domingo, 24 de abril de 2022

MÁRCIO CATUNDA | A vida tempestuosa de Philippe Soupault

 


Philippe Soupault nasceu em Chaville, Seine-et-Oise, no dia 2 de agosto de 1897, filho do célebre médico Maurice Soupault e da Sra. Cécile Dancongnée. Jamais esqueceu Philippe do derradeiro encontro, ainda criança, com seu pai, o qual lhe falou de suas angústias, como se fala a um adulto. A vida do pequeno mudaria essencialmente, quando, em 1904, morre-lhe o pai e ele passa a estudar no colégio religioso Fénelon, à rue de Naples, 47, onde se sentia coagido pela estrita vigilância dos sacerdotes.

De 1911 a 1914, Soupault viajou à Alemanha e à Inglaterra. Em Caboug, na Normandia, em 1913, conheceu Marcel Proust. Voltou à França e se matriculou no lycée Condorcet.

Em 1916, recrutado pelo Exército, adoeceu, ao servir de cobaia para uma vacina contra a febre tifoide. Seu organismo jovem conseguiu vencer a grave afecção e, após alguns dias de hospitalização em Creil, ele volta a Paris. A Botânica, ciência que tanto o encantava, não prevaleceria sobre sua vocação literária. O Direito Marítimo, que estudou sistematicamente, lhe possibilitaria, contudo, arranjar emprego no “Commissariat aux Essences”, entidade responsável pelo abastecimento de combustíveis às Forças Armadas.

O ano de 1917 foi determinante para a definição de sua vocação de escritor. Ele mostra a Apollinaire o poema Départ e o autor de Alcools o publica na revista Sic. Por meio deste benfeitor, Soupault conhece Reverdy, Cendrars, Max Jacob e André Breton. Com Breton, estabeleceu o intercâmbio que revolucionou a arte poética do século XX. Soupault teve a primazia de revelar a seu parceiro a obra descomunal de Lautréamont, que influenciará determinantemente o movimento literário que fundarão. Por intermédio de Breton, conheceu Aragon e constituiu, com eles, o trio primevo do surrealismo, que Valéry apelidará de “les trois mosquetaires”. Também, no mesmo ano, Soupault publicou seu primeiro livro, Aquarium, que recebeu resenha favorável de Pierre Reverdy, na revista Nord-Sud.

Com recursos financeiros de sua herança, Soupault financia, em 1919, a revista Littérature, editada em parceria com Breton e Aragon. Os três obstinados poetas selecionavam os poemas recebidos e os editavam com ilustrações de Max Ernst, De Chirico e outros grandes artistas visuais. O primeiro número contou com o concurso, nada menos que de Apollinaire, Gide, Valéry, Fargue, Cendrars, Reverdy e Paulhan. Cocteau insistiu para ser publicado, no entanto os editores o desprezaram sistematicamente.

Soupault hospedou Breton em seu apartamento na île de Saint-Louis, no quai de Bourbon, 41, no verão de 1920, tempo em que Breton estava namorando a escritora Simone Kahn. Época também em que os três poetas trabalhavam na preparação da primeira edição da revista Litterature. A amizade se fortaleceu, quando, além de produzir a revista, Soupault e Breton escreveram, em quinze dias, o livro Les champs magnétiques, no hôtel des Grands Hommes, em frente ao Panthéon, onde morava Breton. O livro, composto de um poema escrito a quatro mãos, tornou-se um ícone do surrealismo. Teve trechos publicados, em primeira edição, na revista Littérature. Da verve de Soupault é a abertura desse longo e pioneiro poema:

 

Prisonniers des gouttes d’eau, nous ne sommes que des animaux perpétuels. Nous courons dans les villes sans bruits et les affiches enchantées ne nous touchent plus. À quoi bon ces grands enthousiasmes fragiles, ces sauts de joie desséchés?

 

Para aqueles jovens talentosos e inconformados, urgia refazer o mundo, porquanto a geração precedente havia fracassado, arruinando a vida em quatro anos de guerra. Soupault confessa que sentia um desgosto profundo, ao constatar que milhares de seres humanos sofreram graves ferimentos que os reduziram à invalidez. Era motivo de indignação o fato de terem perecido 600 mil pessoas em Verdun e, não obstante, escritores como Barrès, Bourget e Bazin lançarem proclamas demagógicos, com elogios à invenção da baioneta e ao dever de morrer pela pátria.

No contexto da colaboração entre dadaístas e surrealistas, sua produção só poderia refletir a atitude iconoclasta e anarquista em vigor. Nesse sentido, Soupault publicou uma série de Epitáfios para seus amigos, evocando-lhes a vida e a morte, à maneira das inscrições funerárias. Reproduzo aqui os que se referem a Aragon, Éluard e Breton. De fato, sem saber, ele previu que seria o mais longevo de todos. Dos três poemas, o que se reporta a Breton expressa um sentimento mais autêntico de estima e admiração:

 

LOUIS ARAGON

 

Tes petites amies font une ronde

Elles t’ont tressé des couronnes

Avec tes petits mensonges

J’ai t’ai aporté du papier

Et une très bonne plume

Tu feras des poèmes pendant l’Éternité

Ton ange gardien te console

Il noue ta cravatte lavallière

et t’apprend à sourire

Tu m’as déjà oublié

Dieu est beaucoup plus beau que moi

 

PAUL ÉLUARD

 

Emporte là-haut ta canne et tes gants

tiens-toi droit

les yeux fermés

les nuages de couton sont loin

et tu es parti sans me dire adieu

Il pleut

Il pleut

Il pleut

 

