sexta-feira, 4 de março de 2022

MARIANA SILVA FRANZIM | A fotografia surrealista de Diane Arbus

 


Diane Arbus (1923-1971) foi uma fotógrafa que nasceu e viveu em Nova York, filha de imigrantes russos judeus, ricos comerciantes de peles. Apesar de ter sido estimulada desde a infância para se tornar pintora, descobriu já adulta na fotografia seu meio de criação poética. Ela começou seu percurso profissional no campo da moda em parceria com seu marido, o também fotógrafo, Allan Arbus. Foi aluna de Alexey Brodovitch, Berenice Abbott e Lisette Model. Suas primeiras séries fotográficas alinhadas ao seu projeto poético pessoal foram publicadas na década de 1960 em revistas como Esquire e Harper’s Bazaar. Nessa mesma década, ela conquistou bolsas de produção da Fundação Guggenheim e teve seu trabalho exibido no Museu de Arte Moderna de Nova York. Logo após a sua morte, em 1971, ela se tornou a primeira fotógrafa norte-americana a ter o trabalho exposto na Bienal de Veneza. Popularmente, ela costuma ser reconhecida como fotógrafa de aberrações, ou então, chamada de “Sylvia Plath com uma câmera” (GROSS, 2012). Porém, seu trabalho apresenta outras nuances para além dos retratos de pessoas marginalizadas, ou do aspecto trágico da dimensão narrativa das suas imagens.

Duas retrospectivas póstumas do trabalho de Arbus são fundamentais para se ter uma compreensão global do seu projeto poético. A primeira, intitulada Diane Arbus Revelations, ocorreu em 2003 no Museu de Arte de São Francisco, com a curadoria de Elisabeth Sussman e Sandra S. Phillips, e resultou em um rico catálogo organizado por Jonathan Cape (2003, inglês no original, todos os trechos citados foram traduzidos por mim). Esse, além da reprodução das séries fotográficas e dos textos críticos, é composto por fac-símiles e transcrições de correspondências, páginas de cadernos de anotações e dos diários pessoais de Arbus. Esse volumoso material revelou um conteúdo que ultrapassa curiosidades biográficas da artista, ao permitir acesso a ricas e férteis reflexões a respeito da arte, e ao pensamento poético e crítico desenvolvido pela fotógrafa também na escrita. Documentos pessoais de Diane foram doados pelas suas filhas, Doom e Amy Arbus, em 2007, para o Metropolitan Museum of Art de Nova York e organizados em um acervo público. O trabalho de pesquisa inicial nesse arquivo resultou em uma nova retrospectiva, intitulada Diane Arbus: in the beginning, realizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York em 2016, e na publicação de um catálogo (ARBUS, 2017, inglês no original, todos os trechos citados foram traduzidos por mim). Assim como ocorrido no material de 2003, este livro mais recente apresenta um profuso volume de registros de processo poético, reflexões pessoais e críticas à própria obra escritos por Arbus.

A organização do acervo da artista, a publicação da sua obra fotográfica completa e de parte dos seus escritos é fundamental para o crescimento da sua fortuna crítica. É comum analisar esses materiais utilizando os métodos da crítica genética. Sob essa perspectiva, a obra finalizada é tida como o fim, o cume de um processo, é o objeto acabado e fixado numa forma estável. Todos os materiais que se relacionam ao movimento de elaboração da obra final são tomados como resquícios, escombros. Eles apontam para o que a obra poderia ter sido, e exibem relações hipertextuais que, muitas vezes, mesmo que tenham sido fundamentais para a gênese de determinada produção, se tornam irreconhecíveis na superfície da obra final. Nesse sentido, o pesquisador parte dos escombros dos documentos de percurso e (re)inventa uma genealogia, tendo a obra finalizada como um objeto estático que paira no horizonte da produção poética do artista. 

Para pensar a obra de Arbus, escolho olhar para esses documentos, escritos e imagens que estão às margens das obras finalizadas. Porém, a partir do contato com a publicação dos documentos presentes no acervo de Arbus, proponho tratar sua poética sob um outro aspecto que não da crítica genética. Penso ser possível abordar seu fazer como o de uma performer. Ao invés de analisar as suas fotografias, irei refletir sobre a potência estética da sua produção poética que envolve também a escrita e a ação do encontro com seus objetos. Levando em conta que Diane planejava e exibia suas fotografias em séries, escolho pensar a sua obra em conjunto. Poderia escolher um número reduzido de fotos e fazer uma análise do micro, mas escolho olhar para o macro, pois penso que sua poética possui uma força particular no coletivo. Suas imagens funcionam pelo acúmulo, pelo contraste, pelo jogo de semelhanças e diferenças. Essa abordagem permite uma entrega ao deleite do acúmulo.

