sábado, 9 de abril de 2022

ALCEBIADES DINIZ MIGUEL | Sacralidade Conspirativa (Georges Bataille e os ritos da sociedade secreta Acéphale)



Extra ecclesiam nulla salus. [1]

 

As origens: um misticismo Belle Époque

Alex Owen, em sua pesquisa a respeito de um novo misticismo surgido na Era Vitoriana, define muito bem esse renascimento tardio de crenças e práticas místicas de Enchantment à la Mode, o “encantamento da moda”, título do capítulo introdutório do estudo da pesquisadora Alex Owen a respeito da vaga de misticismo que varreu a Inglaterra – e toda a Europa, de certa forma – do final do século XIX até depois da Primeira Guerra Mundial, nos anos 1920 e mesmo depois. De fato, ainda seguindo a autora de The Place of Enchantment, desde ainda antes da célebre série de conferências dadas por William Ralph Inge – respeitado professor de teologia – na Universidade de Oxford em 1899, na qual os mistérios pagãos da Grécia antiga ganharam certa relevância para a formação do misticismo cristão (OWEN, 2004), havia intenso interesse em um tipo de misticismo sincrético, renovado em seus pontos centrais, que se distanciavam do misticismo medieval, por exemplo. Logo, surgia um influxo de teóricos, gurus e guias, articulados em grupos, seitas, cenáculos; era um misticismo com forte representação social e de grupo. Uma ideia geral de um tipo de identidade de novo tipo, não exatamente como o usual dos neófitos de uma nova seita, começa a se tornar mais e mais definida. As seitas, assim, se convertem em sociedades iniciáticas, por vezes fechadas ou secretas, nas quais neófitos e adeptos conviviam, com rituais próprios demarcando processos internos. Tratava-se de uma busca, sem dúvida: não apenas o retorno de crenças, mas uma busca por elementos que a filosofia natural e a ciência de modo geral não conseguiam abarcar satisfatoriamente, seja em termos existenciais, estéticos, políticos ou mesmo sociais. Não por acaso, o termo ocultismo ganhou um relevo considerável, justamente materializar uma série de métodos, percepções e/ou teorizações que estivessem além da percepção material – embora, muitas vezes, esse além fosse encarado como uma espécie de complementariedade necessária. Como escreveu A. P. Sinnett, em seu livro The Occult World (publicado em 1881 e citado por Alex Owen):

 

Ocultismo não é meramente uma descoberta que apresenta para a humanidade o fato de que dispomos de certos poderes sobre a Natureza, cujo estudo de natureza mais estreita, do ponto de vista meramente materialista, falhou em desenvolver; trata-se de uma iluminação lançada sobre toda a especulação espiritual que tivesse algum valor, de forma que se tornou possível unir sistemas aparentemente divergentes. (SINNETT, apud OWEN, 2004).

 

Curiosamente, esse novo ressurgir desse tipo de percepção (ou sensibilidade) ocultista surgia justamente no momento em que Max Weber desenvolvia uma de suas teorizações mais célebres, Entzauberung der Welt, termo em alemão usualmente traduzido como “desencantamento do mundo”. Foi em 1917, em uma conferência intitulada “Ciência como vocação”, o momento em que Weber cunharia esse termo embora, segundo os estudos de Anthony J. Cascardi, até o final de sua vida, em 1920, tal sociólogo voltaria ao tema na forma de estudos da sociologia das religiões (cf. CASCARDI, 2011). De fato, ainda segundo Cascardi, Weber devia ter em mente outra conhecida expressão, essa do romantismo alemão, “der entgöttertur Natur”, que aparece no poema “Die Götter Greichenlands” de Friedrich Schiller e poderia ser traduzida como “desendeusamento da natureza” (cf. CARDOSO, 2014). Em termos gerais, quando Weber utiliza esse termo, seu foco é na transformação da forma como o mundo é pensado – ao se abandonar a estruturação mágica do pensamento por outra, derivada da percepção científica e material dos elementos da realidade. [2] Evidentemente, Weber pensava não nos termos – ou não apenas nos termos – de um vulgar Iluminismo: na verdade, o sociólogo alemão aludia a processos de síntese e resposta diante dos fenômenos da natureza, do mundo, cuja estrutura abandonava a possibilidade mágica existente no passado; ou seja, no Ocidente, um tipo de “racionalização intelectualizada, criada pela ciência e pela orientação científica da tecnologia” teria aniquilado as “forças incomensuráveis e misteriosas” de tempos idos (cf. OWEN, 2004). Contudo, ainda seguindo Alex Owen, poderíamos imaginar que a nova organização mística e esse ressurgimento do misticismo na virada do século XIX para o XX não estivesse desconectada de um “desencantamento”, que se trataria apenas de um equívoco de Weber e nada mais; Owen destaca, seguindo pesquisadores da secularização desde o século XIX como Owen Chadwick, que a renovação espiritual surgida nesse período não estava exatamente dissociada desse processo geral de desencantamento, de racionalização tecnológica e planificação nas diversas esferas cotidianas. Nesse sentido, os novos processos de organização dos grupos místicos, como a britânica Golden Dawn, seriam significativos desse tipo de mudança, dessa busca de novos sentidos para além da percepção por um lado brutalmente materialista, por outro institucionalmente religiosa.


