su cualidad pictórica interna, insertándola en
una
totalidad que eleva a fórmula
de resonancia abstracta,
plena de armonía ya veces
puramente matemática.
Lo representado no es un hombre,
ni una manzana, ni un árbol,
si no que todos esos elementos
son utilizados por el
artista para crear un objeto
de resonancia interior pictórica que constituya.
KANDINSKY
“Toda obra
de arte é filha do seu tempo e, muitas vezes, mãe dos nossos sentimentos.” Esta
é a primeira frase da obra de Kandinsky Do Espiritual na Arte, que é daquelas
obras que não envelhecem, como as pinturas do artista – converteram-se em parte
do património visual da humanidade. Considerado o “pai do abstracionismo”, ele próprio
enumera os que, antes dele, experimentaram plasmar, em palavras, sons, imagens e
gestos, o mundo invisível. Ou melhor, o mundo sensível, mas não mimetizável,
pois desconhecemos a sua forma. Para Kandinsky, o poeta Maeterlinck foi dos primeiros
a exprimir, em palavras, o espírito do tempo, ou melhor, através das suas palavras,
o poeta alemão conseguiu imprimir na alma dos seus leitores, o sentimento difuso,
e até terrorífico, de uma era de mudanças, de incertezas e de profunda solidão do
ser humano, recém-abandonado por Deus, graças a Nietzsche e o seu pessimismo schopenhauriano.
O século XVIII viu florescer o Romantismo, que, de acordo com Giulio
Carlo Argan, é a outra face do Neoclassicismo, ambos frutos de um tempo acelerado
por revoluções, mecânicas e sociais, de um tempo consciente de si mesmo e que aprendera,
com Hegel, a importância da História, um tempo cujos artistas vão procurar, através
da arte, fixar e também rever uma História que se converte em motivo e em metáfora.
Se pensarmos nos turbilhões da obra de William Turner ou nas nuvens
de Constable, percebemos que a demanda pelo infinito não é fruto apenas dos movimentos
de Vanguarda ou do séc. XX, mas estava já presente nas obras dos impressionistas
e dos pós-impressionistas. Maurice Denis, e o seu grupo, os Nabis, já experimentara
a dissolução do visível, que podemos considerar um caminho para a abstração. Numa
vertente mais figurativa, os artistas Pré-rafaelitas usaram a imagem como símbolo
e não como referente do mundo visível. Vários seriam os exemplos, mas, sem dúvida,
a obra de Cézanne, referida por Kandinsky, cria um fluxo contínuo entre a vida e
a representação, ou melhor, entre a representação e aquilo que lhe escapa, pois
ao artista interessava a alma – estrutura permanente num mundo de sombras e de impermanências.
Para mim, falar de Hilma af Klint, da sua obra e da importância que
ela adquiriu nos últimos tempos, é indissociável de falar do espírito do tempo em
que ela viveu, com suas virtudes e limitações. Dona de uma produção profícua, composta
de quadros, textos, rascunhos e desenhos, a artista só deu a conhecer ao mundo a
sua obra passados 20 anos da sua morte. Formada pela Academia de Artes de Estocolmo,
abandonou os ensinamentos académicos, aos quais recorria apenas para pintar retratos,
como forma de ganhar dinheiro, Hilma af Klint absorveu, e antecipou, tendências
do seu próprio tempo. Quando se fala do seu trabalho, fala-se de que ela foi a verdadeira
pioneira do abstracionismo, com séries abstratas pintadas mesmo antes das obras
mais radicais de Kandinsky ou Malevich. No entanto, há que se perceber que havia,
no caso da artista sueca, uma intenção programática de usar a arte, e ela própria,
como um médium, um canal de comunicação aberto entre o mundo dos espíritos e o mundo
concreto. A sua história, marcada pela perda de suas irmãs, vai aproximá-la do universo
da Teosofia e da Antroposofia, das ideias de Rudolf Steiner, o filósofo que juntou
a ciência com a metafísica.
Mais de 1200 pinturas e 2600 páginas de desenhos e bocetos, textos e diagramas que só vieram ao conhecimento mais geral do público na década de 80 do século XX e alcançaram o mundo a partir da exposição feita em Estocolmo em 2013 seriam suficientes para lhe granjear um lugar na História da Arte. O facto de ser mulher num mundo das artes dominado pelos homens não diminuíra a sua vontade de prosseguir aquilo que, para ela, converteu-se numa missão: tornar visível o invisível. Um invisível povoado de ecos e de vozes que ela sentia a compulsão de transmitir. Se a palavra era o instrumento de Maeterlinck que, como disse Kandinsky, usou a poesia para dar-nos a ver/sentir a grande escuridão que se anunciava – a da humanidade a olhar para o abismo (tão bem representada pelo quadro de Caspar David Friedrich, Caminhante sobre o mar de névoa), a pintura era o instrumento de Hilma af Klint. A leitura que Kandinsky faz do poeta alemão é magnífica e surpreendente pela sua modernidade: “O grande recurso de Maeterlinck é a palavra.
Muitos artistas do Surrealismo, como André Masson, buscaram inspiração
no universo espiritual, buscaram vasos comunicantes e frequentaram sessões espíritas
na tentativa de encontrar o estado mais puro da consciência – o inconsciente, o
outro que é o mesmo, o desconhecido que nos habita. Hilma af Klint foi ainda além,
tornou-se médium e mensagem. A sua obra não pode apenas (o que já seria bastante)
figurar como pioneira do abstracionismo, porque, de facto, ela não o foi. Ela conseguiu,
isso sim, traduzir o espírito do seu tempo, deixando que ele tomasse conta do seu
imaginário e da sua capacidade inesgotável de produzir arte. Uma arte que deve ser
admirada pelas qualidades intrínsecas, pela ousadia, pelo domínio formal, por mais
paradoxal que possa parecer. Ela dominava o seu metier e, como mulher do
seu tempo, que se pretendia futuro, deu-nos a sua linguagem, talvez incompreensível
na sua totalidade, mas plena de lirismo e carregada de sentidos. Sem que tenha havido
um diálogo, que se conheça, entre a artista sueca e Kandinsky, a obra de ambos foi
uma antena que captou, e transfigurou, o infinito.
NOTAS
1. Ezra Pound, ABC
da Literatura. São Paulo, Cultrix, 2006.
2. Wassily Kandisnky,
Do Espiritual na Arte – E na pintura em particular. São Paulo, Martins Fontes,
1996.
MIRIAN NOGUEIRA TAVARES | Professora associada da Universidade do Algarve, Portugal. Com formação acadêmica nas Ciências da Comunicação, na Semiótica e nos Estudos Culturais (doutorou-se em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia), tem desenvolvido o seu trabalho de investigação e de produção teórica nas áreas das estéticas fílmica e artística. Como professora da Universidade do Algarve, participou na elaboração do projeto de licenciatura em Artes Visuais, do mestrado e doutoramento em Comunicação, Cultura e Artes e do doutoramento em Média-Arte Digital. Atualmente é coordenadora do CIAC (Centro de Investigação em Artes e Comunicação) e Diretora do doutoramento em Média-Arte Digital.
JOHN WELSON (País de Gales, 1953). Poeta e artista plástico, Welson é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em galerias em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de seu País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados com a poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para reconstruir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 05
Número 204 | março de 2022
Artista convidado: John Welson (País de Gales, 1953)
Tradução: Susana Wald
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