Logo nas primeiras páginas de Diane Arbus Revelations (CAPE, 2003) há uma fotografia de uma parede de colagens da Diane. Nesse mural, que lembra as pranchas do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, há recortes de jornais (ela não fixou as reportagens completas, recortou apenas as fotos com manchetes e subtítulos) de notícias de assassinatos, acidentes, desastres naturais, de um paredão de execução de judeus poloneses, sobre um homem negro que foi preso por engano ao ser confundido com um foragido; fotografias recortadas de livros com imagens de aberrações e corpos mumificados; a reprodução de um nu de E.J. Bellocq; e fotografias feitas pela própria artista. Essa bizarra miscelânea permite visualizar aspectos chave para abordar a sua produção: sua curiosidade difusa e seu encantamento pela diversidade da experiência humana. Esses interesses antecipam sua produção como fotógrafa. Em 1939, com dezesseis anos, ao escrever em um artigo escolar sobre Platão, Diane concluiu que:

 


Há, sempre houve e para sempre haverá um número infinito de coisas no planeta. Todos os indivíduos são diferentes, todos almejam coisas diferentes, amam coisas diferentes, todos possuem aparências diferentes. Tudo o que já existiu no planeta foi diferente de todas as outras coisas. É isso o que eu amo: a diferenciação, a univocidade de todas as coisas e a importância da vida… Eu vejo algo de maravilhoso; eu vejo o divino nas coisas ordinárias (ARBUS apud CAPE, 2003).

 

Dois anos após escrever esse artigo, Diane ganhou sua primeira máquina fotográfica de Allan Arbus, e começou a explorar as potencialidades formais dessa ferramenta. Diane partiu da carne – ela transformou amontoados de ossos, vísceras, músculos e pele em uma camada plana reticular. Nas suas imagens, os corpos se transmudam em ruídos, tramas e textura obtida pelas suas escolhas técnicas. Sobre o assunto ela relatou que:

 

Ao começar a fotografar eu costumava produzir coisas bem granuladas. Eu estava fascinada pelo o que a granulação fazia, pois ela gerava uma espécie de tapeçaria com todos aqueles pequenos pontos, e tudo se transformava em uma linguagem de pontos. A pele se tornava o mesmo que a água, que era o mesmo que o céu, e então você estava lidando basicamente com o claro e o escuro e não mais com carne e sangue (ARBUS apud PHILLIP, 2003).

 

Em 1959 ela escreveu, em seus cadernos de anotações, listas com tópicos de interesses a serem fotografados, entre os quais figuravam lugares como: necrotérios, camarins, prisões femininas, camburões, abatedores, estúdios de tatuagem, clubes para solteiros, hotéis na beira da água, o banheiro feminino da estação de metrô de Coney Island; passando por grupos de pessoas como: companhias itinerantes de travestis, jogadoras de roller derby, mulheres estranhas, lutadoras de luta-livre, mendigos cegos; chegando a situações específicas como: aberrações nos seus lares, clubes de dança com dançarinos de aluguel antes da abertura, estúdio de um programa de rádio da WABC chamado Big Joe’s Happinness Exchange, moribundas em uma casa de repouso particular para judias no Bronx chamada Daughters of Jacob; e indo até situações mais abertas como “crime, desespero, loucura, fama, riqueza, inocência” (ARBUS apud ROSENHEIM, 2017). Em 1963, pleiteando a bolsa de financiamento da Fundação Guggenheim, ela listou os temas que já haviam sido abordados em suas fotografias:

 

Evangelistas, curandeiros, nudistas (convenções, retratos, grupos familiares, casas); shows burlescos (estrelas, strippers, quadrinhos, performances); mascaradas (carnaval, bailes de belas artes, festas de dia das bruxas), jogos (jogos de cartas, basebol, pula-cordas), salas de estar (de pensionatos, de viúvas, de anões); feiras, mendigos, grupos de Rock’n Roll, trigêmeos (retratos, grupos, convenções) (apud CAPE, 2003).

