I. André Breton, o paradoxal
Sempre me perguntei o porquê de Breton nunca
haver citado, elogiado ou sequer mencionado o poeta simbolista Jules Laforgue. Como
era possível um poeta tão bom, tão precursor, com uma imagética tão rica, um sentimento
antiburguês tão agudo, não figurar no cânone surrealista? Instado por mim, nosso
amigo Eclair Antonio Almeida Filho escreveu, perguntando a Henri Béhar, bretoniano-mor,
autor da biografia Le grand indésirable e organizador do alentado Dictionnaire
Breton. Nada, resposta nenhuma. Laforgue não consta no Dictionnaire Breton.
Nem na excelente biografia de Jean-Marc Polizotti, Adventurers of the Mind.
Contemporâneos de Laforgue, como o exacerbado pessimista Tristan Corbière e o católico-esquizofrênico
Germain Nouveau, ganharam artigos de Breton elogiando suas qualidades. Laforgue,
não. Consolou-me ler na biografia de Marcel Duchamp por Calvin Tomkins que a leitura
de Laforgue havia sido decisiva na formação do inventor dos ready-made e
criador das caixas.
A propósito, a relação Duchamp-Breton: entre
as superstições formalistas, há aquela de que Duchamp não foi surrealista; criar
daquele jeito, levar décadas para fazer as “caixas”, seria incompatível com o culto
surrealista à espontaneidade. Ao contrário, penso que o surrealismo se torna mais
compreensível, como rebelião total no plano da linguagem, da produção simbólica
– e, no caso de Duchamp, do comportamento (Jules e Jim, o filme de Truffaut
adaptado da narrativa de Henri-Pierre Roché, completa libertinagem, é inspirado
na relação a três do próprio Henri-Pierre, Beatrice Woods e Duchamp), – se o pensarmos
como tendo ambos como figuras de ponta, exponenciais, que se completavam. E que
por isso permaneceram amigos até o final da vida de Breton, em 1966, embora houvessem
esfriado por um momento em 1957, quando Duchamp incluiu Salvador Dalí em uma das
exposições internacionais do surrealismo.
Ainda a propósito de superstições formalistas,
eles acham impossível alguém promover tamanhas alterações no eixo do sintagma, e
não só do paradigma, além de levar décadas para criar uma obra como Le grand
verre, e ser surrealista. Não entenderam nada. E a chave do surrealismo continua
sendo a declaração de inconformismo absoluto do final do Manifesto – o que
supõe ou subentende muita coisa, inclusive o comportamento e a arte de Duchamp,
o artista que se mudou para Nova York porque ninguém sabia quem ele era na emergente
metrópole (se o motivo foi mesmo esse, de nada adiantou, pois logo Duchamp se tornaria
celebridade e a principal inspiração da arte pop).
Uma renomada ensaísta publicou, décadas
atrás, um artigo afirmando que Breton foi cartesiano. Pouco depois, um discípulo
dela me perguntou se eu não achava que Breton era cartesiano. Ignorei – mas deveria
ter recomendado a leitura de Flagrant délit, o extenso artigo-manifesto sobre
a falsificação de um suposto inédito de Rimbaud, La Chasse Spirituelle, endossada
pela crítica e denunciada por Breton. São blocos de texto: sobre a civilização maia
e o mito (argumento perfeito: acusam a surrealistas, de mitificar Rimbaud – mas
estamos no mundo mítico, diz, e cita Apollinaire: “você nunca entenderá os maias”);
sobre a importância da descoberta dos escritos gnósticos de Nag Hammadi (em primeira
mão, acabava de ser noticiada nos jornais); sobre Rimbaud, é claro; e, de modo especialmente
carinhoso, sobre os críticos que haviam endossado a falsificação: Maurice Nadeau,
Pascale Pia, Maurice Saillet. Perguntam-se como Breton acertou em cheio em sua denúncia.
Para mim, contribuiu o espírito da negação, a chance de tripudiar sobre estudiosos
que ele detestava – a começar por Nadeau, autor de uma História do surrealismo
que continua a circular como referência.
A propósito, os blocos de texto, sem maior
preocupação com a sequência lógica, são típicos de Breton, desde o Manifesto
do Surrealismo. Criava por impulso.
A boa professora de pós na USP que manifestou
interesse sobre surrealismo – mas, disse ela, “escrita automática, não...!”. Não
entenderam nada – nós sempre estamos, em algum grau, no campo da escrita
automática. Freud mostrou que toda a produção simbólica, mesmo a mais trivial, tem
duplos ou múltiplos sentidos e está trazendo à tona mensagens do inconsciente. Existe
automatismo puro? Dificilmente – quando muito, nos surtos e alucinações. Existe
um não-automatismo psíquico? Talvez nas escritas mais protocolares, mais formais,
em demonstrações de teoremas, por exemplo. Talvez. O mérito de Freud – mostrar que
tudo pode ser outra coisa, que a aparente realidade é múltipla e polissêmica.
Os paradoxos. As afirmações de Breton sobre
amor único, o repúdio à libertinagem (exceto se fosse literária...) – e sua conduta
na vida real. Na ocasião em que fui a uma reunião dos surrealistas, Breton já havia
morrido. Achei a reunião parecida com aquelas do Depto. de Psicologia da USP, onde
na época lecionava. Joyce Mansour, ótima poeta, compareceu. Pálida, vestida de preto,
chegou, sentou-se, não disse uma palavra, não moveu um músculo da face, ao final
da reunião levantou-se e retirou-se. Sabemos que, se ela topasse, Breton iria. A
justificativa do culto a Sade em Entrétiens – escuridão que acentua a claridade
da chama do amor único – é parecida com a justificativa católica, em especial agostiniana,
da existência do mal.
Breton holista – aí está um tema a ser desenvolvido.
Extasiando-se com cientistas visionários em Le méssage automatique; com românticos
fascinados pelo eletromagnetismo que foram cientistas e ao mesmo tempo cabalistas,
como Ritter, no artigo sobre Achim von Arnim. Reconhecendo a grandeza de Novalis,
citando-o a propósito do mito dos “Grandes Transparentes”, no derradeiro Manifesto,
pendia, contudo, para aqueles românticos “menores”, mais excêntricos.
É claro, o Breton autoritário, responsável
por exclusões de excelentes autores do surrealismo (com Artaud, não daria liga;
mas uma pessoa excelente como Philippe Soupault, não tem cabimento). O Breton teimosamente
monoglota, ignorando Grécia e Itália como culturas de dominadores dos celtas, aos
quais se identificava. Provinciano, desconhecendo importantes manifestações do surrealismo,
a exemplo daquela de Portugal. Um corolário, os autores que criticam pesadamente
Breton, e ao mesmo tempo o reescrevem, a exemplo do grande Herberto Helder.
Como teria sido o encontro, agendado, mas
que não ocorreu, de Breton e Allen Ginsberg? Não daria liga, penso. Basta comparar
fotos dos surreais e dos beats. Franceses são (desculpem o estereótipo), caretas,
formais. Ou foram, até 1968. Fotos da minha turma na década de 1960 têm mais cara
de beats do que de surreais.
André Breton produziu, sem dúvida, alta
literatura. As páginas em prosa poética de Nadja, de uma qualidade reconhecida
até por contendores viscerais do surrealismo, como Jean Cocteau. O começo de O
amor louco (Ici l’Ondine, a beleza convulsiva) e o terrível final, com
as visões diante da “casa das raposas”. Os momentos de maior delírio de Os vasos
comunicantes, errando por Paris, alucinando diante do quadro sobre Dalila de
Courbet, até chegar à formulação do acaso objetivo, atribuído a Engels, citando
um parágrafo que Engels jamais escreveu. Poemas incríveis como A união livre,
Pleine Marge, Sur la route de San Romano, Ode à Charles Fourier
(evidentemente, não é escrita automática, com as transcrições do próprio Fourier
– e daí? Não precisava, pois o delírio já possuía Fourier).
Das minhas passagens prediletas de Breton:
em Arcano 17, após a explosão de prosa poética ao ir até o rochedo de Percé,
no Canadá (por acaso terra da família de Kerouac), o final. De volta a Paris, refletindo
sobre o pós-guerra europeu, conhece um rapaz, fala com ele; e se convence que havia
encontrado o próprio Gérard de Nerval – então, pela primeira vez na vida, sobe ao
topo da Torre Saint-Jacques. Faz seu trajeto iniciático. Surpreendente nunca haver
subido antes – a torre inclinada, ponto de partida de peregrinos, adjacente ao suposto
bairro dos alquimistas (no fundo, a Rue Nicolas Flamel), é desses lugares por onde
se passa frequentemente, na Rue de Rivoli.
Contem-me novidades sobre literatura e vida.
II. André Breton, Nadja e Gérard de Nerval: estranhas relações
Um bom pretexto
para voltar a tratar de Breton e surrealismo é o lançamento de nova edição brasileira
de Nadja, agora pela Cosac Naify, que já publicou outras obras importantes
de surrealistas. É, também, uma nova versão da tradução de Ivo Barroso. Conforme
é dito ao final do livro, “Barroso considera o texto publicado na presente edição
uma nova tradução”, assim mostrando ser um verdadeiro tradutor literário, daqueles
que encaram tradução como um compromisso, algo permanente, e não apenas como tarefa
de encomenda.
A circulação de Nadja no Brasil só tem a ganhar
com esta edição. Vem acompanhada por um bom apoio crítico: prefácio de Eliane Robert
Moraes, posfácio de Annie Le Brun, indicações de leitura e excertos da sua recepção,
incluindo, entre outros, os testemunhos capitais de Walter Benjamin, Murilo Mendes
e Maurice Blanchot. Enfim, tudo o que é preciso para que esta porta de entrada para
o surrealismo se abra plenamente para o leitor brasileiro.
Nadja foi a criação
literária surrealista de maior repercussão ao ser publicada, conforme observado
nesta nova edição e documentado, entre outros, por Marguerite Bonnet em Nadja
– Réception de l’oeuvre [1], Patrick Née em Lire Nadja [2] e Pascaline
Mourier-Casile em Nadja d’André Breton [3] (a propósito, são índices da importância
e prestígio de uma obra literária não apenas sua publicação em pocket book,
mas bons ensaios a respeito, como este de Mourier-Casile, também saírem em edições
de bolso, de grande tiragem).
Não obstante, Nadja e surrealismo ainda são recebidos
de modo reticente e descartados com ligeireza por boa parte da intelectualidade
brasileira. Um exemplo é este comentário de Silviano Santiago, afirmando que, em
Nadja, Breton fez com que a
[…] descrição linguística do real fosse substituída
pela fotografia correspondente. Pensavam os surrealistas: imagem por imagem, por
que e para que buscá-las e compô-las com palavras? Recorramos à fotografia. Colemos
a foto ao texto linguístico. [4]
E ainda se refere, citando Robbe-Grillet, ao “preguiçoso
André Breton, o do romance Nadja.”
Descrição substituída pela fotografia? De fato,
Breton afirmou, no prefácio de 1962 para Nadja, que a “abundante ilustração
fotográfica” no livro “objetiva eliminar qualquer descrição”. Mas isso tornaria
Breton preguiçoso? Como…? A mesma crítica não valeria para outras obras literárias
acompanhadas de fotografias? Por exemplo, Paranóia de Roberto Piva, com as
fotos de Wesley Duke Lee na edição original de Massao Ohno e naquela do Instituto
Moreira Salles?
Há confusão entre duas coisas: uma, a recusa da narrativa
de ficção por Breton; outra, uma recusa da escrita. Nadja relata os encontros,
durante alguns dias, de André Breton com uma mulher estranha e visionária, que acabaria
internada em hospícios até o fim de seus dias. Fascina pelo caráter não-ficcional
do que é relatado. É a transposição para a escrita da identificação surrealista
entre arte e vida, invertendo a relação entre esses dois planos. Tem especial importância
pelo modo como funde gêneros e pela alta voltagem poética. Breton, nesta e em outras
de suas obras também acompanhadas por ilustrações, não abandonou as palavras. Nos
milhares de páginas de poesia, narrativa em prosa, ensaio, manifestos e artigos
que deixou, como o atestam os quatro volumes da sua obra completa na coleção Pléiade,
há passagens de “descrição linguística do real”, mesmo acompanhadas por fotografias.
Por exemplo, em O Amor Louco, as descrições do mercado de flores em Paris
e do alto do Pico de Teide nas Ilhas Canárias; em Arcano 17 há bastante sobre
os rochedos da Gaspésia. Em Nadja, além de narrar os episódios marcantes
da sua relação com essa mulher misteriosa, e antes, na primeira parte do livro,
as “petrificantes coincidências” que a precederam, descreve e comenta as fotografias
e outras imagens adicionadas ao texto.
A contradição aparente – Breton fazer, em suas narrativas
em prosa, o que rejeitara no primeiro Manifesto do Surrealismo – é examinada
por Jean-Luc Steinmetz em André Breton et les surprises de l’amour fou: [5]
sim, o surrealista descreveu cenas e situações – mas descrevia aqueles lugares e
acontecimentos em que a realidade se comportava ou aparecia como sonho; quando o
real se tornava surreal, maravilhoso. O que Breton não queria era registrar o banal,
o prosaico: “não tenho por hábito alardear os momentos nulos da minha vida”, afirmou
no primeiro Manifesto do Surrealismo.
De qualquer modo, boas narrativas em prosa interessam
por suas qualidades poéticas, como já havia exposto outro anti-realista, Baudelaire,
em sua apreciação de Madame Bovary de Flaubert: vendo a protagonista como
personagem heroica e interpretando-a como hermafrodita, criatura superior, inverteu
o julgamento moral do próprio Flaubert. Aliás, e ainda a propósito de Flaubert,
grandes obras literárias sempre têm algo a mais, mostram outra coisa, como observou
Breton nas páginas iniciais de Nadja: [6]
Não sou dos que cultuam Flaubert e, no entanto, se me
garantem que, segundo sua própria afirmativa, ele quis, com Salambô, apenas “dar
a impressão do amarelo” e, com Madame Bovary,
apenas “fazer algo que tivesse a cor do mofo daqueles cantos onde nascem tatuzinhos”,
pouco se importando com o restante, preocupações assim, acima de tudo extraliterárias,
me predispõem a seu favor.
A concomitante reedição de Nadja e reaparição
do comentário de Silviano Santiago oferecem um bom pretexto para tratar de algumas
qualidades tipicamente literárias de Breton, incluindo suas relações com outros
autores, em geral, e com Gérard de Nerval, em particular.
Ninguém escreve no vazio, a partir de nada, do zero.
Criação literária sempre é diálogo com outras leituras, mesmo no mais desenfreado
espontaneísmo, na mais pura escrita automática. Já demonstrei isso em outra ocasião.
[7] E, antes de mim, Michael Rifaterre, [8] ao expor o intertexto ou “inconsciente
do texto” em uma passagem do extenso poema em prosa Peixe Solúvel de Breton,
[9] resultado da escrita automática.
Em Nadja, não falta esse diálogo com outras obras
e autores. Na parte inicial, de modo explícito, ao tratar dos estranhos acontecimentos,
os acasos, “coincidências petrificantes” que prefiguram sua aparição, há o comentário
sobre Flaubert, e também sobre Huysmans, Rimbaud, Apollinaire.
A segunda parte do livro é aquela, segundo Breton na
forma de “observação neuropsiquiátrica”, em que são relatados os encontros com Nadja,
ocorridos entre 4 e13 de outubro de 1926.
Na terceira parte, escrita depois de Breton saber que
Nadja havia sido internada, há poesia em prosa. Ele observa que está a escrever
sobre um mundo que se transformava durante o intervalo “que separa essas últimas
linhas daquelas que, folheando o livro, pareceriam encerrá-lo duas páginas atrás”,
pois a vida e a cidade não param de mudar. Pouco depois dos acontecimentos que acabara
de relatar, seus cenários já se haviam modificado. O teatro onde assistira a uma
peça insólita estava fechado, em reformas. A estátua de Étienne Dolet na Praça Maubert,
que lhe provocava mal-estar, cercada de tapumes, em restauração. A cidade é um organismo
mutante, vivo:
Não sou eu quem vai meditar sobre o que advém da forma de uma
cidade, nem mesmo da verdadeira cidade, alheia
e abstrata, daquela em que moro, por força de um elemento que seria para a minha
mente o que o ar é para a vida. Sem nenhum arrependimento, agora a vejo tornar-se
diferente e até fugir. Resvala, se incendeia, afunda no redemoinho de suas barricadas,
no sonho das cortinas de seus quartos, onde um homem e uma mulher continuarão a
se amar indiferentes.
Baudelaire não está presente apenas nesse trecho. Nadja
e o conjunto de textos surrealistas sobre o maravilhoso urbano, ao adotarem a disponibilidade
e a flânerie, são continuadores do Baudelaire poeta de Paris. Na série Quadros
Parisienses, que compõem as Flores do Mal, é a “Cidade a fervilhar, cheia
de sonhos.” Nela, “Flui o mistério em cada esquina, em cada fronde,/ Cada estreito
canal do colosso possante.” [11] Como crítico de arte, Baudelaire argumentou em
favor da “beleza nova e particular” presente na cidade: “A vida parisiense é fecunda
em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e sacia como a atmosfera;
mas não o vemos.” [12] Em um ensaio famoso, Walter Benjamin mostrou que assim se
inaugurava uma nova relação entre o poeta e a metrópole, simbolizada pelo flâneur,
o caminhante desgarrado: “Pela primeira vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto
da poesia lírica”. [13] Uma das consequências dessa flânerie, dessa errância
sem destino definido, foi o modo como Breton encontrou Nadja.
No primeiro Manifesto do Surrealismo, Breton
já tomaria o partido do maravilhoso baudelairiano em contraposição ao realismo,
à submissão ao real imediato: “Digamo-lo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso
é sempre belo, qualquer tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo”.
Diria também, em nota de rodapé: “O que é admirável no fantástico é que não há mais
fantástico: só há o real”. Mais à frente, contraporia o maravilhoso ao fantástico
em seu prefácio para Le miroir du merveilleux de Pierre Mabille:
O maravilhoso, ninguém conseguiu defini-lo melhor [que
Mabille] por oposição ao “fantástico” que tende, infelizmente, cada vez mais a suplantá-lo
junto a nossos contemporâneos. É que o fantástico, quase sempre, pertence à ordem
da ficção sem consequência, enquanto o maravilhoso brilha na ponta extrema do movimento
vital e envolve em si, inteiramente, toda a afetividade. [14]
Fazem parte desse maravilhoso imanente e urbano – também
examinado no ensaio de Carlos M. Luis publicado, muito sincronicamente, nesta edição
– todos os registros dos trechos de conversas, objetos encontrados, textos, desenhos,
os esboços a traço e colagens feitos por Nadja, a torrente de símbolos citados ou
graficamente reproduzidos no livro – mãos negras e vermelhas, serpentes, máscaras,
estrelas, cometas, flores, sereias, esfinges, duendes, o diabo, torres e subterrâneos
de castelos, lâmpadas, amuletos, as chamas de uma fogueira, as cores do ar – que
levaram Breton a vê-los, “nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso estupor
permitia”, como cúmplices a contemplar “os escombros fumegantes do velho pensamento
e da vida sempiterna”. E a perguntar-se: “Em que latitude nós poderíamos estar bem,
assim entregues ao furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos
víamos como objetos de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais?”
Novamente, uma citação: aqui, de Mallarmé e seu poema
em prosa O Demônio da Analogia, no qual repete, como um enigmático refrão,
“la penultième est morte”, a penúltima morreu. O Demônio da Analogia
é um dos textos que Mallarmé escreveu durante sua crise de 1867, quando achou que
estava enlouquecendo ao ter experiências de duplicação, resumidas neste comentário
em uma carta a seu amigo Cazalis: “Acabo de passar um ano assustador: meu Pensamento
se pensou”. P-O. Walzer, ao comentar a crise
de Mallarmé, vê seus poemas em prosa daquele período como precursores do surrealismo
[15].
Uma relação intertextual mais subterrânea, bem mais
complexa, pode ser observada na segunda parte de Nadja, no impressionante
episódio da Praça Dauphine. [16]
A 6 de outubro de 1926, Breton e Nadja chegaram a essa
praça na Ilha da Cité, onde ficam a Catedral de Notre-Dame e outras edificações
históricas. Classificada por Breton como “um dos lugares mais profundamente ermos
que conheço, um dos piores terrenos baldios de Paris”; estar lá lhe provocava aflição.
Haviam sido conduzidos por Peixe Solúvel, que Nadja acabara de ler. Em um
dos trechos de Peixe Solúvel é mencionado um hotel, o City Hotel, onde Breton
havia morado. Pretendiam ir adiante, até a Ilha de Saint-Louis, adjacente, também
mencionada em outro trecho daquele poema em prosa. Uma relação mais original com
literatura, bem examinada por Mourier-Casille (no aqui já mencionado Nadja d’André
Breton): trocaram capítulos de Peixe Solúvel; pretendiam seguir um deles
e foram parar em outro, que relata um encontro entre uma mulher, Helena, e o diabo.
Dirigiam-se ao inferno.
Ao chegarem à praça e se instalarem em um café, iniciou-se
a noite marcada por qualquer coisa de mal-assombrado, Nadja a ver mortos circulando
pela vizinhança, com o rumor do vento – “o vento e o azul, o vento azul”, dizia
– transformado em vozes anunciando a morte, enquanto um bêbado os cobria de impropérios.
Afirmou que lá passava um subterrâneo, vindo do Palácio da Justiça, um túnel secreto
que se comunicava com outro palácio: segundo Henri Béhar em na sua biografia de
Breton, [17] escavações arqueológicas de 1963 revelaram que esse subterrâneo existe;
contudo, também constava em uma das narrativas do Fantômas de Souvestre e
Allain, que Nadja poderia ter lido. Apontando para a janela de uma das casas da
praça, negra na escuridão, Nadja afirmou que em um minuto esta se iluminaria e sua
cor seria vermelha: em um minuto, a luz do quarto da janela acendeu-se, exibindo
cortinas vermelhas (Breton observou, “para benefício dos amantes de soluções simplistas”,
que Nadja já havia morado na Praça Dauphine e podia saber da janela de cortinas
vermelhas). Em seguida, alucinada, agarrou-se à grade do Palácio da Justiça e insistiu
que havia estado lá em outra vida, como acompanhante de Maria Antonieta.
Prosseguindo a caminhada, na ponte que liga a Ilha da
Cité à margem direita do Sena, a Pont Neuf, Ponte Nova, Nadja enxergou uma mão em
chamas, “mão que arde sobre as águas”, pairando no Sena. Perguntou: “O que isso
significa para você: o fogo sobre a água, a mão de fogo sobre a água?”
A noite culminou com a chegada deles ao Jardim das Tuileries,
onde pararam diante de um chafariz. Nadja observou que suas águas, elevando-se,
separando-se em dois jorros, desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma força,
e assim indefinidamente, simbolizavam os pensamentos de ambos. Breton espantou-se
com o comentário, pois ela citava, sem saber, um trecho do que lia naqueles dias,
uma vinheta da edição de 1750 do terceiro dos Três Diálogos entre Hilas e Filônio
de Berkeley, com a seguinte legenda: Urget aquas vis sursum eadem flectit que
deorsum, ilustrada por um chafariz idêntico ao das Tuileries (conforme as reproduções
no livro). A tradução seria, aproximadamente: “A força impele as águas para o alto
e ao mesmo tempo move a superfície.” Um resumo, diz Breton, do que Nadja comentava
sobre o significado do chafariz à frente deles.
No prefácio a esta nova edição de Nadja, Eliane
Robert Moraes observa:
Para além dos ecos de Lautréamont e Huysmans, o que
prevalece em Nadja é a Paris onírica de Nerval. A começar pelo itinerário
escolhido, evocando locais de intensa significação para o criador de Aurélia, a exemplo da
Place Dauphine, que desperta sentimentos igualmente ambíguos no narrador […].
Paris onírica de Nerval, sim – mas de
qual obra de Nerval? Prefácios não são dissertações – por isso, Eliane não foi adiante
no paralelo de Nadja de Breton com obras de Nerval. Mas, entre outros lugares,
a Praça Dauphine está no conto que inicia o primeiro dos livros de narrativas em
prosa de Nerval, Contes et Facécies. É A mão encantada, La main
enchantée: a main de gloire, a mão mágica usada por bruxos, que deve
ser arrancada de um condenado à morte, e, após o devido tratamento, permitirá, segurando
uma vela também mágica, também devidamente preparada, que seu dono entre em qualquer
lugar, atravesse qualquer porta trancada, entre outras façanhas.
A mão encantada de Nerval abre
com a descrição da Praça Dauphine; um de seus cenários é o Palácio da Justiça; descreve
a Pont Neuf, Ponte Nova, outro dos lugares-fetiche de Breton (que acabava de ser
construída no tempo da ação do conto de Nerval, século XVI).
Seria intertextualidade, isso da mesma Praça Dauphine,
o mesmo Palácio da Justiça, a mesma Pont Neuf, estarem nos dois textos, Nadja
de Breton e A mão encantada de Nerval? Ou mera coincidência, e sofro de um
acesso de exagero da interpretação? Não, pois a main de gloire também aparece
em Nadja: é a mão de fogo vista por ela, pairando sobre o Sena, e justamente
da Pont Neuf.
O que caracteriza a relação Breton-Nerval em Nadja
como estranha, muito estranha, é que os episódios daquela noite na Praça Dauphine
aconteceram. Trata-se, portanto, de uma inversão da relação entre literatura
e realidade; são acontecimentos da ordem do que Breton viria a chamar de acaso
objetivo.
Nenhum dos comentaristas de Nadja que cheguei
a examinar – Bonnet, Moraes, Née, Mourier-Casille, mais os textos que vêm em apêndice
a esta nova edição de Nadja e os que acompanham o livro de Mourier-Casille
– parece haver reparado nisso. Breton embutir a toda hora alusões e citações de
outros autores em suas narrativas não é novidade. E outros textos acontecerem, a
exemplo da famosa realização de um poema de Breton, Tournesol, Girassol,
em O amor louco, e de outras passagens desse livro anteciparem acontecimentos
posteriores à publicação, isso sim, já foi examinado.
Há um comentário de Jean-Luc Steinmetz sobre Nerval,
a propósito de Petits châteaux de Bohême, que me parece valer, de modo mais
completo, para Nadja e outras das narrativas de Breton:
[…] somos constantemente convidados a passar de um regime
de leitura a um outro, do domínio fictício ao domínio vivido: de toda evidência,
através de referências dadas e como que impostas, uma outra realidade tende a vir
à luz. [18]
Breton nunca chegou, parece-me, a publicar um ensaio
sobre Nerval, a exemplo dos que escreveu sobre Lautréamont, Jarry, Baudelaire, Apollinaire,
Rimbaud e outros poetas. Mas pode-se dizer que Breton e o surrealismo começam e
terminam com Nerval.
Começam, pois, no primeiro Manifesto do Surrealismo,
dá o “estado de sonho supernaturalista” de Nerval ao escrever os sonetos
de As Quimeras como origem do surrealismo. Cita a carta de Nerval a Alexandre
Dumas que abre Les filles du feu, sobre esses poemas “[…] compostos
em estado de sonho supernaturalista, [que] não são mais obscuros que
a metafísica de Hegel e os Memoráveis de Swedenborg, e perderiam seu encanto
ao serem explicados, se isso fosse possível”.
Breton termina em Nerval, duplamente: em Arcano 17,
obra de 1947, última de suas narrativas em prosa, fechando uma tetralogia composta
porNadja, Os Vasos Comunicantes e O Amor Louco; e no último
dos Manifestos do Surrealismo de Breton, Do Surrealismo em suas Obras
Vivas, de 1953.
Em Arcano 17, a simbologia hermética desempenha
papel central, a começar pelo título, referência à carta 17 do Tarô, a Fortuna.
Em Nerval, um esoterista, a simbologia do Tarô é importante: por exemplo, o poema
El desdichado, de As Quimeras, é sobre a carta anterior, o arcano
16, da torre desabada ou “abolida”. Interessa a sequência das cartas do jogo do
Tarô em Breton e Nerval: a carta de número 16, símbolo da destruição, segue aquela
do diabo; portanto, o colapso da torre (do consulente) é manifestação demoníaca;
mas a torre fulminada por sua vez precede o arcano 17: é a estrela da manhã, símbolo
de um nascimento, da esperança no futuro e do conhecimento, ou seja, da gnose. Nerval
diz que vai morrer – pouco depois da publicação de As Quimeras, cometeria
suicídio –, mas que retornará. Portanto, simbolicamente, em Arcano 17 Breton
prossegue Nerval, continua onde o poeta parou.
Um detalhe interessante, desses que permitem falar em
“inconsciente do texto”, associado ao intertexto: em El desdichado de Nerval,
este verso: “Serei Amor ou Febo? … Lusignam ou Biron?” – Lusignan foi um cruzado
que se tornou rei de Jerusalém e de Chipre no século XII; era tido como descendente
da fada-serpente Melusina, por sua vez invocada em Arcano 17 de Breton, associada
a Elisa, sua companheira.
Em Arcano 17, Breton celebra a realização amorosa
como grande síntese, superação das antinomias, equivalente à iluminação. O corpo
do livro se encerra com reflexões sobre o sentido de uma frase de Éliphas Lévi,
ao proclamar que “Osíris é um deus negro”. Termina saudando a publicação do ensaio
de Auguste Viatte sobre o diálogo entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, e comentando
o modo como ambos, o mago e o poeta, equipararam Lúcifer, o anjo rebelde – “que,
ao nascer, negou-ser a ser escravo”, dando à luz “duas irmãs, Poesia e Liberdade”
– à estrela da manhã, signo da liberdade e do conhecimento, equivalente “à própria
revolta, a única revolta criadora de luz”; uma luz que “só pode passar por três
vias: a poesia, a liberdade e o amor.”
No final de Arcano 17, em um apêndice escrito
em 1947, os encontros adquirem mais nitidamente o caráter de uma aventura intelectual.
Não são mais as mulheres, desconhecidas com olhos e olhares fascinantes, como Nadja,
as desconhecidas de Os Vasos Comunicantes e Jacqueline Lamba em O Amor
Louco, que vêm ao encontro de Breton, movidas pelo acaso, porém obras, informações,
mesmo quando trazidas por pessoas. Terminada a Segunda Guerra Mundial, de volta
a Paris, Breton recebe uma mensagem de um amigo: “O maravilhoso. – Atenção, reflexão,
lógica não me ajudam em nada. Não me possuo mais. Eu sou, plenamente.” Encontram
um desconhecido. Segue-se um enredo através do qual chega a suas mãos o livro de
Jean Richer, Gérard de Nerval et les doctrines ésotériques. Nele foi publicado,
pela primeira vez, o retrato de Nerval com sua frase, manuscrita, “Eu sou um outro”,
acompanhada por signos cuja decifração é proposta por Breton. Os episódios desses
dias de abril de 1947 o fazem convencer-se de que estivera de fato em companhia
de Gérard de Nerval, nas imediações da torre Saint-Jacques, a torre medieval de
onde saíam os peregrinos a São Tiago de Compostela – um lugar extremamente significativo
para Breton, que comparece em outros de seus poemas e em O Amor Louco, além
de associado à alquimia, inclusive por Nicolas Flamel haver morado em sua proximidade.
Pela primeira vez, Breton sobe à torre Saint-Jacques: os mais familiarizados com
simbologia hermética reconhecerão o sentido dessa subida à torre: é a entrada no
castelo iniciático onde está o cálice do Graal, que equivale à pedra filosofal.
É a “virada esotérica” de Breton, simbolizada pelo encontro
com Gérard de Nerval, evidenciada através de Arcano 17, de poemas da mesma
década de 1940 como Les états géneraux, Os estados gerais, e a Ode
a Charles Fourier, e de seus dois últimos manifestos do surrealismo. Em Prolegômenos
a um terceiro manifesto do surrealismo ou não, de 1942, volta-se novamente contra
o “pensamento racionalista”, e, frisa, “sem dar atenção às acusações de misticismo
de que não serei perdoado”, propõe-se a “convencer o homem de que ele não é obrigatoriamente
o rei da criação, como se vangloria.” Pergunta sobre a oportunidade de revelar um
novo mito, o dos Grandes Transparentes, e observa que “o homem não é
talvez o centro, o ponto de mira do Universo”, criticando “a crença de que o mundo
encontra no homem o seu acabamento.” Retomaria a crítica ao antropomorfismo e a
afirmação da visão hermética de mundo em Do Surrealismo em suas Obras Vivas,
de 1953. Dando sua palavra final em matéria de manifestos, diz, no último parágrafo,
que, “a esse respeito, sua posição [do Surrealismo] se uniria à de Gérard
de Nerval no famoso soneto Versos Dourados.” Nele, o autor de Aurélia,
expressando as ideias de Fabre d’Olivet, duvida de que sejamos o centro do universo
e os detentores exclusivos da razão:
Homem! livre pensador! serás o único que pensa
Neste mundo onde a vida cintila em cada ente? [19]
Expressando a visão pagã do mundo animado, Nerval diz
ainda que “um mistério de amor no metal reside dormente, e um espírito puro medra
sob a crosta das pedras”.
Tudo isso é muito estranho. Como interpretar esses modos
de aparição de Nerval, o poeta mais enfronhado em doutrinas esotéricas dentre aqueles
da geração romântica, na obra de Breton? Aparição manifesta, explícita, em Arcano
17 e em Do Surrealismo e de suas Obras Vivas; aparição latente, subterrânea,
através de sinais, décadas antes, em Nadja.
A vocação esotérica e ocultista mais acentuada em Breton
o distingue de outras figuras de frente do surrealismo, como Aragon e Éluard. Isso,
pelo modo como a simbologia comparece de modo recorrente em sua obra, e, principalmente,
por haver realizado uma relação mágica entre poesia e vida, através do acaso
objetivo. Ocultismo estava em sua formação. Marguerite Bonnet e Henri Béhar, em
suas biografias de Breton, [20] mostram que, entre suas leituras de adolescência,
estava o Sâr Joséphin Péladan, mago de prestígio, escritor prolífico, frequentado
por simbolistas e decadentistas. Em 1921, procurou René Guénon (a quem cita em seu
último manifesto). Na década de 1950, para aprofundar o exame das analogias entre
poesia e alquimia, intensificou o diálogo com especialistas como Eugène Canseliet
e René Alleau, cujas conferências sobre alquimia ele e outros integrantes do surrealismo
frequentaram. Alleau, por sua vez, colaborou em publicações surrealistas.
Daí resulta, em sua obra, a profusão de símbolos: pentagramas,
casas e planetas do zodíaco, operações alquímicas. Chegou, em 1941, a criar sua
própria versão do baralho do Tarô. Antes, conforme relata nas páginas iniciais de
O Amor Louco, fascinara-se por um baralho com a bandeira da Hamburg-America
Linie, “com a magnífica divisa: Mein Feld ist die Welt” (meu campo é o mundo), por
achar que, nele, “a dama de paus é mais bela do que a dama de copas.” Conta como
dispunha as cartas para fazer consulta, interpondo um objeto que se assemelhava
a uma raiz de mandrágora. Parecia atribuir valor de verdade à astrologia. No Segundo
Manifesto do Surrealismo, em extensas notas de rodapé, trata de alquimia, astrologia,
hermetismo. Coloca o surrealismo sob influência de uma conjunção de Saturno e Urano,
entre 1896 e 1898, coincidindo com seu nascimento, e os de Éluard e Aragon. O mapa
dessa conjunção também ilustrou em 1930 a capa do primeiro número de Le surréalisme
au service de la révolution. Em O Amor Louco, diria que a conjunção de
Vênus e Marte em seu dia de nascimento talvez o fizesse sofrer discórdias no seio
do amor. Dataria um acontecimento revelador, que lhe parecia corresponder à noção
de beleza convulsiva, deste modo: “a 10 de abril de 1934, em plena “ocultação”
de Vênus pela Lua (episódio esse que só acontecia uma vez por ano)”.
O Segundo Manifesto do Surrealismo apresenta
uma duplicidade. De um lado, no corpo do texto, afirma com ênfase a adesão ao pensamento
marxista. De outro, em extensas notas de rodapé (inaceitavelmente transformadas
em notas de fim, jogadas para o final do livro, na mais recente edição brasileira
dos Manifestos pela Nau, desrespeitando a intenção de Breton), propõe a exploração
de “certas ciências”, valorizando o conhecimento hermético e exigindo que a alquimia
do verbo de Rimbaud fosse tomada ao pé da letra.
É como se houvesse, nesses dois planos do texto, aquele
do corpo e outro subjacente, das notas de rodapé, dois pólos, o materialista e o
esotérico, instâncias historicamente antagônicas, a constituírem, nas palavras de
Jean-Louis Bédouin, “uma das mais vertiginosas interrogações que conheceu o surrealismo,
e, antes dele, espíritos tão diferentes e tão grandes quanto Achim von Arnim e Rimbaud.”
[21]
Os conteúdos esotéricos aparecem como um subsolo do
texto no Segundo Manifesto do Surrealismo. E como intertexto ou “inconsciente
do texto” em Nadja, personificados, entre outros lugares, na referência ao
mesmo tempo oculta e vivida a Nerval. E reaparecem no corpo do texto, como tema,
personificados em Nerval, em Arcano 17 e nos dois últimos manifestos (entre
outros lugares – na mesma época, também Breton publicou artigos e ensaios em que
tratava de hermetismo).
Nerval, antes de suicidar-se, disse, em El Desdichado
e em Aurélia, que morreria, mas retornaria. No final de Arcano 17,
Breton promove esse retorno; em Nadja, no episódio da Praça Dauphine, já
anunciava que iria resgatá-lo.
Os racionalistas tão combatidos por Breton poderão matar
a charada do episódio da Praça Dauphine lembrando que Nadja muito provavelmente
havia lido A Mão Encantada de Nerval, obra conhecidíssima; por isso, após
passar por seus cenários, pode ter fantasiado a main de gloire como mão de
fogo sobre o Sena. Mas explicação alguma reduz a riqueza simbólica dessas relações
inter e intratextuais, etapas de um ciclo no qual Nerval, oculto ou recalcado em
Nadja e nos rodapés do Segundo Manifesto do Surrealismo, volta à luz
em Arcano 17 e Do Surrealismo em suas Obras Vivas.
Mourier-Casile, no já citado Nadja d’André Breton,
associa a mão de fogo sobre o Sena a um quadro de De Chirico, também citado por
Breton. Isso, entre outras possibilidades de leituras transversais, não-lineares,
dessa obra, que levam essa ensaísta a falar em “curtos-circuitos deslumbrantes”
da analogia, e de uma compacta e complexa “rede de ecos”, que acaba por tecer, “sob
a sua essencial descontinuidade, uma continuidade de uma ordem totalmente outra”.
Que o leitor seja pego por essa rede; que se perca nesse labirinto: encontrará a
poesia.
Ah, sim – depois dessa edição tão cuidada de Nadja,
resta esperar que a editora Cosac Naify complete o ciclo da prosa bretoniana, com
boas edições brasileiras de Os Vasos Comunicantes e O Amor Louco,
e uma nova edição de Arcano 17, há muito esgotado.
NOTAS
[1] No volume I das Oeuvres complètes de Breton (Gallimard, col. Pléiade).
[2] Dunod, Paris, 1993.
[3] Gallimard, coleção Folio, 1994.
[4] No recém-lançado Cadernos de Literatura Brasileira - 10 anos,
do Instituto Moreira Salles, citado por Antonio Fernando de Franceschi, em um ensaio,
no restante muito informativo, sobre criação literária.
[5] Presses Universitaires de France,
Paris, 1994.
[6] Mais sobre a originalidade do Breton leitor de literatura em meu “André
Breton, 40 anos depois: o crítico literário”, em Agulha Revista de Cultura # 53.
[7] Em meu texto sobre escrita automática publicado aqui, em Agulha Revista de Cultura # 54, “A
escrita automática e outras escritas”.
[8] The Surrealist Libido: André Breton’s “Poisson soluble, Nº 8,
em André Breton today, organizado por Anna Balakian e Rudolf E. Kuenzli,
Willis Locker & Owens, Nova Iorque, 1989
[9] Manifestos do Surrealismo, Nau editora, Rio de Janeiro, 2001.
[10] Imago, Rio de Janeiro, 1998.
[11] Em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso,
Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995; tradução de As Flores do Mal por
Ivan Junqueira.
[12] Em Salão de 1846, também em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
[13] A Paris do Segundo Império em Baudelaire, em Walter Benjamin
– Sociologia, tradução e organização de Flávio R. Kothe, Editora Ática 1985,
ou na série Walter Benjamin – Obras escolhidas, da Editora Brasiliense.
[14] Les Éditions du Minuit, Paris,
1962.
[15] Essai sur Stéphane Mallarmé,
Poètes d’aujour’hui, Seghers, Paris, 1963
[16] Aqui, estou reincidindo no que tratei em minha narrativa em prosa Volta,
Iluminuras, São Paulo, terceira edição em 2004, e antecipando algo de um ensaio
sobre acaso objetivo que deve sair em breve pela Perspectiva.
[17] André Breton, Le grand
indésirable, Calmann-Lévy, Paris, 1990.
[18] Nas Oeuvres complètes
de Nerval, org. Jean Guillaume, Claude Pichois e outros, Éditions Gallimard, Paris,
vol. III, 1993.
[19] Na tradução de Contador Borges no prefácio de Aurélia, Iluminuras,
São Paulo, 1991.
[20] Marguerite Bonnet, André
Breton – Naissance de l’aventure surréaliste, Librairie José Corti, Paris, 1988.
[21] Bédouin, Vingt ans de surréalisme, 1939-1959, Éditions Denoël, Paris, 1961.
CLAUDIO WILLER | Poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao surrealismo e geração Beat. Publicações recentes: Dias ácidos, noites lisérgicas, relatos (Córrego, 2019), A verdadeira história do século 20, poesia (Córrego, 2016, Apenas livros – cadernos surrealistas, 2014), Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, ensaio (L&PM, 2014), Manifestos, 1964-2010, (Azougue, 2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (Civilização Brasileira, 2010); Geração Beat, ensaio (L&PM, 2009), Estranhas experiências, poesia (Lamparina, 20004). Traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Antonin Artaud. Doutor em Letras na USP, onde fez pós-doutorado. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about .
JOE HESTER | (Austrália, 1920-1960). Foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encuentra entre os grandes artistas australianos do século passado.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07
Número 206 | abril de 2022
Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)
Tradução: Allan Vidigal
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
ARC Edições © 2022
∞ contatos
Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL
https://www.instagram.com/floriano.agulha/
https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/
Nenhum comentário:
Postar um comentário