sábado, 9 de abril de 2022

CLAUDIO WILLER | Duas vezes André Breton

 


I. André Breton, o paradoxal

 

Sempre me perguntei o porquê de Breton nunca haver citado, elogiado ou sequer mencionado o poeta simbolista Jules Laforgue. Como era possível um poeta tão bom, tão precursor, com uma imagética tão rica, um sentimento antiburguês tão agudo, não figurar no cânone surrealista? Instado por mim, nosso amigo Eclair Antonio Almeida Filho escreveu, perguntando a Henri Béhar, bretoniano-mor, autor da biografia Le grand indésirable e organizador do alentado Dictionnaire Breton. Nada, resposta nenhuma. Laforgue não consta no Dictionnaire Breton. Nem na excelente biografia de Jean-Marc Polizotti, Adventurers of the Mind. Contemporâneos de Laforgue, como o exacerbado pessimista Tristan Corbière e o católico-esquizofrênico Germain Nouveau, ganharam artigos de Breton elogiando suas qualidades. Laforgue, não. Consolou-me ler na biografia de Marcel Duchamp por Calvin Tomkins que a leitura de Laforgue havia sido decisiva na formação do inventor dos ready-made e criador das caixas.

A propósito, a relação Duchamp-Breton: entre as superstições formalistas, há aquela de que Duchamp não foi surrealista; criar daquele jeito, levar décadas para fazer as “caixas”, seria incompatível com o culto surrealista à espontaneidade. Ao contrário, penso que o surrealismo se torna mais compreensível, como rebelião total no plano da linguagem, da produção simbólica – e, no caso de Duchamp, do comportamento (Jules e Jim, o filme de Truffaut adaptado da narrativa de Henri-Pierre Roché, completa libertinagem, é inspirado na relação a três do próprio Henri-Pierre, Beatrice Woods e Duchamp), – se o pensarmos como tendo ambos como figuras de ponta, exponenciais, que se completavam. E que por isso permaneceram amigos até o final da vida de Breton, em 1966, embora houvessem esfriado por um momento em 1957, quando Duchamp incluiu Salvador Dalí em uma das exposições internacionais do surrealismo.

Ainda a propósito de superstições formalistas, eles acham impossível alguém promover tamanhas alterações no eixo do sintagma, e não só do paradigma, além de levar décadas para criar uma obra como Le grand verre, e ser surrealista. Não entenderam nada. E a chave do surrealismo continua sendo a declaração de inconformismo absoluto do final do Manifesto – o que supõe ou subentende muita coisa, inclusive o comportamento e a arte de Duchamp, o artista que se mudou para Nova York porque ninguém sabia quem ele era na emergente metrópole (se o motivo foi mesmo esse, de nada adiantou, pois logo Duchamp se tornaria celebridade e a principal inspiração da arte pop).

Uma renomada ensaísta publicou, décadas atrás, um artigo afirmando que Breton foi cartesiano. Pouco depois, um discípulo dela me perguntou se eu não achava que Breton era cartesiano. Ignorei – mas deveria ter recomendado a leitura de Flagrant délit, o extenso artigo-manifesto sobre a falsificação de um suposto inédito de Rimbaud, La Chasse Spirituelle, endossada pela crítica e denunciada por Breton. São blocos de texto: sobre a civilização maia e o mito (argumento perfeito: acusam a surrealistas, de mitificar Rimbaud – mas estamos no mundo mítico, diz, e cita Apollinaire: “você nunca entenderá os maias”); sobre a importância da descoberta dos escritos gnósticos de Nag Hammadi (em primeira mão, acabava de ser noticiada nos jornais); sobre Rimbaud, é claro; e, de modo especialmente carinhoso, sobre os críticos que haviam endossado a falsificação: Maurice Nadeau, Pascale Pia, Maurice Saillet. Perguntam-se como Breton acertou em cheio em sua denúncia. Para mim, contribuiu o espírito da negação, a chance de tripudiar sobre estudiosos que ele detestava – a começar por Nadeau, autor de uma História do surrealismo que continua a circular como referência.

A propósito, os blocos de texto, sem maior preocupação com a sequência lógica, são típicos de Breton, desde o Manifesto do Surrealismo. Criava por impulso.

A boa professora de pós na USP que manifestou interesse sobre surrealismo – mas, disse ela, “escrita automática, não...!”. Não entenderam nada – nós sempre estamos, em algum grau, no campo da escrita automática. Freud mostrou que toda a produção simbólica, mesmo a mais trivial, tem duplos ou múltiplos sentidos e está trazendo à tona mensagens do inconsciente. Existe automatismo puro? Dificilmente – quando muito, nos surtos e alucinações. Existe um não-automatismo psíquico? Talvez nas escritas mais protocolares, mais formais, em demonstrações de teoremas, por exemplo. Talvez. O mérito de Freud – mostrar que tudo pode ser outra coisa, que a aparente realidade é múltipla e polissêmica.

Os paradoxos. As afirmações de Breton sobre amor único, o repúdio à libertinagem (exceto se fosse literária...) – e sua conduta na vida real. Na ocasião em que fui a uma reunião dos surrealistas, Breton já havia morrido. Achei a reunião parecida com aquelas do Depto. de Psicologia da USP, onde na época lecionava. Joyce Mansour, ótima poeta, compareceu. Pálida, vestida de preto, chegou, sentou-se, não disse uma palavra, não moveu um músculo da face, ao final da reunião levantou-se e retirou-se. Sabemos que, se ela topasse, Breton iria. A justificativa do culto a Sade em Entrétiens – escuridão que acentua a claridade da chama do amor único – é parecida com a justificativa católica, em especial agostiniana, da existência do mal.