Nesse momento de conflitos e novos desenvolvimentos, o surgimento do ideário fascista marca um momento decisivo na busca daquilo que os próprios fascistas denominariam “o mito do século XX”. O impacto do fascismo, um fenômeno bem mais relacionado ao século XX, seria tremendo nas discussões e formações de grupos que buscavam, através de um novo tipo de mística/espiritualidade, outra forma de uma compreensão complexa, visionária da realidade. O irracionalismo de base do fascismo se combinaria com a busca visionária não apenas do misticismo da belle époque, mas também com certas filosofias que, desde o romantismo, questionavam a percepção usual dos fatos da realidade em uma positividade linear e convencional. Com a ascensão do fascismo, tais experimentos místicos ganharam uma dimensão política e, nesse processo, sua busca por novos parâmetros de percepção dos fenômenos e outras organizações sociais em torno de aspectos da sacralidade na experiência humana tornaram-se apenas variações em torno da nota irracionalista – mais um desdobramento nos ataques contra a racionalidade iluminista articulados por uma reação política de contornos que pareciam, à superfície, fáceis de delinear. É nesse sentido que surge a singular experiência coletiva e mística de Georges Bataille, em sua busca em que, simultaneamente, articulava um outro tipo de coletividade e buscava resgatar, das mãos do fascismo, certos elementos de crítica à racionalidade e à planificação social que, paradoxalmente, também estavam na base do fascismo.

 

Primeiros confrontos: a herança de Nietzsche

Se o misticismo à moda no início do século XX foi atraído para o campo da crítica cultural fascista com certa facilidade – por conta da crítica irracionalista à modernidade que aproximava ambos –, o mesmo ocorreu de forma bem menos pacífica no caso de certos pensadores outsiders do século XIX. Nesse sentido, talvez a apropriação mais conflituosa feita pelo fascismo tenha sido da filosofia de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). Estruturada em aforismos, esses breves fragmentos de pensamento, a filosofia nietzschiana estava longe de apresentar algo como um sistema definido, mas possuía o poderoso polo de atração representado pela negação, pela aporia e pela contradição, elementos que tal filósofo abraçava sem pestanejar e que estavam, aliás, coerentes com seu vitupério central à noção mesma de verdade. Evidentemente, a crítica ad posteriori teria a tendência de ver em Nietzsche mais um elo no encadeamento lógico do fascismo: já nos anos 1930, em diversos artigos, Georg Lukács destacaria o papel preponderante de Nietzsche, em termos estéticos e teóricos, tanto no imperialismo alemão, responsável pela Primeira Guerra Mundial, quanto, posteriormente, no desenvolvimento do próprio fascismo (cf. TAYLOR, 1990). Essa tese se firmou já nos anos 1930 e depois, após a guerra, de forma consideravelmente sugestiva; sua formalização parecia suficientemente rigorosa. O pesquisador Seth Taylor, que trabalhou os aspectos do pensamento de Nietzsche passíveis de cooptação por tendências políticas de esquerda a partir das propostas culturais e de organização social desenvolvidas durante o período do expressionismo alemão, derivadas de certa antipatia para com o conhecimento prático e o utilitarismo – elementos centrais na já mencionada secularização do mundo – que também estavam na crítica cultural da esquerda, não apenas no programa da revolução conservadora, sempre identificada ao nietzschianismo (cf. TAYLOR, 1990).

Esse front de luta em torno da herança de Nietzsche – uma batalha de começou na verdade bem antes, quando sua irmã, Elisabeth Föster, tomou a frente da herança do irmão em termos convencionais, tornando-o uma atração de circo aos poderosos da Europa e do mundo [3] –, mas ganhou considerável expansão nos anos 1930, conforme o fascismo se tornava mais consciente de si mesmo, uma ameaça no horizonte tanto das democracias liberais quanto dos movimentos sociais de esquerda. É no contexto da disputa mais acirrada por essa herança, que à época significava uma luta decisiva contra o fascismo que a reparação de Nietzsche adquire um significado especial na obra de Georges Bataille (1897-1962) que, em meados dos anos 1930, já era uma figura bastante conhecida nos meios literários europeus. A luta contra o fascismo, contudo, o impulsionou nessa direção, nas palavras de Marina Galletti: “Diante da apropriação de Nietzsche pelo nazismo e pelo fascismo, Bataille sentiu a necessidade, em 1937, de redigir, em Acéphale, uma ‘reparação’ ao filósofo alemão.” (cf. GALLETTI, 1999). Aqui, entramos em contato com esse conceito/comunidade que é o Acéphale, cuidadosamente desenvolvido por Bataille e alguns amigos no final da década de 1930 que se posicionaria como um outro tipo de oposição ao fascismo, como logo veremos. Da mesma forma, Bataille também sofreu, após seu rompimento com o surrealismo, de acusações de ser, ele mesmo, um fascista – André Breton, um talento ímpar quando o assunto são anátemas, afirmou ser Bataille um “super-fascista” durante os confrontos resultantes da traumática dissolução do grupo de intelectuais oposicionistas e antifascistas denominado Contre-Attaque. [4]

Contudo, é preciso destacar, antes, que a “reparação” que Bataille visava obter para Nietzsche não estava restrita à obra de tal filósofo alemão, reduzida a mera panfletagem de teorização Blut und Boden que tanto agradava conservadores, nazistas e fascistas. A “reparação”, ainda seguindo Galletti, parecia se destinar ao próprio Bataille, cuja crítica aos dogmatismos tornou-se mais e mais sistemática justamente a partir dos anos 1930. Seu rompimento tanto com os surrealistas quanto com os grupos stalinistas são notáveis e se tornam mais e mais galvanizadas, conforme os conflitos ideológicos tornavam mais patentes que posições excessivamente heterodoxas e heréticas tornavam-se difíceis de sustentar no campo político (seja em termos cotidianos ou das altas esferas de poder): o rompimento de Bataille e um de seus colaboradores à época, Jules Monnerot, se deu (segundo os pesquisadores Alastair Brotchie e Marina Galletti) por diferenças ideológicas e de pensamento, mas também pelo envolvimento do irmão de Monnerot, Claude, na violenta repressão stalinista contra o POUM (Partido Operário de Unificação Marxista) um grupo de oposição esquerdista na Guerra Civil Espanhola, que mobilizava as oposições antifascistas por toda a Europa mas também demonstrava o autoritarismo na condução stalinistas de movimentos oposicionistas. [5] A luta parecia bastante desesperada, desse ponto de vista; contudo, talvez fosse ainda pior a perspectiva de que não havia campo de luta que não fosse próximo de algum autoritarismo. A perda de Nietzsche para os nazi-fascistas não era apenas uma derrota nos termos da normalização de um tipo de pensamento potencialmente contestador – tratava-se, na verdade, de uma percepção desesperada de que o nazismo havia “tomado o momento, impulsionado por uma mitologia de Sangue, Ferro, Pátria e Volk.” (Cf. GALLETTI; BROTCHIE, 2017).

