domingo, 24 de abril de 2022

GUACIRA MARCONDES MACHADO LEITE | Traços surrealistas na obra de Raymond Queneau

 


Os textos que se voltam para a obra de Raymond Queneau (1903-1976) mencionam sempre sua rápida incursão pelo Surrealismo (1924-1929), do qual se teria desligado para colocar-se no que se poderia chamar a tradição do classicismo. Com vinte e um anos, ele começou a frequentar a Central Surrealista no final de 1924, o que foi interrompido para que prestasse o serviço militar, de 1925 a 1927. Dois anos depois ele deixou o grupo, como explicou, por motivos pessoais; no entanto, sempre apontou as diferenças estéticas e poéticas existentes entre ele e André Breton, chefe do movimento, como a concepção de literatura fundada na inspiração, à qual se oporia mais tarde, enquanto optava pela escrita como resultado de uma construção meditada. No entanto, haverá proximidades entre eles advindas da estética surrealista, tais como o gosto pelo sonho, pelo mito, pelo cinema e pelo espaço urbano, mais visivelmente (KATO, 2012).

Naquela que ele próprio chamou de sua fase pós-surrealista, o autor manifestou-se várias vezes fazendo declarações que foram consideradas um pouco como sua arte poética. Colocou-se contra a hegemonia da imagem, em torno da qual se realizou a revolução poética no século XX, lembrando que a história da poesia francesa não começa com os românticos, nem progride até Paul Éluard, passando por Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont (QUENEAU, 1938). Contesta, também, “[…] a equivalência que se estabelece entre inspiração, exploração do subconsciente e liberação, entre acaso, automatismo e liberdade […]”, afirmando que o poeta “não espera que a inspiração lhe caia do céu”, porque “[…] ele sabe caçar e pratica o incontestável provérbio Ajuda-te e o céu te ajudará […]” (QUENEAU, 1938). Finalmente, para não levar muito adiante esta argumentação, Queneau posicionou-se contra a concepção romântica de poeta, opondo-lhe o artista-artesão, sem por isso minimizar a função da arte. Mais ainda, ele denuncia a gratuidade desta última ao dizer:

 

É preciso manter a não-gratuidade da arte. Simplesmente, bem fazer é reduzir a arte ao jogo, o romance à partida de xadrez, o poema ao puzzle. Não basta dizer, nem dizer bem, é preciso que algo valha ser dito. Mas o que vale ser dito? A resposta não pode ser evitada: o que é útil. A arte, a poesia, a literatura é aquilo que exprime as realidades naturais (cósmicas, universais) e as realidades sociais (antropológicas, humanas) e o que transforma as realidades naturais e as realidades sociais. (QUENEAU, 1973).

 

Por mais que aqui se acrescentem argumentos, no entanto, não há como negar, quando se examina a obra de Queneau, a parte que lhe coube da herança surrealista. Nosso intuito é apontar aquilo que ele conservou de seu decisivo período de formação literária, dando-lhe, além disso, a continuidade esperada pelas próprias propostas surrealistas.

 É o caso do mito, o qual, próximo do sonho, é considerado pelos escritores do movimento, desde o início, como abertura em direção de um espaço primitivo e inocente, tendo em vista seu descontentamento pela sociedade de seu tempo. Além do desejo de quebrar o mundo em busca da essência e da natureza do homem, há nesses artistas intenção de reformar o mundo a partir dos mitos existentes e da criação de um mito novo, por meio da arte e da literatura. Em tese apresentada à Université de la Sorbonne Nouvelle, em 2012, intitulada Raymond Queneau et les mythologies, a pesquisadora Mikiko Kato (2012) penetra nesse território importante da obra do autor, que se interessa por todos os sentidos do termo, como ela verificou nesse estudo. A autora, como outros críticos da obra de Queneau, cita a influência científica que ele recebeu de Freud, Mauss, Hegel, no momento em que iniciava sua carreira literária, assimilando ideias sobre o mito, além de desenvolver aquela imaginação urbana dos demais surrealistas que se transformará, segundo Aragon, em uma mitologia moderna: Paris é uma cidade “mítica” porque sua imagem idealizada, e às vezes falsa, deriva de uma inspiração coletiva. Na tese de Kato, ela concretizará o seu pensamento sobre o mito na obra do autor lendo La Trilogie de la ville natale (Gueule de Pierre, Les temps mêlés e Saint Glinglin), ilustração fiel das ideias sobre o mito formadas na juventude do autor.

O texto de Mikiko Kato faz referências a críticos recentes, como Annette Tamuly (Le surrréalisme et le mythe, 2012), Michal Mrozowi em “Queneau, surréaliste malgré lui”, capítulo de Raymond Queneau /du surréalisme à la littérature potentielle, 1990 e Henri Godard, que incluiu uma rubrica “Queneau surréaliste malgré tout” em seu prefácio para as Oeuvres Complètes de Queneau na edição da Pléiade. Desses autores ela cita alguns aspectos relevantes para nossa abordagem, que lembram pontos comuns entre os surrealistas e Queneau, como o fato de salientar que o imaginário surrealista é urbano. Essa poética da cidade está bastante presente em Queneau, a rua e seus espetáculos como local de eleição: a Festa, o Casamento, o Banquete, o Cinema, são todos lugares do sonho coletivo que espanta a angústia da existência. Outro aspecto é a grande admiração por Guillaume Apollinaire, como se pode verificar no percurso de suas personagens Valentin e Zazie (KATO, 2012). Como não reconhecer em todos esses autores os questionadores, aventureiros do espírito e da letra, inovadores, “originais”, agitadores de nossos hábitos mentais e, além disso, com toda esta carga de humor ou de distância que libera o espírito das ideias feitas e das fórmulas prontas? (DEBON-TOURNADRE, 1981). Durante toda sua vida Queneau leu e releu os livros de Apollinaire em quem admirava o degustador de palavras, o erudito. Preocupado principalmente com o saber e os problemas da verdade, com o jogo da linguagem e os problemas da língua, Queneau partilha com Apollinaire este projeto fundamental do qual não podemos afastar os Surrealistas: descobrir uma nova língua capaz de ser o fundamento de uma nova verdade. Como naquele poeta, em suas obras pode-se encontrar, segundo Kato (2012), uma espécie de estupor do espaço quotidiano na cidade em seus passeios por Paris, demonstrado também por Aragon, que expõe uma nova concepção do mito: não mais a representação de um estado primitivo e inocente do homem, mas a escrita de mitos modernos, cuja função é a de abrir ao leitor seu sentido mítico atrofiado e, com isso, o acesso ao real, à sua revelação. “Trata-se de inventar uma relação nova do sujeito com o real; o mito pede a subjetividade como instrumento da revelação do real.” (PIÉGAY, 1996).

Aliás, seria importante lembrar inicialmente o fato de Queneau ter-se conservado participante de uma revolução linguística que, nascendo no século XIX, atravessa o século XX em constante atividade e fundamenta-se no princípio de que a língua oferece o modelo fundamental que pode explicar o mundo. Ora, são os movimentos de vanguarda do início do último século e, mais particularmente, o surrealismo que deram o impulso decisivo a essa revolução.


Ao longo dos séculos XIX e XX, a Europa assiste a várias versões da revolução linguística na qual a língua, vista até então por pensadores e artistas como veículo natural, é repentinamente encarada com estranheza, como um sistema de signos convencional, artificial. Ferdinand Saussure foi um dos responsáveis por essa tendência com sua teoria sobre o signo linguístico de duas faces: signo e língua são frutos de uma convenção social. Há consenso, no início do século XX, sobre o esvaziamento da linguagem, sobre o fato de a língua mascarar a realidade – chamando contra si a revolta manifesta na poesia europeia e levando consequentemente à revolta contra a própria realidade.

Os movimentos de vanguarda que não surgiram repentinamente e sem antecedentes vão dar destaque a essa revolução, que se constitui fundamentalmente de jogo que se joga com a língua em todos os seus níveis, o das palavras, dos fonemas, das imagens; de experiências tentadas com letras, sílabas e palavras inteiras nos planos acústico e visual; de ironia, de duplo sentido, de desejo de tornar-se uma linguagem cifrada. Sabemos bem de que maneira o surrealismo desempenhará papel decisivo nesta relação lúdica com a língua: acreditando que uma arte subverte muito mais por suas formas do que pelas ideias veiculadas, o Surrealismo apresenta-se como uma precipitação impressionante de formas novas. No Segundo Manifesto, A. Breton lembra que o problema levantado pelo movimento “é o da expressão humana sob todas suas formas.” Ora, expressão significando inicialmente linguagem, não surpreende “[…] ver o movimento surrealista situar-se de início quase que somente no plano da linguagem.”. É aí que ele vê refletidos os modos de pensar, o sistema de valores e a organização da sociedade: ora, questionar a linguagem, criar novas relações entre palavras significa sacudir as estruturas sociais, sugerir novas relações entre as coisas no mundo. É o que levará Breton a indagar, em Point du jour, “[das palavras] fizemos até aqui um mau uso. O que impede de embaralhar a ordem das palavras, de atestar, dessa maneira, contra a existência aparente das coisas?” Daí a tentativa de liberá-las, que Breton descreve retrospectivamente, em Les Mots sans rides:

 

[…] considerar primeiramente a palavra em si; estudar tão de perto quanto possível as relações das palavras umas sobre as outras. Somente a este preço se podia esperar dar à linguagem seu pleno destino, o que, para alguns entre os quais eu me achava, deveria fazer o conhecimento dar um grande passo, exaltar igualmente a vida.

 

Breton sugere “uma verdadeira química” que analise e explore as diferentes propriedades das palavras. Após Rimbaud, que ao atribuir cor às vogais “desviou a palavra de seu dever de significar”, após Le Coup de dés e os Caligramas de Apollinaire, as palavras “[…] tentam o pincel e não tardaremos a nos preocupar com seu lado arquitetural.” Essa “química” dará novas relações do real, novas significações às palavras, eliminando-lhes, como diz Breton, toda inocência. Em síntese, ao longo de sua experiência, o Surrealismo proclama o primado da linguagem como meio de comunicação, de expressão e de ação. Se a linguagem não traísse, seria meio de conhecimento e de compreensão entre os homens – daí a necessidade de restabelecer esta função de conhecimento, de mudar as leis que presidem à associação das palavras e das quais o homem tem feito mau uso.

Essas propostas, que o Surrealismo partilha com outros movimentos de vanguarda, negam a arte para afirmar a importância da vida. Dadaísmo e Surrealismo desejam ser movimentos capazes de modificar o mundo, programas para alterar o curso da vida. A arte identifica-se, para tanto, com a técnica, a profissão. É ação que se manifesta pela recusa da condição humana e da condição social, revolta contra uma sociedade feita de interdições e de injustiças, de cujas ruínas o Surrealismo quer ver nascer a liberdade, a salvação do homem, graças ao sonho e ao desejo. Em vez de uma simples mudança da arte, uma transformação completa da sociedade, em busca do novo, do surpreendente, ou seja, o esboço do perfil do Novo Homem.

Um de seus instrumentos eficazes, e polêmicos, nesse sentido, foi o “humor negro”, um “discurso sobre o pouco de realidade” da existência e a impossível adaptação do homem às condições dessa mesma existência. O humor negro desarticula a coerência do real destruindo sua representação. Seguindo Claude Abastado (1971), é possível caracterizá-lo de maneira bastante abrangente:

 

[…] ele faz jorrar as contradições e as distorções lógicas, as causalidades crônicas, toda racionalidade do absurdo; distende até a inexistência os laços do homem com aquilo que o cerca; opera uma inversão dos valores e um desregramento sistemático das significações.

 

Em L’homme révolté (1971), A. Camus resume assim o movimento: “Revolta absoluta, insubmissão total, sabotagem em regra, humor e culto do absurdo, o surrealismo, em sua intenção primeira, define-se como o processo de tudo, sempre a recomeçar.”

Em um texto importante de seu Panorama de la Nouvelle Littérature Française, G. Picon (1960), nos anos 1950, faz esta reflexão oportuna que situa o Surrealismo em seu espaço:

 

O que conservamos, o que rejeitamos do Surrealismo? Em uma larga medida, ele é ainda e sempre nossa poesia: a totalidade da poesia moderna tomando consciência de si própria e indo até o fim. Toda poesia, na atualidade, quer ser algo mais do que poema, fabricação rítmica, jogo inofensivo de imagens e de palavras: confusão ardente com a vida. E, do mesmo modo, o Surrealismo exprimiu a ambição comum da leitura atual – (e não apenas da poesia) de ser mais do que literatura: expressão de uma atitude de vida, transformação da vida […] Ora, quase todas as obras eminentes, hoje, são governadas por uma espécie de impaciência em relação à linguagem: mensageiras, mais do que “linguageiras”, renunciariam a si mesmas se não tivessem a convicção de transmitir uma decisiva revelação. Do Surrealismo, conservamos ainda outra coisa: a atitude acusadora em relação ao mundo e à própria existência. Para a maioria de nós, a realidade concerne antes de tudo esta interrogação essencial: posso aceitá-la? Toda a literatura da angústia, do problema existencial prolonga, no fundo, a revolta surrealista. E pode-se dizer que, de Breton a Sartre, a literatura contemporânea permanece fiel a uma espécie de crítica metafísica. (PICON, 1960).

 


A obra de Queneau realiza, e não raro supera, todas essas premissas surrealistas concernentes à linguagem. Nela, a linguagem nasce da linguagem, pois, diz Clancier (1973), Queneau “é de natureza mais surrealista do que se acredita”. Como esses vanguardistas, o autor se defende contra a consciência do pouco de realidade desta vida, contra a consciência de seus limites usando apenas a linguagem. Aliás, a arma de que esta se serve é a mesma, obedece ao mesmo humor, emprega os mesmos temas, parte das mesmas fontes e defende as mesmas causas na poesia e no romance. O humor permite-lhe jogar com a tristeza, com as metáforas e outros exercícios das palavras:

 

Un jour, je me trouvai sur la plate-forme d’un autobus violet.Il y avait là un jeune homme assez ridicule: cou indigo, cordelière au chapeau. Tout d’un coup, il proteste contre un monsieur bleu. Il lui reproche notamment, d’une voix verte, de le bousculer chaque fois qu’il descend des gens. (L’arc-en-ciel). (QUENEAU, 1995).

 

Trata-se de um humor a que deu um tom pessoal, aproximando comicamente os seres, as situações, palavras, um humor ao mesmo tempo lúcido e terno, no qual não cabe o trivial, e o anacronismo ocupa um amplo lugar (WORMSER-MIGOT, 1971).

Ninguém mais do que ele, diz ainda Clancier (1973), “[…] desconfia das ilusões da linguagem, ninguém mais do que ele a vigia com um olhar suspeitoso de lirismo.” Nele, poesia e prosa têm origem na mesma atividade criadora, iluminam-se de reflexos recíprocos, segundo expressão de Mallarmé em “Crise de vers”. Nenhum grande autor francês apresenta semelhante exemplo de criação contínua nos dois gêneros. O romance para Queneau deve ser um poema de forma fixa, com fortes imposições estruturais e os efeitos de reiteração próprios a este gênero, o que o aproxima das narrativas poéticas surrealistas. Vê-se porque é possível dizer que a linguagem é, para Queneau, mais do que um meio de expressão: é a realidade essencial da obra. Mas ele não a aceita tal como lhe é dada; como os surrealistas, toma com ela todas as liberdades, tornando-a objeto de uma criação permanente, jamais esgotada. E nada exemplifica melhor essa arte de prestidigitador de palavras do que a breve história contada noventa e nove vezes, de noventa e nove maneiras diferentes em Exercices de style (QUENEAU, 1995). É que, como bem coloca Constantin Touloudis (1989),

 

Queneau pertence à geração que sentiu uma atração irresistível por Dada, pelo Surrealismo e o Grande Jogo. Na mentalidade dessa geração, jogo era a palavra código para rebelião: a mensagem que ela se esforçou desesperadamente para comunicar foi a recusa de ser sério em relação a uma ordem social e a um conjunto de valores que supunha desacreditados pela história. […] Seria perfeitamente legítimo ver a disposição lúdica de Queneau como reflexo do humor que inspirou jogos como o Cadavre esquis, ou os “provérbios surrealistas”, ou as histrionices juvenis do grupo que iria se tornar “Le Grand Jeu”. Sua participação no Colégio de Patafísica é evidência adicional de sua afinidade permanente com essas esferas.

 

Nesse jogo constante com a linguagem não se verá nem sua aceitação, nem sua destruição, mas uma tentativa de se abrir caminho a seu rejuvenescimento (PICON, 1960). As estratégias textuais e os mecanismos retóricos caracterizam-se, como, aliás, os do surrealismo, por práticas eminentemente lúdicas, muitas das quais Queneau já havia utilizado em seus textos do período surrealista. Touloudis (1989) enumera algumas delas: cunhagem parodística de palavra, trocadilhos subversivos, argumentos inconclusivos, lógica circular, repetição nos Exercices de style, como, por exemplo:

 

Je montai dans un autobus plein de contribuables qui donnaient des sous à un contribuable qui avait sur son ventre de contribuable une petite boîte qui contribuait à permettre aux autres contribuables de continuer leur trajet de contribuables […] (QUENEAU, 1995).

 

Cela se passait dans un de ces immondes autobus qui s’emplissent de populus précisémente aux heures où je dois consentir à les utiliser. (QUENEAU, 1995).

 

A vida se manterá à distância graças ao humor, o qual, lembra Clancier (1973), será, com frequência, o humor da linguagem, suscitando desordem ao exprimir a situação:

 

Je mon dans un aut plein de voya. Je remar un jeu hom dont le cou é sembla à ce de la gira et qui por un cha a un ga três […] (QUENEAU, 1995).

 

Jour un midi vers, la sur arrière plate-forme un d’de autobus ligne la j’S un aperçus jeune au home trop cou qui long un portait entouré chapeau un d’tressé gallon […] (QUENEAU, 1995).

 


Mas o insólito também revela o humor: de cenas romanescas nas quais Queneau emprega os métodos de observação e o tom do etnólogo para descrever a realidade mais cotidiana. E é, também, no sentido de inovar, tanto nos poemas como nas obras em prosa, que se vê o autor empregar o francês falado da primeira metade do século XX, com o vocabulário e a sintaxe do homem comum, uma linguagem falada escrita, com a ortografia humorística e fonética. É o caso desse segmento de canção que tem duas versões (BERSANI et al., 1974):

 

Yen a qui mégrice su la tère // Y en a qui maigricent sulla terre

Du ventre du coccyx ou des genoux// Du ventre du coq-six ou des jnous Yen a qui mégrice l’caractère//Y en a qui maigricent le caractère

Yen a qui mégrice pa dutou// Y en a qui maigricent pas du tout

 

Na fase surrealista de Queneau, a influência freudiana da retórica da interpretação dos sonhos pode ser notada em seus escritos. Ora, a ênfase que aí se dá aos sentidos múltiplos, que podem ser “condensados em um único símbolo ou significante”, é um argumento possível de ser ilustrado por meio de toda sua escrita criativa. Nela há visivelmente empenho do autor no sentido de impedir que o signo linguístico se reduza a uma essência unívoca.

Parece-nos que é possível ver, ainda, na língua dos poemas e dos romances de Queneau, oriunda do francês falado da primeira metade do século XX, com o vocabulário e a sintaxe próprios do homem comum, aquela conquista que previu Breton ao falar da palavra preocupada agora com seu lado arquitetural. O resultado é essa linguagem falada escrita, com sua ortografia tão humorística quanto fonética, como já se apontou, fazendo nascer o cômico dela própria, visto que não temos justamente o hábito de ver escrita a linguagem falada popular.

Sem dúvida, a obra de Raymond Queneau vai muito além desses vestígios que podem ser visualizados aqui e ali, se não na totalidade, em poemas e romances que escreveu. Mas, o que nos inspirou a focalizar essa presença indiscutível do surrealismo em sua produção é o fato de ele ter aparentemente pretendido buscar novos rumos literários, quando deixou o movimento, mas, apesar de sua intenção, não ter alcançado anular sua herança surrealista.

 

NOTA

Em todas as citações, os grifos e a tradução são da Autora do ensaio.

 

Referências

ABASTADO, C. Introduction au surréalisme. Paris: Bordas, 1971.

APOLLINAIRE, G. Alcools. Suivis de Caligrammes. Paris : Pocket, 2018.

BERSANI, J. et al. La littérature en France depuis 1945. Paris: Bordas, 1974.

BRETON, A. Point du jour: introduction au discours sur le peu de réalité. In: BRETON, A. Oeuvres complètes. t.II. Edition établie par Marguerite Bonnet avec, pour ce volume, la collaboration de Philippe Bernier, Etienne-Alain Hubert et Jose Pierre. Paris: Gallimard, 1992 (Bibliothèque de la Pleiade, 194).

___. Les mots sans rides. In: BRETON, A. Oeuvres complètes. t.I. Edition établie par Marguerite Bonnet avec, pour ce volume, la collaboration de Philippe Bernier, Etienne-Alain Hubert et Jose Pierre. Paris: Gallimard, 1988 (Bibliothèque de la Pleiade, 346).

___. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 1966.

CAMUS, A. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1971.

CLANCIER, G.-E. Unité poétique et méthodique de l’oeuvre de Raymond Queneau. In: CLANCIER, G.-E. La poésie et ses environs. Paris: Gallimard, 1973.

DEBON-TOURNADRE, C. Présence d’Apollinaire dans l’oeuvre de Queneau. Revue d’histoire littéraire de la France, Paris, v.81, n.11, 1981.

KATO, M. Raymond Queneau et les mythologies. 2012. 402f. Thèse (Doctorat en Langue, littérature et civilisation françaises) – Université de Sorbonne Nouvelle – Paris III, Paris, 2012.

MALLARMÉ, S. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1998. (Bibliothèque de la Pléiade, 65).

MROZOWCKI, M. Queneau, surréaliste malgré lui. In: MROZOWCKI, M. Raymond Queneau: du surrréalisme à la littérature potentielle. Uniwersytet Slaski, 1990.

PICON, G. Panorama de la nouvelle littérature française. Paris: Gallimard, 1960.

PIÉGAY, N. Le “sens mythique” dans Le Paysan de Paris d’Aragon. In: CHÉNIEUX-GENDRON, J.; VADÉ, Y. (Ed.). Pensée mythique et surréalisme. Paris: Lachenal&Ritter, 1996.

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___. Qu’est-ce que l’art? In: QUENEAU, R. Le voyage en Grèce. Paris: Gallimard, 1973.

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TOULOUDIS, C. The impulse for the ludic in the poetics of Raymond Queneau. Twentieth Century Literature, Hempstead, v.35, n.2, Summer 1989.

WORMSER-MIGOT, O. Raymond Queneau. In: MAJAULT, J. Littérature de notre temps. Paris: Castermann, 1971.  

 


GUACIRA MARCONDES MACHADO LEITE | Doutora em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo (1991). Professora Livre Docente pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (a partir de 2000). Professora de Graduação (1971-2014) da Área de Língua e Literatura Francesa e de Pós-Graduação (1990-até hoje) em Estudos Literários da FCL da Unesp de Araraquara. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas Estrangeiras Modernas, Literaturas Vernáculas e Teoria Literária. Orienta Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado sobre poesia, narrativa, tradução. Fundou (1990) e é Coordenadora da Revista Lettres Françaises (Unesp/Araraquara). Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq – “O Simbolismo: antecedentes e repercussões”. E-mail: guacira.marcondes@unesp.br.

 

 


JULIA SOBOLEVA | Nascida na Letônia, 1990, é uma artista de mídia mista baseada no Reino Unido. Seus processos envolvem pintura e colagem em imagens fotográficas encontradas, além de performance e vídeo. Nascida e criada em uma era pós-soviética e não sendo capaz de encontrar seu próprio lugar contra o passado complicado de sua nação, Julia explora as noções de loucura e realidade, família, tabu e trauma transgeracional em seu trabalho. Ela obteve um mestrado em ilustração na Manchester School of Art e passou a trabalhar como educadora e ilustradora freelance. Entre suas mais recentes exposições, destacam-se “Einblick 6: Julia Soboleva” Hamburgo, 2021), “I Have Found the Light in the Darkness” (Itália, 2021), “Danse” (França, 2021), “Please Don’t Mind Me While I Ugly Cry” (Grécia, 2022), e “The Rogues Gallery” (on line, 2022).

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 08

Número 207 | abril de 2022

Artista convidada: Julia Soboleva (Letônia, 1990)

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