontrado, comunicar e não comunicar: paradoxos que caracterizam a experiência de arte e que adquirem função central no pensamento de Winnicott.

No artista podemos detectar, acho eu, um dilema inerente, que pertence à coexistência de duas tendências, a necessidade urgente de se comunicar e a necessidade ainda mais urgente de não ser decifrado. Isso nos faz contar com o fato de não podermos conceber o artista chegando ao fim da tarefa que ocupa sua natureza total. (Winnicott 1965)

Na segunda sessão de pose, James Lord mostra o desespero que por vezes tomava conta de Giacometti e que o levava, já famoso, procurado por donos de galerias e negociantes de arte para expor em mostras internacionais, a negar todo valor a seu trabalho. O que vimos com Isaku Yanaihara, repete-se com James Lord.

 

É impossível. Não sei fazer nada. Escute só, vou trabalhar nesta tela mais um ou dois dias, e então, se não ficar boa, desistirei da pintura para sempre.

 

Muitas vezes no passado eu o havia ouvido dizer coisas assim, escreve James Lord. Compreendi que, para ser capaz de ver intensamente e como pela primeira vez o que estava diante dele, tinha de duvidar a todo momento de sua habilidade e pôr em questão não apenas o que estava fazendo, como também tudo o que já tinha feito. (Lord 1998)

Logo a seguir, quando Giacometti se ausenta para atender ao telefone, Lord se levanta para ver como andava o retrato.

A definição e o volume da cabeça tinham desaparecido completamente; ela parecia perdida numa espécie de nimbo cinza. Ao voltar, declarou: “A coisa vai mal, mas pouco importa, já que, de toda maneira, não se trata de terminar”. “Lamento fazer você trabalhar tão duro para nada”, eu disse. “Oh, é útil para mim”, respondeu. “Aliás, é o que mereço por trinta e cinco anos de desonestidade”. “O que você está querendo dizer?” – perguntei. “Simplesmente que, durante todos esses anos, expus coisas que não estavam terminadas e que nunca deveriam ter sido começadas”. (Lord 1998)

Em outra sessão de pose, Giacometti vira-se para seu modelo e exercita seu humor e seu poder de provocação:

 

“Reparei não somente que de frente você parece um animal, como também que seu perfil é um pouco degenerado”. Riu francamente e acrescentou: “De frente você vai para a prisão; de perfil vai acabar no hospício”. (Lord 1998)

 

Ao brincar com seu modelo, Giacometti explicita as impressões mais arcaicas, inusitadas e deslocadas, a partir daquilo que vê. Ao posar diante do artista, ao se confiar a ele, o modelo pode aparecer como “louco” ou “criminoso”. Não que o artista revele a verdade íntima do modelo, até então oculta: Giacometti apenas manifesta a multiplicidade possível dos modos de ser do modelo e de si próprio, manifestação arcaica e polimorfa.

Discorrendo sobre delinquência juvenil, Winnicott afirma:

 

Uma criança normal, se tem confiança no pai e na mãe, provoca constantes sobressaltos. No decorrer do tempo, procura exercer o seu poder de desunião, de destruição, tenta amedrontar, cansar, desperdiçar, seduzir e apropriar-se das coisas. Tudo o que leva as pessoas aos tribunais (ou aos hospícios, tanto importa para o caso) tem seu equivalente normal na infância. (Winnicott 1946)

 

Winnicott nota que é comum ouvir que

 

as crianças dão escoamento ao ódio e à agressão nas brincadeiras, como se a agressão fosse alguma substância má, de que fosse possível uma pessoa livrar-se. (Winnicott 1942)

 

Embora seja em parte verdade, diz ele, que a criança possa encarar o ressentimento e a cólera como algo ruim dentro dela, muito mais importante é ela sentir que os impulsos coléricos ou agressivos podem exprimir-se em um ambiente confiável, sem o retorno do ódio e da violência do meio.

Giacometti, em sua atividade febril, busca, arruína e soergue essa relação entre o que a coisa é, enquanto se apresenta e se figura no mundo, e a multiplicidade de suas imagens, constantemente refeitas e apagadas, sínteses provisórias, inacabadas e, finalmente, impossíveis. Com isso, ele nos dá uma ideia de como a arte moderna, no Ocidente, tornou-se um espaço em que se experimentam novas relações entre identidade e alteridade, entre sujeito e mundo. Não é essa nova maneira de ver tais relações a proposta central do pensamento de Winnicott?

Em Giacometti, um método de repetição opera nas obras, nas formas e nos poucos modelos a que constantemente recorre – Annette, sua mulher, ou ainda seu irmão Diego – mas também em seu constante rabiscar, em suas atitudes e conversas. Parece que ele falava o tempo todo enquanto trabalhava. Eis um aspecto dessa diferença mínima entre uma imagem e outra que, intimamente implicada no desdobramento de uma mesma realidade, Giacometti procura alcançar por meio da repetição, nesse momento em que todo seu corpo, incluindo aí o esforço muscular, dedica-se ao mesmo tempo a olhar de frente a realidade irreproduzível, aquele ponto ao mesmo tempo cego e ofuscante, aquela sufocante abertura, e a se desviar dela para trazê-la a uma forma configurável, e por ela ser novamente absorvido, para cumprir seu destino de silêncio na ausência da obra. [1]

Podemos dizer que o artista, e nós com ele, vivemos, na experiência de arte, estados psíquicos alterados. Isso significa também alteridade: somos outros, experimentamo-nos como outros nessa experiência de um outro lugar e de um outro tempo. Voltamos a ser loucos e transgressivos como as crianças que fomos. E todo o campo da arte nos oferece essa possibilidade. Se espaço e tempo são as duas situações de nossa sensibilidade no mundo, como elas se refazem na experiência de arte?

Podemos descrever a metamorfose do espaço e do tempo, que a experiência de arte produz, como um duplo movimento. Movimento de retorno e recuo, se quiserem, para o passado, para aquele estado originário de não-integração, que articularia relaxamento extremo e sensações atemorizantes. Caminho de volta, sempre aberto rumo à indeterminação e à ausência de lei formal, que torna possível a brincadeira sem regras. Quando posta à disposição do indivíduo por um meio cultural favorável, a experiência artística é também capaz de

 

propiciar oportunidade para a experiência amorfa e para os impulsos criativos, motores e sensórios, que constituem a matéria-prima do brincar. É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem. (Winnicott 1971)

 

É o que nos diz Winnicott sobre o papel propiciatório e como que passivo de um meio ambiente favorável.


Agora, o outro movimento, para frente ou para o futuro. Trata-se de uma tarefa interminável, atividade sem fim e sem finalidade, ao contrário do artesanato e da indústria, em que os componentes estéticos se articulam ou se adicionam ao uso funcional e instrumental. É um caminho sem fim, um tempo sem fim, uma eternidade que passa.

Dizer que a morte decreta um término a esse processo do artista, que ela enclausura a totalidade da obra em um sentido enfim acabado, é desconhecer o tipo de experiência e de história que a arte coloca à nossa disposição. É contornar o desafio jubiloso e aterrorizador ao qual a arte não cessa de nos convocar.

Portanto, a atividade do artista enraíza sua origem no que não tem raiz, nem unidade, nem totalidade, e que é sempre destinação de um outro espaço e de um outro tempo. Não tem origem única, mas múltipla e multiforme. Não tem finalidade objetiva, mas adia indefinidamente a finalidade que busca.

Esse duplo movimento, no tempo e no espaço, cria um novo lugar e um novo presente. Um hiato se abre entre origem e destinação, um presente à procura da forma, que se distende – plasticamente, musicalmente – simultâneo e divergente, para o passado e para o porvir.

Aqui a noção de agressividade em Winnicott amplia nossa compreensão da experiência de arte em geral e, particularmente, daquela com que Giacometti nos aflige e nos exalta.

A realidade, ou a natureza, se quiserem, quando não responde vingativamente ao ataque primitivo, é capaz de se reapresentar – uma reapresentação que é sempre uma primeira vez, olhar e afeto inaugurais, uma primeira aurora para o sujeito e para o mundo. Afetar e ser afetado, antes de representar e recalcar a representação. Campo das energias, das intensidades ainda não formadas pela linguagem, pelo discurso articulado: símbolos primários da experiência de ser.

Pelo menos desde que a história do Ocidente produziu um novo conceito de arte com o Modernismo, a ação do artista não é apenas uma bela ação, fascinada pela forma perfeita. Ela é também destruição e perda no caos, no elemental da matéria informe. Ela é igualmente agressiva e destrutiva, não por violência gratuita ou para chocar ou ferir os passantes, mas em seu intento de fazer experimentar uma realidade em mutação. É, portanto – e creio que Giacometti tem total razão –, da realidade que se trata, e não das fantasias do artista ou do espectador, e de suas respectivas interioridades.

Mas essa realidade é uma realidade a ser instituída, a ser criada, e que se mantém, como nos ensina Giacometti, sempre em sua incompletude – retomando o repertório de formas dadas pela tradição para revelar seu não-fundamento originário, rompendo com ele na abertura de um futuro sem garantia de síntese ou totalização.

A ação do artista é real e se dá no embate entre um corpo, os meios materiais, os suportes concretos, as condições técnicas e de sensibilidade em um determinado momento da história pessoal e coletiva. Conjunto de apoios que o ambiente cultural apresenta já sob uma determinada forma a ser transformada, metamorfoseada por uma ação que desbloqueia o presente, estirando-o naquela dupla direção: à origem sem forma e à finalidade sem término.

 

NOTA

1. Segundo Maurice Blanchot, o mito de Orfeu expõe esse duplo movimento: “Quando Orfeu desce em busca de Eurídice, a arte é a potência pela qual a noite se abre. A noite, pela força da arte, acolhe-o, torna-se a intimidade acolhedora, o entendimento e o acordo da primeira noite. Mas é para Eurídice que Orfeu desce: Eurídice é, para ele, o extremo que a arte pode atingir, ela é, sob um nome que a dissimula e sob um véu que a cobre, o ponto profundamente obscuro para o qual parecem tender a arte, o desejo, a morte, a noite. Ela é o instante em que a essência da noite se aproxima como a outra noite.

Desse “ponto”, a obra de Orfeu não consiste, porém, em assegurar a aproximação, descendo para a profundidade. Sua obra consiste em trazê-lo de volta para o dia e dar-lhe, no dia, forma, rosto e realidade. Orfeu pode tudo, exceto olhar esse “ponto” de frente, salvo olhar o centro da noite na noite. Pode descer para ele, pode, poder ainda mais forte, atraí-lo a si e, consigo, atraí-lo para o alto, mas desviando-se dele. Esse desvio é o único meio de se acercar dele: tal é o sentido da dissimulação que se revela na noite. Mas Orfeu, no movimento da sua migração, esquece a obra que deve cumprir, e esquece-a necessariamente, porque a exigência última de seu movimento não é que haja obra mas que alguém se coloque em face desse “ponto”, capte-lhe a essência, onde essa essência aparece, onde é essencial e essencialmente aparência: no coração da noite”. (Blanchot 1987)

 

 

Referências bibliográficas

Genet, Jean 1999: O estúdio de Alberto Giacometti. Lisboa, Assírio & Alvim, 2ª edição.

Blanchot, Maurice 1987: O Espaço Literário. Rio de Janeiro, Rocco.

Giacometti, Alberto 1990: Écrits. Paris, Hermann.

Lord, James 1998: Um retrato de Giacometti. S. Paulo, Iluminuras.

___ 1942: “Porque as crianças brincam”, in Winnicott 1964.

___ 1945: “Desenvolvimento emocional primitivo”, in Winnicott 1958.

___ 1946: “Aspectos da delinquência juvenil ”, in Winnicott 1964.

___ 1958: “Psicanálise do sentimento de culpa”, in Winnicott 1965.

___ 1958: Collected Papers: Through Paediatrics to Psycho-Analysis. Londres, Karnac Books and The Institute of Psyco-Analysis, 1992. Trad. bras. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1978.

___ 1965: The Maturational Processes and the Facilitating Environment, London,

Karnac Books. 1990. Trad. Bras.: O Ambiente e os Processos de Maturação.

Porto Alegre, Artes Médicas, 1983.

___ 1965: “Comunicação e não-comunicação, levando ao estudo de certos opostos”, in Winnicott 1965b.

___ 1964: The Child, the Family, and the Outside World. USA. A Merlody Lawrence Book. 1987. Trad. bras.: A Criança e seu Mundo. Rio de Janeiro, Guanabara        Koogans S.A., 1982.

___ 1971: Playing and Reality. Tavistock Publications Ltd. 1996. Trad. bras.: O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda, 1975.

___ 1971: “O Brincar. A atividade criativa e a busca do self”, in Winnicott 1971. 

 

 


ROGERIO LUZ | Professor aposentado da ECO-UFRJ, publicou artigos e livros nas áreas de arte e psicanálise. Analyse Structurale du Récit Filmique. Mons: Editions Ciné-Jeunes, 1969. Expressão Corporal: uma Política do Corpo. Rio: Centro de Documentação e Pesquisa, Funarte, 1979. Espace Potentiel et Expérience Filmique. Louvain-la-Neuve: Ciaco, 1987. Filme e Subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002. Em coautoria, com Roberto Machado, Angela Loureiro e Kátia Muricy: Danação da Norma (Medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil). Rio: Graal, 1978; com Ivone Lins: D. W. Winnicott: Experiência Clínica e Experiência Estética. Rio de Janeiro: Revinter, 1998; com Flávia Martins, Santeiros da Bahia – arte popular e devoção. Recife: Caleidoscópio, 2010; com Flávia Martins e Pedro Belchior. Escultores Populares de Pernambuco. Recife: Caleidoscópio, 2013. E mais oito coletâneas de poemas, dentre elas: Escritas (Prêmio de Poesia do Concurso Literário da Universidade Federal do Goiás). Goiânia: Ed. UFG, 2011, e Os Nomes (Prêmio de Poesia do Governo do Estado de Minas Gerais). Rio de Janeiro: Ed. Circuito, 2014. Publicou ainda um livro de contos: Aeroplano (Prêmio Uirapuru). Belém: Editora Folheando, 2020.

 


LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensayista, y traductora. Junto a Sergio Lima y Paulo Paranaguá organizó la 13ª Expo Surrealista Internacional en São Paulo (1967). En esa época realizó dos viajes a París y tuvo un encuentro entrañable con algunos integrantes del grupo surrealista francés. Ha publicado los poemarios Cometas (1977), Poemas plásticos (1980), y A mobília violenta do ar (2020). Participó en la expo surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Reside en São Paulo.


 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 06

Número 205 | março de 2022

Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)

Tradução: Floriano Martins

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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