Talvez inconscientemente, Bataille seguiu a máxima: “situações extremas exigem medidas extremas”. Gradativamente, as concepção organizacionais de Bataille, envolvendo a formação de grupos ou organizações antifascistas, foi ganhando outros tons e formas; a luta pela retomada do significado do mito, um significado não domesticado pela irracionalidade da ideologia conservadora, estava na ordem do dia. Assim, tal autor francês passou de organizações convencionais (que se comunicavam e se expressavam por vias convencionais) para grupos cuja organização surgia derivada das sociedades secretas; de estranhas seitas pagãs com sua própria ritualística, em grupos que se ordenavam pelas relações potenciais com o mundo ao redor, classificadas como esotéricas ou exotéricas – a quintessência disto se deu na formação de dois grupos simultaneamente por Bataille e seus colaboradores e aliados; de um lado, o Collège de Sociologie, que se expressava de forma mais ou menos institucional; de outro, a Acéphale, espécie de sociedade secreta com rituais próprios, criada por Bataille menos para conjurar atentados e outros crimes e muito mais para tentar a retomada simbólica do mito ritualizado. A luta política ganhava uma frente estranha e singular, mas de um peso simbólico só aquilatado nos últimos anos, quando novas pesquisas resgataram os materiais produzidos por Bataille e seus colaboradores enquanto buscavam organizar grupos de resistência que seguiam bases bem diferentes daquelas usualmente estabelecidas.

 


A sociologia sagrada como arma

Um dos fatos instigantes na virada do século XIX para o século XX e nas primeiras décadas deste último foi como a ciência abandonou, no todo ou em partes, a torre de marfim de sua legitimidade sancionada pelas universidades e demais instituições acadêmicas. Desde o Renascimento, quando o campo do conhecimento começou a se firmar em instituições que se tornariam a Academia como a reconhecemos hoje, não havia essa busca por quebras de parâmetros estabelecidos, por novos caminhos e experiências. Foge ao escopo deste breve artigo discutir as formas como esses processos de ruptura se deram – e sua importância para a formulação da Ciência nos termos contemporâneos –, mas no contexto de desenvolvimento das iniciativas políticas de Bataille, torna-se, de fato relevante: como destaca Simonetta Falasca Zamponi, iniciativas de Bataille como o Collège não tinham a intenção de realizar “a ciência pela ciência”, uma vez que, para tal autor, eram “o único domínio que abarcava as grandes decisões da vida.” Por isso, “falhas metodológicas” – detectadas nos trabalhos de um dos membros do Collège, Michel Leiris – eventualmente destacadas pelos críticos eram coisa de menor escala, se comparadas às percepções existenciais teorizadas e formuladas pelo sociólogo (cf. ZAMPONI, 2004).

Assim, apesar da solidez da base teórica adotada, Bataille pretendia que sua “sociologia sagrada” fosse um pouco além dos elementos descritivos, avaliativos e combinatórios usualmente esperados das metodologias científicas contemporâneas. Assim, na conferência “La Sociologie Sacrée du Monde Contemporain” (apresentada em 2 de abril de 1938 para os membros do Collège), Bataille inicia seu texto justamente reivindicando seu estatuto e sua base metodológica: o fato social de acordo com o pensamento de Durkheim, que perceberia “no fato não apenas uma soma de ações individuais” (BATAILLE, 2004, p. 18), ponto em que estaria a concordância essencial entre ele e Roger Caillois, muito mais afeito ao biologismo nas exposições das questões sociológicas. Percebe-se como, para Bataille, o aparato de cientificidade do campo específico que ele propunha para a sociologia precisava ser respeitado – era necessário o debate entre pares, o estabelecimento de uma teorização sólida como alicerce, a percepção da complexidade dos fenômenos a serem analisados. Acreditamos, nesse sentido, que Bataille adotava essa postura não apenas pela busca de uma referência metodológica ou para dotar o campo de pesquisa por ele fundado de alguma legitimidade – esse procedimento se dava, igualmente, para neutralizar tendências ou acusações de irracionalismo que sua abordagem eventualmente pudesse ter. Trata-se de um dos mais peculiares usos do modus operandi científico para a constituição de outra coisa, de uma possibilidade única de evocação social do mito.

Contudo, após essa primeira aproximação (ou concessão) para com a sociologia em sua forma por assim dizer clássica, Bataille avança já nas proposições de sua própria forma de “sociologia sagrada”, estabelecendo sua própria noção de sociedade: “tentei representar a sociedade como um campo de forças cujas passagens podem ser reconhecidas em nós mesmos, mas cujas forças são em todo o caso externas às necessidades e à vontade consciente de cada um.” (BATAILLE, op. cit.). Evidentemente, foge ao escopo de nosso breve artigo discutir as visões de ciência nutridas por Bataille ou a evolução de seu pensamento nos decisivos anos 1930 – nossa intenção, contudo, é destacar como Bataille erigiu uma sofisticada teorização sociológica para poder, justamente, chegar à questão da organização social sem atalhos, sem a possibilidade irracionalista que já mencionamos, para assim poder reivindicar novamente a revolta e a sedição.