 

Estes são apenas alguns exemplos de uma prática frequente de Diane: fazer listas – de lugares, pessoas, situações, eventos, instituições. Suas coleções fotográficas são reverberações visuais dessas listas. Estes documentos mostram que o processo de Arbus era circular: ela partia de listas escritas para chegar a listas visuais. Antes de fotografar, ela enumerava proposições e, após revelar as imagens, as nomeava e organizava em séries.

Diane relatou a importância do encontro e da troca com seus modelos. Sua obra estava centrada nesse encontro, momento o qual pode ser pensado como uma performance sem espectadores. Em seus relatos, ela dizia que sua posição social e relações familiares eram constrangedoras e aprisionantes, e que, desde nova, invejava os moradores de rua que podiam vagar. Ela ansiava pela liberdade de transitar e experenciar a cidade por conta própria, visto que considerava que “nunca, nada é como disseram que seria. É o que eu nunca vi antes o que eu reconheço” (ARBUS apud PHILLIP, 2003).

Desse modo, o vagar passa a ser uma questão central. O fotografar era a chave de acesso ao desconhecido, a fotografia era a consequência da descoberta – o resto gerado pelo ato de andar e de encontrar pessoas. Fotografar era um ato de troca e de enfrentamento do desejo. Isto posto, é importante ressaltar que ela não foi uma fotógrafa voyer. Ela não se escondeu, não espiou. Ela olhou de frente, conversou, adentrou o microcosmo das pessoas que fotografou:

 

Cada subcultura que ela explora acaba por se revelar, não apenas um território em si, mas uma chave para decifrar as regras de uma outra subcultura, aparentemente desconexa, o que faz com o que o mundo, como ela diz, pareça… não tão pequeno como feito com espelhos. Da mesma forma, o que parece um beco sem saída, muitas vezes acaba sendo uma porta oculta para um assunto improvável que ela não havia pensado em perseguir (SUSSMAN; ARBUS apud CAPE, 2003, grifo do original).

 

Há, no seu processo, um interesse benjaminiano pela moda e pelos costumes. Ao perseguir os alvos a serem captados pelas suas lentes, ela performou uma flânerie. Apesar da sua obra apresentar semelhanças com as fotografias de Eugène Atget e Berenice Abbot, seu foco não estava na cidade, mas nas pessoas. Considerando seu relato que de: “minha coisa favorita é ir onde eu nunca estive” (ARBUS apud PHILLIP, 2003, p.54), a cidade é tida como labirinto repleto de reentrâncias, e o que lhe interessava eram as intersecções que permitiam os encontros.

Há algo do ímpeto do colecionador no processo de Arbus, sobre o qual Walter Benjamin (2018) escreve que, “no que se refere ao colecionador, sua coleção nunca está completa; e se lhe falta uma única peça, tudo o que colecionou não passará de uma obra fragmentária”. Nesse sentido, as listas de Diane se apresentam como uma enumeração dos lugares que ainda faltam ser percorridos. Era preciso ir a todos os lugares, fotografar toda a variedade das possibilidades humanas. O interesse no humano estava diretamente vinculado a compreensão do seu tempo presente a partir de seus costumes peculiares. Benjamin (2018) escreveu que, no século XX, “o mais árido e menos imaginativo de todos, toda a energia onírica de uma sociedade se refugiou com dupla veemência no reino nebuloso, silencioso e impenetrável da moda, no qual o entendimento não a pode acompanhar. A moda é a precursora, não, é a eterna suplente do Surrealismo”. O interesse de Diane pelos hábitos de seu tempo parece ressoar o pensamento de Benjamin. Isso pode ser exemplificado quando lemos a sua justificativa de solicitação de bolsa, apresentada para a Fundação Guggenheim em 1963, para desenvolver o projeto intitulado American Rites, Manners and Customs (Ritos, Modos e Costumes Americanos):

 


Quero fotografar as cerimônias notáveis do nosso presente, porque, enquanto vivemos aqui e agora, tendemos a perceber apenas o que é aleatório, estéril e sem forma a respeito delas. Embora lamentemos que o presente não seja como o passado, e nos afligimos de que este sempre se tornará o futuro, seus inúmeros hábitos inescrutáveis ​​aguardam obter significados. Eu quero recolhê-los, como a avó de alguém fazendo conservas, porque eles terão sido tão bonitos […] Eu irei escrever o que for necessário para a posterior descrição e elucidação desses ritos e irei aonde eu puder para encontrá-los. Esses são nossos sintomas e nossos monumentos. Eu quero simplesmente salvá-los, pois o que é cerimonioso, curioso e comum virá a ser legendário (ARBUS apud CAPE, 2003).

 

O projeto de Diane está alinhado ao aspecto histórico dialético das imagens da moda, tal como teorizado por Benjamin, que diz que “o que dá o tom é sempre o que é mais novo, mas apenas onde esse emerge entre as coisas mais antigas, mais passadas, mais habituais. Esse espetáculo – como o que é totalmente novo se forma a partir daquilo que se passou – é o verdadeiro espetáculo dialético da moda” (BENJAMIN, 2018). Arbus estipula para o seu trabalho, o compromisso de ir aonde for necessário, para encontrar e recolher os vestígios do ordinário. Para a artista, é justamente no banal que se encontra o que há de sintomático e monumental do tempo presente. As fotografias resultantes dessa coleta dos vestígios do momento vivido adquirem um novo caráter dialético, ao serem tomadas pelo espectador, o qual reconhece, ao mesmo tempo em que estranha, as pessoas e situações imobilizadas nas imagens.

Como afirmado anteriormente, Diane vagou pela cidade para coletar os vestígios do ordinário. Para isso, foi necessário andar pela superfície das ruas, percorrer os becos, entrar em buracos. Deles, ela retornava trazendo à superfície imagens que parecem se revelar aos olhos do espectador através de uma lente do estranhamento. Estranhamento esse às avessas do teorizado pelo formalismo russo, para o qual, este é um efeito próprio da obra de arte, que toma algo que nos é familiar e quebra o feitiço do reconhecimento. Por uma desautomatização perceptiva, o efeito de estranhamento da arte faz com que nos tornemos turistas em nossa terra natal, vejamos como estrangeiros os nossos parentes, e como exóticos os objetos cotidianos. As fotografias de Arbus, porém, fazem o contrário: elas tornam familiar aquilo que nos era estranho, estrangeiro – e isso gera um incômodo tremendo. Vemos em seu relato que a artista estava consciente desse efeito produzido pelo seu trabalho: “parece-me que, o que incomoda as pessoas, mais do que o tema das fotos, é a intensidade do seu poder de nos dominar, de, literalmente, nos parar no meio da vida e exigir que nos perguntemos quem nós somos” (ARBUS apud PHILLIPS, 2003). Diane encarava seus modelos, e essa troca de olhares atravessou as lentes e atingiu o espectador na imagem revelada. Isso faz com que haja uma aura de reconhecimento mútuo pela troca de olhares. Ficar frente a frente com as fotografias de Arbus é vibrar o assombro e a delícia do encontro com o insólito corporificado. Os artistas de shows de aberrações povoam numerosas fotografias de Arbus. A artista via, na maravilha dos corpos múltiplos, inversões e jogos lúdicos, e os considerava metáforas vivas: “freaks são contos de fadas para adultos. Metáforas que sangram” (ARBUS apud PHILLIP, 2003). Um exemplo pode ser visto na obra intitulada O homem invertido no seu quarto de hotel, N.Y. (The Backwards Man in his hotel room, N.Y.C.) de 1961. Essa fotografia exibe a imagem de corpo inteiro de um homem na meia idade, em pé, de perfil. Ele está em um quarto de hotel simples, quase no centro da imagem, deslocado um pouco para a direita e emoldurado por uma janela coberta por uma cortina ao fundo. O homem veste roupas formais: sapato, calça, camisa e gravata, por cima dos quais há algo que parece ser uma capa de chuva transparente. Num olhar rápido a imagem pareceria quase banal, não fosse o efeito incômodo gerado pelo invólucro de plástico sobre o corpo do homem e por uma lâmpada acesa que ilumina com intensidade o seu rosto, que olha fixamente para fora da margem à esquerda. Porém, isso não é tudo: observando com mais atenção, descobrimos que, apesar da cabeça e do torço do homem estarem virados para a esquerda, suas pernas e pés estão completamente voltados para a direita. Ao falar sobre a própria obra, Diane relatou que via na imagem desse homem “uma metáfora para o destino humano – um andar cego para o futuro, com os olhos no passado” (ARBUS apud ROSENHEIM, 2017). Pensando imagem a partir dessa fala, não há como não lembrar do anjo da história de Benjamin:

 

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Nele se apresenta um anjo que parece estar na iminência de afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. É assim que deve parecer o Anjo da História. Sua face está voltada para o passado […] Mas uma tempestade sopra do paraíso, que se agarra às suas asas, e é tão forte que o Anjo já não consegue mais fechar. Essa tempestade o leva inexoravelmente para o futuro, para o qual ele dá as costas (BENJAMIN, 2020).