Breton holista – aí está um tema a ser desenvolvido. Extasiando-se com cientistas visionários em Le méssage automatique; com românticos fascinados pelo eletromagnetismo que foram cientistas e ao mesmo tempo cabalistas, como Ritter, no artigo sobre Achim von Arnim. Reconhecendo a grandeza de Novalis, citando-o a propósito do mito dos “Grandes Transparentes”, no derradeiro Manifesto, pendia, contudo, para aqueles românticos “menores”, mais excêntricos.

É claro, o Breton autoritário, responsável por exclusões de excelentes autores do surrealismo (com Artaud, não daria liga; mas uma pessoa excelente como Philippe Soupault, não tem cabimento). O Breton teimosamente monoglota, ignorando Grécia e Itália como culturas de dominadores dos celtas, aos quais se identificava. Provinciano, desconhecendo importantes manifestações do surrealismo, a exemplo daquela de Portugal. Um corolário, os autores que criticam pesadamente Breton, e ao mesmo tempo o reescrevem, a exemplo do grande Herberto Helder.

Como teria sido o encontro, agendado, mas que não ocorreu, de Breton e Allen Ginsberg? Não daria liga, penso. Basta comparar fotos dos surreais e dos beats. Franceses são (desculpem o estereótipo), caretas, formais. Ou foram, até 1968. Fotos da minha turma na década de 1960 têm mais cara de beats do que de surreais.

André Breton produziu, sem dúvida, alta literatura. As páginas em prosa poética de Nadja, de uma qualidade reconhecida até por contendores viscerais do surrealismo, como Jean Cocteau. O começo de O amor louco (Ici l’Ondine, a beleza convulsiva) e o terrível final, com as visões diante da “casa das raposas”. Os momentos de maior delírio de Os vasos comunicantes, errando por Paris, alucinando diante do quadro sobre Dalila de Courbet, até chegar à formulação do acaso objetivo, atribuído a Engels, citando um parágrafo que Engels jamais escreveu. Poemas incríveis como A união livre, Pleine Marge, Sur la route de San Romano, Ode à Charles Fourier (evidentemente, não é escrita automática, com as transcrições do próprio Fourier – e daí? Não precisava, pois o delírio já possuía Fourier).

Das minhas passagens prediletas de Breton: em Arcano 17, após a explosão de prosa poética ao ir até o rochedo de Percé, no Canadá (por acaso terra da família de Kerouac), o final. De volta a Paris, refletindo sobre o pós-guerra europeu, conhece um rapaz, fala com ele; e se convence que havia encontrado o próprio Gérard de Nerval – então, pela primeira vez na vida, sobe ao topo da Torre Saint-Jacques. Faz seu trajeto iniciático. Surpreendente nunca haver subido antes – a torre inclinada, ponto de partida de peregrinos, adjacente ao suposto bairro dos alquimistas (no fundo, a Rue Nicolas Flamel), é desses lugares por onde se passa frequentemente, na Rue de Rivoli.

Contem-me novidades sobre literatura e vida.

 


II.
André Breton, Nadja e Gérard de Nerval: estranhas relações

 

Um bom pretexto para voltar a tratar de Breton e surrealismo é o lançamento de nova edição brasileira de Nadja, agora pela Cosac Naify, que já publicou outras obras importantes de surrealistas. É, também, uma nova versão da tradução de Ivo Barroso. Conforme é dito ao final do livro, “Barroso considera o texto publicado na presente edição uma nova tradução”, assim mostrando ser um verdadeiro tradutor literário, daqueles que encaram tradução como um compromisso, algo permanente, e não apenas como tarefa de encomenda.

A circulação de Nadja no Brasil só tem a ganhar com esta edição. Vem acompanhada por um bom apoio crítico: prefácio de Eliane Robert Moraes, posfácio de Annie Le Brun, indicações de leitura e excertos da sua recepção, incluindo, entre outros, os testemunhos capitais de Walter Benjamin, Murilo Mendes e Maurice Blanchot. Enfim, tudo o que é preciso para que esta porta de entrada para o surrealismo se abra plenamente para o leitor brasileiro.

Nadja foi a criação literária surrealista de maior repercussão ao ser publicada, conforme observado nesta nova edição e documentado, entre outros, por Marguerite Bonnet em Nadja – Réception de l’oeuvre [1], Patrick Née em Lire Nadja [2] e Pascaline Mourier-Casile em Nadja d’André Breton [3] (a propósito, são índices da importância e prestígio de uma obra literária não apenas sua publicação em pocket book, mas bons ensaios a respeito, como este de Mourier-Casile, também saírem em edições de bolso, de grande tiragem).

Não obstante, Nadja e surrealismo ainda são recebidos de modo reticente e descartados com ligeireza por boa parte da intelectualidade brasileira. Um exemplo é este comentário de Silviano Santiago, afirmando que, em Nadja, Breton fez com que a

 

[…] descrição linguística do real fosse substituída pela fotografia correspondente. Pensavam os surrealistas: imagem por imagem, por que e para que buscá-las e compô-las com palavras? Recorramos à fotografia. Colemos a foto ao texto linguístico. [4]

 

E ainda se refere, citando Robbe-Grillet, ao “preguiçoso André Breton, o do romance Nadja.”

Descrição substituída pela fotografia? De fato, Breton afirmou, no prefácio de 1962 para Nadja, que a “abundante ilustração fotográfica” no livro “objetiva eliminar qualquer descrição”. Mas isso tornaria Breton preguiçoso? Como…? A mesma crítica não valeria para outras obras literárias acompanhadas de fotografias? Por exemplo, Paranóia de Roberto Piva, com as fotos de Wesley Duke Lee na edição original de Massao Ohno e naquela do Instituto Moreira Salles?

Há confusão entre duas coisas: uma, a recusa da narrativa de ficção por Breton; outra, uma recusa da escrita. Nadja relata os encontros, durante alguns dias, de André Breton com uma mulher estranha e visionária, que acabaria internada em hospícios até o fim de seus dias. Fascina pelo caráter não-ficcional do que é relatado. É a transposição para a escrita da identificação surrealista entre arte e vida, invertendo a relação entre esses dois planos. Tem especial importância pelo modo como funde gêneros e pela alta voltagem poética. Breton, nesta e em outras de suas obras também acompanhadas por ilustrações, não abandonou as palavras. Nos milhares de páginas de poesia, narrativa em prosa, ensaio, manifestos e artigos que deixou, como o atestam os quatro volumes da sua obra completa na coleção Pléiade, há passagens de “descrição linguística do real”, mesmo acompanhadas por fotografias. Por exemplo, em O Amor Louco, as descrições do mercado de flores em Paris e do alto do Pico de Teide nas Ilhas Canárias; em Arcano 17 há bastante sobre os rochedos da Gaspésia. Em Nadja, além de narrar os episódios marcantes da sua relação com essa mulher misteriosa, e antes, na primeira parte do livro, as “petrificantes coincidências” que a precederam, descreve e comenta as fotografias e outras imagens adicionadas ao texto.

A contradição aparente – Breton fazer, em suas narrativas em prosa, o que rejeitara no primeiro Manifesto do Surrealismo – é examinada por Jean-Luc Steinmetz em André Breton et les surprises de l’amour fou: [5] sim, o surrealista descreveu cenas e situações – mas descrevia aqueles lugares e acontecimentos em que a realidade se comportava ou aparecia como sonho; quando o real se tornava surreal, maravilhoso. O que Breton não queria era registrar o banal, o prosaico: “não tenho por hábito alardear os momentos nulos da minha vida”, afirmou no primeiro Manifesto do Surrealismo.

De qualquer modo, boas narrativas em prosa interessam por suas qualidades poéticas, como já havia exposto outro anti-realista, Baudelaire, em sua apreciação de Madame Bovary de Flaubert: vendo a protagonista como personagem heroica e interpretando-a como hermafrodita, criatura superior, inverteu o julgamento moral do próprio Flaubert. Aliás, e ainda a propósito de Flaubert, grandes obras literárias sempre têm algo a mais, mostram outra coisa, como observou Breton nas páginas iniciais de Nadja: [6]

 

Não sou dos que cultuam Flaubert e, no entanto, se me garantem que, segundo sua própria afirmativa, ele quis, com Salambô, apenas “dar a impressão do amarelo” e, com Madame Bovary, apenas “fazer algo que tivesse a cor do mofo daqueles cantos onde nascem tatuzinhos”, pouco se importando com o restante, preocupações assim, acima de tudo extraliterárias, me predispõem a seu favor.

 

A concomitante reedição de Nadja e reaparição do comentário de Silviano Santiago oferecem um bom pretexto para tratar de algumas qualidades tipicamente literárias de Breton, incluindo suas relações com outros autores, em geral, e com Gérard de Nerval, em particular.

Ninguém escreve no vazio, a partir de nada, do zero. Criação literária sempre é diálogo com outras leituras, mesmo no mais desenfreado espontaneísmo, na mais pura escrita automática. Já demonstrei isso em outra ocasião. [7] E, antes de mim, Michael Rifaterre, [8] ao expor o intertexto ou “inconsciente do texto” em uma passagem do extenso poema em prosa Peixe Solúvel de Breton, [9] resultado da escrita automática.

Em Nadja, não falta esse diálogo com outras obras e autores. Na parte inicial, de modo explícito, ao tratar dos estranhos acontecimentos, os acasos, “coincidências petrificantes” que prefiguram sua aparição, há o comentário sobre Flaubert, e também sobre Huysmans, Rimbaud, Apollinaire.

A segunda parte do livro é aquela, segundo Breton na forma de “observação neuropsiquiátrica”, em que são relatados os encontros com Nadja, ocorridos entre 4 e13 de outubro de 1926.

Na terceira parte, escrita depois de Breton saber que Nadja havia sido internada, há poesia em prosa. Ele observa que está a escrever sobre um mundo que se transformava durante o intervalo “que separa essas últimas linhas daquelas que, folheando o livro, pareceriam encerrá-lo duas páginas atrás”, pois a vida e a cidade não param de mudar. Pouco depois dos acontecimentos que acabara de relatar, seus cenários já se haviam modificado. O teatro onde assistira a uma peça insólita estava fechado, em reformas. A estátua de Étienne Dolet na Praça Maubert, que lhe provocava mal-estar, cercada de tapumes, em restauração. A cidade é um organismo mutante, vivo:

 

Não sou eu quem vai meditar sobre o que advém da forma de uma cidade, nem mesmo da verdadeira cidade, alheia e abstrata, daquela em que moro, por força de um elemento que seria para a minha mente o que o ar é para a vida. Sem nenhum arrependimento, agora a vejo tornar-se diferente e até fugir. Resvala, se incendeia, afunda no redemoinho de suas barricadas, no sonho das cortinas de seus quartos, onde um homem e uma mulher continuarão a se amar indiferentes.