Nesse sentido, talvez seja interessante perceber as nuances do pensamento militante de Bataille – bem como de suas propostas teóricas e práticas no que diz respeito à sociologia, pois para ele essas duas nuances se imbricavam – como aparecem no artigo “L’Aprenti sorcier”, publicado na edição de julho/1938 (número 298) de La Nouvelle Revue Française, edição especial justamente dedicada à proposta de Bataille e de seus principais colaboradores (no caso, Leiris e Caillois) de título: “Pour un Collège de Sociologie”. Segundo Brotchie e Galletti, tal publicação, na prestigiosa NRF da editora Gallimard, era importante para o Collège; Leiris e Caillois, contudo, apresentaram seus textos exatamente como foram apresentados oralmente – nas conferências do grupo –, com edições mínimas. “Bataille, ao contrário, trabalhou durante meses em sua contribuição, perdendo diversos prazos de entrega. (…) [O artigo] permanece como um denso e eloquente sumário das ideias de Bataille naqueles anos, e de sua experiência em tentar agir a partir delas” (GALLETTI; BROTCHIE, 2017). Trata-se de um texto extremamente denso, que, de fato, busca apresentar não exatamente soluções, mas possibilidades reflexivas a partir de combinações de tipos existenciais e sociais situados, exatamente, entre as necessidades sociais e as carências ou exigências individuais. Ao final, do artigo, na seção “O aprendiz de feiticeiro”, o leitor é apresentado a uma reflexão simultaneamente clara e enigmática, que aborda a refundação do mito em uma sociedade secularizada, na qual o mito já existe apenas como uma referência direta a experiências de um passado distante. Como no caso de Freud, Bataille imagina o espaço mitológico como um tempo em ruínas; mas, diferente de Freud, não imagina ser um retorno desse passado possível apenas através dos inquietantes sintomas unheimlich; para Bataille, esse retorno poderia acontecer através de novas formas de organização social que se assemelhariam às sociedades secretas do passado: “‘Sociedade secreta’ é, de fato, o nome da realidade social que tais iniciativas engendram” (BATAILLE in GALLETTI; BROTCHIE, 2017). Contudo, o alvo de nosso autor é uma sociedade secreta exorcizada de seus elementos puramente românticos, tornada uma espécie de gerador mitológico sem a necessidade de uma crença organizada como base. Um mito dessacralizado, sem mitologia – uma forma de compreensão sacra da realidade social sem a necessidade de um culto, de uma religião, de natureza celestial ou histórica. Era o golpe do autor na tripla cabeça autoritária do nazifascismo, do cristianismo e do stalinismo.

Mas o autor sabia que a redenção planificada precisa de algum teste, de alguma fórmula material imediata, de uma encarnação. E assim, sua sociedade secreta Acéphale se reunia ao lado de uma árvore atingida por um raio para celebrar seus rituais, sem temer as noites gélidas e escuras que cobriam a Europa em fins dos anos 1930.

 

NOTAS

1. Citação utilizada como epígrafe por um dos membros fundadores – ao lado de Georges Bataille – do Collège de Sociologie, Roger Caillois, em seu artigo “Le vent d’hiver” (1938) e significa “fora da igreja não existe salvação”. Trata-se de uma máxima de Orígenes, citada – segundo Marina Galletti e Alastair Brotchie – igualmente por Nietzsche em Vontade de Poder: “Os cristãos com sua fórmula Extra ecclesiam nulla salus revelam sua crueldade para com os inimigos da cristandade” (cf. GALLETTI et BROTCHIE, 2017).

2. Trabalhando em uma lavra (e em um registro) semelhante ao de Weber, Freud, em seu ensaio a respeito do fenômeno do Unheimlich de 1917, mesmo ano em que Weber cunhou sua expressão, mergulha nessa estranha sensação premonitória e pouco confortável de estranheza, que parecia baseada em processos da magia ancestral como a “onipotência de pensamentos” (cf. FREUD, 2010). Freud, calcado em outro grande autor romântico – Heinrich Heine – via nesses elementos mágicos uma analogia aos “deuses no exílio” de Heine: superados em sua essência por novos processos mentais, retornavam, sinistros, em momentos nos quais o encadeamento causal e o senso comum pareciam mais frágeis. Essa percepção será bastante importante em nossa análise, como veremos.