 


Rosheim aponta que esse contorcionista é como as demais figuras estranhas fotografadas por Arbus: “eles são simultaneamente os documentos não apologéticos de Arbus do mítico como uma manifestação do comum” (ROSENHEIM, 2017). Ao investigar as figurações do humano, Eliane Robert Moraes demonstra como a arte moderna inventou as mais alucinantes metamorfoses, desmontes e recombinações da imagem do corpo, atestando “a própria impossibilidade de fixar a figura humana, de confiná-la numa forma definitiva” (MORAES, 2017). Olhando o conjunto variado de corpos fotografados por Arbus, notamos que há, em sua poética, uma forma de antropocentrismo às avessas. O humano está no centro das suas imagens. Raras são fotos sem pessoas. Mesmo quando ela fotografou objetos – como manequins, bonecos de cera, objetos cenográficos, árvores de natal, lápides, poças d’água –, as imagens resultantes têm um que de retratos, e os objetos emanam uma estranha aura personificada.

A questão do reconhecimento, da criação de uma estranha familiaridade entre espectador e fotografado na recepção da sua obra, não se revolve facilmente em um discurso de “somos todos iguais”. Ela exalta a diferença sem a anular e apresenta a multiplicidade, o disforme, escarara tudo o que nega a apetência do racionalismo que anseia pela normatização da forma humana. Na relação com a sua obra, o que aproxima os humanos uns dos outros é o compartilhamento da condição de irredutível singularidade em relação a qualquer outra pessoa. “Se a medida do homem é o impossível, qualquer tentativa de fixar-lhe uma imagem última torna-se igualmente uma tarefa impossível” (MORAES, 2017). Como uma colecionadora, Arbus prosseguiu tentando até o fim e as suas fotografias exibem as suas descobertas: uma coleção de imagens de corpos reais que negam a ideia de que poderia haver um padrão “naturalista” de corpo a ser perseguido ou negado. Nesse sentido, e confirmando o que aparece em suas fotos, Diane sentenciou: “nada do humano é estranho para mim” (ARBUS apud PHILLIP, 2003).

Em uma carta a Marvin Israel, pintor e companheiro de Diane, ela comparou a ação do pintor à sua, de fotógrafa: “você inventa o que eu descubro” (ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS, 2003), o que reforça a ideia de que suas imagens não seriam produzidas. Ou seja, ela não montava uma encenação e nem construía personagens. Os ambientes e as pessoas que aparecem em suas obras foram encontradas e fotografadas pela artista tal como estavam, independente da sua presença ali. Seus modelos tinham um protagonismo no jogo de trocas envolvido no momento da criação. Ela dizia que: “para mim, o assunto da fotografia é sempre mais importante do que a própria fotografia. E é mais complicado” (ARBUS apud PHILLIPS, 2003). Fotografar era, para ela, quase um ato de despossessão, pois, de certa forma, era o objeto que determinava quando a máquina disparava. Em um cartão postal, também para Israel, Diane admitiu: “Eu não aperto o disparador. A imagem que o faz. E é como ser gentilmente golpeada” (ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS, 2003). O desconforto, tanto no processo de criação, quanto na recepção, é algo que paira a sua produção. Doon Arbus e Sussman contam que Diane visitou uma série de circos pequenos e feiras itinerantes seguindo uma sugestão de Charlie Lucas, diretor do Hubert's Museum. Na ocasião de uma dessas visitas ela escreveu:

 

nos bastidores, ao sol e à lama, mães, estrábicas e espancadas, espancam seus filhos aos berros, ou enfiam garrafas plásticas de leite em suas bocas. E eu recuo para aumentar o enquadramento e esbarro em um elefante… Se nos circos grandes, a arte é fazer algo que ficou fácil parecer difícil novamente, aqui é impossível de ser feito (ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS, 2003).

 

As fotografias de Diane possuem um caráter narrativo ambíguo. Ao tentar descrever verbalmente as suas imagens, sempre parece haver algo do sentido que escapa às formulações possíveis. A artista dizia que “uma fotografia é um segredo sobre um segredo. Quanto mais ela te diz, menos você sabe” (ARBUS apud PHILLIP, 2003, p.58). Nas exposições das obras de Arbus, o espectador se vê frente a sequências de imagens bidimensionais de corpos improváveis. O assombro é obtido pela percepção de que os seres que deram origem às fotografias são reais e as situações em que se apresentam não foram encenadas.

Em uma carta para Israel, Diane refletiu sobre a ideia de exceção:

 

Na semana passada, pesquisei a palavra ‘anomalia’, porque sempre pensei que significava algo como ‘um peixe fora d'água’, mas eu sabia que estava errada e certa. ‘Anomalia’ significa algo não sujeito à analogia ou regra, ou algo único, estranho ou excepcional… e eu vi a conexão entre os freaks e os excêntricos: a exceção a toda regra (ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS, 2003).

 

O projeto poético de Diane foi diferente do de fotógrafos como August Sanders (interessado em criar uma tipologia humana, seu projeto carrega uma carga cientificista), Walker Evans (preocupado com aspecto social de determinados grupos, ressaltando um caráter moralizante) ou Robert Frank (distante do objeto, interessando em uma classificação do desvio, suas fotos possuem movimento e dinâmica). Há, nesses fotógrafos, em diferentes graus, um positivismo na forma de abordar a imagem humana. Isso não ocorre em Arbus. Sua coleção de corpos se apresenta como o efeito colateral da normatização dos corpos e desejos, amplificados pela publicidade do american way of life, e por uma fixação vitruviana gagá. Os personagens das suas fotos demonstram uma relação antitética com o mito, tipicamente norte-americano, do self-made man. As fotografias dos corpos desviantes (seja por condição genética, ou por mutilações) e dos marginalizados socialmente, exibem pessoas a quem não haveria obstinação nem autodeterminação frankliniana suficiente para lança-los aos pódios de uma sociedade regida por uma normatividade estreita e excludente. Por outro lado, há aqueles que performam ao máximo a potência da criação de si. Nesse grupo encontramos os profetas urbanos, as senhoras da alta sociedade, os travestis, os participantes dos concursos de beleza, etc. Em 1940 ela escreveu sobre o personagem do Dom Quixote:

 

A sua ‘loucura’ é uma forma de ser ele próprio até ao limite. Você sente que, de repente e deliberadamente, ele jogou fora sua já limitada consciência das convenções do mundo, e se jogou no mundo desafiadoramente, porque ele era o que era, e ele sentiu que isso era bom o suficiente (ARBUS apud SUSSMAN; ARBUS, 2003).

 

Sua análise do personagem de Cervantes vai de encontro com o que poderia ser dito de boa parte dos seus modelos. Diane não foi uma fotógrafa de exploração que embarca num safari urbano disparando em direção aos seres exóticos que encontrou – suas imagens foram geradas pela aproximação e pela contaminação, para a celebração da diversidade, da anomalia. Dessa forma, de cada uma das suas fotografias, um convite ressoa: "se todos nós somos aberrações, a meta é nos tornarmos, tanto quanto possível, a aberração que somos" (ARBUS apud PHILLIP, 2003).

 

 

Referências bibliográficas

ARBUS, Diane. Diane Arbus: in the beginning. New Haven: Yale University Press, 2016.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

CAPE, Jonathan (org.). Diane Arbus Revelations. Londres: Random House Group, 2003.

GROSS, Frederick. Diane Arbus's 1960s: Auguries of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.

MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Iluminuras, 2017.

PHILLIP, Sandra S. The Question of belief. In: CAPE, Jonathan (org.). Diane Arbus Revelations. Londres: Random House Group, 2003.

SUSSMAN, Elisabeth; ARBUS, Doon. A Chronology. In: CAPE, Jonathan (org.). Diane Arbus Revelations. Londres: Random House Group, 2003.

ROSENHEIM, Jeff L. In the beginning. In: Diane Arbus: in the beginning. New Haven: Yale University Press, 2016.

 

 

 


MARIANA SILVA FRANZIM | Docente nos cursos de Artes Visuais e Design de Moda na Universidade Estadual de Londrina. Doutora e mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Londrina; especialista em Ilustração pela Universidade Norte do Paraná; graduada em Educação Artística - Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Londrina (2012). Possui como objeto de pesquisa o teor insólito da escrita do autor Murilo Rubião.
 

 



JOHN WELSON (País de Gales, 1953). Poeta e artista plástico, Welson é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em galerias em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de seu País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados com a poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para reconstruir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser.



 

Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 05

Número 204 | março de 2022

Artista convidado: John Welson (País de Gales, 1953)

Tradução: Susana Wald

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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