ANDRÉ BRETON

 

J’ai bien aperçu ton regard

Quand je t’ai défendu je t’ai fermé les yeux

Tu m’avais défendu d’être triste

Et j’ai quand même beaucoup pleuré

Tu ne me diras plus

tout de même tout de même

Les anges sont venus près de ton lit

Mais ils n’ont rien dit

C’est beau la mort

Comme tu dois rire tout seul

Maintenant qu’on ne te voit plus

ta canne est dans un coin

Il y a beaucoup de gens qui ont apporté des fleurs

On a même prononcé des discours

Je n’ai rien dit

J’ai pensé à toi

 

Soupault viajou a Lisboa em 1920, onde conheceu Fernando Pessoa, que lhe deu a impressão de ser um homem torturado pela tristeza. O maior bardo lusitano do século XX só se alegrou quando o visitante se mostrou apreciador do vinho branco do Porto.

No dia 13 de maio de 1921, Soupault e Aragon participaram como “advogados de defesa”, do sarcástico julgamento de Maurice Barrès, que Breton montou na Salle des Sociétés Savantes, à rue Danton, nº 8. Os jovens poetas debocharam do autor de Le culte du moi, por eles considerado burguês e patrioteiro. Com uma pantomima irreverente, representaram Barrès na fantasia de um boneco e o “tribunal” de poetas o condenou, por crime contra a segurança do espírito, aplicando ao réu a sentença de “20 anos de trabalhos forçados”.

Caminho pelo pátio do Louvre, até a Ponte do Carrousel. Avisto a cúpula de Notre-Dame, com suas antenas que me chamam ao Quartier Latin. O Sena recebe os espasmos de luz do sol da tarde. Os barcos passam, apinhados de gente. Da Galerie des Antiques, pelo quai François Mitterrand, atravesso a Pont des Arts. Abre-se em perspectiva o encanto visionário da Île de la Cité, no vértice de um triângulo atravessado pela Pont Neuf.

 Os livreiros expõem seus tesouros no parapeito das muretas que emolduram o rio. Cruzo os cimentos e os candelabros dos dois trechos da ponte monumental, em cujo centro está Henri IV, talhado em bronze. De pronto, a place Saint-Michel ostenta o altar de pedras do anjo guerreiro.

Na seguinte esquina, onde o boulevard Saint-Michel se encontra com o boulevard Saint-Germain, a carcaça do mosteiro de Cluny, com linhas horizontais escarlates, protegida por uma grade de ferro, expõe os tijolos de sua antiguidade. Ao lado dessa relíquia, vejo a graça natural de um jardim silvestre, onde existe até a benevolência de um pequeno banheiro público. Cem passos adiante, na rue des Écoles, a estátua de Montaigne, de roupão e sandálias unissex, aparece sobre um bloco de mármore em que se lê o apanágio do clássico pensador a seu torrão natal: “Paris a mon coeur dès mon enfance. Je ne suis français que par cette grande cité, grande surtout et incomparable en varieté. La gloire de la France et l’un des plus nobles ornements du monde”.

Desponta, à direita, a vigorosa estampa do Panthéon, na ladeira de Sainte-Geneviève. Derivo pela rue des Bernardins até a Pont de l'Archevêché. Paris se desdobra em pontes, encantando-me com seus prodígios de arte: a beleza das edificações, o curso fluente do Sena, decorado de embarcações semoventes, e o horizonte aberto, até a Île Saint-Louis.

Contemplo a garbosa fachada do Hotel de Ville, as cúpulas e torres à meia-luz do crepúsculo; a tour Saint-Jacques, como um farol de pedras.


Pont Marie é o portal da sedutora Île Saint-Louis, onde moraram Baudelaire, Carco e Soupault. Passo ao largo da feira dos bouquinistes, que vai beirando o rio. As edições se vendem ali pela terça parte do preço das livrarias de luxo e é difícil resistir à tentação de comprar algum livro. Já tenho as malas repletas, mas acrescento sempre alguma aquisição à minha biblioteca ambulante.

Vou bordeando as águas que fluem com os barcos, no enlevo que as árvores cingem de ecológica visão clorofilada. Os elegantes frontispícios dos prédios inspiram recordações de Baudelaire, no quai d’Anjou e de Francis Carco, no quai de Béthune. No dia chuvoso, o spleen de hoje não tem o sentido da palavra ennui.

Faço o contorno da ilha, no sentido antihorário: o quai d’Anjou se transforma em quai de Bourbon, que se metamorfoseia em quai d’Orléans, que, por sua vez, muda-se em quai de Béthune.

Na altura da ponte Saint-Louis, onde os caminhos da ilha se espalmam em leque, vejo, de um lado, o quai d’Orléans; do outro, o quai de Bourbon. Vou, por esta extremidade, redescobrindo um refúgio de ócio e de silêncio. Na curva do quai de Bourbon, um recanto pitoresco: a place Louis Aragon, com estes versos gravados numa placa: “Connaissez-vous l’île / au coeur de la ville / où tout est tranquille éternellement”. Vale a pena fazer ali uma parada estratégica para contemplar as grades dos balcões dos edifícios de janelas retangulares e os muros por onde corre o Sena como uma piscina de água verde.

