A
propósito, há no impulso de todo gênero fragmentário (que na música tem seu pai
em Schumann) um duplo movimento marcado pelo contínuo e pelo descontínuo, como
se para avançar adiante ou retomar o fio perdido houvesse que arrastar um
buraco próprio na temporalidade e no espaço que responde pela morte mesma. O
fragmento (do qual o aforismo é uma forma estilizada, com gosto pela máxima,
moralizante que seja, ou paródica como no caso de Lautréamont), propõe uma
espécie de gozo dos recomeços (como diz Barthes), um modo de prolongar ao
máximo esse instante inaugural marcado pela indecidibilidade entre o gozo
jubiloso e a perda. O fragmento com isso distingue-se em sua própria estrutura
enquanto unidade independente, mas também como parte inconteste de um todo, não
visível por certo, mas alusivo enquanto referência última, conforme a expressão
“Fragmentos de su imán”, título de um livro do poeta cubano José Lezama Lima,
contemporâneo de Char, no sentido de que todo fragmento pertence a uma
estrutura ausente que o atrai e o engloba. A totalidade é o sentido imanente de
todo fragmento. A imanência, aliás, como substrato perene da escrita não a precede
propriamente enquanto dado originário, mas atua substancialmente em sua
atividade da produção. Desse modo, a totalidade participa da elaboração do
fragmento como um horizonte suposto e atemporal que acena enquanto devir do
poema nesse formato.
É assim
que esse poeta francês tido por hermético, ou como afirma João Cabral em seu
poema “Anti-Char”: “não diz a coisa, diz vazio; / nem diz coisas, é balbucio),
[1] rearranja a matéria poética a partir desse referente em torno do
qual giram as palavras-ilhas em arquipélagos. É que em Char o ilegível ou seu
enigma corresponde por vezes à matéria enfrentada pela escrita, resultando o
poema desse embate, não raras vezes encerrando o leitor em palpos de aranha, de
onde a significação brota como que à deriva (dificilmente em via direta), em
meio à sua (difícil) beleza. Com efeito (este é o termo!) tem-se a impressão de
que durante o percurso da leitura o poema foge com sua luz (exemplarmente
lucífugo) por entre as próprias malhas, ao abrigo da revelação, como o monstro
do lago Ness.
É algo
assim a dinâmica dessa poética. Se são ilhas desta monta (conservemos a figura)
as palavras de Char, em arquipélagos móveis, auto-referentes, seus livros estão
sempre em busca do Livro, ideal supremo, perdição dos que escrevem para
arrancar a beleza do que em poesia configura o indizível, tal a saxifraga de
sua rocha. Com isso, o poeta se defronta necessariamente com “o sentimento de
impotência das palavras”, como diz Char, sempre insinuante no ato da criação. O
sentimento de perda é uma espécie de superego da escrita poética, um fantasma
que ronda a atividade produtiva de todo escritor. A propósito, um poema não é
feito para revelar segredos da poesia de “mãos beijadas”, e em Char o que
interessa comunicar é precisamente aquilo que na poesia se mostra
incomunicável. Afinal,
A
poesia é este fruto maduro que apertamos na mão com alegria, no instante em que
aparece com o futuro incerto em seu cálice na haste gelada da flor. [2]
Em
relação à poesia um júbilo se produz, ao mesmo tempo em que se tem a percepção
de seu fim, que também pode ser o do sentido faltante à própria leitura. Ou
seja: estão presentes no ato da criação, tanto o gozo quanto a morte,
justamente no ponto em que o poema comunica seu incomunicável, que é seu próprio
limite. O poema, contudo, conserva a lembrança desse júbilo, a sensação de vida
irradiante que nos liga a ele corporalmente.
Em
René Char a poesia é crítica do fazer poético, aceitando como parte da própria
criação esta soberania ou soberba, atitude que em última instância coloca o
próprio ser do poema em questão. O poeta verbaliza, assim, a finalidade que
Bataille vê na poesia: chegar ao mesmo ponto que o impossível ou em seu limiar.
Justamente,
ao colocar o ser da poesia em questão, a obra de Char se apresenta como um
universo aberto, sem hierarquia de elementos, em que os rebeldes contrários se
harmonizam, “essa torrente de lodo sereno”. Sendo também a poesia corpo,
erotismo em palavras, quem o ajuda na tarefa é a figura da mulher, fonte
originária da criação:
Mulher
que harmonizas com a boca do poeta, essa torrente de lodo sereno que ensinaste,
quando ele ainda era um grão cativo de lobo ansioso, a ternura das muralhas
polidas com teu nome… [3]
Em Char a dimensão erótica participa do nascimento do poema, tal como na criança que recebe o próprio nome dos lábios maternos, ocasião em que se dá o fundamento da própria linguagem no seio do amor. Se os sentidos de um poema, dono do instante, mas de futuro incerto, oscilam necessariamente entre clareza e obscuridade, júbilo e perda, gozo e morte, seu fundamento é o corpo nas relações que estabelece entre o poeta e a escrita, o leitor e a obra.
*
Só
podemos viver no entreaberto, exatamente na linha hermética de partilha da
sombra e da luz. [4]
A
abertura, aliás, essa “goela de serpente que nos oferece o impossível” é um dos
operadores principais da produção poética da Char. Como observa Jean
Starobinski, não há nenhuma linha nesta obra que não nos deixa o sentimento da
abertura.
No
entanto, toda essa vocação em expor o ser da poesia a partir do não sentido, ou
do desconhecido do ser, leva-o a velar-se, lembrando o célebre fragmento de
Heráclito, autor de devoção do poeta: “a natureza ama esconder-se”. É que a
ocultação em Char é uma estratégia de desvelamento, senão do sentido, ao menos
dessa operação em que todo discernimento se faz à contraluz daquilo que parece
impedir o sentido de sua apreensão. Com isso, cabe à poesia, além da nomeação,
eliminar a caudalosa fronteira que separa com linha hermética a luz da sombra,
feita da harmonia invisível que une estes dois opostos. Afinal, para onde vai
toda certeza? Toda evidência, toda asserção de sentido, ficam suspensas, em
nível flutuante de apreensão da parte do leitor, mas que tem à sua disposição
uma estrutura formal que o permite interagir com seus dispositivos de
interpretação em permanente estado de abertura, intelectual e sensitiva:
Choro
quando o sol se põe porque ele te esconde aos meus olhos e nunca chego a um
acordo com seus rivais noturnos. [5]
Neste
paradoxo, a negação é o próprio acordo, núcleo pendular da interpretação, sendo
no âmbito dessa ambivalência que o poema desliza, expondo ao olhar do leitor a
problemática do sentido, sua potência, sua crise, já vivenciados pelo poeta e
sua escrita e aproximando com isso o saber do não-saber, pois o novo reside no
fundo do desconhecido, conforme o lema com o qual Baudelaire instaura a
modernidade na poesia, assim como a poesia na modernidade.
Nesta
poética, como no exemplo citado acima, é possível encontrar brechas nessa luz
entrevada, nesse clarão furtivo que são sua epifania, acabando por reverberar
na subjetividade alheia como efeito de leitura. Char faria algo semelhante a
seu amado pintor La Tour e seus clarões sombrios, que Malraux diz ser “o único
intérprete da parte serena das trevas”. [6] Movê-las (a luz e as trevas)
é esbarrar em algo delicadamente perturbador, mas de difícil acesso e
entendimento, do qual o poeta só exprime o vulto fulgurante.
Desde
o Caos no imaginário grego antigo, a noite engloba a luz e a expele. A poesia
de Char propõe um pacto em que mãe e filha se reconciliam, eliminando a linha
de fronteira entre a luz e a sombra, obtendo com isso, não a claridade absoluta
(que cega e mergulha o olhar na indistinção), nem a obscuridade plena, pouco
afeita à vida do sentido, mas algo misto como uma luz entrevada ou um clarão
furtivo, de cuja ambivalência brota o fluxo do poema. É a reconciliação dos
opostos. O vazio que fica no centro, insondável, é o resto que todo poema
carrega, sendo a borda pela qual passa o dorso cortante da palavra (como o
costado sinuoso dos navios), e que à maneira da superfície das águas se refaz
em seguida no mesmo movimento. Pode-se especular se este resto (inexprimível)
que o poema transporta, mas não chega a dar à luz não perpetua em um estado de
gestação eterna, cujo parto seria a morte da própria poesia. Nessa razão
trágica, hiperbólica, a poesia seria um monstro gerado continuamente, cuja
beleza, nos termos de Rilke: “é o começo do terror que somos capazes de
suportar”. Mas em Char o que se mantém irrevelável, obscurecendo a significação
é absorvido pela própria poesia que afinal se mostra serena (como em La Tour) e
neutra aos olhos do leitor, absolutamente segura tanto de sua armação simbólica
quanto de seu movimento, mesmo quando transparece o caráter violento do signo:
A
noite cobriu metade de seu percurso. Neste segundo, o acúmulo dos céus caberia
inteiro em meu olhar. Eu te vi, primeira e única, fêmea divina, nas esferas
transtornadas. Eu rasgava teu vestido infinito e te reconduzia nua no meu chão.
O húmus vivo da terra esteve em toda parte.
Voamos
no espaço cruel, dizem tuas servas – ao canto da minha trombeta rubra. [7]
Assim, se há uma linha da morte submersa na escrita, e se ela corresponde ao sentimento de vazio, turvando com isso a claridade na superfície (no olhar do leitor), o poema em si mesmo, ilha de palavras, é a resolução formal de todo conflito, de toda tensão de contrários. Nessa trama erótica sombra e luz, violência e delicadeza, pleno e vazio, se reconciliam, se fundem, para o triunfo da beleza.
*
No
meio desse imenso arquipélago poético lança também sua luz uma referência cara
a René Char: sua terra natal, que desempenha a função de manancial e origem de
seu imaginário poético, a Isle-sur-Sorgue, um verdadeiro topos dessa
obra que mescla ao simbólico a vivência do poeta, sua memória transubstanciada
pela linguagem, fazendo do imaginário desse desejo pela origem uma busca da
própria poesia.
Armado em provocante silêncio, o poema engaja o leitor no milagre de coalizão imediata entre a linguagem e a vida. Nesse instante em que se ouve (ou se lê) essa voz sutil que parece vir de longe (do passado e do futuro, simultaneamente), o mundo e os homens comparecem de forma harmoniosa e autônoma. É no contato com essa língua estranha (a poesia), que o leitor pode vislumbrar um mundo à parte, potencialmente melhor e mais belo.
*
A
história dos homens (ou a sua renúncia) se reescreve pelo viés da
individualidade do poeta, que, afinal, não é senão “um homem que fala a outros
homens”, no dizer de Wordsworth. Mas há casos em que esse diálogo exige tal
cumplicidade e irmanação de sangue mental entre o poeta e o leitor, que a
língua poética acaba soando ainda mais intensa e fortalecendo a relação fundada
na leitura do poema, tão breve e frágil, tornando-a, não só vital e fecunda,
mas também um ato de extrema urgência. Char participa desse empreendimento
poético em linhagem direta com Holderlin. Este, por sinal, enceta uma
aproximação a ponto de despertar uma singela harmonia entre linguagem e mundo
com a libertação da dor (após sua necessária nomeação) no êxtase das palavras.
Em Char, o efeito é quase o mesmo. Ambos concorrem no sentido de uma
restauração da natureza dos homens que chegaram tarde para os deuses. E se a
poesia de Char comunga do divino, ela se mostra descalcificada do elemento
religioso. Seu ápice é jubilosamente pagão, do qual nós mesmos, leitores,
comungamos da hóstia, o pão negro da palavra. Atinge-se, aqui, o sublime, no
sentido de que sua poesia, substancialmente, oferece o sublime, menos a
religião, e doa o divino sem Deus, aliás, como em Nietzsche e Bataille.
Se é
certo que esta obra se produz em diálogo como o vazio e em torno dele, o livro
ideal que busca permanece uma miragem, promessa de um sentido indizível. O
poema depende, assim, de uma ausência (sua “nudez perdida”) e dela tira sua
possibilidade de realização suprema.
Desse
modo, os poemas de Char se aglutinam em arquipélago movendo-se na direção de um
livro infinito, sem que saibamos ao certo onde nos levam suas águas, sombras e
reflexos, que são as múltiplas faces de uma mesma interrogação reiterada sobre
o ser da própria poesia. Nesse movimento, o que interessa é a trajetória em si.
Não exatamente a volta de Ulisses, mas a viagem em si mesma, a poesia. Há que
se reconstituir em parte esse périplo rebelde, avesso à lógica e às acomodações
da linguagem. Há que se recompor a casa ideal das ruínas e sombras, como o
sentido saliente das pinturas de Hubert Robert, as sombras da ruína. Projeto
ousado, tanto para o leitor, quanto para o tradutor da poesia de Char, não
sendo este mais do que um leitor que leva as possibilidades e ilusões da leitura
às últimas consequências. Traduzi-lo implica refazer as pegadas do poema em seu
rio de escombros. Além disso, é necessário manter a escuta atenta às exigências
intrínsecas das próprias línguas em jogo (a do autor e a do tradutor). Amores
de mãe (pela própria e desejo pela alheia). Ou morte da poesia. Em tal
material, o aspecto intraduzível, retorna como um “fantasma do sol” na noite da
criação, naquele instante supremo e violento em que se forjam os signos
“rasgados a golpes de fogo” que o poeta exibe como que através de um espelho
negro. Assim vislumbramos os reflexos da poesia do ser e do ser da poesia.
René
Char é dono de uma obra imensa composta de pequenos livros (pequenas ilhas),
que se comunicam entre si. Livros dentro de livros, as flores internas das
diversas coletâneas organizadas pelo poeta. Mas são livros que põem em comum,
ou seja, comunicam o incomum em uma permanente interrogação sobre o ser da
poesia, seu estado pleno e vazio. Na poesia, aliás, plenitude e oquidão estão
presentes na mesma dimensão topológica, tal como em uma fita de moebius, as
duas faces de uma sucessão de imagens acústicas.
O
espaço desse livro ideal interminável, configurado como poemas-ilhas em
arquipélago, alinha-se horizontal e verticalmente, completando o quadrado
perfeito do poema. Basta pôr o mar em pé, dispor os arquipélagos como pingentes
brilhantes, de baixo para cima. O que se busca é a base e o cume, enfim, um
espaço que se desdobra em outros, como nuvens, espelhos e sombras. A poesia de
Char reflete esse movimento interior de ascensão da base ao cume e,
vertiginosamente, do cume à base, à maneira de um corpo que cai em seu
pára-quedas trêmulo (Char foi aviador da resistência francesa durante a Segunda
Guerra Mundial). Temporalmente, vai do presente ao passado e do passado ao
futuro, resolvendo-se no cruzamento anacrônico de todos os tempos. Enquanto
durar o parto da manhã (do poema), ele viverá intensamente o que se passa no
ar, entregando ao leitor os frutos dessa experiência alucinatória.
Haverá,
quem sabe, brasas suficientes para iluminar a escuridão do ser, sem que Char se
esqueça da beleza das cinzas que não deixam de segregar a morte, o mais
incontornável dos temas. Por isso, ele constata a “desaparição dos lobos”, os
“lobos nevados”, entre os quais ele mesmo, “lobo ansioso”. Qual o lugar do
poeta senão na a-topia da escrita, quando cava o túmulo em que desaparece? Sob
seu nome na lápide (na capa do livro) ficam os poemas e o vazio (como sempre).
No pulsante inventário que a poesia de Char estabelece, as ocupações, os
objetos e materiais variam entre os tradicionais índices do solo, como a terra,
a areia, a pedra, uma infinidade de plantas, árvores, flores, passando pelo
clássico topos da colheita, a seus derivados sêmicos como grãos, palhas,
frutos, essa vegetação intensa que forra o chão dos poemas. Neles também vemos
desfilar o bestiário multiforme do poeta (animais de todo tipo, dos vertebrados
aos insetos), até os habitantes do “céu dos homens”, os pássaros, a chuva, o
sol, a lua e as “estrelas lutadoras”. Por falar nestes, sol e lua, dia e noite,
comentam o nascimento e a morte das palavras. No poema, os dias e as noites
trocam suas peles de papel. E enquanto se despem é possível ver, de relance, o
“nu perdido” do ser.
“Há em
nós extensões imensas que jamais chegaremos a abarcar”, [8] alerta Char
sobre a incompatibilidade entre a trilha interior do desconhecido lampejante e
os passos executados pelo texto ou deixados pelo autor em pegadas escuras.
Denso e rarefeito simultaneamente, o espaço poético é povoado de figuras e
esticado em todas as direções e sentidos. O tema da colheita, o carpe diem chareano,
põe em relevo as sutilezas de uma atividade essencial com o solo. Epicurista, o
poeta ama seu espaço. Ara-o, planta e colhe. A “espiga de cristal” do poema
“debulha nas ervas seus grãos transparentes”. Char colhe a transparência em seu
ato noturno inoculando nas sombras o sêmen produtivo, um “imenso carvalho de
lágrimas”. Alguns desses seres falam, o dom lícito entre os seres do poema,
seus mitos e fábulas. Outros, em simbiose alquímica, favorecem a troca de
sentimentos entre distintas figuras, como o amor confesso do lagarto pelo
pintassilgo. Os seres da linguagem poética são compatíveis alquimicamente.
Assim, em “Lamento do lagarto amoroso”, [9] o lagarto pede com ternura a
seu amado pássaro que “não debulhe o girassol”, pois seus “ciprestes vão
chorar”. A paisagem natural desses versos se harmoniza com a voz que a condensa
na alegoria. O lagarto amoroso exibe sutilmente seus sentimentos para que as figuras
do poema se respeitem, se amem, em nome da beleza (apesar do homem e seu
fuzil). No último verso da estrofe final, o apaixonado roga ao pintassilgo,
elevado à grandeza divina, que faça o ninho em sua pedra ou em seu pequeno
muro, de onde vê o mundo transfigurado pelo encanto da potência poética sobre
os seres e as coisas.
Estudioso
dos grandes alquimistas que lia com fervor, Char elabora os artifícios pelos
quais mantém aceso, para o leitor, o sonho de elevar o homem à imortalidade, já
que, segundo aqueles, o homem é “naturalmente imortal”. Transpondo esse ideal
ao âmbito de seu projeto estético, Char entende que somente a poesia pode
realizar esse intento e triunfar sobre a morte natural.
Falou-se,
aqui, de espaços. E espaço, desde Zenão, é aquilo que a liberdade do olhar
monta e desmonta como quer. O espaço é a tela em que o tempo e seus agentes (o
dia, a noite, as manhãs, o crepúsculo, as estações e a dança híbrida e
pluriforme da natureza) se tornam visíveis, imobilizados pela sensibilidade do
poeta, esse voyant incorrigível. Char é dos que abusam (no melhor
sentido da palavra) dessa condição inerente ao fazer poético, cujo efeito mais
radical, no dizer de Rimbaud, é o desregramento de todos os sentidos.
A
reforma da natureza empreendida por Char na poesia, como observa Anna Balakian,
[11] se faz mediante uma concordância fundamental entre a palavra e os
ritmos da terra. E nessa operação não há obscuridade alguma. O conluio entre
poesia e natureza representa o lado solar do poeta. Isso gera uma energia que
ele denomina “sismo”, movimento profundo aplicado tanto à linguagem quanto à
terra:
O solo
que recolhe não é o único a rachar nas operações da chuva e do vento. O que se
precipita, quase silencioso, permanece nos arredores do sismo com nossas
palavras secas do predizer penetrantes como o tridente da noite na íris do
olhar. [12]
Se o solo natural se modifica a ponto de fender sob fenômenos como vento e chuva, o mesmo parece acontecer com a atividade da escrita. O efeito de precipitação é um evento inerente à mesma. Este também é o assunto a que o poema se refere, ou seja, o movimento que culmina nele e que permite ao poeta alumbrar as brechas por meio das quais recolhe os vestígios do ser e de suas manifestações, que são como que referentes em estado de graça, imantados por força de encantação poética. A precipitação é o efeito da própria escrita, efeito “quase silencioso”, mas que acusa esse processo análogo à natureza através do qual os signos mesmos se racham, entreabrindo o ser aos sentidos, mas não completamente, pois algo, como se viu, permanece irrevelável, um resto que a poesia rumina e jamais elimina em si mesma.
*
Doente
de septicemia, em 1936, René Char vivencia esse estado de ambivalência em que a
mente oscila entre delírio e lucidez, à maneira de Nietzsche. Sofre então oito
semanas com essa doença que o faz sentir na alma “uma angústia de fim do
mundo”. Mas essas ocasiões em que os poetas passam por uma experiência de
limites não deixam de repercutir de algum modo em sua própria poesia. E o vazio
retruca. Sempre o vazio. Para anulá-lo (ou adulá-lo), há que se armar bivaques
à sua volta. Barricadas, quem sabe. Organizar esse impulso cego que leva o
poeta a extrair palavras das geleiras da noite. Há que se moldar a força
excessiva da poesia, sua vocação irrefreável para esse duplo movimento que
congrega contenção e esbanjamento, exuberância, rigor e expansão, engajando com
isso a palavra na própria atividade poética, já que não é possível, a esmo,
atirar no vazio. Essa atitude é essencialmente política e solidária à
moralidade da língua, como ensina Barthes, em uma direção neutra, contrariando
o uso que fazem dela a comunicação e a sociedade utilitária. Char atua nessa
frente de combate. Seu maior engajamento, como poeta, é com a linguagem poética
na qual, segundo Heidegger, habita o próprio ser.
Os
livros de René Char escritos na época da guerra: Seuls demeurent, Feuillets
d’Hypnos, reforçam isso, embora ele nada publique nesse tempo. Não que o
trabalho da imaginação seja destituído de ação política, mas ao contrário: há
ocasiões em que se deve “deixar para mais tarde a parte imaginária, pois também
ela é suscetível de ação”. Este “também” marca com nitidez sua posição. A parte
imaginária é ação contemplativa na via da experiência interior. Char exprime
assim uma das mais significativas atitudes herdadas de seu passado surrealista,
quesito fundamental neste movimento. Entretanto, no momento explosivo da
guerra, de necessária cooperação dos aliados contra um inimigo organizado com
uma visada também estética de purificação racial e morte das diferenças, o
poeta cede lugar ao homem de ação, ao maqui Alexandre (seu prenome), comandando
de Cereste operações militares. A literatura não perde por esperar. O
engajamento seguinte é com a própria, e o poeta pode clamar: “os deuses estão
de volta”.
O
primeiro encontro entre Char e Heidegger ocorre nos arredores de Paris, em
1955. Conversam à sombra de um castanheiro, entre as flores femininas. Ouvem-se
mutuamente, afinam-se. Mas como foi possível a amizade entre um ex-resistente e
um simpatizante do nazismo? A ponte que os unia remonta além: os
pré-socráticos, sobretudo Heráclito, o passado grego, esse instante fundamental
na aurora do pensamento: instante em que a filosofia nasce das entranhas da
poesia, como a luz nasceu da noite, expelida pelo Caos. A poesia é o parto da
luz entrevada. Nesse diálogo, o poeta e o filósofo puderam ser vizinhos e morar
na mesma casa de amplidão.
Generoso,
o poeta procura convencer o leitor de que esse espaço é real e extensivo a ele.
Convida-o a entrar, apesar da luz estranha que o cega, mas é assim que ele vê
melhor: ao “fechar soberanamente os olhos”. de modo a articular miragem, fúria
e mistério. Heidegger constrói sua casa na solidão da Floresta Negra. Char
também terá a sua floresta petrificada, mas erguida com os olhos, como no mito
de Anfion. Em cada um de seus poemas, a casa se eleva e o ser sai à porta, para
beliscar de leve, no céu escuro, o difícil pão das estrelas. Eis a contenda do
poeta. Ele não faz por menos. Tem como adversário o vazio entre as estrelas. O
poeta então apara as arestas de sua fúria, resistindo às angústias e aos
fracassos. Vai ao jardim e arranca sentido da terra. No alto e muito mais além,
flerta com a estrela selvagem, há muito foragida. Em sua jaula só resta a
pintura de uma luz, referente último que impede sua total desaparição. O poeta
perscruta a terra onde os ossos florescem revelando o paradoxo desta vida, de
seu sonho, de seu absurdo. É o momento em que ele se vê nas vizinhanças da
loucura e visualiza o fundo do abismo. Lá, os reveses da sorte misturam-se com
penhores arfantes. Mas nem por isso míngua sua alta aposta no triunfo da
beleza. Não há tesouro que se atinja facilmente na ponta do lápis. Nenhum alvo
instrui o atirador acerca do encontro perfeito com a seta. O acaso (o vento ou
sua ausência) certamente fará sua parte. O milagre do poema é que, de repente,
a beleza, ferida em seu âmago é vencida, surpreendendo o poeta (e o leitor) com
um beijo de felicidade nos olhos.
Palavras,
casas, ilhas, arquipélagos. Puxando pela etimologia, qual é o “arché”, o
princípio, destes “pélagos”? Qual o seu “mar principal”? Todos e nenhum. Ou melhor:
a fronteira entre um e outro. Este mar não seria, em Char, também um rio? O rio
de sua terra natal? De volta então ao Sorgue, por meio dessa ponte líquida
entre a poesia e a vida. Certamente o rio não cabe todo na jarra de união do
poema. E seus meandros só refletem do corpo o nu perdido que desenham na carne
fluida. Do alto do poema, diante do horizonte em que se vê projetado, o leitor
se rejubila perplexo, “com uma tranca no queixo e uma montanha no olhar”.
É a
solidão, o recife, as estrelas.
NOTAS
O presente texto,
revisto e modificado para esta edição, foi publicado originalmente como
prefácio à tradução do livro O nu perdido e outros poemas, de René Char,
em 1995, pela editora Iluminuras.
1.
Melo Neto, João Cabral de. “Museu de tudo”. In: O. C. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1995.
2. “La parole en archipel”. In: O. C. Paris: Gallimard,
Bibliothèque de la Pléiade, 1983.
3. “Fureur et mystère”. Op. cit.
4. “La parole en archipel”. Idem.
5. Idem.
6. Malraux, A. Les voix du silence. Paris: Gallimard, 1951.
7. “La parole en archipel”. Op. cit.
8. Idem.
9. “Complainte du lézard amoureux”, poema de Les matinaux. Op. cit.
10. Bacon, Roger. Lettre sur Les Prodiges. Paris: Echelle.
11. Balakian, Anna. “Se mesurer avec le vent”. In: Europe. Paris:
Europe/Messidor, 1988.
12. “Chants de la balandrane”. Op.
cit.
CONTADOR BORGES | Escritor e psicanalista é autor de diversas obras em gêneros distintos: poesia, ensaio, teatro, ficção. Seus livros mais recentes são: O fim da beleza, ensaio (2018), Jane Birkin no purgatório, teatro (2019), Amadores, poesia com desenhos de Francisco dos Santos (no prelo) e Sobre o êxtase, ensaio (no prelo), todos pela Lumme Editor.
JOE HESTER | (Austrália, 1920-1960). Foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encuentra entre os grandes artistas australianos do século passado.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07
Número 206 | abril de 2022
Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)
Tradução: Allan Vidigal
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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