Duas retrospectivas póstumas
do trabalho de Arbus são fundamentais para se ter uma compreensão global do seu
projeto poético. A primeira, intitulada Diane
Arbus Revelations, ocorreu em 2003 no Museu de Arte de São Francisco, com a
curadoria de Elisabeth Sussman e Sandra S. Phillips, e resultou em um rico catálogo
organizado por Jonathan Cape (2003, inglês no original, todos os trechos citados
foram traduzidos por mim). Esse, além da reprodução das séries fotográficas e dos
textos críticos, é composto por fac-símiles e transcrições de correspondências,
páginas de cadernos de anotações e dos diários pessoais de Arbus. Esse volumoso
material revelou um conteúdo que ultrapassa curiosidades biográficas da artista,
ao permitir acesso a ricas e férteis reflexões a respeito da arte, e ao pensamento
poético e crítico desenvolvido pela fotógrafa também na escrita. Documentos pessoais
de Diane foram doados pelas suas filhas, Doom e Amy Arbus, em 2007, para o Metropolitan
Museum of Art de Nova York e organizados em um acervo público. O trabalho de pesquisa
inicial nesse arquivo resultou em uma nova retrospectiva, intitulada Diane Arbus: in the beginning, realizada
pelo Museu de Arte Moderna de Nova York em 2016, e na publicação de um catálogo
(ARBUS, 2017, inglês no original, todos os trechos citados foram traduzidos por
mim). Assim como ocorrido no material de 2003, este livro mais recente apresenta
um profuso volume de registros de processo poético, reflexões pessoais e críticas
à própria obra escritos por Arbus.
A organização do acervo
da artista, a publicação da sua obra fotográfica completa e de parte dos seus escritos
é fundamental para o crescimento da sua fortuna crítica. É comum analisar esses
materiais utilizando os métodos da crítica genética. Sob essa perspectiva, a obra
finalizada é tida como o fim, o cume de um processo, é o objeto acabado e fixado
numa forma estável. Todos os materiais que se relacionam ao movimento de elaboração
da obra final são tomados como resquícios, escombros. Eles apontam para o que a
obra poderia ter sido, e exibem relações hipertextuais que, muitas vezes, mesmo
que tenham sido fundamentais para a gênese de determinada produção, se tornam irreconhecíveis
na superfície da obra final. Nesse sentido, o pesquisador parte dos escombros dos
documentos de percurso e (re)inventa uma genealogia, tendo a obra finalizada como
um objeto estático que paira no horizonte da produção poética do artista.
Para pensar a obra de Arbus,
escolho olhar para esses documentos, escritos e imagens que estão às margens das
obras finalizadas. Porém, a partir do contato com a publicação dos documentos presentes
no acervo de Arbus, proponho tratar sua poética sob um outro aspecto que não da
crítica genética. Penso ser possível abordar seu fazer como o de uma performer.
Ao invés de analisar as suas fotografias, irei refletir sobre a potência estética
da sua produção poética que envolve também a escrita e a ação do encontro com seus
objetos. Levando em conta que Diane planejava e exibia suas fotografias em séries,
escolho pensar a sua obra em conjunto. Poderia escolher um número reduzido de fotos
e fazer uma análise do micro, mas escolho olhar para o macro, pois penso que sua
poética possui uma força particular no coletivo. Suas imagens funcionam pelo acúmulo,
pelo contraste, pelo jogo de semelhanças e diferenças. Essa abordagem permite uma
entrega ao deleite do acúmulo.
Logo nas primeiras páginas
de Diane Arbus Revelations (CAPE, 2003) há uma fotografia de uma parede de colagens
da Diane. Nesse mural, que lembra as pranchas do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg,
há recortes de jornais (ela não fixou as reportagens completas, recortou apenas
as fotos com manchetes e subtítulos) de notícias de assassinatos, acidentes, desastres
naturais, de um paredão de execução de judeus poloneses, sobre um homem negro que
foi preso por engano ao ser confundido com um foragido; fotografias recortadas de
livros com imagens de aberrações e corpos mumificados; a reprodução de um nu de
E.J. Bellocq; e fotografias feitas pela própria artista. Essa bizarra miscelânea
permite visualizar aspectos chave para abordar a sua produção: sua curiosidade difusa
e seu encantamento pela diversidade da experiência humana. Esses interesses antecipam
sua produção como fotógrafa. Em 1939, com dezesseis anos, ao escrever em um artigo
escolar sobre Platão, Diane concluiu que:
Dois anos após escrever
esse artigo, Diane ganhou sua primeira máquina fotográfica de Allan Arbus, e começou
a explorar as potencialidades formais dessa ferramenta. Diane partiu da carne –
ela transformou amontoados de ossos, vísceras, músculos e pele em uma camada plana
reticular. Nas suas imagens, os corpos se transmudam em ruídos, tramas e textura
obtida pelas suas escolhas técnicas. Sobre o assunto ela relatou que:
Ao começar a fotografar eu costumava produzir coisas bem granuladas.
Eu estava fascinada pelo o que a granulação fazia, pois ela gerava uma espécie de
tapeçaria com todos aqueles pequenos pontos, e tudo se transformava em uma linguagem
de pontos. A pele se tornava o mesmo que a água, que era o mesmo que o céu, e então
você estava lidando basicamente com o claro e o escuro e não mais com carne e sangue (ARBUS apud PHILLIP, 2003).
Em 1959 ela escreveu, em
seus cadernos de anotações, listas com tópicos de interesses a serem fotografados,
entre os quais figuravam lugares como: necrotérios, camarins, prisões femininas,
camburões, abatedores, estúdios de tatuagem, clubes para solteiros, hotéis na beira
da água, o banheiro feminino da estação de metrô de Coney Island; passando por grupos
de pessoas como: companhias itinerantes de travestis, jogadoras de roller derby,
mulheres estranhas, lutadoras de luta-livre, mendigos cegos; chegando a situações
específicas como: aberrações nos seus lares, clubes de dança com dançarinos de aluguel
antes da abertura, estúdio de um programa de rádio da WABC chamado Big Joe’s Happinness
Exchange, moribundas em uma casa de repouso particular para judias no Bronx chamada
Daughters of Jacob; e indo até situações mais abertas como “crime, desespero, loucura,
fama, riqueza, inocência” (ARBUS apud ROSENHEIM, 2017). Em 1963, pleiteando a bolsa
de financiamento da Fundação Guggenheim, ela listou os temas que já haviam sido
abordados em suas fotografias:
Evangelistas, curandeiros, nudistas (convenções, retratos, grupos
familiares, casas); shows burlescos (estrelas, strippers, quadrinhos, performances);
mascaradas (carnaval, bailes de belas artes, festas de dia das bruxas), jogos (jogos
de cartas, basebol, pula-cordas), salas de estar (de pensionatos, de viúvas, de
anões); feiras, mendigos, grupos de Rock’n Roll, trigêmeos (retratos, grupos, convenções) (apud CAPE, 2003).
Estes são apenas alguns
exemplos de uma prática frequente de Diane: fazer listas – de lugares, pessoas,
situações, eventos, instituições. Suas coleções fotográficas são reverberações visuais
dessas listas. Estes documentos mostram que o processo de Arbus era circular: ela
partia de listas escritas para chegar a listas visuais. Antes de fotografar, ela
enumerava proposições e, após revelar as imagens, as nomeava e organizava em séries.
Diane relatou a importância
do encontro e da troca com seus modelos. Sua obra estava centrada nesse encontro,
momento o qual pode ser pensado como uma performance sem espectadores. Em seus relatos,
ela dizia que sua posição social e relações familiares eram constrangedoras e aprisionantes,
e que, desde nova, invejava os moradores de rua que podiam vagar. Ela ansiava pela
liberdade de transitar e experenciar a cidade por conta própria, visto que considerava
que “nunca, nada é como disseram que seria. É o que eu nunca vi antes o que eu reconheço”
(ARBUS apud PHILLIP, 2003).
Desse modo, o vagar passa
a ser uma questão central. O fotografar era a chave de acesso ao desconhecido, a
fotografia era a consequência da descoberta – o resto gerado pelo ato de andar e
de encontrar pessoas. Fotografar era um ato de troca e de enfrentamento do desejo.
Isto posto, é importante ressaltar que ela não foi uma fotógrafa voyer. Ela não se escondeu, não espiou. Ela
olhou de frente, conversou, adentrou o microcosmo das pessoas que fotografou:
Cada subcultura que ela explora acaba por se revelar, não apenas
um território em si, mas uma chave para decifrar as regras de uma outra subcultura,
aparentemente desconexa, o que faz com o que o mundo, como ela diz, pareça… não tão pequeno
como feito com espelhos. Da mesma forma, o
que parece um beco sem saída, muitas vezes acaba sendo uma porta oculta para um
assunto improvável que ela não havia pensado em perseguir (SUSSMAN; ARBUS apud
CAPE, 2003, grifo do original).
Há, no seu processo, um
interesse benjaminiano pela moda e pelos costumes. Ao perseguir os alvos a serem
captados pelas suas lentes, ela performou uma flânerie. Apesar da sua obra apresentar
semelhanças com as fotografias de Eugène Atget e Berenice Abbot, seu foco não estava
na cidade, mas nas pessoas. Considerando seu relato que de: “minha coisa favorita
é ir onde eu nunca estive” (ARBUS apud PHILLIP, 2003, p.54), a cidade é tida como
labirinto repleto de reentrâncias, e o que lhe interessava eram as intersecções
que permitiam os encontros.
Há algo do ímpeto do colecionador
no processo de Arbus, sobre o qual Walter Benjamin (2018) escreve que, “no que se
refere ao colecionador, sua coleção nunca está completa; e se lhe falta uma única
peça, tudo o que colecionou não passará de uma obra fragmentária”. Nesse sentido,
as listas de Diane se apresentam como uma enumeração dos lugares que ainda faltam
ser percorridos. Era preciso ir a todos os lugares, fotografar toda a variedade
das possibilidades humanas. O interesse no humano estava diretamente vinculado a
compreensão do seu tempo presente a partir de seus costumes peculiares. Benjamin
(2018) escreveu que, no século XX, “o mais árido e menos imaginativo de todos, toda
a energia onírica de uma sociedade se refugiou com dupla veemência no reino nebuloso,
silencioso e impenetrável da moda, no qual o entendimento não a pode acompanhar.
A moda é a precursora, não, é a eterna suplente do Surrealismo”. O interesse de
Diane pelos hábitos de seu tempo parece ressoar o pensamento de Benjamin. Isso pode
ser exemplificado quando lemos a sua justificativa de solicitação de bolsa, apresentada
para a Fundação Guggenheim em 1963, para desenvolver o projeto intitulado American Rites, Manners and Customs (Ritos,
Modos e Costumes Americanos):
O projeto de Diane está
alinhado ao aspecto histórico dialético das imagens da moda, tal como teorizado
por Benjamin, que diz que “o que dá o tom é sempre o que é mais novo, mas apenas
onde esse emerge entre as coisas mais antigas, mais passadas, mais habituais. Esse
espetáculo – como o que é totalmente novo se forma a partir daquilo que se passou
– é o verdadeiro espetáculo dialético da moda” (BENJAMIN, 2018). Arbus estipula
para o seu trabalho, o compromisso de ir aonde for necessário, para encontrar e
recolher os vestígios do ordinário. Para a artista, é justamente no banal que se
encontra o que há de sintomático e monumental do tempo presente. As fotografias
resultantes dessa coleta dos vestígios do momento vivido adquirem um novo caráter
dialético, ao serem tomadas pelo espectador, o qual reconhece, ao mesmo tempo em
que estranha, as pessoas e situações imobilizadas nas imagens.
Como afirmado anteriormente,
Diane vagou pela cidade para coletar os vestígios do ordinário. Para isso, foi necessário
andar pela superfície das ruas, percorrer os becos, entrar em buracos. Deles, ela
retornava trazendo à superfície imagens que parecem se revelar aos olhos do espectador
através de uma lente do estranhamento. Estranhamento esse às avessas do teorizado
pelo formalismo russo, para o qual, este é um efeito próprio da obra de arte, que
toma algo que nos é familiar e quebra o feitiço do reconhecimento. Por uma desautomatização
perceptiva, o efeito de estranhamento da arte faz com que nos tornemos turistas
em nossa terra natal, vejamos como estrangeiros os nossos parentes, e como exóticos
os objetos cotidianos. As fotografias de Arbus, porém, fazem o contrário: elas tornam
familiar aquilo que nos era estranho, estrangeiro – e isso gera um incômodo tremendo.
Vemos em seu relato que a artista estava consciente desse efeito produzido pelo
seu trabalho: “parece-me que, o que incomoda as pessoas, mais do que o tema das
fotos, é a intensidade do seu poder de nos dominar, de, literalmente, nos parar
no meio da vida e exigir que nos perguntemos quem nós somos” (ARBUS apud PHILLIPS,
2003). Diane encarava seus modelos, e essa troca de olhares atravessou as lentes
e atingiu o espectador na imagem revelada. Isso faz com que haja uma aura de reconhecimento
mútuo pela troca de olhares. Ficar frente a frente com as fotografias de Arbus é
vibrar o assombro e a delícia do encontro com o insólito corporificado. Os artistas
de shows de aberrações povoam numerosas fotografias de Arbus. A artista via, na
maravilha dos corpos múltiplos, inversões e jogos lúdicos, e os considerava metáforas
vivas: “freaks são contos de fadas para
adultos. Metáforas que sangram” (ARBUS apud PHILLIP, 2003). Um exemplo pode ser
visto na obra intitulada O homem invertido
no seu quarto de hotel, N.Y. (The Backwards
Man in his hotel room, N.Y.C.) de 1961. Essa fotografia exibe a imagem de corpo
inteiro de um homem na meia idade, em pé, de perfil. Ele está em um quarto de hotel
simples, quase no centro da imagem, deslocado um pouco para a direita e emoldurado
por uma janela coberta por uma cortina ao fundo. O homem veste roupas formais: sapato,
calça, camisa e gravata, por cima dos quais há algo que parece ser uma capa de chuva
transparente. Num olhar rápido a imagem pareceria quase banal, não fosse o efeito
incômodo gerado pelo invólucro de plástico sobre o corpo do homem e por uma lâmpada
acesa que ilumina com intensidade o seu rosto, que olha fixamente para fora da margem
à esquerda. Porém, isso não é tudo: observando com mais atenção, descobrimos que,
apesar da cabeça e do torço do homem estarem virados para a esquerda, suas pernas
e pés estão completamente voltados para a direita. Ao falar sobre a própria obra,
Diane relatou que via na imagem desse homem “uma metáfora para o destino humano
– um andar cego para o futuro, com os olhos no passado” (ARBUS apud ROSENHEIM, 2017).
Pensando imagem a partir dessa fala, não há como não lembrar do anjo da história
de Benjamin:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Nele se apresenta
um anjo que parece estar na iminência de afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas.
É assim que deve parecer o Anjo da História. Sua face está voltada para o passado
[…] Mas uma tempestade sopra do paraíso, que se agarra às suas asas, e é tão forte
que o Anjo já não consegue mais fechar. Essa tempestade o leva inexoravelmente para
o futuro, para o qual ele dá as costas (BENJAMIN, 2020).
A questão do reconhecimento,
da criação de uma estranha familiaridade entre espectador e fotografado na recepção
da sua obra, não se revolve facilmente em um discurso de “somos todos iguais”. Ela
exalta a diferença sem a anular e apresenta a multiplicidade, o disforme, escarara
tudo o que nega a apetência do racionalismo que anseia pela normatização da forma
humana. Na relação com a sua obra, o que aproxima os humanos uns dos outros é o
compartilhamento da condição de irredutível singularidade em relação a qualquer
outra pessoa. “Se a medida do homem é o impossível, qualquer tentativa de fixar-lhe
uma imagem última torna-se igualmente uma tarefa impossível” (MORAES, 2017). Como
uma colecionadora, Arbus prosseguiu tentando até o fim e as suas fotografias exibem
as suas descobertas: uma coleção de imagens de corpos reais que negam a ideia de
que poderia haver um padrão “naturalista” de corpo a ser perseguido ou negado. Nesse
sentido, e confirmando o que aparece em suas fotos, Diane sentenciou: “nada do humano
é estranho para mim” (ARBUS apud PHILLIP, 2003).
Em uma carta a Marvin Israel,
pintor e companheiro de Diane, ela comparou a ação do pintor à sua, de fotógrafa:
“você inventa o que eu descubro” (ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS, 2003), o que reforça
a ideia de que suas imagens não seriam produzidas. Ou seja, ela não montava uma
encenação e nem construía personagens. Os ambientes e as pessoas que aparecem em
suas obras foram encontradas e fotografadas pela artista tal como estavam, independente
da sua presença ali. Seus modelos tinham um protagonismo no jogo de trocas envolvido
no momento da criação. Ela dizia que: “para mim, o assunto da fotografia é sempre
mais importante do que a própria fotografia. E é mais complicado” (ARBUS apud PHILLIPS,
2003). Fotografar era, para ela, quase um ato de despossessão, pois, de certa forma,
era o objeto que determinava quando a máquina disparava. Em um cartão postal, também
para Israel, Diane admitiu: “Eu não aperto o disparador. A imagem que o faz. E é
como ser gentilmente golpeada” (ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS, 2003). O desconforto,
tanto no processo de criação, quanto na recepção, é algo que paira a sua produção.
Doon Arbus e Sussman contam que Diane visitou uma série de circos pequenos e feiras
itinerantes seguindo uma sugestão de Charlie Lucas, diretor do Hubert's Museum.
Na ocasião de uma dessas visitas ela escreveu:
nos bastidores, ao sol e à lama, mães, estrábicas e espancadas,
espancam seus filhos aos berros, ou enfiam garrafas plásticas de leite em suas bocas.
E eu recuo para aumentar o enquadramento e esbarro em um elefante… Se nos circos
grandes, a arte é fazer algo que ficou fácil parecer difícil novamente, aqui é impossível
de ser feito
(ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS, 2003).
As fotografias de Diane
possuem um caráter narrativo ambíguo. Ao tentar descrever verbalmente as suas imagens,
sempre parece haver algo do sentido que escapa às formulações possíveis. A artista
dizia que “uma fotografia é um segredo sobre um segredo. Quanto mais ela te diz,
menos você sabe” (ARBUS apud PHILLIP, 2003, p.58). Nas exposições das obras de Arbus,
o espectador se vê frente a sequências de imagens bidimensionais de corpos improváveis.
O assombro é obtido pela percepção de que os seres que deram origem às fotografias
são reais e as situações em que se apresentam não foram encenadas.
Em uma carta para Israel,
Diane refletiu sobre a ideia de exceção:
Na semana passada, pesquisei a palavra ‘anomalia’, porque sempre
pensei que significava algo como ‘um peixe fora d'água’, mas eu sabia que estava
errada e certa. ‘Anomalia’ significa algo não sujeito à analogia ou regra, ou algo
único, estranho ou excepcional… e eu vi a conexão entre os freaks e os excêntricos:
a exceção a toda regra (ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS, 2003).
O projeto poético de Diane
foi diferente do de fotógrafos como August Sanders (interessado em criar uma tipologia
humana, seu projeto carrega uma carga cientificista), Walker Evans (preocupado com
aspecto social de determinados grupos, ressaltando um caráter moralizante) ou Robert
Frank (distante do objeto, interessando em uma classificação do desvio, suas fotos
possuem movimento e dinâmica). Há, nesses fotógrafos, em diferentes graus, um positivismo
na forma de abordar a imagem humana. Isso não ocorre em Arbus. Sua coleção de corpos
se apresenta como o efeito colateral da normatização dos corpos e desejos, amplificados
pela publicidade do american way of life,
e por uma fixação vitruviana gagá. Os personagens das suas fotos demonstram uma
relação antitética com o mito, tipicamente norte-americano, do self-made man. As fotografias dos corpos
desviantes (seja por condição genética, ou por mutilações) e dos marginalizados
socialmente, exibem pessoas a quem não haveria obstinação nem autodeterminação frankliniana
suficiente para lança-los aos pódios de uma sociedade regida por uma normatividade
estreita e excludente. Por outro lado, há aqueles que performam ao máximo a potência
da criação de si. Nesse grupo encontramos os profetas urbanos, as senhoras da alta
sociedade, os travestis, os participantes dos concursos de beleza, etc. Em 1940
ela escreveu sobre o personagem do Dom Quixote:
A sua ‘loucura’ é uma forma de ser ele próprio até ao limite.
Você sente que, de repente e deliberadamente, ele jogou fora sua já limitada consciência
das convenções do mundo, e se jogou no mundo desafiadoramente, porque ele era o
que era, e ele sentiu que isso era bom o suficiente (ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS,
2003).
Sua análise do personagem
de Cervantes vai de encontro com o que poderia ser dito de boa parte dos seus modelos.
Diane não foi uma fotógrafa de exploração que embarca num safari urbano disparando
em direção aos seres exóticos que encontrou – suas imagens foram geradas pela aproximação
e pela contaminação, para a celebração da diversidade, da anomalia. Dessa forma,
de cada uma das suas fotografias, um convite ressoa: "se todos nós somos aberrações,
a meta é nos tornarmos, tanto quanto possível, a aberração que somos" (ARBUS
apud PHILLIP, 2003).
Referências
bibliográficas
ARBUS,
Diane. Diane Arbus: in the beginning.
New Haven: Yale University Press, 2016.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.
CAPE,
Jonathan (org.). Diane Arbus Revelations.
Londres: Random House Group, 2003.
GROSS,
Frederick. Diane Arbus's 1960s: Auguries
of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.
MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana: de Lautréamont
a Bataille. São Paulo: Iluminuras, 2017.
PHILLIP,
Sandra S. The Question of belief. In: CAPE, Jonathan (org.). Diane Arbus Revelations. Londres: Random
House Group, 2003.
SUSSMAN,
Elisabeth; ARBUS, Doon. A Chronology. In: CAPE, Jonathan (org.). Diane Arbus Revelations. Londres: Random
House Group, 2003.
ROSENHEIM,
Jeff L. In the beginning. In: Diane Arbus:
in the beginning. New
Haven: Yale University Press, 2016.
MARIANA SILVA FRANZIM | Docente nos cursos de Artes Visuais e Design de Moda na Universidade Estadual de Londrina. Doutora e mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Londrina; especialista em Ilustração pela Universidade Norte do Paraná; graduada em Educação Artística - Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Londrina (2012). Possui como objeto de pesquisa o teor insólito da escrita do autor Murilo Rubião.
JOHN WELSON (País de Gales, 1953). Poeta e artista plástico, Welson é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em galerias em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de seu País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados com a poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para reconstruir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 05
Número 204 | março de 2022
Artista convidado: John Welson (País de Gales, 1953)
Tradução: Susana Wald
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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