Num único trajeto, andarilhando pelo IV arrondissement, às margens do rio de Paris, vou ao encontro dos antigos endereços de três luminares da poesia francesa: O número 41 do quai de Bourbon, onde morou Philippe Soupault, de 1919 a 1922. O número 18, do quai de Béthune, onde morou Francis Carco de 1949 a 1953. E, por fim, os domicílios de Baudelaire, a saber: o número 6, da estreita e pequena rue Le Regrattier, de portais antigos (Le Regrattier foi o cidadão que urbanizou a Île Saint-Louis), e o 17, do quai d’Anjou, o elegante hotel Pimodan, sede do clube dos Hashissins.

A Pont Louis-Philippe e a hora profunda do anoitecer conspiram para me seduzir os sentidos.
A noite chega, com sombra e quietude. Pontes iluminadas. O Homem e a Natureza se reconciliam nestes âmbitos de sereno vislumbre. Cheguei, certamente, ao lugar mais espiritualizado de Paris. Um banco acolhedor me permite contemplar longamente as pontes iluminadas.

Pássaros dialogam, louvando a Lua. Noite encantada. Quase na esquina, em frente à pracinha que tem o nome de Aragon, sentei-me num dos bancos e apreciei o panorama ribeirinho, com as cúpulas monumentais em frente. Nessa esquina, está o número 41 do quai de Bourbon, onde morou Philippe Soupault. Local privilegiado, com sua vista maravilhosa. Senti falta de uma placa de registro histórico da morada do poeta.

Como é grato cruzar as pontes sobre o Sena e contemplar a fluidez das águas, entre as paredes claras de janelas brancas, coroadas de pináculos, na paisagem urbana de simetrias cativantes! Os barcos desfilam, desenhando caminhos na superfície do rio. Imagino Soupault, de sua janela contemplando, como eu agora, a Lua que se deixa ver, em plena tarde, com um corpo de nuvem. O Sena discorre, emparedado pelos engenheiros, que o transformaram numa piscina de água corrente.

No afã de imergir na atmosfera do sonho e do inconsciente para produzir dissonâncias criativas, Soupault desfrutou do privilégio de conviver e aprender com seus parceiros de experiências verbais e psicodélicas. No exercício daquela revolucionária expressão, em atitude iconoclasta, Benjamin Péret, por exemplo, era perito em inventar obscenidades, e Desnos fomentava o sono criativo que engendrava inusitados versos. Com efeito, no livro Nouvelles Hébrides, Robert Desnos concebe uma pitoresca cena, decerto sonhada em um de seus rituais oníricos, em que Soupault se encontra no meio da rua, tocando um violão, enquanto os automobilistas passam, jogando flores e confetes. Em seguida, Soupault varre as oferendas e o céu se cobre de belos aeroplanos.

O paroxismo daquelas experiências psicoliterárias tornava-se perigoso. O frenesi e a vertigem da imaginação geravam uma espécie de desespero que poderia conduzir ao suicídio, tal como aconteceria, mais tarde, com René Crével, mártir do autossacrifício à causa da poesia.

Soupault sentiu-se sempre próximo de Tristan Tzara. Seu vínculo com o mentor do dadaísmo seria permanente, mesmo depois da afronta que ele, Breton e Aragon lhe fizeram, interrompendo um dos espetáculos de Tzara em meio a gritos, tomates e ovos lançados sobre os artistas que figuravam no palco. Soupault se penitenciou daqueles atos de irreverência juvenil e percebeu a tempo que o escândalo, embora fosse uma estratégia necessária, não deveria acarretar a agonia da amizade.

Soupault casou-se em 1919 com a bailarina Mic Verneuil, aliás Suzanne Pillard, de quem se divorciou em 1923 para casar-se com Marie-Louise, também dançarina e aluna da esposa anterior. Em 1922, veio a lume Westwego, onde consta longo poema em que Paris é o foco da inspiração. Esse caudaloso texto, de ritmo espontâneo e fluente prenuncia a Ode à Paris, gêmeo de Westwego, escrito, não obstante, mais de 20 anos depois.

Em Westwego, do qual transcrevo excertos, Paris é celebrada de maneira hedonista, nas itinerâncias noturnas de um jovem poeta sensível e inquieto:

 

C’est mon vieux Paris

Mais ce soir enfin, je suis dans cette ville

Tes monuments sont les bornes kilométriques

de ma fatigue

Je reconnais tes nuages

qui s’accrochent aux cheminées

Pour me dire adieux ou bonjour

La nuit est phosphorescent

Je t’aime comme on aime un elephant

Tous tes cris sont pour moi des cris de tendresse

 (…..)

Je descends lentement le boulevard Saint-Michel

Je ne pense à rien

Je compte les réverbère que je connais si bien

en m’approchant de la Seine

 Près des Ponts de Paris

et je parle tout haut

Toutes les rues sont des affluents

quand on aime ce fleuve où coule tout le sang de Paris

et qui est sale comme une sale putain

mais qui est aussi la Seine simplement

à qui on parle comme à sa maman

J’étais tout près d’elle

qui s’en allait sans regret et sans bruit

Son souvenir éteint était une maladie

Je m’appuyais sur le parapet

Comme on s’agenouille por prier…

 (….)

Les nuits de Paris ont ces odeurs fortes

Qui laissent les regrets et les maux de tête

Et je savais qu’il était tard

Et que la nuit

La nuit de Paris allait finir

Comme les jours de fêtes

Tout était bien rangé

Et personne ne disait mot…

 

Em 1923, aparece o romance Le bon apôtre. De 1923 a 1930, o poeta se dedicará a distintas atividades, sempre publicando textos em jornais. Também, dirige as edições Kra e a Revue Européenne. É possível que esses gestos de autonomia por parte de Soupault tenham despertado ciumeira em Breton, o qual, se arvorando de líder, dera início ao patrulhamento da conduta de seus pares. Breton criticou o “roman bourgeois” de seu colega com quatro páginas em branco na revista Littérature, então editada somente por Breton e Aragon.

No período em que Soupault se dedicou às Éditions du Sagittaire, onde aparece o Manifeste du Surréalisme de 1924, ele estabeleceu amizade com o poeta norte-americano William Carlos Williams. Uma de suas diversões prediletas era assistir aos filmes de Charlie Chaplin, que considerava um grande poeta, no sentido mais puro e mais forte do termo. A respeito desse grande humorista e cineasta, ele escreverá, alguns anos depois, o ensaio Charlot.

Conquanto tivesse assinado o Manifesto Surrealista de 1924, Soupault não queria participar de um grupo fechado que mantinha reuniões regulares. Tampouco lhe agradavam as associações político-partidárias, embora ele reiterasse sempre sua aversão ao fascismo. Em 1926, quando o grupo dos surrealistas se aproxima do Partido Comunista, Aragon e Breton organizam, no reduto da rue du Château, um tribunal para julgá-lo e condená-lo. Breton abriu a sessão e Pierre Naville fez o discurso da acusação, tachando-o de contrarrevolucionário, fumador de cigarros ingleses e colaboracionista da sociedade burguesa e do fascismo, porque haviam publicado poemas de Soupault na Itália. Os julgadores alegaram a diminuta proatividade do réu nas ações coletivas do grupo e sua recusa a filiar-se ao Partido Comunista.

Soupault respondeu a esse ânimo persecutório com o argumento de que aquela dramatização ridícula não tinha cabimento, pois que o surrealismo não era uma igreja, menos uma maçonaria, tampouco uma associação de malfeitores, mas um estado de espírito. Fez constar que Breton gostava de excomungar os colegas e que, com Aragon, fazia a apologia de Robespierre, para julgá-lo por meio de regras que o próprio surrealismo deveria combater.


Para Soupault, o surrealismo deveria estar mais associado ao amor e ao humor do que às causas políticas. Daí por que mostrava-se, sempre, um poeta apaixonado. Naquele meio literário que se tornara pesado e sufocante, sua paixão pelas viagens recrudesceria.

 É por demais significativo o poema que Éluard lhe dedica no livro Capitale de la douleur, de 1926, em que mostra empatia com a extrema sensibilidade que caracterizava Soupault. O título, Entre peu d’autres, já diz da seletividade com que seu autor o admirava:

 

Ses yeux ont tout un ciel de larmes/Ni ses paupières, ni ses mains/ Ne sont une nuit suffisante/ pour que sa douleur s’y cache./ Voir le silence, lui donner un baiser sur les lèvres/et les toits de la ville seront de beaux oiseaux mélancoliques, aux ailes décharnées./Le coeur de l’homme ne rougira plus,/ il ne se perdra plus,/ je reviens de moi-même, de toute éternité.

 

Éluard augura àquele que sabe ser “dans la plaine le pilote du vent” a ventura de ver e beijar o silêncio, quando os telhados da cidade forem belos pássaros melancólicos, de asas descarnadas. Declara, portanto, em sua infalível mensagem de solidariedade, que o coração de seu amigo está em sintonia com a esperança na redenção do homem e da vida.

Soupault reuniu seus poemas, publicados em diversas revistas, no livro Georgia, de 1926, e prosseguiu sua carreira de escritor, publicando ensaios e romances entre 1920 e 1929: Les frères Durandeau (1924), Voyage d’Horace Pirouelle e En joue (1925); Le coeur d’or e Le nègre (1926); Histoire d’un blanc (1927), William Blake (1928), Les dernières nuits de Paris (1928) e Le grand homme (1929).

Em Histoire d’un blanc, encontram-se as lembranças de sua infância e da transição para a idade adulta, como prelúdio às memórias que serão posteriormente escritas. A revolução da Commune é romanticamente exaltada.

Em Le grand homme, o protagonista é seu tio Louis Renault, casado com uma irmã de sua mãe. O retratado não tragou a sátira em que foi qualificado de patrão e apresentado como um homem que tem por único valor o dinheiro, que trata os seres humanos como máquinas e que só pensa na rapidez da própria fortuna. Louis Renault quase instaura um processo judicial contra o sobrinho irreverente. Sua vingança, afinal, foi comprar todos os exemplares do livro para retirá-lo de circulação.

Les dernières nuits de Paris, publicado em 1928, relata as andanças do narrador por diversas áreas da cidade, desde o momento em que ele conhece a prostituta Georgette num café. Ele percorre com Georgette o boulevard Saint-Germain e os arredores do jardin du Luxembourg, num trajeto que inclui as ruas Vaugirard e de Tournon. Em seguida, o par deambula sob as árvores da avenida Champs-Élysées.

Ao passar depois pelo Palais-Royal, o andarilho protagonista constata que Georgette exerce seu ofício naquela área. Num desfigurado hotel perto do Louvre, deita-se com essa mulher notívaga que ele persegue. Sai depois pela rue Saint-Honoré.

Nessas peregrinações, o narrador toma conhecimento da notícia de um crime no canal Saint-Martin. Em seguida, conhece, na Pont des Arts, um marinheiro do qual suspeitou ser o autor do crime que se propalava. O marujo confessou seu delito.

A narrativa, contudo, não envereda pela vertente do mistério policial. Prossegue na enumeração dos setores pelos quais passa o espreitador de Georgette. O enigma a ser descoberto é mais do que o ato criminal. É o próprio mistério da vida humana; o vazio existencial dos personagens, criaturas perdidas em sua itinerância noturna.

Georgette foi para Soupault o que Nadja representou para Breton e Louise Lame para Desnos: arquetípica personagem feminina que emerge da noite como a sombra e o murmúrio, e transita obsessivamente no mistério.

Conquanto Soupault tenha-se recusado a colaborar no panfleto Un cadavre contra Breton, este não o eximiu de acerba crítica em seu Manifesto de 1929, razão pela qual Soupault expressa sua decepção para com os colegas, em texto de 1936: “Je suis seul comme une pierre. Tout m’enseigne que dorénavant mes amis sont morts”. Era aquele o momento certo de escrever-lhes de verdade os epitáfios.

Sua energia criadora se volta para o jornalismo. Têm início suas peregrinações como repórter do Le Petit Parisien, pelos Estados Unidos, Alemanha e Rússia. Neste dois últimos países, Soupault teve a oportunidade de ver de perto os ditadores Hitler e Stalin e pressentir-lhes a descomunal brutalidade. Soupault ficou indignado quando encontrou num elevador o ditador da Alemanha (que ainda não era Chanceler), e indagou à secretária de Hitler se este lhe daria uma entrevista, ao que ela respondera que o fuhrer não concedia entrevistas a jornalistas franceses.

O derradeiro romance de Soupault foi Les moribonds, autobiográfico, editado em 1934.

Casou-se, em 1937, com Ré Soupault, artista visual e escritora, que conhecera numa recepção da Embaixada da França em Praga. Com ela escreveu alguns livros. O casamento durou até 1945.

Soupault foi um dos primeiros escritores a denunciar o crescimento do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, e a observar que uma parte da burguesia francesa (detentora do capital financeiro) e certos industriais, subvencionavam aqueles regimes totalitários, por medo da implantação do comunismo na Alemanha.

Léon Blum, líder socialista, então Primeiro Ministro da França, atribuiu-lhe a missão de fundar na Tunísia a Rádio Túnis, uma emissora antifascista. Após a queda do governo Blum, Philippe Soupault foi destituído de suas funções de diretor de informação cultural da Rádio Túnis, e preso em Túnis, de março a novembro de 1942, pelo governo nazista de Vichy. A polícia nazista responsabilizava os artistas e, sobretudo os surrealistas, pelo fracasso do exército francês.

O livro Le temps des assassins, de Soupault, é o registro de suas memórias do cárcere. No preâmbulo dessa obra, editada inicialmente em Nova York, em 1945, Philippe Soupault deplora a injustiça de que foi vítima. Declara que um prisioneiro não é somente alguém que foi enclausurado; é um ser que sofre sequelas traumáticas durante muito tempo. A pessoa que perde a independência e a liberdade fixa o pensamento unicamente na ideia da fuga. Uma prisão é uma escola de revolta: “celui qui vit dans une prison réfléchit et rêve non parce que cela lui plaît, mais parce qu’on l’oblige è réfléchir et à rêver”.

Soupault reitera seu profundo ressentimento contra o nazismo, cujos carrascos, que torturaram milhões de seres humanos, já haviam sido esquecidos: “Le nazisme est un poison que le monde n’a pas fini d’éliminer”. À luz dessas reflexões, ele ratifica sua convicção de que são assassinos todos quantos desprezam a liberdade ou procuram sofocá-la ou mesmo limitá-la.

O poeta vai relatando cada momento horripilante que viveu, desde que três agentes de polícia entraram em sua casa, bisbilhotaram seus papéis e o conduziram ao cárcere em Túnis. Desde então, seu tormento teve sucessivas etapas de amargura: os intermináveis e aviltantes interrogatórios, os assédios da insônia e dos pesadelos, os dias angustiantes do isolamento numa cela, em que mesmo a leitura não neutralizava o tédio. Escutava as tristes histórias de seus companheiros de infortúnio, acometidos de claustrofobia e vertigens. Aguentava, a duríssimas penas, a crueldade do juiz de instrução, que o tratava com o rigor típico dos imbecis, e os barulhos noturnos do carcereiro que passava em sua ronda como um fantasma armado com suas chaves. Sentia o desprezo e a indignação que lhe provocavam os esbirros do marechal Pétain, abominável forjador de infâmia. Soupault estava convicto de que a injustiça é a única circunstância à qual é impossível acostumar-se. Tudo lhe parecia execrável. Sua rotina consistia em ler, fumar e ouvir as agruras dos que contavam os dias para cumprir suas sentenças ou que esperavam, aflitivamente, a pena de morte.

Seu ódio aos tiranos era do tamanho do seu amor à liberdade. Mergulhado, contudo, na mais profunda amargura, num inimaginável exercício de paciência, Soupault esperava a qualquer momento o dia e a hora do seu fuzilamento. Meditava, deitado em sua cama de palha, sobre se existiria outra etapa, um novo mundo onde a vida continuasse, depois que seu coração parasse de bater. Confuso, tendo a garganta seca e as mãos crispadas, imaginava a decomposição e o nada, com a vertigem que produzem o medo, a sede e a espera.

Depois de mais de cinco meses naquele sofrimento, seu advogado o informou de que os meios militares já falavam do começo da derrota dos nazistas. Sua mulher, entretanto, a cada visita, desesperava da perspectiva de vê-lo livre.

Uma noite, o escrivão do juiz de instrução chamou Soupault para dizer que fora assinada a concessão de sua liberdade provisória. Aquela notícia lhe parecia mais uma perfídia dos seus opressores. Assinou documentos e saiu trôpego, com as pernas frágeis, ao encontro da esposa que o esperava. Abraçou-a, naquele que fora o dia mais feliz de sua vida. Parava de caminhar, a cada três minutos, respirando com dificuldade. Chegou a casa, depois de penoso esforço físico. Os vizinhos o felicitavam. Ele sorria, contemplando as estrelas.

Apesar de seus captores terem escrito a palavra “provisória” no documento que lhe devolveu a liberdade, na prática, dali por diante, Soupault viveria em liberdade efetiva. E, uma vez livre, conforme lhes prometera, não deixou de visitar seus amigos ainda presos, levando-lhes pão e frutas. Os carcereiros desconfiavam de suas aparições no lugar de onde ele tanto desejou sair. O advogado lhe recomenda prudência, já que a cidade estava repleta de gente que delatava os outros, escrevendo cartas de acusação à polícia. Ele, não obstante, voltou diversas vezes à penitenciária e continuou contatando os advogados dos presos, com a certeza de que o desembarque das tropas anglo-americanas na África do Norte não tardaria.

Em outubro de 1942, os sequazes do regime de Vichy começavam a descrer do governo do marechal Pétain e a minar suas estruturas com mútuas intrigas e calúnias. No mês seguinte, quando os aviões nazis sobrevoavam e aterrissavam em Túnis, circulavam notícias de que as forças aliadas se aproximavam. Ouviam-se ao longe explosões. De pronto, apareceram seus companheiros de cárcere, soltos e dispostos a debandar. O Tribunal Militar fugira e a batalha aérea se iniciava. Soupault e alguns de seus antigos companheiros de masmorra conseguiram fugir numa camioneta, a toda velocidade, antes de as tropas alemãs ocuparem as casernas vazias.

Chegaram de noite à cidade tunisiana de Béja e, dali à fronteira argelina, onde pegaram um trem, que partiu de lâmpadas apagadas para Argel.

Refugiado em Argel, Soupault trabalhou como diretor da Radio-Alger. Foi nesse período que escreveu a famosa Ode à Londres bombardée. Charles de Gaulle o designou responsável pela criação de uma agência francesa de notícias nas Américas do Norte, Central e do Sul. Nos Estados Unidos, Soupault fez as pazes com Breton, também exilado, mas se manteve à parte do movimento reconstituído.


Soupault repugnou a guerra, escrevendo libelos contra a imbecilidade dos beligerantes. Seus poemas de 1942 a 1944 aludem à angústia e à esperança vividas nos meses passados na prisão. Em Ode à Londres bombardée, o poeta testemunha: “cette nuit Londres est bombardée pour la centième fois”. Esse longo poema retrata o clima de terror, dos assassinatos, incêndios, peste, desespero e morte de milhares de pessoas durante a guerra:

 

Entendez-vous les cris de tous ces affamés

ces qui veulent mourir une bonne fois

avec un sourire aux lèvres

et parce qu’on leur a dir que c’était beau.

 

Sua Ode à Paris também revela o quadro sinistro em que a cidade se encontrava nos tempos em que era invadida e agredida pelo inimigo atroz:

 

Ce sera dans vingt ans

dans cinq ans peut être

quand les fleuves de sang seront taris

et que montera la grande marée de la haine

et se lèvera les soleil des incendies

J’attens encore un cri comme celui d’une naissance

Près de Paris et prés d’une vie

Un grand hurlement de sirène

Un cri d’agonie

Avant la fin de la souffrance

Et de toutes les années mortes devant nos yeux

Celles qui tombent comme des feuilles

 (…)

Notre île au milieu de la Seine

Lente comme la destinée

ìle peuplée de souvenirs inévitables

Et qui imposait à notre jeunesse la poussière

de la mélancolie

À l’ombre mortelle de Notre-Dame lourde

Comme un siècle de pierre et des pièrres

Île moribonde où mourut le premier amour

Vieux cimetière fluvial où l’on se heurte

Aux tombes aux revenants aux enfants morts

À tous les guilllotinés

 

Tal como o poema semelhante, escrito duas décadas antes, intitulado Westwego, essa Ode termina com o nome do poeta, como uma assinatura. Essa coincidência é uma prova de que Soupault teve a intenção de conectá-los de algum modo, dada a similitude do tema.

Ao regressar a Paris, em 1946, após atuar como professor visitante no Swarthmore College, na Pensilvânia, ele escreve seu Journal d’un fantôme, que retrata as metamorfoses de Paris no pós-guerra. Dedica-se a atividades radialísticas, escreve crônicas sobre teatro e publica suas extensas Odes. Trabalha na Unesco, de 1947 a 1950, como responsável pelos assuntos com a América do Sul, África e Oriente, o que lhe possibilitou viajar a diversos países.

Outros livros surgiram, na sequência de sua produção: Message de l’île déserte, de 1947, considerado “une écriture du cauchemar”, Chansons, em 1949, reunindo poemas curtos, e Sans phrases, em 1953.

Nos anos de 1960, incrementou as viagens como fonte de inspiração. Registrou suas lembranças nos livros Profils perdus, de 1963, e L’amitié, de 1965. No primeiro, consta a extraordinária Ode à Guillaume Apollinaire:

 

Pauvre Guillaume mon ami

on te couvre de gloire de fleurs et de cendres

grand homme entre guillemets statue de bronze

avec la patine de la célébrité

on t’accable de tout ce que tu as si mal aimé

on couronne ton crâne de lauriers

on agite ton squelette pour provoquer des étincelles

 (…)

J’ai suivi souvent ton fantôme

dans les sinistres rues d’Auteuil

quartier de tes grandes tristesses

rêvant à ta pauvre Anne

lorsque tes amis se moquaient

et que tu savais que le temps était venu

de savoir ce que tu voulais

et que tu ne faisais que soupçonner

alors que tu espérait la liberté

et qu’il fallait gagner ta vie

et que tu la gaspillais

joyeux comme un tambour

et solitaire solitaire…

 

De 1951 a 1977, Philippe Soupault trabalhou na Radiodiffusion-Television Française (RTF), produzindo os programas Prenez garde à la poésie e Poètes oubliés, amis inconus, em que entrevistava e revelava novos poetas. Casou-se com a jornalista estadunidense Muriel Reed, com quem se fez noctâmbulo na deliciosa Paris de então. Muriel, contudo, era depressiva e se tratava com Lacan. Uma noite de 1965, depois de chegarem de um jantar, ela sofre uma crise de desespero e se joga da varanda do quinto andar do apartamento em que o casal vivia, na rue Gay-Lussac. Angustiadíssimo, ele se muda para o quai Voltaire. Lydie Lachenal, sua editora, o vê chorando e soluçando na Pont Royal. Soupault permanecerá só, durante oito anos, até reatar as relações com sua antiga esposa Ré, em 1973, vivendo, cada um em seu apartamento, num mesmo prédio da rue Geo Chavez, no vigésimo arrondissement.

 Soupault reclamava das “démarches” que tinha de fazer “auprès des éditeurs”. Intitulava-se um “Poète, vagabond. Voyageur. Contestataire”. Declarava que nunca se levara demasiado a sério: “je ne suis pas sérieux, j’ai d’autres ambitions”. Tanto melhor, pois assim ficou livre de funções nas quais não estava interessado.

Foi-lhe concedido o Grande Prêmio de Poesia da Academia Francesa em 1972. Suas Mémoires de l’oubli em quatro volumes, publicadas em 1973, abrangem o período de 1897 a 1933. Contêm artigos escritos para revistas como Excelsior, L’Europe Nouvelle e Petit Parisien, sobre suas viagens aos Estados Unidos, à Alemanha, à República Tcheca e à Rússia. Nos primeiros volumes, ele comenta as mundanidades de Cocteau e as decisões coléricas de Breton. A Éluard refere-se como “un homme dont le désespoir est beau comme la folie”. De Aragon dirá que “détient un record magnifique, celui de l’insolence”. A respeito de Tzara: “plus je le connaissais, plus je l’admirais”. De Apollinaire: “qui me prit par la main et qui me monttra ce qu’étaient la poésie vivante et la pénitence du feu”. No quarto volume, que trata do período de 1927 a 1933, ele escreve sobre grandes figuras como Picasso, Salmon, Gide, Joyce e Beckett.

A atividade profissional de Soupault foi a de produtor de rádio, até a aposentadoria, em 1977. Em Vingt mille et un jours, entretiens avec Serge Fauchereau, livro de 1980, ele declara preferir a discrição e a modéstia: “je suis un homme qui préfère se croire un raté qu’une vedette”.

Em diversas entrevistas concedidas aos meios audiovisuais, veiculadas atualmente no Youtube, Soupault fala de sua vida. Declara, entre outras, que o sucesso diminuto não lhe causava o estresse da vaidade, porque não se sentia vaidoso, porém orgulhoso. Como exemplo de que não se sentia um escritor de grande êxito, cita o fato de que seu livro mais vendido foi o romance que escreveu a respeito de seu tio Louis Renault, o qual, insatisfeito, comprou todos os exemplares para evitar que a obra fosse difundida.

Já em seus derradeiros anos de vida, numa entrevista concedida ao cineasta Bertrand Tavernier, para o documentário intitulado Histoire personnelle du surréalisme, o poeta se diz ateu e afirma que a morte não o inquieta. Os amigos que vira morrer, nos quais pensava sempre, significavam para ele uma experiência mais difícil do que pensar na própria morte. Só os amigos que restavam lhe davam vontade de viver. Reitera que não quer ninguém presente a seu enterro, pois em tal momento a discrição precisa ser de rigor.

O realce do automatismo, o gosto pelo insólito e pela rejeição das formas fixas, características de sua desconcertante poesia, dão-nos o tom de sua criatividade. Breton destacou sua capacidade de romper com a “vieillerie poétique”, deixando o poema tal como ele vinha e não se arrependendo de assim proceder. Esse método ou ausência de método, constituía a principal contribuição de Soupault para a liberdade e o frescor criativos.


Soupault foi legítimo surrealista, no sentido de haver sido fiel ao abandono da vontade, sem obstáculos, em favor da experiência criadora. Fez ele, sem proselitismo, seu voto de fé na revolução da arte, que se reflete na vida, na esperança da utopia libertadora do indivíduo.

Alguns dos poemas que mais aprecio da lavra soupaultiana, como Aujourd’hui, demain, hier; Estuaire; Tous ceux qui ne disent rien; Danser la capucine e Funèbre, estão gravados em música pelo talentosíssimo compositor e cantor Bernard Ascal. Nunca me cansarei de ouvir, prazerosamente, esse disco de 24 poemas, autênticos hinos à vida, em que a verve do poeta flui com naturalidade e espontaneidade, em mensagens fraternas, com a fértil irreverência de seu pensamento inquieto, explorador do insólito. Bernard Ascal orquestrou e canta, com o charme de sua voz grave e arrastada, a poesia de vários poetas. A essas maravilhas de sua compilação poético-musical, Ascal deu o nome de Les voix de la poésie. A coletânea dedicada a Philippe Soupault tem o título de Chansons d’aube et de crépuscule. Na 24ª faixa, desfruta-se da dicção luminosa do poeta, na leitura de La glace sans tain, um trecho de Les champs magnétiques.

Em Tous ceux qui ne disent rien, o poeta demonstra a compreensão afetuosa com que se identifica com as criaturas simples e humildes. Observa-lhes a fragilidade que parece revelar que viver é estar perdido na dispersão e na impermanência. O paradeiro e o repouso dessas pessoas anônimas, que existem sem que delas nada saibamos, são imaginados como um espaço onde estão catalogados os achados e perdidos em ordem de insignificância:

 

Tous ceux qui ne disent rien

et qui pensent encore moins

la foule qui se fane au clair de lune

les inconnus qui ne savent pas

quoi faire de leurs mains

qui portent une tête sur les épaules

parce qu’ils craigent de se faire remarquer

les gens qu’on voit tous les jours

et qu’on ne reconnaît jamais

ceux dont on ne sait pas le nom

et qui vous sourient comme à un complice

les femmes couleur de murailles

portant des enfants nés avec la pluie

les garçons qui déjeunent de soleil

d’eau fraîche et de l’air du temps

les amis sans amitié sans médailles

les frères qui ne vous saluent plus

les filles qui ont peur de vous ressembler

les ombres sans voilles et sans passé

vous pouvez tous les réclamer

au bureau des êtres perdus.

 

Seu canto humaníssimo, cheio de referências generosas, reitera sua afinidade com o mundo incógnito dos tipos contemplados no poema, protótipos da modéstia que ele mesmo apregoa: os que nada dizem e nada pensam, a multidão que definha sob o plenilúnio, os desconhecidos que não sabem o que fazer com as mãos e têm uma cabeça sobre os ombros porque temem ser notados, as pessoas que vemos cotidianamente e que não reconhecemos (…), são objeto de um registro sem qualquer transcendência, pois que a condição humana é essa espécie de perdição ou de desencontro de si mesmo.

O poeta resolve a equação, no final do poema, com uma solução surpreendente e inquietante: “vous pouvez tous les réclamer au bureau des êtres perdus”. A ambiguidade entre requerer ou resgatar essas almas extraviadas no escritório dos seres perdidos remete a entendê-las como objetos de um mundo em que o ser é desumanizado pela massificação, pela coisificação e pelo anonimato.

Transparecem, na sua poesia plena de humor e compreensão fraterna, tanto a leveza quase inocente de um menino quanto a delicadeza de um cavalheiro receptivo. Transbordam tais características, como graça hilariante, neste Estuaire:

 

Vous les navigateurs

que d’une seule main écartez le vent

vous qui préférez les étoiles

je vous attends près de l’horizon

 (…)

allez vous que n’arriverez jamais

je ne vous oublie pas.

 

Aqui se confirmam a fluidez de expressão e o espírito acolhedor do poeta compassivo, que magnifica sua solidariedade aos navegantes que singram à deriva os mares turvos e turbulentos, com a extravagância de almejar as estrelas.

Aplaudir a ousadia dos sonhadores e visionários significa certamente aproximar-se deles, mediante a utopia da arte, que Soupault não hesita em reiterar como um capricho de impossíveis atitudes, em Danser la capucine:

 

J’envie de nager

nu comme un poisson dans l’eau tiède

d’une rivière phosphorescente

ainsi qu’aux plus beaux jours

entre onze heures et minuit

et puis et puis et puis

il faut ensuite dormir

Bonsoir bonne nuit bonne année.

 

Funèbre é um poemeto de que Jacques Prévert muito gostava e cuja divulgação foi motivo de aproximação entre ambos os poetas, já que Soupault declarava admirar a poesia de Prévert, pela simplicidade da expressão e pela dedicação às questões fundamentais da vida. Nesse texto minimalista, Soupault diz tudo em poucas palavras, como deve ser a boa poesia, e deixa ressoar a repetição do anúncio fúnebre, artifício suficiente para atribuir o grave tom imagético na dolência do tema:

 

Monsieur Miroir marchand d’habits

est mort hier soir à Paris

il fait nuit

il fait noir

il fait nuit noire à Paris.

 

Philippe Soupault faleceu no dia 12 de março de 1990, com 92 anos. Fumante inveterado, foi o mais longevo dos poetas surrealistas. Legou-nos incalculável patrimônio lírico.

 

 


MÁRCIO CATUNDA | Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros.
 

 


JULIA SOBOLEVA | Nascida na Letônia, 1990, é uma artista de mídia mista baseada no Reino Unido. Seus processos envolvem pintura e colagem em imagens fotográficas encontradas, além de performance e vídeo. Nascida e criada em uma era pós-soviética e não sendo capaz de encontrar seu próprio lugar contra o passado complicado de sua nação, Julia explora as noções de loucura e realidade, família, tabu e trauma transgeracional em seu trabalho. Ela obteve um mestrado em ilustração na Manchester School of Art e passou a trabalhar como educadora e ilustradora freelance. Entre suas mais recentes exposições, destacam-se “Einblick 6: Julia Soboleva” Hamburgo, 2021), “I Have Found the Light in the Darkness” (Itália, 2021), “Danse” (França, 2021), “Please Don’t Mind Me While I Ugly Cry” (Grécia, 2022), e “The Rogues Gallery” (on line, 2022).

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 08

Número 207 | abril de 2022

Artista convidada: Julia Soboleva (Letônia, 1990)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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