3. Nesse sentido, é bastante sintomático – além de curioso – o caso do encontro de Nietzsche com o Imperador do Brasil, D. Pedro II. As vicissitudes desse estranho encontro estão no artigo “A longa história do encontro entre Nietzsche e D. Pedro II” (cf. DIAS, 2018).

4. “Os aderentes surrealistas do grupo ‘Contre-Attaque’ receberam com satisfação a dissolução do referido grupo, no interior do qual se manifestaram tendências ditas ‘super-fascistas’ e cujo carácter puramente fascista se revelava cada vez mais flagrante.” (manifesto assinado por Breton, Adolphe Acker, Claude Cahun, Marcel Jean, Suzanne Malherbe, Georges Mouton, Henri Pastoureau e Benjamin Péret, citado em BATAILLE, 1970).

5. Cf. Cf. GALLETTI; BROTCHIE, 2017. 

 

Referências bibliográficas

BATAILLE, Georges. Oevres complètes. Tome I. Paris: Gallimard, 1970.

___. L’Aprenti Sorcier: Du Cercle Communiste Démocratique à Acéphale. Paris: Éditions de la Difference, 1999.

___. La Sociologie Sacrée du Monde Contemporain. Fécamp: Éditions Lignes & Manifestes, 2004.

CARDOSO, Matêus Ramos. “O desencantamento do mundo segundo Max Weber”. In: Revista EDUC-Faculdade de Duque de Caxias. Vol. 01 - No 02. Jul-Dez, 2014.

CASCADI, Anthony J. The Subject of Modernity. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

DIAS, Geraldo. “A longa história do encontro entre Nietzsche e D. Pedro II”. In: Cadernos Nietzsche, 39, (3), Dez. 2018 (versão online disponível em https://www.scielo.br/j/cniet/a/Kq8B6TxT9r6Z6FhQ5SPqCJf/?lang=pt).

FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 14: "O homem dos lobos" e outros textos. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GALLETI, Marina. “Le Roi du Bois”. In: BATAILLE, Georges. L’Aprenti Sorcier: Du Cercle Communiste Démocratique à Acéphale. Paris: Éditions de la Difference, 1999.

GALLETTI, Marina; BROTCHIE, Alastair (eds.). The Sacred Conspiracy: The Internal Papers of the Secret Society of Acéphale and Lectures to the College of Sociology. London: Atlas Press, 2017.

OWEN, Alex. The Place of Enchantment: British Occultism and the Culture of the Modern. Chicago and London: University of Chicago Press, 2004.

TAYLOR, Seth. Left-Wing Nietzscheans: The Politics of German Expressionism, 1910-1920. Berlin and New York: Walter de Gruyter, 1990.

ZAMPONI, Simonetta Falasca. “Bataille au Collège de Sociologie, un Inédit”. In: BATAILLE, Georges. La Sociologie Sacrée du Monde Contemporain. Fécamp: Éditions Lignes & Manifestes, 2004. 

 

 


ALCEBÍADES DINIZ MIGUEL | Graduado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2000), com mestrado, doutorado e pós-doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (com estágio na Brunel University, em Londres). Trabalha com questões de literatura, discurso e ficção, tendo experiência como docente (Unicamp), supervisor técnico (como revisor gramatical e de conteúdo), tradutor (tanto de textos técnicos e manuais quanto de obras literárias como de J. G. Ballard, H. G. Wells ou Nathanael West) e pesquisador em diversos centros como o Grupo de Pesquisa da Discriminação (USP), o Margens (IEL-Unicamp) e da Fundação Biblioteca Nacional. Também criou roteiros, animações, contos e interfaces de jogos. O núcleo de suas pesquisas gira em torno da Literatura Fantástica e dos deslocamentos provocados pelo exílio e seus efeitos na narrativa e na linguagem, atuando principalmente nos seguintes temas: antissemitismo, literatura, teatro e cinema. 
 

 


JOE HESTER | (Austrália, 1920-1960). Foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encuentra entre os grandes artistas australianos do século passado.
 

 


 

Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07

Número 206 | abril de 2022

Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)

Tradução: Allan Vidigal

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022 

 





 

 

 contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário