De 1911 a 1914, Soupault viajou à Alemanha
e à Inglaterra. Em Caboug, na Normandia, em 1913, conheceu Marcel Proust. Voltou
à França e se matriculou no lycée Condorcet.
Em 1916, recrutado pelo Exército, adoeceu,
ao servir de cobaia para uma vacina contra a febre tifoide. Seu organismo jovem
conseguiu vencer a grave afecção e, após alguns dias de hospitalização em Creil,
ele volta a Paris. A Botânica, ciência que tanto o encantava, não prevaleceria sobre
sua vocação literária. O Direito Marítimo, que estudou sistematicamente, lhe possibilitaria,
contudo, arranjar emprego no “Commissariat aux Essences”, entidade responsável pelo
abastecimento de combustíveis às Forças Armadas.
O ano de 1917 foi determinante para
a definição de sua vocação de escritor. Ele mostra a Apollinaire o poema Départ e o autor de Alcools o publica na revista Sic.
Por meio deste benfeitor, Soupault conhece Reverdy, Cendrars, Max Jacob e André
Breton. Com Breton, estabeleceu o intercâmbio que revolucionou a arte poética do
século XX. Soupault teve a primazia de revelar a seu parceiro a obra descomunal
de Lautréamont, que influenciará determinantemente o movimento literário que fundarão.
Por intermédio de Breton, conheceu Aragon e constituiu, com eles, o trio primevo
do surrealismo, que Valéry apelidará de “les trois mosquetaires”. Também, no mesmo
ano, Soupault publicou seu primeiro livro, Aquarium,
que recebeu resenha favorável de Pierre Reverdy, na revista Nord-Sud.
Com recursos financeiros de sua herança,
Soupault financia, em 1919, a revista Littérature,
editada em parceria com Breton e Aragon. Os três obstinados poetas selecionavam
os poemas recebidos e os editavam com ilustrações de Max Ernst, De Chirico e outros
grandes artistas visuais. O primeiro número contou com o concurso, nada menos que
de Apollinaire, Gide, Valéry, Fargue, Cendrars, Reverdy e Paulhan. Cocteau insistiu
para ser publicado, no entanto os editores o desprezaram sistematicamente.
Soupault hospedou Breton em seu apartamento
na île de Saint-Louis, no quai de Bourbon, 41, no verão de 1920, tempo em que Breton
estava namorando a escritora Simone Kahn. Época também em que os três poetas trabalhavam
na preparação da primeira edição da revista Litterature.
A amizade se fortaleceu, quando, além de produzir a revista, Soupault e Breton escreveram,
em quinze dias, o livro Les champs magnétiques,
no hôtel des Grands Hommes, em frente ao Panthéon, onde morava Breton. O livro,
composto de um poema escrito a quatro mãos, tornou-se um ícone do surrealismo. Teve
trechos publicados, em primeira edição, na revista Littérature. Da verve de Soupault é a abertura desse longo e pioneiro
poema:
Prisonniers des gouttes d’eau, nous ne sommes que des animaux
perpétuels. Nous courons dans les villes sans bruits et les affiches enchantées
ne nous touchent plus. À quoi bon ces grands enthousiasmes fragiles, ces sauts de
joie desséchés?
Para aqueles jovens talentosos e inconformados,
urgia refazer o mundo, porquanto a geração precedente havia fracassado, arruinando
a vida em quatro anos de guerra. Soupault confessa que sentia um desgosto profundo,
ao constatar que milhares de seres humanos sofreram graves ferimentos que os reduziram
à invalidez. Era motivo de indignação o fato de terem perecido 600 mil pessoas em
Verdun e, não obstante, escritores como Barrès, Bourget e Bazin lançarem proclamas
demagógicos, com elogios à invenção da baioneta e ao dever de morrer pela pátria.
No contexto da colaboração entre dadaístas
e surrealistas, sua produção só poderia refletir a atitude iconoclasta e anarquista
em vigor. Nesse sentido, Soupault publicou uma série de Epitáfios para seus amigos, evocando-lhes a vida e a morte, à maneira
das inscrições funerárias. Reproduzo aqui os que se referem a Aragon, Éluard e Breton.
De fato, sem saber, ele previu que seria o mais longevo de todos. Dos três poemas,
o que se reporta a Breton expressa um sentimento mais autêntico de estima e admiração:
LOUIS ARAGON
Tes petites amies font une ronde
Elles t’ont tressé des couronnes
Avec tes petits mensonges
J’ai t’ai aporté du papier
Et une très bonne plume
Tu feras des poèmes pendant l’Éternité
Ton ange gardien te console
Il noue ta cravatte lavallière
et t’apprend à sourire
Tu m’as déjà oublié
Dieu est beaucoup plus beau que moi
PAUL ÉLUARD
Emporte là-haut ta canne et tes gants
tiens-toi droit
les yeux fermés
les nuages de couton sont loin
et tu es parti sans me dire adieu
Il pleut
Il pleut
Il pleut
ANDRÉ BRETON
J’ai bien aperçu ton regard
Quand je t’ai défendu je t’ai fermé les yeux
Tu m’avais défendu d’être triste
Et j’ai quand même beaucoup pleuré
Tu ne me diras plus
tout de même tout de même
Les anges sont venus près de ton lit
Mais ils n’ont rien dit
C’est beau la mort
Comme tu dois rire tout seul
Maintenant qu’on ne te voit plus
ta canne est dans un coin
Il y a beaucoup de gens qui ont apporté des fleurs
On a même prononcé des discours
Je n’ai rien dit
J’ai pensé à toi
Soupault viajou a Lisboa em 1920, onde
conheceu Fernando Pessoa, que lhe deu a impressão de ser um homem torturado pela
tristeza. O maior bardo lusitano do século XX só se alegrou quando o visitante se
mostrou apreciador do vinho branco do Porto.
No dia 13 de maio de 1921, Soupault
e Aragon participaram como “advogados de defesa”, do sarcástico julgamento de Maurice
Barrès, que Breton montou na Salle des Sociétés Savantes, à rue Danton, nº 8. Os
jovens poetas debocharam do autor de Le culte
du moi, por eles considerado burguês e patrioteiro. Com uma pantomima irreverente,
representaram Barrès na fantasia de um boneco e o “tribunal” de poetas o condenou,
por crime contra a segurança do espírito, aplicando ao réu a sentença de “20 anos
de trabalhos forçados”.
Caminho pelo pátio do Louvre, até
a Ponte do Carrousel. Avisto a cúpula de Notre-Dame, com suas antenas que me chamam
ao Quartier Latin. O Sena recebe os espasmos de luz do sol da tarde. Os barcos passam,
apinhados de gente. Da Galerie des Antiques, pelo quai François Mitterrand, atravesso
a Pont des Arts. Abre-se em perspectiva o encanto visionário da Île de la Cité,
no vértice de um triângulo atravessado pela Pont Neuf.
Os livreiros expõem seus tesouros no parapeito
das muretas que emolduram o rio. Cruzo os cimentos e os candelabros dos dois trechos
da ponte monumental, em cujo centro está Henri IV, talhado em bronze. De pronto,
a place Saint-Michel ostenta o altar de pedras do anjo guerreiro.
Na seguinte esquina, onde o boulevard
Saint-Michel se encontra com o boulevard Saint-Germain, a carcaça do mosteiro de
Cluny, com linhas horizontais escarlates, protegida por uma grade de ferro, expõe
os tijolos de sua antiguidade. Ao lado dessa relíquia, vejo a graça natural de um
jardim silvestre, onde existe até a benevolência de um pequeno banheiro público.
Cem passos adiante, na rue des Écoles, a estátua de Montaigne, de roupão e sandálias
unissex, aparece sobre um bloco de mármore em que se lê o apanágio do clássico pensador
a seu torrão natal: “Paris a mon coeur dès mon enfance. Je ne suis français que par cette
grande cité, grande surtout et incomparable en varieté. La gloire de la France et
l’un des plus nobles ornements du monde”.
Desponta, à direita, a vigorosa
estampa do Panthéon, na ladeira de Sainte-Geneviève. Derivo pela rue des Bernardins
até a Pont de l'Archevêché. Paris se desdobra em pontes, encantando-me com seus
prodígios de arte: a beleza das edificações, o curso fluente do Sena, decorado de
embarcações semoventes, e o horizonte aberto, até a Île Saint-Louis.
Contemplo a garbosa fachada do
Hotel de Ville, as cúpulas e torres à meia-luz do crepúsculo; a tour Saint-Jacques,
como um farol de pedras.
Vou bordeando as águas que fluem com os barcos, no
enlevo que as árvores cingem de ecológica visão clorofilada. Os elegantes frontispícios
dos prédios inspiram recordações de Baudelaire, no quai d’Anjou e de Francis Carco,
no quai de Béthune. No dia chuvoso, o spleen de hoje não tem o sentido da palavra
ennui.
Faço o contorno da ilha, no sentido antihorário:
o quai d’Anjou se transforma em quai de Bourbon, que se metamorfoseia em quai d’Orléans,
que, por sua vez, muda-se em quai de Béthune.
Na altura da ponte Saint-Louis,
onde os caminhos da ilha se espalmam em leque, vejo, de um lado, o quai d’Orléans;
do outro, o quai de Bourbon. Vou, por esta extremidade, redescobrindo um refúgio
de ócio e de silêncio. Na curva
do quai de Bourbon, um recanto pitoresco: a place Louis Aragon, com estes versos
gravados numa placa: “Connaissez-vous l’île / au coeur de la ville / où tout est
tranquille éternellement”. Vale
a pena fazer ali uma parada estratégica
para contemplar as grades dos balcões dos edifícios de janelas retangulares e os
muros por onde corre o Sena como uma piscina de água verde.
Num único trajeto, andarilhando
pelo IV arrondissement, às margens do rio de Paris, vou ao encontro dos antigos
endereços de três luminares da poesia francesa: O número 41 do quai de Bourbon,
onde morou Philippe Soupault, de 1919 a 1922. O número 18, do quai de Béthune, onde
morou Francis Carco de 1949 a 1953. E, por fim, os domicílios de Baudelaire, a saber:
o número 6, da estreita e pequena rue Le Regrattier, de portais antigos (Le Regrattier
foi o cidadão que urbanizou a Île Saint-Louis), e o 17, do quai d’Anjou, o elegante
hotel Pimodan, sede do clube dos Hashissins.
A Pont Louis-Philippe e a hora
profunda do anoitecer conspiram para me seduzir os sentidos.
A noite chega, com sombra e quietude. Pontes iluminadas. O Homem e a Natureza se
reconciliam nestes âmbitos de sereno vislumbre. Cheguei, certamente, ao lugar mais
espiritualizado de Paris. Um banco acolhedor me permite contemplar longamente as
pontes iluminadas.
Pássaros dialogam, louvando a Lua.
Noite encantada. Quase na esquina, em frente
à pracinha que tem o nome de Aragon, sentei-me num dos bancos e apreciei o panorama
ribeirinho, com as cúpulas monumentais em frente. Nessa esquina, está o número 41
do quai de Bourbon, onde morou Philippe Soupault. Local privilegiado, com sua vista
maravilhosa. Senti falta de uma placa de registro histórico da morada do poeta.
Como é grato cruzar as pontes sobre o Sena e contemplar
a fluidez das águas, entre as paredes claras de janelas brancas, coroadas de pináculos,
na paisagem urbana de simetrias cativantes! Os barcos desfilam, desenhando caminhos
na superfície do rio. Imagino Soupault, de sua janela contemplando, como eu agora,
a Lua que se
deixa ver, em plena tarde, com um corpo de nuvem. O Sena discorre, emparedado pelos engenheiros, que
o transformaram numa piscina de água corrente.
No afã de imergir na atmosfera do sonho e do inconsciente
para produzir dissonâncias criativas, Soupault desfrutou do privilégio de conviver
e aprender com seus parceiros de experiências verbais e psicodélicas. No exercício
daquela revolucionária expressão, em atitude iconoclasta, Benjamin Péret, por exemplo,
era perito em inventar obscenidades, e Desnos fomentava o sono criativo que engendrava
inusitados versos. Com efeito, no livro Nouvelles
Hébrides, Robert Desnos concebe uma pitoresca cena, decerto sonhada em um de
seus rituais oníricos, em que Soupault se encontra no meio da rua, tocando um violão,
enquanto os automobilistas passam, jogando flores e confetes. Em seguida, Soupault
varre as oferendas e o céu se cobre de belos aeroplanos.
O paroxismo daquelas experiências psicoliterárias
tornava-se perigoso. O frenesi e a vertigem da imaginação geravam uma espécie de
desespero que poderia conduzir ao suicídio, tal como aconteceria, mais tarde, com
René Crével, mártir do autossacrifício à causa da poesia.
Soupault sentiu-se sempre próximo de Tristan Tzara.
Seu vínculo com o mentor do dadaísmo seria permanente, mesmo depois da afronta que
ele, Breton e Aragon lhe fizeram, interrompendo um dos espetáculos de Tzara em meio
a gritos, tomates e ovos lançados sobre os artistas que figuravam no palco. Soupault
se penitenciou daqueles atos de irreverência juvenil e percebeu a tempo que o escândalo,
embora fosse uma estratégia necessária, não deveria acarretar a agonia da amizade.
Soupault casou-se em 1919 com a bailarina Mic Verneuil,
aliás Suzanne Pillard, de quem se divorciou em 1923 para casar-se com Marie-Louise,
também dançarina e aluna da esposa anterior. Em 1922, veio a lume Westwego, onde consta longo poema em que
Paris é o foco da inspiração. Esse caudaloso texto, de ritmo espontâneo e fluente
prenuncia a Ode à Paris, gêmeo de Westwego, escrito, não obstante, mais de
20 anos depois.
Em Westwego,
do qual transcrevo excertos, Paris é celebrada de maneira hedonista, nas itinerâncias
noturnas de um jovem poeta sensível e inquieto:
C’est mon vieux Paris
Mais ce soir enfin, je suis dans cette ville
Tes monuments sont les bornes kilométriques
de ma fatigue
Je reconnais tes nuages
qui s’accrochent aux cheminées
Pour me dire adieux ou bonjour
La nuit est phosphorescent
Je t’aime comme on aime un elephant
Tous tes cris sont pour moi des cris de tendresse
(…..)
Je descends lentement le boulevard Saint-Michel
Je ne pense à rien
Je compte les réverbère que je connais si bien
en m’approchant de la Seine
Près des Ponts de Paris
et je parle tout haut
Toutes les rues sont des affluents
quand on aime ce fleuve où coule tout le sang de Paris
et qui est sale comme une sale putain
mais qui est aussi la Seine simplement
à qui on parle comme à sa maman
J’étais tout près d’elle
qui s’en allait sans regret et sans bruit
Son souvenir éteint était une maladie
Je m’appuyais sur le parapet
Comme on s’agenouille por prier…
(….)
Les nuits de Paris ont ces odeurs fortes
Qui laissent les regrets et les maux de tête
Et je savais qu’il était tard
Et que la nuit
La nuit de Paris allait finir
Comme les jours de fêtes
Tout était bien rangé
Et personne ne disait mot…
Em 1923, aparece o romance Le bon apôtre. De 1923 a 1930, o poeta se dedicará a distintas atividades,
sempre publicando textos em jornais. Também, dirige as edições Kra e a Revue Européenne. É possível que esses gestos
de autonomia por parte de Soupault tenham despertado ciumeira em Breton, o qual,
se arvorando de líder, dera início ao patrulhamento da conduta de seus pares. Breton
criticou o “roman bourgeois” de seu colega com quatro páginas em branco na revista
Littérature, então editada somente por
Breton e Aragon.
No período em que Soupault se dedicou às Éditions du Sagittaire, onde aparece o Manifeste
du Surréalisme de 1924, ele estabeleceu amizade com o poeta norte-americano
William Carlos Williams. Uma de suas diversões prediletas era assistir aos filmes
de Charlie Chaplin, que considerava um grande poeta, no sentido mais puro e mais
forte do termo. A respeito desse grande humorista e cineasta, ele escreverá, alguns
anos depois, o ensaio Charlot.
Conquanto tivesse assinado o Manifesto Surrealista de 1924, Soupault não
queria participar de um grupo fechado que mantinha reuniões regulares. Tampouco
lhe agradavam as associações político-partidárias, embora ele reiterasse sempre
sua aversão ao fascismo. Em 1926, quando o grupo dos surrealistas se aproxima do
Partido Comunista, Aragon e Breton organizam, no reduto da rue du Château, um tribunal
para julgá-lo e condená-lo. Breton abriu a sessão e Pierre Naville fez o discurso
da acusação, tachando-o de contrarrevolucionário, fumador de cigarros ingleses e
colaboracionista da sociedade burguesa e do fascismo, porque haviam publicado poemas
de Soupault na Itália. Os julgadores alegaram a diminuta proatividade do réu nas
ações coletivas do grupo e sua recusa a filiar-se ao Partido Comunista.
Soupault respondeu a esse ânimo persecutório com
o argumento de que aquela dramatização ridícula não tinha cabimento, pois que o
surrealismo não era uma igreja, menos uma maçonaria, tampouco uma associação de
malfeitores, mas um estado de espírito. Fez constar que Breton gostava de excomungar
os colegas e que, com Aragon, fazia a apologia de Robespierre, para julgá-lo por
meio de regras que o próprio surrealismo deveria combater.
É por demais
significativo o poema que Éluard lhe dedica no livro Capitale de la douleur, de 1926, em que mostra empatia com a extrema
sensibilidade que caracterizava Soupault. O título, Entre peu d’autres, já diz da seletividade com que seu autor o admirava:
Ses yeux ont tout un ciel de larmes/Ni ses paupières, ni ses mains/ Ne sont
une nuit suffisante/ pour que sa douleur s’y cache./ Voir le silence, lui donner
un baiser sur les lèvres/et les toits de la ville seront de beaux oiseaux mélancoliques,
aux ailes décharnées./Le coeur de l’homme ne rougira plus,/ il ne se perdra plus,/
je reviens de moi-même, de toute éternité.
Éluard augura àquele que sabe ser “dans la plaine
le pilote du vent” a ventura de ver e beijar o silêncio, quando os telhados da cidade
forem belos pássaros melancólicos, de asas descarnadas. Declara, portanto, em sua
infalível mensagem de solidariedade, que o coração de seu amigo está em sintonia
com a esperança na redenção do homem e da vida.
Soupault reuniu seus poemas, publicados em diversas
revistas, no livro Georgia, de 1926, e
prosseguiu sua carreira de escritor, publicando ensaios e romances entre 1920 e
1929: Les frères Durandeau (1924), Voyage d’Horace Pirouelle e En joue (1925); Le coeur d’or e Le nègre (1926);
Histoire d’un blanc (1927), William Blake (1928), Les dernières nuits de Paris (1928) e Le grand homme (1929).
Em Histoire
d’un blanc, encontram-se as lembranças de sua infância e da transição para a
idade adulta, como prelúdio às memórias que serão posteriormente escritas. A revolução
da Commune é romanticamente exaltada.
Em Le grand
homme, o protagonista é seu tio Louis Renault, casado com uma irmã de sua mãe.
O retratado não tragou a sátira em que foi qualificado de patrão e apresentado como
um homem que tem por único valor o dinheiro, que trata os seres humanos como máquinas
e que só pensa na rapidez da própria fortuna. Louis Renault quase instaura um processo
judicial contra o sobrinho irreverente. Sua vingança, afinal, foi comprar todos
os exemplares do livro para retirá-lo de circulação.
Les dernières
nuits de Paris, publicado em 1928, relata as
andanças do narrador por diversas áreas da cidade, desde o momento em que ele conhece
a prostituta Georgette num café. Ele percorre com Georgette o boulevard Saint-Germain
e os arredores do jardin du Luxembourg, num trajeto que inclui as ruas Vaugirard
e de Tournon. Em seguida, o par deambula sob as árvores da avenida Champs-Élysées.
Ao passar depois pelo Palais-Royal, o andarilho protagonista
constata que Georgette exerce seu ofício naquela área. Num desfigurado hotel perto
do Louvre, deita-se com essa mulher notívaga que ele persegue. Sai depois pela rue
Saint-Honoré.
Nessas peregrinações, o narrador toma conhecimento
da notícia de um crime no canal Saint-Martin. Em seguida, conhece, na Pont des Arts,
um marinheiro do qual suspeitou ser o autor do crime que se propalava. O marujo
confessou seu delito.
A narrativa, contudo, não envereda pela vertente
do mistério policial. Prossegue na enumeração dos setores pelos quais passa o espreitador
de Georgette. O enigma a ser descoberto é mais do que o ato criminal. É o próprio
mistério da vida humana; o vazio existencial dos personagens, criaturas perdidas
em sua itinerância noturna.
Georgette foi para Soupault o que Nadja representou
para Breton e Louise Lame para Desnos: arquetípica personagem feminina que emerge
da noite como a sombra e o murmúrio, e transita obsessivamente no mistério.
Conquanto Soupault tenha-se recusado a colaborar
no panfleto Un cadavre contra Breton,
este não o eximiu de acerba crítica em seu Manifesto
de 1929, razão pela qual Soupault expressa sua decepção para com os colegas,
em texto de 1936: “Je suis seul comme une pierre. Tout m’enseigne que dorénavant
mes amis sont morts”. Era aquele o momento certo de escrever-lhes de verdade os
epitáfios.
Sua energia criadora se volta para o jornalismo.
Têm início suas peregrinações como repórter do Le Petit Parisien, pelos Estados Unidos, Alemanha e Rússia. Neste dois
últimos países, Soupault teve a oportunidade de ver de perto os ditadores Hitler
e Stalin e pressentir-lhes a descomunal brutalidade. Soupault ficou indignado quando
encontrou num elevador o ditador da Alemanha (que ainda não era Chanceler), e indagou
à secretária de Hitler se este lhe daria uma entrevista, ao que ela respondera que
o fuhrer não concedia entrevistas a jornalistas
franceses.
O derradeiro romance de Soupault foi Les moribonds, autobiográfico, editado em
1934.
Casou-se, em 1937, com Ré Soupault, artista visual
e escritora, que conhecera numa recepção da Embaixada da França em Praga. Com ela
escreveu alguns livros. O casamento durou até 1945.
Soupault foi um dos primeiros escritores a denunciar
o crescimento do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, e a observar que uma
parte da burguesia francesa (detentora do capital financeiro) e certos industriais,
subvencionavam aqueles regimes totalitários, por medo da implantação do comunismo
na Alemanha.
Léon Blum, líder socialista, então Primeiro Ministro
da França, atribuiu-lhe a missão de fundar na Tunísia a Rádio Túnis, uma emissora
antifascista. Após a queda do governo Blum, Philippe Soupault foi destituído de
suas funções de diretor de informação cultural da Rádio Túnis, e preso em Túnis,
de março a novembro de 1942, pelo governo nazista de Vichy. A polícia nazista responsabilizava
os artistas e, sobretudo os surrealistas, pelo fracasso do exército francês.
O livro Le
temps des assassins, de Soupault, é o registro de suas memórias do cárcere.
No preâmbulo dessa obra, editada inicialmente em Nova York, em 1945, Philippe Soupault
deplora a injustiça de que foi vítima. Declara que um prisioneiro não é somente
alguém que foi enclausurado; é um ser que sofre sequelas traumáticas durante muito
tempo. A pessoa que perde a independência e a liberdade fixa o pensamento unicamente
na ideia da fuga. Uma prisão
é uma escola de revolta: “celui qui vit dans une prison réfléchit et rêve non parce
que cela lui plaît, mais parce qu’on l’oblige è réfléchir et à rêver”.
Soupault reitera seu profundo ressentimento contra
o nazismo, cujos carrascos, que torturaram milhões de seres humanos, já haviam sido
esquecidos: “Le nazisme est un poison que le monde n’a pas fini d’éliminer”. À luz
dessas reflexões, ele ratifica sua convicção de que são assassinos todos quantos
desprezam a liberdade ou procuram sofocá-la ou mesmo limitá-la.
O poeta vai relatando cada momento horripilante que
viveu, desde que três agentes de polícia entraram em sua casa, bisbilhotaram seus
papéis e o conduziram ao cárcere em Túnis. Desde então, seu tormento teve sucessivas
etapas de amargura: os intermináveis e aviltantes interrogatórios, os assédios da
insônia e dos pesadelos, os dias angustiantes do isolamento numa cela, em que mesmo
a leitura não neutralizava o tédio. Escutava as tristes histórias de seus companheiros
de infortúnio, acometidos de claustrofobia e vertigens. Aguentava, a duríssimas
penas, a crueldade do juiz de instrução, que o tratava com o rigor típico dos imbecis,
e os barulhos noturnos do carcereiro que passava em sua ronda como um fantasma armado
com suas chaves. Sentia o desprezo e a indignação que lhe provocavam os esbirros
do marechal Pétain, abominável forjador de infâmia. Soupault estava convicto de
que a injustiça é a única circunstância à qual é impossível acostumar-se. Tudo lhe
parecia execrável. Sua rotina consistia em ler, fumar e ouvir as agruras dos que
contavam os dias para cumprir suas sentenças ou que esperavam, aflitivamente, a
pena de morte.
Seu ódio aos tiranos era do tamanho do seu amor à
liberdade. Mergulhado, contudo, na mais profunda amargura, num inimaginável exercício
de paciência, Soupault esperava a qualquer momento o dia e a hora do seu fuzilamento.
Meditava, deitado em sua cama de palha, sobre se existiria outra etapa, um novo
mundo onde a vida continuasse, depois que seu coração parasse de bater. Confuso,
tendo a garganta seca e as mãos crispadas, imaginava a decomposição e o nada, com
a vertigem que produzem o medo, a sede e a espera.
Depois de mais de cinco meses naquele sofrimento,
seu advogado o informou de que os meios militares já falavam do começo da derrota
dos nazistas. Sua mulher, entretanto, a cada visita, desesperava da perspectiva
de vê-lo livre.
Uma noite, o escrivão do juiz de instrução chamou
Soupault para dizer que fora assinada a concessão de sua liberdade provisória. Aquela
notícia lhe parecia mais uma perfídia dos seus opressores. Assinou documentos e
saiu trôpego, com as pernas frágeis, ao encontro da esposa que o esperava. Abraçou-a,
naquele que fora o dia mais feliz de sua vida. Parava de caminhar, a cada três minutos,
respirando com dificuldade. Chegou a casa, depois de penoso esforço físico. Os vizinhos
o felicitavam. Ele sorria, contemplando as estrelas.
Apesar de seus captores terem escrito a palavra “provisória”
no documento que lhe devolveu a liberdade, na prática, dali por diante, Soupault
viveria em liberdade efetiva. E, uma vez livre, conforme lhes prometera, não deixou
de visitar seus amigos ainda presos, levando-lhes pão e frutas. Os carcereiros desconfiavam
de suas aparições no lugar de onde ele tanto desejou sair. O advogado lhe recomenda
prudência, já que a cidade estava repleta de gente que delatava os outros, escrevendo
cartas de acusação à polícia. Ele, não obstante, voltou diversas vezes à penitenciária
e continuou contatando os advogados dos presos, com a certeza de que o desembarque
das tropas anglo-americanas na África do Norte não tardaria.
Em outubro de 1942, os sequazes do regime de Vichy
começavam a descrer do governo do marechal Pétain e a minar suas estruturas com
mútuas intrigas e calúnias. No mês seguinte, quando os aviões nazis sobrevoavam
e aterrissavam em Túnis, circulavam notícias de que as forças aliadas se aproximavam.
Ouviam-se ao longe explosões. De pronto, apareceram seus companheiros de cárcere,
soltos e dispostos a debandar. O Tribunal Militar fugira e a batalha aérea se iniciava.
Soupault e alguns de seus antigos companheiros de masmorra conseguiram fugir numa
camioneta, a toda velocidade, antes de as tropas alemãs ocuparem as casernas vazias.
Chegaram de noite à cidade tunisiana de Béja e, dali
à fronteira argelina, onde pegaram um trem, que partiu de lâmpadas apagadas para
Argel.
Refugiado em Argel, Soupault trabalhou como diretor
da Radio-Alger. Foi nesse período que
escreveu a famosa Ode à Londres bombardée. Charles de Gaulle o designou responsável
pela criação de uma agência francesa de notícias nas Américas do Norte, Central
e do Sul. Nos Estados Unidos, Soupault fez as pazes com Breton, também exilado,
mas se manteve à parte do movimento reconstituído.
Entendez-vous les cris de tous ces affamés
ces qui veulent mourir une bonne fois
avec un sourire aux lèvres
et parce qu’on leur a dir que c’était beau.
Sua Ode à Paris
também revela o quadro sinistro em que a cidade se encontrava nos tempos em
que era invadida e agredida pelo inimigo atroz:
Ce sera dans vingt ans
dans cinq ans peut être
quand les fleuves de sang seront taris
et que montera la grande marée de la haine
et se lèvera les soleil des incendies
J’attens encore un cri comme celui d’une naissance
Près de Paris et prés d’une vie
Un grand hurlement de sirène
Un cri d’agonie
Avant la fin de la souffrance
Et de toutes les années mortes devant nos yeux
Celles qui tombent comme des feuilles
(…)
Notre île au milieu de la Seine
Lente comme la destinée
ìle peuplée de souvenirs inévitables
Et qui imposait à notre jeunesse la poussière
de la mélancolie
À l’ombre mortelle de Notre-Dame lourde
Comme un siècle de pierre et des pièrres
Île moribonde où mourut le premier amour
Vieux cimetière fluvial où l’on se heurte
Aux tombes aux revenants aux enfants morts
À tous
les guilllotinés
Tal como o poema semelhante, escrito duas décadas
antes, intitulado Westwego, essa Ode termina
com o nome do poeta, como uma assinatura. Essa coincidência é uma prova de que Soupault
teve a intenção de conectá-los de algum modo, dada a similitude do tema.
Ao regressar a Paris, em 1946, após atuar como professor
visitante no Swarthmore College, na Pensilvânia, ele escreve seu Journal d’un fantôme, que retrata as metamorfoses
de Paris no pós-guerra. Dedica-se a atividades radialísticas, escreve crônicas sobre
teatro e publica suas extensas Odes. Trabalha
na Unesco, de 1947 a 1950, como responsável pelos assuntos com a América do Sul,
África e Oriente, o que lhe possibilitou viajar a diversos países.
Outros livros surgiram, na sequência de sua produção: Message de l’île déserte, de 1947, considerado
“une écriture du cauchemar”, Chansons,
em 1949, reunindo poemas curtos, e Sans phrases,
em 1953.
Nos anos de 1960, incrementou as viagens como fonte de inspiração. Registrou
suas lembranças nos livros Profils perdus,
de 1963, e L’amitié, de 1965. No primeiro, consta a extraordinária Ode à Guillaume Apollinaire:
Pauvre Guillaume mon ami
on te couvre de gloire de fleurs et de cendres
grand homme entre guillemets statue de bronze
avec la patine de la célébrité
on t’accable de tout ce que tu as si mal aimé
on couronne ton crâne de lauriers
on agite ton squelette pour provoquer des étincelles
(…)
J’ai suivi souvent ton fantôme
dans les sinistres rues d’Auteuil
quartier de tes grandes tristesses
rêvant à ta pauvre Anne
lorsque tes amis se moquaient
et que tu savais que le temps était venu
de savoir ce que tu voulais
et que tu ne faisais que soupçonner
alors que tu espérait la liberté
et qu’il fallait gagner ta vie
et que tu la gaspillais
joyeux comme un tambour
et solitaire solitaire…
De 1951 a 1977, Philippe Soupault trabalhou na Radiodiffusion-Television Française (RTF),
produzindo os programas Prenez garde à la
poésie e Poètes oubliés, amis inconus,
em que entrevistava e revelava novos poetas. Casou-se com a jornalista estadunidense Muriel Reed, com
quem se fez noctâmbulo na deliciosa Paris de então. Muriel, contudo, era depressiva
e se tratava com Lacan. Uma noite de 1965, depois de chegarem de um jantar, ela
sofre uma crise de desespero e se joga da varanda do quinto andar do apartamento
em que o casal vivia, na rue Gay-Lussac. Angustiadíssimo, ele se muda para o quai
Voltaire. Lydie Lachenal, sua editora, o vê chorando e soluçando na Pont Royal.
Soupault permanecerá só, durante oito anos, até reatar as relações com sua antiga
esposa Ré, em 1973, vivendo, cada um em seu apartamento, num mesmo prédio da rue
Geo Chavez, no vigésimo arrondissement.
Soupault reclamava das “démarches” que tinha de fazer
“auprès des éditeurs”. Intitulava-se um “Poète, vagabond. Voyageur. Contestataire”.
Declarava que nunca se levara demasiado a sério: “je ne suis pas sérieux, j’ai d’autres
ambitions”. Tanto melhor, pois assim ficou
livre de funções nas quais não estava interessado.
Foi-lhe concedido o Grande Prêmio de Poesia da Academia
Francesa em 1972. Suas Mémoires de l’oubli
em quatro volumes, publicadas em 1973, abrangem o período de 1897 a 1933. Contêm
artigos escritos para revistas como Excelsior,
L’Europe Nouvelle e Petit Parisien, sobre suas viagens aos Estados
Unidos, à Alemanha, à República Tcheca e à Rússia. Nos primeiros volumes, ele comenta
as mundanidades de Cocteau e as decisões coléricas de Breton. A Éluard refere-se como “un homme dont le désespoir
est beau comme la folie”. De Aragon dirá que “détient un record magnifique, celui
de l’insolence”. A respeito de Tzara: “plus je le connaissais, plus je l’admirais”.
De Apollinaire: “qui me prit par la main et qui me monttra ce qu’étaient la poésie
vivante et la pénitence du feu”. No quarto volume, que trata do período de 1927 a 1933, ele escreve sobre
grandes figuras como Picasso, Salmon, Gide, Joyce e Beckett.
A atividade profissional de Soupault foi a de produtor
de rádio, até a aposentadoria, em 1977. Em Vingt mille et un
jours, entretiens avec Serge Fauchereau,
livro de 1980, ele declara preferir a discrição e a modéstia: “je suis un homme
qui préfère se croire un raté qu’une vedette”.
Em diversas entrevistas concedidas aos meios audiovisuais,
veiculadas atualmente no Youtube, Soupault fala de sua vida. Declara, entre outras,
que o sucesso diminuto não lhe causava o estresse da vaidade, porque não se sentia
vaidoso, porém orgulhoso. Como exemplo de que não se sentia um escritor de grande
êxito, cita o fato de que seu livro mais vendido foi o romance que escreveu a respeito
de seu tio Louis Renault, o qual, insatisfeito, comprou todos os exemplares para
evitar que a obra fosse difundida.
Já em seus derradeiros anos de vida, numa entrevista
concedida ao cineasta Bertrand Tavernier, para o documentário intitulado Histoire personnelle du surréalisme, o poeta
se diz ateu e afirma que a morte não o inquieta. Os amigos que vira morrer, nos
quais pensava sempre, significavam para ele uma experiência mais difícil do que
pensar na própria morte. Só os amigos que restavam lhe davam vontade de viver. Reitera
que não quer ninguém presente a seu enterro, pois em tal momento a discrição precisa
ser de rigor.
O realce do automatismo, o gosto pelo insólito e
pela rejeição das formas fixas, características de sua desconcertante poesia, dão-nos
o tom de sua criatividade. Breton destacou sua capacidade de romper com a “vieillerie
poétique”, deixando o poema tal como ele vinha e não se arrependendo de assim proceder.
Esse método ou ausência de método, constituía a principal contribuição de Soupault
para a liberdade e o frescor criativos.
Alguns dos poemas que mais aprecio da lavra soupaultiana,
como Aujourd’hui, demain, hier; Estuaire;
Tous ceux qui ne disent rien; Danser la capucine e Funèbre, estão gravados em música pelo talentosíssimo compositor e
cantor Bernard Ascal. Nunca me cansarei de ouvir, prazerosamente, esse disco de
24 poemas, autênticos hinos à vida, em que a verve do poeta flui com naturalidade
e espontaneidade, em mensagens fraternas, com a fértil irreverência de seu pensamento
inquieto, explorador do insólito. Bernard Ascal orquestrou e canta, com o charme
de sua voz grave e arrastada, a poesia de vários poetas. A essas maravilhas de sua
compilação poético-musical, Ascal deu o nome de Les voix de la poésie. A coletânea dedicada a Philippe Soupault tem
o título de Chansons d’aube et de crépuscule.
Na 24ª faixa, desfruta-se da dicção luminosa do poeta, na leitura de La glace sans tain, um trecho de Les champs magnétiques.
Em Tous ceux
qui ne disent rien, o poeta demonstra a compreensão afetuosa com que se identifica
com as criaturas simples e humildes. Observa-lhes a fragilidade que parece revelar
que viver é estar perdido na dispersão e na impermanência. O paradeiro e o repouso
dessas pessoas anônimas, que existem sem que delas nada saibamos, são imaginados
como um espaço onde estão catalogados os achados e perdidos em ordem de insignificância:
Tous ceux qui ne disent rien
et qui pensent encore moins
la foule qui se fane au clair de lune
les inconnus qui ne savent pas
quoi faire de leurs mains
qui portent une tête sur les épaules
parce qu’ils craigent de se faire remarquer
les gens qu’on voit tous les jours
et qu’on ne reconnaît jamais
ceux dont on ne sait pas le nom
et qui vous sourient comme à un complice
les femmes couleur de murailles
portant des enfants nés avec la pluie
les garçons qui déjeunent de soleil
d’eau fraîche et de l’air du temps
les amis sans amitié sans médailles
les frères qui ne vous saluent plus
les filles qui ont peur de vous ressembler
les ombres sans voilles et sans passé
vous pouvez tous les réclamer
au bureau des êtres perdus.
Seu canto humaníssimo, cheio de referências generosas,
reitera sua afinidade com o mundo incógnito dos tipos contemplados no poema, protótipos
da modéstia que ele mesmo apregoa: os que nada dizem e nada pensam, a multidão que
definha sob o plenilúnio, os desconhecidos que não sabem o que fazer com as mãos
e têm uma cabeça sobre os ombros porque temem ser notados, as pessoas que vemos
cotidianamente e que não reconhecemos (…), são objeto de um registro sem qualquer
transcendência, pois que a condição humana é essa espécie de perdição ou de desencontro
de si mesmo.
O poeta resolve a equação, no final do poema, com
uma solução surpreendente e inquietante: “vous pouvez tous les réclamer au bureau
des êtres perdus”. A ambiguidade entre requerer ou resgatar essas almas extraviadas
no escritório dos seres perdidos remete a entendê-las como objetos de um mundo em
que o ser é desumanizado pela massificação, pela coisificação e pelo anonimato.
Transparecem, na sua poesia plena de humor e compreensão
fraterna, tanto a leveza quase inocente de um menino quanto a delicadeza de um cavalheiro
receptivo. Transbordam tais características, como graça hilariante, neste Estuaire:
Vous
les navigateurs
que d’une seule main écartez le vent
vous qui préférez les étoiles
je vous attends près de l’horizon
(…)
allez vous que n’arriverez jamais
je ne vous oublie pas.
Aqui se confirmam a fluidez de expressão e o espírito
acolhedor do poeta compassivo, que magnifica sua solidariedade aos navegantes que
singram à deriva os mares turvos e turbulentos, com a extravagância de almejar as
estrelas.
Aplaudir a ousadia dos sonhadores e visionários significa
certamente aproximar-se deles, mediante a utopia da arte, que Soupault não hesita
em reiterar como um capricho de impossíveis atitudes, em Danser la capucine:
J’envie de nager
nu comme un poisson dans l’eau tiède
d’une rivière phosphorescente
ainsi qu’aux plus beaux jours
entre onze heures et minuit
et puis et puis et puis
il faut ensuite dormir
Bonsoir bonne nuit bonne année.
Funèbre é um poemeto de que Jacques Prévert muito gostava
e cuja divulgação foi motivo de aproximação entre ambos os poetas, já que Soupault
declarava admirar a poesia de Prévert, pela simplicidade da expressão e pela dedicação
às questões fundamentais da vida. Nesse texto minimalista, Soupault diz tudo em
poucas palavras, como deve ser a boa poesia, e deixa ressoar a repetição do anúncio
fúnebre, artifício suficiente para atribuir o grave tom imagético na dolência do
tema:
Monsieur Miroir marchand d’habits
est mort hier soir à Paris
il fait nuit
il fait noir
il fait nuit noire à Paris.
Philippe Soupault faleceu no dia 12 de março de 1990,
com 92 anos. Fumante inveterado, foi o mais longevo dos poetas surrealistas. Legou-nos
incalculável patrimônio lírico.
MÁRCIO CATUNDA | Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros.
JULIA SOBOLEVA | Nascida na Letônia, 1990, é uma artista de mídia mista baseada no Reino Unido. Seus processos envolvem pintura e colagem em imagens fotográficas encontradas, além de performance e vídeo. Nascida e criada em uma era pós-soviética e não sendo capaz de encontrar seu próprio lugar contra o passado complicado de sua nação, Julia explora as noções de loucura e realidade, família, tabu e trauma transgeracional em seu trabalho. Ela obteve um mestrado em ilustração na Manchester School of Art e passou a trabalhar como educadora e ilustradora freelance. Entre suas mais recentes exposições, destacam-se “Einblick 6: Julia Soboleva” Hamburgo, 2021), “I Have Found the Light in the Darkness” (Itália, 2021), “Danse” (França, 2021), “Please Don’t Mind Me While I Ugly Cry” (Grécia, 2022), e “The Rogues Gallery” (on line, 2022).
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 08
Número 207 | abril de 2022
Artista convidada: Julia Soboleva (Letônia, 1990)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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