 


Há aqui uma citação de Baudelaire e da sua visão do efêmero associado à modernidade (continuo achando que esta nova edição deveria ter algumas notas de rodapé a mais, mostrando essas conexões, óbvias para o leitor francês, mas nem tanto para o brasileiro). Em tradução livre e literal: “De uma cidade a forma muda mais depressa que um coração infiel”. Isso foi observado por Flávia Nascimento, tradutora e prefaciadora de O Camponês de Paris de Aragon [10] (outra via de acesso importante ao surrealismo, disponível para o leitor brasileiro), citando o trecho correspondente de O Cisne, de As Flores do Mal, e remetendo ao que Walter Benjamin escreveu sobre ruínas da modernidade em Parque Central: “Baudelaire já constatara, antes deles, que a forma de uma cidade muda mais rapidamente que o coração de um mortal, o que faz com que tudo transmude incessantemente em amontoados de ruínas, em alegorias.” (outros três ensaios importantes de Flávia Nascimento sobre a relação de surrealistas e outros autores com Paris estão publicados na Agulha Revista de Cultura).

Baudelaire não está presente apenas nesse trecho. Nadja e o conjunto de textos surrealistas sobre o maravilhoso urbano, ao adotarem a disponibilidade e a flânerie, são continuadores do Baudelaire poeta de Paris. Na série Quadros Parisienses, que compõem as Flores do Mal, é a “Cidade a fervilhar, cheia de sonhos.” Nela, “Flui o mistério em cada esquina, em cada fronde,/ Cada estreito canal do colosso possante.” [11] Como crítico de arte, Baudelaire argumentou em favor da “beleza nova e particular” presente na cidade: “A vida parisiense é fecunda em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e sacia como a atmosfera; mas não o vemos.” [12] Em um ensaio famoso, Walter Benjamin mostrou que assim se inaugurava uma nova relação entre o poeta e a metrópole, simbolizada pelo flâneur, o caminhante desgarrado: “Pela primeira vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto da poesia lírica”. [13] Uma das consequências dessa flânerie, dessa errância sem destino definido, foi o modo como Breton encontrou Nadja.

No primeiro Manifesto do Surrealismo, Breton já tomaria o partido do maravilhoso baudelairiano em contraposição ao realismo, à submissão ao real imediato: “Digamo-lo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo, qualquer tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo”. Diria também, em nota de rodapé: “O que é admirável no fantástico é que não há mais fantástico: só há o real”. Mais à frente, contraporia o maravilhoso ao fantástico em seu prefácio para Le miroir du merveilleux de Pierre Mabille:

 

O maravilhoso, ninguém conseguiu defini-lo melhor [que Mabille] por oposição ao “fantástico” que tende, infelizmente, cada vez mais a suplantá-lo junto a nossos contemporâneos. É que o fantástico, quase sempre, pertence à ordem da ficção sem consequência, enquanto o maravilhoso brilha na ponta extrema do movimento vital e envolve em si, inteiramente, toda a afetividade. [14]

 

Fazem parte desse maravilhoso imanente e urbano – também examinado no ensaio de Carlos M. Luis publicado, muito sincronicamente, nesta edição – todos os registros dos trechos de conversas, objetos encontrados, textos, desenhos, os esboços a traço e colagens feitos por Nadja, a torrente de símbolos citados ou graficamente reproduzidos no livro – mãos negras e vermelhas, serpentes, máscaras, estrelas, cometas, flores, sereias, esfinges, duendes, o diabo, torres e subterrâneos de castelos, lâmpadas, amuletos, as chamas de uma fogueira, as cores do ar – que levaram Breton a vê-los, “nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso estupor permitia”, como cúmplices a contemplar “os escombros fumegantes do velho pensamento e da vida sempiterna”. E a perguntar-se: “Em que latitude nós poderíamos estar bem, assim entregues ao furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos víamos como objetos de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais?”

Novamente, uma citação: aqui, de Mallarmé e seu poema em prosa O Demônio da Analogia, no qual repete, como um enigmático refrão, “la penultième est morte”, a penúltima morreu. O Demônio da Analogia é um dos textos que Mallarmé escreveu durante sua crise de 1867, quando achou que estava enlouquecendo ao ter experiências de duplicação, resumidas neste comentário em uma carta a seu amigo Cazalis: “Acabo de passar um ano assustador: meu Pensamento se pensou”. P-O. Walzer, ao comentar a crise de Mallarmé, vê seus poemas em prosa daquele período como precursores do surrealismo [15].

Uma relação intertextual mais subterrânea, bem mais complexa, pode ser observada na segunda parte de Nadja, no impressionante episódio da Praça Dauphine. [16]

A 6 de outubro de 1926, Breton e Nadja chegaram a essa praça na Ilha da Cité, onde ficam a Catedral de Notre-Dame e outras edificações históricas. Classificada por Breton como “um dos lugares mais profundamente ermos que conheço, um dos piores terrenos baldios de Paris”; estar lá lhe provocava aflição. Haviam sido conduzidos por Peixe Solúvel, que Nadja acabara de ler. Em um dos trechos de Peixe Solúvel é mencionado um hotel, o City Hotel, onde Breton havia morado. Pretendiam ir adiante, até a Ilha de Saint-Louis, adjacente, também mencionada em outro trecho daquele poema em prosa. Uma relação mais original com literatura, bem examinada por Mourier-Casille (no aqui já mencionado Nadja d’André Breton): trocaram capítulos de Peixe Solúvel; pretendiam seguir um deles e foram parar em outro, que relata um encontro entre uma mulher, Helena, e o diabo. Dirigiam-se ao inferno.

Ao chegarem à praça e se instalarem em um café, iniciou-se a noite marcada por qualquer coisa de mal-assombrado, Nadja a ver mortos circulando pela vizinhança, com o rumor do vento – “o vento e o azul, o vento azul”, dizia – transformado em vozes anunciando a morte, enquanto um bêbado os cobria de impropérios. Afirmou que lá passava um subterrâneo, vindo do Palácio da Justiça, um túnel secreto que se comunicava com outro palácio: segundo Henri Béhar em na sua biografia de Breton, [17] escavações arqueológicas de 1963 revelaram que esse subterrâneo existe; contudo, também constava em uma das narrativas do Fantômas de Souvestre e Allain, que Nadja poderia ter lido. Apontando para a janela de uma das casas da praça, negra na escuridão, Nadja afirmou que em um minuto esta se iluminaria e sua cor seria vermelha: em um minuto, a luz do quarto da janela acendeu-se, exibindo cortinas vermelhas (Breton observou, “para benefício dos amantes de soluções simplistas”, que Nadja já havia morado na Praça Dauphine e podia saber da janela de cortinas vermelhas). Em seguida, alucinada, agarrou-se à grade do Palácio da Justiça e insistiu que havia estado lá em outra vida, como acompanhante de Maria Antonieta.

Prosseguindo a caminhada, na ponte que liga a Ilha da Cité à margem direita do Sena, a Pont Neuf, Ponte Nova, Nadja enxergou uma mão em chamas, “mão que arde sobre as águas”, pairando no Sena. Perguntou: “O que isso significa para você: o fogo sobre a água, a mão de fogo sobre a água?”

A noite culminou com a chegada deles ao Jardim das Tuileries, onde pararam diante de um chafariz. Nadja observou que suas águas, elevando-se, separando-se em dois jorros, desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma força, e assim indefinidamente, simbolizavam os pensamentos de ambos. Breton espantou-se com o comentário, pois ela citava, sem saber, um trecho do que lia naqueles dias, uma vinheta da edição de 1750 do terceiro dos Três Diálogos entre Hilas e Filônio de Berkeley, com a seguinte legenda: Urget aquas vis sursum eadem flectit que deorsum, ilustrada por um chafariz idêntico ao das Tuileries (conforme as reproduções no livro). A tradução seria, aproximadamente: “A força impele as águas para o alto e ao mesmo tempo move a superfície.” Um resumo, diz Breton, do que Nadja comentava sobre o significado do chafariz à frente deles.

No prefácio a esta nova edição de Nadja, Eliane Robert Moraes observa:

 

Para além dos ecos de Lautréamont e Huysmans, o que prevalece em Nadja é a Paris onírica de Nerval. A começar pelo itinerário escolhido, evocando locais de intensa significação para o criador de Aurélia, a exemplo da Place Dauphine, que desperta sentimentos igualmente ambíguos no narrador […].

 

Paris onírica de Nerval, sim – mas de qual obra de Nerval? Prefácios não são dissertações – por isso, Eliane não foi adiante no paralelo de Nadja de Breton com obras de Nerval. Mas, entre outros lugares, a Praça Dauphine está no conto que inicia o primeiro dos livros de narrativas em prosa de Nerval, Contes et Facécies. É A mão encantada, La main enchantée: a main de gloire, a mão mágica usada por bruxos, que deve ser arrancada de um condenado à morte, e, após o devido tratamento, permitirá, segurando uma vela também mágica, também devidamente preparada, que seu dono entre em qualquer lugar, atravesse qualquer porta trancada, entre outras façanhas.


No enredo de Nerval, um ingênuo é vítima das artimanhas de um bruxo: depois de matar seu oponente em um duelo e de sua mão, autônoma, com vontade própria, estapear um juiz, é condenado à morte. Devidamente decepada, a mão sai caminhando sobre seus dedos, sozinha, e vai ao encontro desse bruxo (apenas para lembrar, uma versão burlesca desse artefato tradicional de magia é a mãozinha que aparece em Família Adams).

A mão encantada de Nerval abre com a descrição da Praça Dauphine; um de seus cenários é o Palácio da Justiça; descreve a Pont Neuf, Ponte Nova, outro dos lugares-fetiche de Breton (que acabava de ser construída no tempo da ação do conto de Nerval, século XVI).

Seria intertextualidade, isso da mesma Praça Dauphine, o mesmo Palácio da Justiça, a mesma Pont Neuf, estarem nos dois textos, Nadja de Breton e A mão encantada de Nerval? Ou mera coincidência, e sofro de um acesso de exagero da interpretação? Não, pois a main de gloire também aparece em Nadja: é a mão de fogo vista por ela, pairando sobre o Sena, e justamente da Pont Neuf.

O que caracteriza a relação Breton-Nerval em Nadja como estranha, muito estranha, é que os episódios daquela noite na Praça Dauphine aconteceram. Trata-se, portanto, de uma inversão da relação entre literatura e realidade; são acontecimentos da ordem do que Breton viria a chamar de acaso objetivo.

Nenhum dos comentaristas de Nadja que cheguei a examinar – Bonnet, Moraes, Née, Mourier-Casille, mais os textos que vêm em apêndice a esta nova edição de Nadja e os que acompanham o livro de Mourier-Casille – parece haver reparado nisso. Breton embutir a toda hora alusões e citações de outros autores em suas narrativas não é novidade. E outros textos acontecerem, a exemplo da famosa realização de um poema de Breton, Tournesol, Girassol, em O amor louco, e de outras passagens desse livro anteciparem acontecimentos posteriores à publicação, isso sim, já foi examinado.

Há um comentário de Jean-Luc Steinmetz sobre Nerval, a propósito de Petits châteaux de Bohême, que me parece valer, de modo mais completo, para Nadja e outras das narrativas de Breton:

 

[…] somos constantemente convidados a passar de um regime de leitura a um outro, do domínio fictício ao domínio vivido: de toda evidência, através de referências dadas e como que impostas, uma outra realidade tende a vir à luz. [18]

 

Breton nunca chegou, parece-me, a publicar um ensaio sobre Nerval, a exemplo dos que escreveu sobre Lautréamont, Jarry, Baudelaire, Apollinaire, Rimbaud e outros poetas. Mas pode-se dizer que Breton e o surrealismo começam e terminam com Nerval.

Começam, pois, no primeiro Manifesto do Surrealismo, dá o “estado de sonho supernaturalista” de Nerval ao escrever os sonetos de As Quimeras como origem do surrealismo. Cita a carta de Nerval a Alexandre Dumas que abre Les filles du feu, sobre esses poemas “[…] compostos em estado de sonho supernaturalista, [que] não são mais obscuros que a metafísica de Hegel e os Memoráveis de Swedenborg, e perderiam seu encanto ao serem explicados, se isso fosse possível”.

Breton termina em Nerval, duplamente: em Arcano 17, obra de 1947, última de suas narrativas em prosa, fechando uma tetralogia composta porNadja, Os Vasos Comunicantes e O Amor Louco; e no último dos Manifestos do Surrealismo de Breton, Do Surrealismo em suas Obras Vivas, de 1953.

Em Arcano 17, a simbologia hermética desempenha papel central, a começar pelo título, referência à carta 17 do Tarô, a Fortuna. Em Nerval, um esoterista, a simbologia do Tarô é importante: por exemplo, o poema El desdichado, de As Quimeras, é sobre a carta anterior, o arcano 16, da torre desabada ou “abolida”. Interessa a sequência das cartas do jogo do Tarô em Breton e Nerval: a carta de número 16, símbolo da destruição, segue aquela do diabo; portanto, o colapso da torre (do consulente) é manifestação demoníaca; mas a torre fulminada por sua vez precede o arcano 17: é a estrela da manhã, símbolo de um nascimento, da esperança no futuro e do conhecimento, ou seja, da gnose. Nerval diz que vai morrer – pouco depois da publicação de As Quimeras, cometeria suicídio –, mas que retornará. Portanto, simbolicamente, em Arcano 17 Breton prossegue Nerval, continua onde o poeta parou.

Um detalhe interessante, desses que permitem falar em “inconsciente do texto”, associado ao intertexto: em El desdichado de Nerval, este verso: “Serei Amor ou Febo? … Lusignam ou Biron?” – Lusignan foi um cruzado que se tornou rei de Jerusalém e de Chipre no século XII; era tido como descendente da fada-serpente Melusina, por sua vez invocada em Arcano 17 de Breton, associada a Elisa, sua companheira.

Em Arcano 17, Breton celebra a realização amorosa como grande síntese, superação das antinomias, equivalente à iluminação. O corpo do livro se encerra com reflexões sobre o sentido de uma frase de Éliphas Lévi, ao proclamar que “Osíris é um deus negro”. Termina saudando a publicação do ensaio de Auguste Viatte sobre o diálogo entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, e comentando o modo como ambos, o mago e o poeta, equipararam Lúcifer, o anjo rebelde – “que, ao nascer, negou-ser a ser escravo”, dando à luz “duas irmãs, Poesia e Liberdade” – à estrela da manhã, signo da liberdade e do conhecimento, equivalente “à própria revolta, a única revolta criadora de luz”; uma luz que “só pode passar por três vias: a poesia, a liberdade e o amor.”

No final de Arcano 17, em um apêndice escrito em 1947, os encontros adquirem mais nitidamente o caráter de uma aventura intelectual. Não são mais as mulheres, desconhecidas com olhos e olhares fascinantes, como Nadja, as desconhecidas de Os Vasos Comunicantes e Jacqueline Lamba em O Amor Louco, que vêm ao encontro de Breton, movidas pelo acaso, porém obras, informações, mesmo quando trazidas por pessoas. Terminada a Segunda Guerra Mundial, de volta a Paris, Breton recebe uma mensagem de um amigo: “O maravilhoso. – Atenção, reflexão, lógica não me ajudam em nada. Não me possuo mais. Eu sou, plenamente.” Encontram um desconhecido. Segue-se um enredo através do qual chega a suas mãos o livro de Jean Richer, Gérard de Nerval et les doctrines ésotériques. Nele foi publicado, pela primeira vez, o retrato de Nerval com sua frase, manuscrita, “Eu sou um outro”, acompanhada por signos cuja decifração é proposta por Breton. Os episódios desses dias de abril de 1947 o fazem convencer-se de que estivera de fato em companhia de Gérard de Nerval, nas imediações da torre Saint-Jacques, a torre medieval de onde saíam os peregrinos a São Tiago de Compostela – um lugar extremamente significativo para Breton, que comparece em outros de seus poemas e em O Amor Louco, além de associado à alquimia, inclusive por Nicolas Flamel haver morado em sua proximidade. Pela primeira vez, Breton sobe à torre Saint-Jacques: os mais familiarizados com simbologia hermética reconhecerão o sentido dessa subida à torre: é a entrada no castelo iniciático onde está o cálice do Graal, que equivale à pedra filosofal.

É a “virada esotérica” de Breton, simbolizada pelo encontro com Gérard de Nerval, evidenciada através de Arcano 17, de poemas da mesma década de 1940 como Les états géneraux, Os estados gerais, e a Ode a Charles Fourier, e de seus dois últimos manifestos do surrealismo. Em Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não, de 1942, volta-se novamente contra o “pensamento racionalista”, e, frisa, “sem dar atenção às acusações de misticismo de que não serei perdoado”, propõe-se a “convencer o homem de que ele não é obrigatoriamente o rei da criação, como se vangloria.” Pergunta sobre a oportunidade de revelar um novo mito, o dos Grandes Transparentes, e observa que “o homem não é talvez o centro, o ponto de mira do Universo”, criticando “a crença de que o mundo encontra no homem o seu acabamento.” Retomaria a crítica ao antropomorfismo e a afirmação da visão hermética de mundo em Do Surrealismo em suas Obras Vivas, de 1953. Dando sua palavra final em matéria de manifestos, diz, no último parágrafo, que, “a esse respeito, sua posição [do Surrealismo] se uniria à de Gérard de Nerval no famoso soneto Versos Dourados.” Nele, o autor de Aurélia, expressando as ideias de Fabre d’Olivet, duvida de que sejamos o centro do universo e os detentores exclusivos da razão:

 

Homem! livre pensador! serás o único que pensa

Neste mundo onde a vida cintila em cada ente? [19]

 

Expressando a visão pagã do mundo animado, Nerval diz ainda que “um mistério de amor no metal reside dormente, e um espírito puro medra sob a crosta das pedras”.

Tudo isso é muito estranho. Como interpretar esses modos de aparição de Nerval, o poeta mais enfronhado em doutrinas esotéricas dentre aqueles da geração romântica, na obra de Breton? Aparição manifesta, explícita, em Arcano 17 e em Do Surrealismo e de suas Obras Vivas; aparição latente, subterrânea, através de sinais, décadas antes, em Nadja.

A vocação esotérica e ocultista mais acentuada em Breton o distingue de outras figuras de frente do surrealismo, como Aragon e Éluard. Isso, pelo modo como a simbologia comparece de modo recorrente em sua obra, e, principalmente, por haver realizado uma relação mágica entre poesia e vida, através do acaso objetivo. Ocultismo estava em sua formação. Marguerite Bonnet e Henri Béhar, em suas biografias de Breton, [20] mostram que, entre suas leituras de adolescência, estava o Sâr Joséphin Péladan, mago de prestígio, escritor prolífico, frequentado por simbolistas e decadentistas. Em 1921, procurou René Guénon (a quem cita em seu último manifesto). Na década de 1950, para aprofundar o exame das analogias entre poesia e alquimia, intensificou o diálogo com especialistas como Eugène Canseliet e René Alleau, cujas conferências sobre alquimia ele e outros integrantes do surrealismo frequentaram. Alleau, por sua vez, colaborou em publicações surrealistas.

Daí resulta, em sua obra, a profusão de símbolos: pentagramas, casas e planetas do zodíaco, operações alquímicas. Chegou, em 1941, a criar sua própria versão do baralho do Tarô. Antes, conforme relata nas páginas iniciais de O Amor Louco, fascinara-se por um baralho com a bandeira da Hamburg-America Linie, “com a magnífica divisa: Mein Feld ist die Welt” (meu campo é o mundo), por achar que, nele, “a dama de paus é mais bela do que a dama de copas.” Conta como dispunha as cartas para fazer consulta, interpondo um objeto que se assemelhava a uma raiz de mandrágora. Parecia atribuir valor de verdade à astrologia. No Segundo Manifesto do Surrealismo, em extensas notas de rodapé, trata de alquimia, astrologia, hermetismo. Coloca o surrealismo sob influência de uma conjunção de Saturno e Urano, entre 1896 e 1898, coincidindo com seu nascimento, e os de Éluard e Aragon. O mapa dessa conjunção também ilustrou em 1930 a capa do primeiro número de Le surréalisme au service de la révolution. Em O Amor Louco, diria que a conjunção de Vênus e Marte em seu dia de nascimento talvez o fizesse sofrer discórdias no seio do amor. Dataria um acontecimento revelador, que lhe parecia corresponder à noção de beleza convulsiva, deste modo: “a 10 de abril de 1934, em plena “ocultação” de Vênus pela Lua (episódio esse que só acontecia uma vez por ano)”.

O Segundo Manifesto do Surrealismo apresenta uma duplicidade. De um lado, no corpo do texto, afirma com ênfase a adesão ao pensamento marxista. De outro, em extensas notas de rodapé (inaceitavelmente transformadas em notas de fim, jogadas para o final do livro, na mais recente edição brasileira dos Manifestos pela Nau, desrespeitando a intenção de Breton), propõe a exploração de “certas ciências”, valorizando o conhecimento hermético e exigindo que a alquimia do verbo de Rimbaud fosse tomada ao pé da letra.

É como se houvesse, nesses dois planos do texto, aquele do corpo e outro subjacente, das notas de rodapé, dois pólos, o materialista e o esotérico, instâncias historicamente antagônicas, a constituírem, nas palavras de Jean-Louis Bédouin, “uma das mais vertiginosas interrogações que conheceu o surrealismo, e, antes dele, espíritos tão diferentes e tão grandes quanto Achim von Arnim e Rimbaud.” [21]

Os conteúdos esotéricos aparecem como um subsolo do texto no Segundo Manifesto do Surrealismo. E como intertexto ou “inconsciente do texto” em Nadja, personificados, entre outros lugares, na referência ao mesmo tempo oculta e vivida a Nerval. E reaparecem no corpo do texto, como tema, personificados em Nerval, em Arcano 17 e nos dois últimos manifestos (entre outros lugares – na mesma época, também Breton publicou artigos e ensaios em que tratava de hermetismo).

Nerval, antes de suicidar-se, disse, em El Desdichado e em Aurélia, que morreria, mas retornaria. No final de Arcano 17, Breton promove esse retorno; em Nadja, no episódio da Praça Dauphine, já anunciava que iria resgatá-lo.

Os racionalistas tão combatidos por Breton poderão matar a charada do episódio da Praça Dauphine lembrando que Nadja muito provavelmente havia lido A Mão Encantada de Nerval, obra conhecidíssima; por isso, após passar por seus cenários, pode ter fantasiado a main de gloire como mão de fogo sobre o Sena. Mas explicação alguma reduz a riqueza simbólica dessas relações inter e intratextuais, etapas de um ciclo no qual Nerval, oculto ou recalcado em Nadja e nos rodapés do Segundo Manifesto do Surrealismo, volta à luz em Arcano 17 e Do Surrealismo em suas Obras Vivas.

Mourier-Casile, no já citado Nadja d’André Breton, associa a mão de fogo sobre o Sena a um quadro de De Chirico, também citado por Breton. Isso, entre outras possibilidades de leituras transversais, não-lineares, dessa obra, que levam essa ensaísta a falar em “curtos-circuitos deslumbrantes” da analogia, e de uma compacta e complexa “rede de ecos”, que acaba por tecer, “sob a sua essencial descontinuidade, uma continuidade de uma ordem totalmente outra”. Que o leitor seja pego por essa rede; que se perca nesse labirinto: encontrará a poesia.

Ah, sim – depois dessa edição tão cuidada de Nadja, resta esperar que a editora Cosac Naify complete o ciclo da prosa bretoniana, com boas edições brasileiras de Os Vasos Comunicantes e O Amor Louco, e uma nova edição de Arcano 17, há muito esgotado.

 

NOTAS

[1] No volume I das Oeuvres complètes de Breton (Gallimard, col. Pléiade).

[2] Dunod, Paris, 1993.

[3] Gallimard, coleção Folio, 1994.

[4] No recém-lançado Cadernos de Literatura Brasileira - 10 anos, do Instituto Moreira Salles, citado por Antonio Fernando de Franceschi, em um ensaio, no restante muito informativo, sobre criação literária.

[5] Presses Universitaires de France, Paris, 1994.

[6] Mais sobre a originalidade do Breton leitor de literatura em meu “André Breton, 40 anos depois: o crítico literário”, em Agulha Revista de Cultura # 53.

[7] Em meu texto sobre escrita automática publicado aqui, em Agulha Revista de Cultura # 54, “A escrita automática e outras escritas”.

[8] The Surrealist Libido: André Breton’s “Poisson soluble, Nº 8, em André Breton today, organizado por Anna Balakian e Rudolf E. Kuenzli, Willis Locker & Owens, Nova Iorque, 1989

[9] Manifestos do Surrealismo, Nau editora, Rio de Janeiro, 2001.

[10] Imago, Rio de Janeiro, 1998.

[11] Em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995; tradução de As Flores do Mal por Ivan Junqueira.

[12] Em Salão de 1846, também em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.

[13] A Paris do Segundo Império em Baudelaire, em Walter Benjamin – Sociologia, tradução e organização de Flávio R. Kothe, Editora Ática 1985, ou na série Walter Benjamin – Obras escolhidas, da Editora Brasiliense.

[14] Les Éditions du Minuit, Paris, 1962.

[15] Essai sur Stéphane Mallarmé, Poètes d’aujour’hui, Seghers, Paris, 1963

[16] Aqui, estou reincidindo no que tratei em minha narrativa em prosa Volta, Iluminuras, São Paulo, terceira edição em 2004, e antecipando algo de um ensaio sobre acaso objetivo que deve sair em breve pela Perspectiva.

[17] André Breton, Le grand indésirable, Calmann-Lévy, Paris, 1990.

[18] Nas Oeuvres complètes de Nerval, org. Jean Guillaume, Claude Pichois e outros, Éditions Gallimard, Paris, vol. III, 1993.

[19] Na tradução de Contador Borges no prefácio de Aurélia, Iluminuras, São Paulo, 1991.

[20] Marguerite Bonnet, André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste, Librairie José Corti, Paris, 1988.

[21] Bédouin, Vingt ans de surréalisme, 1939-1959, Éditions Denoël, Paris, 1961. 

 


CLAUDIO WILLER | Poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao surrealismo e geração Beat. Publicações recentes: Dias ácidos, noites lisérgicas, relatos (Córrego, 2019), A verdadeira história do século 20, poesia (Córrego, 2016, Apenas livros – cadernos surrealistas, 2014), Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, ensaio (L&PM, 2014), Manifestos, 1964-2010, (Azougue, 2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (Civilização Brasileira, 2010); Geração Beat, ensaio (L&PM, 2009), Estranhas experiências, poesia (Lamparina, 20004). Traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Antonin Artaud. Doutor em Letras na USP, onde fez pós-doutorado. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about .
 

 


JOE HESTER | (Austrália, 1920-1960). Foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encuentra entre os grandes artistas australianos do século passado.

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07

Número 206 | abril de 2022

Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)

Tradução: Allan Vidigal

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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