domingo, 24 de abril de 2022

FLORIANO MARTINS | Aos leitores, os mistérios de Zuca Sardan

 


Em um livro intitulado Os mystérios (1980), Zuca Sardan logo em seu pórtico traz a seguinte tabuleta mágica:

 

Sócrates dizia: Conhece-te a ti mesmo. O corujão revoa pela sala e volta a pousar sobre a pálida caveira. “Mais um traguinho de cachaça?”

“O verdadeiro mistério é o que não pode ser desvendado. Só se desvenda o que não era o mistério.”

Encontrei a Esfinge num pequeno asilo de subúrbio. De tão velha, já estava de memória meio fraca. “Como era mesmo o nome daquele rapaz? Édipo? Sigismundo? Não me lembro mais… O fato, porém, é que um homem galante jamais tiraria o véu de uma dama…”

 

Embora nem de longe se deva pensar na chave do mistério, sendo ele em si e não a sua decifração o que mais importa, é bom se ter em questão que o paradoxo é uma espécie de tábula rasa invertida, onde o propósito não carece de explicação antecipada, pois ele vai se formando – e consequentemente se alterando – a cada passo. Na obra de Zuca Sardan (Brasil, 1933) a lâmpada se interroga tanto pela escuridão quanto pela claridade, e sua descontraída estratégia se define pelo jogo de um elemento em seu contrário. O próprio autor já nos dirá de que modo vão surgindo os traços de sua criação:

 

Minha criação se faz muito por conta própria. Não sou o Édipo que desvenda a isca traiçoeira do enigma, desvenda uma xarada de infantil simplicidade. Embora pareça triunfar, tão só desencadeou uma sequência de fatos terríveis e inexoráveis, que nada tinham a ver com sua óbvia resposta. O seu Destino Terrível foi desencadeado pela inanidade de sua simplória resposta. Mas… se não respondesse nada… a Esfinge o devoraria. E se respondesse por um novo enigma?

 

Esta foi a sua satírica opção: fazer aflorar dentro de uma charada outra inquieta provocação, um sutil latifúndio de zombarias, onde a verdade a cada instante ameaçada de ser revelada se convertesse em novo burburinho de sombras desossadas. O seu poema sempre fez de tudo para não sê-lo, e quase sempre o conseguiu. Relato de assombros, anarquia de sentenças burlescas, contos de expiação, engodo de fábulas, sempre sob a severa vigilância da baderna geral.

Porém seu mundo de vibrações macarrônicas nasce em outra pedra. O deus do humor primeiro se divertiu em outras boleias, viajante de formas e temas em outras estradas. O traço é seu primeiro verbo. Rabisco alegórico, festim de riscos, recortes, a imagem revelando a alegria de uma figuração. Naturalmente é impossível separar as duas traquinagens. Basta ler o que lhe escreveu certa vez Alcides Villaça:

 

Embora os poemas tenham inequívocos contornos da sátira e da paródia tradicionais, dedicam-se também a um convívio estreito e simpático com o objeto do riso, como se não pudessem expurgar de todo a solenidade hilarizada.

 

Cabe aqui indagar ao próprio Zuca como ele fez brotar essa vazante cênica de sombras projetadas no abismo. Teatro, fuga, pastiche, como ele teria abordado essa antropofagia do riso e da ironia.

 

o traço aos oito, a poesia aos 23, e meu primeiro livro, com traço e poesia, saiu em setenta e… plek!! plek!!, em 1956, ou 57, sem usar o sobrenome, porque meu pai era um figurão na arquitetura e na pintura, e eu não queria aparecer de filhote do gênio. Quis também disfarçar o prenome de drama-chique, Carlos Felipe, só guardando as iniciais. O nome-de-pluma era Conde Fantaz. Mas meu pai reclamou, muito reacionária, essa frescura de Conde, então acabei de pirata, o Capitão Fantasma, para evitar o Carlos Felipe… Aliás, o Capitão Fantasma seria o herói do poema-folhetão do Conde Fantaz… Mas minha mãe reclamou do Capitão Fantasma, um grosseirão, e preferia o elegante Conde Fantaz. Meu pai não disse nada, era um soberano iluminado, e nosso pequeno reino, um exemplo paradigmático do Quinto Império, procurava manter o equilíbrio entre a elite e a classe estudantil, e… um tratamento gentil da Casa Grande pra sua fiel Senzala, grata à Casa Grande: tínhamos Cozinheira, Copeira, Lavadeira… Mas Tia Olga, figura extraordinária, mantinha uma Casa-Grande colossal, para dar emprego, e habitação a um batalhão, tinha inclusive um preto velho finíssimo, retardado mental, não sabia ler, nem fazer nada, mas tinha uma finesse de Lorde Inglês, falava com sotaque empolado, e contava coisas para mostrar sua erudição, o que fazia Tia Olga rolar de rir. Na Geografia, conhecia os países: Itália, França, Brasil, Buenos Aires, China e… Pau Norte. Tia Olga, recebia sempre uma plêiade de Damas Chiques para o chá. Com seu humor patafísico, dizia-lhes que seu Mordomo José era engraçadíssimo e o fazia entrar no salon para maravilhar as Damas. Elas adoravam, mas quando eram arrogantes, Tia Olga no final dizia ao Mordomo: E agora, José, mostre às Damas como você sabe Geografia.

 

Em casa foram surgindo os personagens e motes que deram origem ao universo de sua criação. A família acenava com o script que Zuca Sardan foi transformando em experiência patafísica. Logo em um primeiro momento ele foi erguendo uma ponte fascinante entre o traço e o verbo, ou seja, a caligrafia. O livro Os mystérios, por exemplo, era todo composto em manuscrito, as linhas que ampliavam o mistério de sua aventura satírica. Um elo encantador e eficaz está marcado pelo humor e suas variantes, por vezes umas gotas de sadismo sutil, outras de pura molecagem. Voltemos à bela apresentação de Alcides Villaça para seu livro Ás de colete (Editora Unicamp, 1994):

 

O humor de Zuca Sardan faz pensar num meio-termo cediço, que tanto supõe a radicalidade cortante das garras de aço quanto o amortecimento civilizado das garras de pelica. O poeta simula conciliar, para efeito de irrisão, o que de fato acaba conciliado, na forma de perturbações poéticas. Talvez porque o humorista, quando vem combinado com o poeta, já não se distancie completamente de seu objeto, vinculando-se a ele pelo que há de empenho íntimo em toda formalização artística bem-sucedida. Como num teatro de sombras, as criaturas projetadas denunciam, em outro plano, as tentativas de fuga do seu criador.

 


Cabe lembrar que essas perturbações poéticas em momento algum são feridas por um desmazelo da linguagem no sentido de um escorrego técnico, mas que estão elevadas a uma mais-consciência estratégica, a exemplo das recorrentes aspas e exclamações ou de inúmeros vocábulos distorcidos em sua grafia. O ludismo com que trata as palavras bebe na mesma fonte das constantes mutações em nomes de personagens. Alcides Villaça acerta ainda ao remeter essa criação fascinante a um teatro de sombras, pois desde o princípio o que vemos na criação de Zuca Sardam, tanto no verbo quando no traço, é seu encaminhar perene para o palco. Um teatro de vibrações espontâneas que ele próprio irá batizar de guinhol, um tipo singular de apropriação do teatro de fantoches, onde a realidade é projetada como motivo de zombaria, escárnio, anarquia. Ao conversar com ele, me disse:

 

Comecei a escrever teatro aos poucos e, sem sentir, minha poesia foi se tornando espontaneamente cada vez mais dialogada, sempre tentando evitar falar na primeira pessoa para não começar a cascatear as minhas verdades. Sempre eu usava heterônimo, o primeiro foi o Professor Fumegas, que começava a cascatear as grandes verdades aos demais personagens que, ou eram seus alunos ou outros luminares poucos dispostos a adotar a macarronada do Fumegas. Mas a dialogação, a partir daí foi se ampliando para outros personagens, assim o Vosco da Gamba, nas suas discussões com sua belíssima Nereida Thétis, deu origem a uma Odysséia marinha, as Tettas de Thétis em dez volumes de 36 sextilhas, cada sextilha contando pelos três lances de dado. Assim o leitor tinha um oráculo pronto, era só lançar o dado três vezes, e conferir o resultado de que a numeração consta segundo a ordem dos resultados das três jogadas. Então, sempre fazendo poemas e contos, comecei também a fazer contos-teatrais, que achei divertido chamar de guinhóis, la Commedia, para ressaltar a presença do humor e do improviso. Em 1980, com João Padilha, meu colega diplomata, que veio a Moscou pra reforçar a equipe da Embaixada, que deveria se ocupar em dar assistência aos esportistas e turistas brasileiros que vieram para as Olympíadas de 1980, imaginamos aprontar em dupla uma paródia de reportagem das "Olimpíadas Sociais", com cenas improvisadas de pessoas em atividades atléticas urbanas, pegar bonde andando, viajar no teto de trens, fugir da polícia com o tabuleiro de muambas etc. etc.... e no texto apareciam montes de diálogos, que fazíamos em parceria (Almanach Sportivo, de João Padilha e Zuca Sardan, ed. marginal, 1981, RJ), Mas depois de novas tentativas furadas, um dia Zuca e Floriano sem planejar … fomos dialogando nossa correspondência, nela colocando personagens vários, que inventávamos pra colorir nossa conversa. A partir daí fizemos uma quantidade extraordinária de peças em nosso Theatro Automático, já perdi a conta de quantas, mantendo sempre o princípio do improviso e do humor levemente moleque, de vez em quando, aliás, escorregando para a porcalhada, entra o Marquês Safade em cena e nenhum dos dois assume a responsabilidade. Tempos depois, conheci a Ana Borges, que para as nossas atividades de artistas, adotou o heterônimo de Ana Borgia, neta do Papa, timoneira do nosso Pasco Bexiga, um blog libertário, que conta com a proteção de seu Papa de Santo. A seguir Pedro Alvim, ou PedroK, meu amigo de há mais de 50 anos, ingressou e assim adotamos o guinhol no Pasco, onde sempre trocamos ideias sobre as artes.

 

Por vezes penso que desde o momento em que nos conhecemos – e este conhecimento até hoje não ultrapassou a barreira da virtualidade, o que o torna mais revelador, considerando a rica intimidade de nossas aventuras automáticas –, jamais cessamos uma inquieta conversa que esplende em tentações de realização criativa. A primeira peça que escrevemos, por exemplo, Circo Cyclame (ARC Edições, 2016) tem início justamente a partir do momento em que observamos que uma recente troca de e-mails apontava na direção de um diálogo cênico entre dois loucos, Zé Larica e Mago Kefir. A peça nasce daí, da colagem desses e-mails travessos, truque que empregamos em muitos outros momentos. E proliferam de um modo curiosamente irrefreável. Uma correspondência diária há mais de cinco anos cria cenários e tramas, incluindo também desenhos e colagens fotográficas, como uma torneira que houvesse se desfeito de sua engrenagem de controle dos jatos de água. Zuca observa que nossas entrevistas lembram o Eterno Retorno do Nietzsche. Mas a Lou Salomé não se arrisca a aparecer… parecendo que o Sineiro Corcunda a deixa meio desconfiada… É possível, tanto que de imediato evoco o Mago Kefir do Circo Cyclame, abstraindo que os diálogos ininterruptos são os panos cerzidos por ele, que está decidido a bordar uma nova aurora boreal. Por isto oculta sempre que possível o ponto final nos devaneios de todas as quimeras. E logo Zuca rebate: Acho que o Mago Kefir não sabe botar ponto final, tal como as aves Dodó da Ilha da Páscoa não sabiam botar ovo final, e acabaram extintas. Uma simples conversa – nossos teletros, segundo ele – logo se transforma em argumento para uma nova trama. Ao que parece o simples bater do coração é o estopim para acender lamparinas automáticas por toda a casa.

A linguagem encontrada nesse teatro é uma casa múltipla de encenações que enlaçam inúmeras cenas de figuração, no ambiente tanto plástico quanto verbal. As tensões de ambientações que se duplicam a cada sugestão, de tal modo que na criação de Zuca verbal nos deparamos com o que poderia ser o desenho, a caligrafia, a história em quadrinhos, a fábula, a paródia, a colagem, tudo isto embrenhado em uma vazante de codinomes que sugerem ser os personagens do abismo existencial do próprio criador. Por isto mesmo que não caberia referir a sua criação como a fatalidade simbólica deste ou daquele recurso de linguagem. Tanto seu herói quanto o próprio tempo da narrativa se esfumaçam na premeditação de um desvario ou encanto maior. Uma leitura esclarecedora desse ramo de perspectivas a encontramos em um texto curtinho de Francisco Alvim, que aqui reproduzo na íntegra:

 

O herói de Sardan é um ser metamórfico (e metafísico) a oscilar entre a fralda e o fraque, a chupeta e o cavanhaque: capaz de grandes tiradas filosóficas e ainda não desmamado de tetas opulentas. Personagem de uma idade inconcebível, espécie de infância vetusta, onde transitassem bebês-anciãos. Sardan utiliza os encantos dos mitos infantis para melhor desvendar aos adultos os desencantos do mundo. São fábulas e apólogos narrados com uma delicada pena de urutau, constantemente banhada em ironia e humor sem equivalentes nas letras pátrias. É como se ele relatasse para nós a vida (o mundo) como ela (ele) é e a gente não se desse conta. Porque tudo vem naquela tonalidade sépia – tão própria das páginas antigas; e, suprema malícia, ficamos quase sem saber se estamos lendo um texto atual, adulto e crítico, ou se se trata de um disfarce, a partir de uma daquelas historietas do Livro de Belas Ações do velho Thesouro da Juventude; ou de uma simples e comovida homenagem a Reco-Reco, Bolão e Azeitona.

 

Aí está o lembrete valioso de que Zuca Sardan rasgou há muito a cartilha dos gêneros literários, que não encontra senão na ambiguidade a evidência ardilosa de um mundo a ser remendado. As letras pátrias jamais o compreenderiam, pelos traços anímicos do mais desconfortante absurdo, aquele que em que somente o humor pode abrigar (jamais salvar) a fruição existencial. Zuca está fora do páreo dos homens sisudos das sociedades humanas, a começar porque sua palavra, referente aos modelos sociais, será sempre zombeteira. Ao conversar com ele sobre a forma de diálogo encontrada para relacionar verbo e traço, ele rapidamente observou:

 

São pensados como uma coisa só, cada um só de per si. O poema pensa nele só, e não dá conta a ninguém, nem a mim mesmo. O desenho, se for ilustrar, o desenho se inibe, acha que o poema se acha o próprio Dante, e ele não está a fim de bancar o Gustave Doré. Preciso fazê-los separados, senão eles brigam. A seguir o trabalho despenca em cima de mim, de saber qual desenho é para tal poema, e qual poema é para tal desenho.

 


Contudo, a intimidade entre ambos é tanta que morreríamos enganados acreditando que nascem coladinhos um no outro. Peguemos um de seus livros fabulosos, Zaz Traz (Loplop Editora, 2015), onde os dois elementos se misturam resultando em uma série de vinhetas gráficas que se utilizam de desenhos, textos anônimos, fragmentos fotográficos, manuscritos rasgados etc., mais além do réquiem sofismático de uma poesia visual, por ser mais rico em seu tear simbólico, ao mesmo tempo em que tricotando argumentos de um humor negro, com imagens que parecem por vezes retiradas de uma máxima de Jonathan Swift: Perguntei a um homem pobre como vivia; respondeu: como um sabão, sempre diminuindo.

As páginas de Zaz Traz, como salienta Marcus Salgado em seu prólogo, são icônicas no enquadramento de um humor corrosivo, que certamente teria cabida nas páginas da Antologia do humor negro de André Breton, caso este também se lembrasse de Rabelais e de A little girl dreams of taking the veil, de Max Ernst; para citar dois parentes bem próximos de Zuca Sardan, embora em seu Zaz Traz o brasileiro tenha evitado o uso de legendas, certamente que para dar à imagem, ao olhar, à visão, um maior poder sugestivo. Recordemos Swift uma vez mais: A visão é a arte de ver as coisas invisíveis.

E quando chegamos aqui nos pusemos uma vez mais ao exercício irrequieto de trocas de e-mails, agora mesmo:

 

ZUCA | Gosto do Surrealismo por sua irreverência aos Tabus da Arte Sublime, ao filme L’Âge d’Or, e aos expulsos gênios De Chirico e Salvador Dalí.

 

FM | Mas é só? Ou melhor, não te sentes surrealista de algum modo?

 

ZUCA | Sim, mas não quero fazer alarde, porque oficialmente o Surrealismo acabou. E talvez seja melhor que não descubram que continua… ou volta tudo ao que era dantes… e o Comitê Central de Paris recomeça os expurgos… e nos lançarâo pela janela. Por cautela… trocarei minha bengala por um guarda-chuva de Leonardo da Vinci… Vi uma réplica num Museu de Torino.

 

E de imediato Zuca começa a lançar mão de sua estratégia de golpe final, trazendo ao palco as tiradas afeitas a fazer com que se baixe a cortina. Em nossas peças este é sempre um momento ardiloso, onde anunciamos, em vários momentos, o fim ao qual não se pretendo chegar.

 

ZUCA | Estamos no Fim da Rotação dos Milhões de Milênios da Roda do Eterno Retorno… Resta saber se a Roda voltará ao Ponto Zero… ou… recomeçará a Rodar ao revés, e os acontecimentos voltarão a se repetir, mas às avessas, do fim pro começo…

 

FM | O gemido principal dessa roda de suplícios será aquele que ao tomar fôlego já não recorde por que estava gemendo.

 

ZUCA | Geme por um pecado terrível que cometeu no passado, e que agora retornará, no giro ao revés, da Roda do Tempo.

 

FM | Mas o Pescado por vezes não cabe na Piscada Fatal, aquela piada que sugere que quando se é demasiado acusado de loucura o melhor a fazer é mesmo ficar louco.

 

Agora já se sabe que é imenso o risco desse ensaio se tornar o mote de uma nova peça de teatro. Talvez seja o momento de preparar a cerimônia da cortina, começando pela bibliografia do poeta, cujo nome começa a despertar atenção a partir de sua inclusão na antologia 26 poetas hoje (1976), que então reunia o que se supunha ser o mais expressivo da poesia brasileira. Logo foi a vez de uma sequência de livros individuais: Os mystérios (1980), Osso do coração (1993), Ás de Colete (1994), Babylon (2004), Ximerix (2013), Voe no Zeplin (2014), Xorok Kopox (2015) e Zaz Traz (2017). A partir de 2016 começa a publicar as peças de um Theatro Automático, escrito a quatro mãos com Floriano Martins: Circo Cyclame e O iluminismo é uma baleia, neste mesmo ano, logo seguidas de Farelos do Mytho (2017), Asilo de farsas (2018), Fabulário Porquinhol (2019), Oráculos profanos (2020) e As sete tragédias de Sardanelo & Martinico (2021).

Mesmo considerando as dúvidas de Zuca Sardan sobre a funcionalidade das catracas da Roda do Eterno Retorno, não custa nada dá uma olhada no primeiro livro que aqui mencionei, Os mystérios, atento aos meus descuidos no alinhavado dessas notas, a todo custo tentando evitar o deslize do genial alfaiate que acaba por nos revelar: A minha grande imprudência foi não me lembrar de que assim como há indivíduos palermas, também existem Reinos cretinos.

Isto posto, não resisto. Baixo a cortina. Mas antes de tudo comunicando que haverá um brevíssimo intervalo onde o fim mal pode esperar por sua coda inevitável:

 

CODA | A CALOTA POLAR DO SURREALISMO

Diálogo automático entre Floriano Martins e Zuca Sardan

 

FM | A grande revolução é o livre arbítrio, essa fonte perene de ilusão. O ser verdadeiramente subversivo é aquele que se recusa incondicionalmente a participar de quaisquer tertúlias e de seguir suas leis. As religiões, resguardadas pelo manto da Política – essa Ciência eternamente à deriva –, levaram o homem a trajar uma farda, a seguir uma cartilha. Lembro aqui uma frase de René Magritte, ao dizer que a liberdade é a possibilidade de ser e não a obrigação de ser. Como entendes que o Surrealismo tenha reagido a essa imagem?

 

SZ | O livre arbítrio é privilégio do Tirano. Quanto mais poderosos seus Marechais, mais livre é o arbítrio do Tirano, que vai tomando matizes místicas, valorizadas pelo Sacerdote, assessorado pelo Sacristão, para o celestial deleite das Beatas; e as majestosas Missas Solenes, ao som de órgão e coros de vozes angelicais, com toda a corte presente. Quanto maior o poder do Tirano, maiores as procissões pirambeira acima, com os burricos arrastando pianos, e beatas despencando no precipício… Pro Tirano Azteka, já sacrificavam Beatas e Carolas durante a Missa, sendo estripados na Sacristia, por hábeis cirurgiões, em cenas gravadas em baixos relevos da melhor qualidade estética. Na Grande Guerra de 14, os estripamentos eram feitos ao ar livre, em trincheiras arejadas, com granadas e gazes tóxicos, para que o martírio dos soldados valorizasse o Patriotismo e o Espírito de Sacrifício de toda uma geração espetada nas baionetas… No final da Grande Guerra, caíram os reis de cambulhada, só restando os Reis: de Espadas, de Copas, de Bastões, de Ouros, e… da Inglaterra. A revolta contra o massacre gerou o Dadaísmo, que negava todos os valores num niilismo total, e o Surrealismo que queria criar novos valores, de Vida, Amor e Liberdade. Mas os missais e cartilhas ideológicas, novidade trazida pelo Bolchevismo, seguiram fanatizando as multidões, ao paroxismo de chegarmos a um Tirano fanático possesso na Alemanha, que gritava, rolava e babava, para delírio de uma população fanatizada, e nova Guerra Mundial explodiu, com milhões de vítimas… A liberdade de ser é relativamente possível… mas da obrigação de ser já é mais difícil se livrar, pois a sociedade, sobretudo nas ditaduras, quer operários para sua poderosa indústria e robustas camponesas para sua agricultura.

 


FM | Evidente que aí está o caldinho de cultura que vai destronar o humanismo recém-descoberto, o paredão quase de todo invisível, ou visível apenas por um lado, que separa a essência em duas circunstâncias. Quanto mais trotam os pangarés da ilusão o homem se declara inimigo de si mesmo, desejoso de aniquilar a outra metade que não comunga com seu credo de reprimendas. Também o Surrealismo imprimiu uma cartilha, adotou os mesmos vícios de qualquer corte, e tratou de empalar os discordantes. De positivo, no entanto, havia a intenção de acabar com a periodização dos cultos escolásticos. Intenção estampada em voz altíssima, mas que não impediu que na segunda metade do século passado voltassem a surgir pequenos focos de ismos anacrônicos. Mesmo no interior do movimento, talvez pela crença de que todo acaso resulta em arte, foram surgindo imagens – plásticas e poéticas – diluídas, uma espécie de contrabando de ganhos estéticos de seus artistas maiores. A não-escola ocasionalmente gestou uma fabriqueta de moldes nas sombras. Novo sumo relevante daí se extrai, o de que não é devido separar as luzes da harmonia da criação artística. Uma vez aberta a porteira, por ali passam as melhores e piores intenções, assim como todas as formas de acertos e equívocos.

 

ZS | É verdade, também o Surrealismo, na fase heroica, publicou suas cartilhas, na década dos vinte, quando a Revolução bolchevique ainda guardava uma áurea de revolução dos trabalhadores e campônios que instaurariam as bases de uma nova sociedade, para libertar a Humanidade das garras da Plutocracia Capitalista e estabelecer o fim do Sistema de Classes. Para tanto, inicialmente, tendo de consolidar seu poder frente a uma Europa agressiva, que os queria eliminar, os Comunistas necessitavam de um Governo autoritário. Com o autoritarismo, vieram as autocríticas dos acusados de alegadas faltas ideológicas, os expurgos… Todo esse sistema frenético usado na União Soviética, foi adotado pelos Surrealistas, que fizeram seus julgamentos e expurgos, de que sofreram, entre outros, Dalí, e De Chirico… Não houve muito tempo para André Breton e seus próceres do comando do Movimento se indagarem se estariam agindo corretamente, porque logo veio a Segunda Grande Guerra, que levou tudo o mais de roldão. Finda a Guerra, palco das matanças e barbaridades inenarráveis, e dividido o Mundo em dois Blocos irreconciliáveis, as antigas ideologias e movimentos artísticos perderam sua atualidade. Agora, então, aquele sistema de Comitê-Central, acusações e expurgos, não fazia mais sentido. Talvez por isso, um ano após o falecimento de Breton, a Chefia de então, do Movimento em Paris, resolveu dar o Surrealismo como Movimento que passava para a História e se extinguia. O que talvez tenha sido o melhor que poderia acontecer, pois o Surrealismo ficou assim livre de suas cartilhas de mandamentos e dogmas dos Pais Fundadores, que haviam, justamente, passado pra História.

 

FM | O problema das cartilhas é que sua intromissão se dá também no plano da criação, pelo estabelecimento de regras – pendam para o conteúdo ou para a forma – que brochuras inaceitáveis. Em 1935 dizia Breton: Nós nos levantamos em arte contra toda tendência regressiva que tenda a opor o conteúdo à forma para sacrificar esta àquele. A passagem dos poetas autênticos de hoje para a poesia de propaganda, muito exterior, como tem sido definida, significa a negação, para eles, das determinações históricas da própria poesia. O que não se percebia então é que logo seria dado um passo no sentido inverso, o de retornar ao Parnaso em que o conteúdo era submisso à forma. A França foi um desses países que sofreu muito com a extinção da força criativa do Surrealismo. Naqueles ambientes em que composição e discurso atuavam de modo alquímico – podemos pensar no Japão e em grande parte do continente americano – surge um Surrealismo renovado, que, mesmo no caso da aparição de novos grupos surrealistas não perdem sua potência criativa que não comprometa o plano individual. Evidente que entraram em campo alguns elementos que os surrealistas da primeira hora sequer poderiam imaginar, no que diz respeito à produção e consumo de obras de arte. Breton chega a dizer, em 1952, que era inaceitável a humilhação da arte frente à ciência, mas não era este propriamente o caso, a humilhação era determinada pelo próprio homem e a usura que lhe era lastimavelmente peculiar.

 

ZS | A frase de Breton, de 1935, foi corajosa e lapidar!… face à poesia de propaganda ideológica que então aumentava, estimulada pelo antagonismo crescente entre fascismo e comunismo. Nos dias de hoje o perigo persiste, face à arte de propaganda… comercializada, que organiza os valores da moda. Inicialmente eram bons artistas, que criavam obra conceitual, tal Duchamp, Schwitters, Beuyus, mas o sucesso público desses poucos, não tanto pela qualidade, mas sim pela singularidade pessoal, valorizada pela imprensa, serviu de plataforma de lançamento da arte neo-dada comercial, um saco de gatos onde se enfiam artistas diversos, pouco importa eventuais qualidades, produtos de galeristas-empresários, com grande senso de mercado, mas nenhum preparo cultural.

 

FM | O cenário foi se degradando de modo a perder-se Ariadne e não saber mais como regressar ao lar. É uma árdua tarefa hoje imaginar como dissolver o mercadão e seus efeitos corrosivos sobre a cultura. A começar pela confusão intencional entre arte e entretenimento, piorada com a entrada em campo de um receituário moralista o mais fraudulento possível. Evidente que os tempos mudam, os conceitos se modificam, as tolices proliferam e o mundo persiste em um encadeamento de baixos costumes. Impossível dizer se as escolhas foram desastrosas, se os mitos foram insuficientes. A publicidade coseu o espírito humano dentro da boca de um sapo de louça e o reproduziu como a peça mais kitsch de seu bestiário. O próprio consumidor se tornou um objeto de consumo, o mais abjeto possível.

 

ZS | Os Consumidores entrarão proximamente entre as mais pífias mercadorias, apresentados somente pra valorizar a qualidade dos produtos de luxo da loja… E sempre jogados na oferta de 50% de abatimento. Madame Xaxocavel manda chamuscá-los, para serem mostrados como salvos do incêndio. Saturno, quando a barba branqueja demais, manda pintá-las dum roxo espalhafatoso, e a nova geração aprova entusiasta e pinta de ciclame a melena, e também os velhos que não querem perder a liderança, são os primeiros a pintar dum belo solferino as venerandas…

 

FM | No saldão de ofertas nada restou do Amor, da Poesia, da Liberdade. Posso continuar e retomar algumas discussões sobre Surrealismo, mas indago – sem que isto signifique cair nas mãos da dona preguiça – se este ensaio-diálogo não pode ser finalizado aqui mesmo ou avançamos um pouco mais…

 

ZS | Mestre, o texto já está de bom tamanho, já demos boas tascadas, a continuar o leão vira tapete, a plateia s’esquiva, e derrete-se a Calota Polar. Já destroçamos o Passado (Breton escapou por pouco), o Presente foi massacrado (os Neo-Dadas vão aprontar a manifa de protestos), e o Futuro procura s’escapar… Espichemos só um poucochito para dares o Gran Finale. Já temos vários leitores-consumidores escorchados, o camburão vai chegar. Melhor com tua próxima tirada tu aprontares o Gran Finale. Lembre-se dos filmes da época de ouro de Hollywwood: mortes, estupros, empalações, mas quando tudo parecia perdido, vinha o Happy End

 

FM | Não me confesso muito afeito ao Happy End… Até acho curioso que a teia cinematográfica tanto se apresse a dizer que suas obrinhas são baseadas em fatos reais e não perde a noz dourada do Happy End. O Surrealismo é um desses momentos raros na história da humanidade. Sua persistência é benfazeja, porém quando nos for possível o distanciamento crítico talvez concluamos por uma inabalável situação-limite. Desde o princípio o movimento foi prendado no modelo de seita mal disfarçada, e gerou um sem-número de malucos seguidores de uma ortodoxia inconsequente. Claro, mesmo diante de seus equívocos, foi o movimento artístico de maior influência em todo o mundo – para o bem e para o mal – e ainda hoje se multiplica como um verdadeiro disparo casual na rua. Como ficamos? Contando os corpos e semeando as melhores apólices. Matutando sobre o entendimento de Luis Buñuel de que o surrealismo triunfou no acessório e fracassou no essencial; sobre as impossibilidades de cumprir, ao dizer de Jacques Sénelier, seu primeiro desejo, o de desmoralizar; investigando sempre, como queria Artaud – para quem o surrealismo não foi mais do que uma espécie de magia – de que modo se conseguiu introduzir profundas transformações na escala das aparências, no valor de significado e no simbolismo do criado… Enfim, o substantivo se tornou múltiplo, ao mesmo tempo em que o adjetivo foi virulentamente desqualificado. E aqui estamos. Por sorte, sem Happy End. Como a própria vida, incessante.


 


FLORIANO MARTINS | Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo), e dirigiu a coleção “O amor pelas palavras” (2017-2021), parceria, de circulação exclusiva pela Amazon, entre ARC Edições e Editora Cintra. A partir de 2022 a coleção, embora mantendo seu nome, passa a ser coproduzida por ARC Edições e a revista Acrobata, destinada então à veiculação gratuita de livros em formato pdf. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura.
 

 


JULIA SOBOLEVA | Nascida na Letônia, 1990, é uma artista de mídia mista baseada no Reino Unido. Seus processos envolvem pintura e colagem em imagens fotográficas encontradas, além de performance e vídeo. Nascida e criada em uma era pós-soviética e não sendo capaz de encontrar seu próprio lugar contra o passado complicado de sua nação, Julia explora as noções de loucura e realidade, família, tabu e trauma transgeracional em seu trabalho. Ela obteve um mestrado em ilustração na Manchester School of Art e passou a trabalhar como educadora e ilustradora freelance. Entre suas mais recentes exposições, destacam-se “Einblick 6: Julia Soboleva” Hamburgo, 2021), “I Have Found the Light in the Darkness” (Itália, 2021), “Danse” (França, 2021), “Please Don’t Mind Me While I Ugly Cry” (Grécia, 2022), e “The Rogues Gallery” (on line, 2022).

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 08

Número 207 | abril de 2022

Artista convidada: Julia Soboleva (Letônia, 1990)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022 

 





 

 

 contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário