sexta-feira, 4 de março de 2022

MIRIAN TAVARES | Hilma af Klint – O espírito do tem ou o tempo dos espíritos

 


Cézanne crea la expresión cromática de las cosas,

 su cualidad pictórica interna, insertándola en una

totalidad que eleva a fórmula de resonancia abstracta,

plena de armonía ya veces puramente matemática.

Lo representado no es un hombre, ni una manzana, ni un árbol,

si no que todos esos elementos son utilizados por el

artista para crear un objeto de resonancia interior pictórica que constituya.

KANDINSKY

 

“Toda obra de arte é filha do seu tempo e, muitas vezes, mãe dos nossos sentimentos.” Esta é a primeira frase da obra de Kandinsky Do Espiritual na Arte, que é daquelas obras que não envelhecem, como as pinturas do artista – converteram-se em parte do património visual da humanidade. Considerado o “pai do abstracionismo”, ele próprio enumera os que, antes dele, experimentaram plasmar, em palavras, sons, imagens e gestos, o mundo invisível. Ou melhor, o mundo sensível, mas não mimetizável, pois desconhecemos a sua forma. Para Kandinsky, o poeta Maeterlinck foi dos primeiros a exprimir, em palavras, o espírito do tempo, ou melhor, através das suas palavras, o poeta alemão conseguiu imprimir na alma dos seus leitores, o sentimento difuso, e até terrorífico, de uma era de mudanças, de incertezas e de profunda solidão do ser humano, recém-abandonado por Deus, graças a Nietzsche e o seu pessimismo schopenhauriano.

O século XVIII viu florescer o Romantismo, que, de acordo com Giulio Carlo Argan, é a outra face do Neoclassicismo, ambos frutos de um tempo acelerado por revoluções, mecânicas e sociais, de um tempo consciente de si mesmo e que aprendera, com Hegel, a importância da História, um tempo cujos artistas vão procurar, através da arte, fixar e também rever uma História que se converte em motivo e em metáfora.


No século XIX, a Estética vê-se dividida entre a Metafísica e o Positivismo e as artes enfrentam novos desafios que lhes são propostos pelas máquinas de produzir imagens – as câmaras fotográficas e cinematográficas. Ezra Pound escreveu que o “artista é a antena da raça (humana)”, [1] é aquele que capta, antes dos demais, l’esprit du temps e se a Revolução Industrial e a Revolução Francesa laicizaram e cientificizaram o mundo, os artistas continuaram a perseguir aquilo que não é mensurável ou abarcável pelo olhar, a anima – a alma das coisas que as anima e que muitas vezes nos escapa.

Se pensarmos nos turbilhões da obra de William Turner ou nas nuvens de Constable, percebemos que a demanda pelo infinito não é fruto apenas dos movimentos de Vanguarda ou do séc. XX, mas estava já presente nas obras dos impressionistas e dos pós-impressionistas. Maurice Denis, e o seu grupo, os Nabis, já experimentara a dissolução do visível, que podemos considerar um caminho para a abstração. Numa vertente mais figurativa, os artistas Pré-rafaelitas usaram a imagem como símbolo e não como referente do mundo visível. Vários seriam os exemplos, mas, sem dúvida, a obra de Cézanne, referida por Kandinsky, cria um fluxo contínuo entre a vida e a representação, ou melhor, entre a representação e aquilo que lhe escapa, pois ao artista interessava a alma – estrutura permanente num mundo de sombras e de impermanências.



Para mim, falar de Hilma af Klint, da sua obra e da importância que ela adquiriu nos últimos tempos, é indissociável de falar do espírito do tempo em que ela viveu, com suas virtudes e limitações. Dona de uma produção profícua, composta de quadros, textos, rascunhos e desenhos, a artista só deu a conhecer ao mundo a sua obra passados 20 anos da sua morte. Formada pela Academia de Artes de Estocolmo, abandonou os ensinamentos académicos, aos quais recorria apenas para pintar retratos, como forma de ganhar dinheiro, Hilma af Klint absorveu, e antecipou, tendências do seu próprio tempo. Quando se fala do seu trabalho, fala-se de que ela foi a verdadeira pioneira do abstracionismo, com séries abstratas pintadas mesmo antes das obras mais radicais de Kandinsky ou Malevich. No entanto, há que se perceber que havia, no caso da artista sueca, uma intenção programática de usar a arte, e ela própria, como um médium, um canal de comunicação aberto entre o mundo dos espíritos e o mundo concreto. A sua história, marcada pela perda de suas irmãs, vai aproximá-la do universo da Teosofia e da Antroposofia, das ideias de Rudolf Steiner, o filósofo que juntou a ciência com a metafísica.

Mais de 1200 pinturas e 2600 páginas de desenhos e bocetos, textos e diagramas que só vieram ao conhecimento mais geral do público na década de 80 do século XX e alcançaram o mundo a partir da exposição feita em Estocolmo em 2013 seriam suficientes para lhe granjear um lugar na História da Arte. O facto de ser mulher num mundo das artes dominado pelos homens não diminuíra a sua vontade de prosseguir aquilo que, para ela, converteu-se numa missão: tornar visível o invisível. Um invisível povoado de ecos e de vozes que ela sentia a compulsão de transmitir. Se a palavra era o instrumento de Maeterlinck que, como disse Kandinsky, usou a poesia para dar-nos a ver/sentir a grande escuridão que se anunciava – a da humanidade a olhar para o abismo (tão bem representada pelo quadro de Caspar David Friedrich, Caminhante sobre o mar de névoa), a pintura era o instrumento de Hilma af Klint. A leitura que Kandinsky faz do poeta alemão é magnífica e surpreendente pela sua modernidade: “O grande recurso de Maeterlinck é a palavra.


A palavra é um som interior (…).” [2]A palavra designa um objeto, mas, ao ser repetida, vezes sem conta, torna-se apenas um som. E é esse som puro que nos atinge o espírito, que nos aquece o coração, que se descola do Real e se converte em pura abstração. Como Maeterlinck, Hilma af Klint buscava, com suas pinturas e inquietações, roçar o infinito, aquele ponto onde tudo se encontra e de onde tudo flui. Aquele lugar em que nada somos e tudo é um vir-a-ser.

Muitos artistas do Surrealismo, como André Masson, buscaram inspiração no universo espiritual, buscaram vasos comunicantes e frequentaram sessões espíritas na tentativa de encontrar o estado mais puro da consciência – o inconsciente, o outro que é o mesmo, o desconhecido que nos habita. Hilma af Klint foi ainda além, tornou-se médium e mensagem. A sua obra não pode apenas (o que já seria bastante) figurar como pioneira do abstracionismo, porque, de facto, ela não o foi. Ela conseguiu, isso sim, traduzir o espírito do seu tempo, deixando que ele tomasse conta do seu imaginário e da sua capacidade inesgotável de produzir arte. Uma arte que deve ser admirada pelas qualidades intrínsecas, pela ousadia, pelo domínio formal, por mais paradoxal que possa parecer. Ela dominava o seu metier e, como mulher do seu tempo, que se pretendia futuro, deu-nos a sua linguagem, talvez incompreensível na sua totalidade, mas plena de lirismo e carregada de sentidos. Sem que tenha havido um diálogo, que se conheça, entre a artista sueca e Kandinsky, a obra de ambos foi uma antena que captou, e transfigurou, o infinito.

 

NOTAS

1. Ezra Pound, ABC da Literatura. São Paulo, Cultrix, 2006.

2. Wassily Kandisnky, Do Espiritual na Arte – E na pintura em particular. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

 


MIRIAN NOGUEIRA TAVARES | Professora associada da Universidade do Algarve, Portugal. Com formação acadêmica nas Ciências da Comunicação, na Semiótica e nos Estudos Culturais (doutorou-se em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia), tem desenvolvido o seu trabalho de investigação e de produção teórica nas áreas das estéticas fílmica e artística. Como professora da Universidade do Algarve, participou na elaboração do projeto de licenciatura em Artes Visuais, do mestrado e doutoramento em Comunicação, Cultura e Artes e do doutoramento em Média-Arte Digital. Atualmente é coordenadora do CIAC (Centro de Investigação em Artes e Comunicação) e Diretora do doutoramento em Média-Arte Digital.

 


JOHN WELSON (País de Gales, 1953). Poeta e artista plástico, Welson é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em galerias em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de seu País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados com a poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para reconstruir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser.

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 05

Número 204 | março de 2022

Artista convidado: John Welson (País de Gales, 1953)

Tradução: Susana Wald

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022 

 





 

 

 contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário