De fato, os textos
deste seu mais recente livro são narrativas na primeira pessoa do singular em que
os fatos são rememorados “entre névoas de incertezas ou sutilezas oníricas”, como
se o autor desfiasse o novelo da memória, “abandonando-se ao devaneio ou ao pervagar
pelos confins do sonho”, como diria ainda Massaud Moisés. Mas aqui há um acréscimo
que aparece como novidade: o alter ego que comanda o espetáculo rememorado,
ou seja, a tessitura dos acontecimentos de natureza introspectiva, é sempre o de
uma mulher, e não aquele que seria em tese o do poeta. É o que se pode constatar
neste excerto do texto que leva por título “O lugar exato onde se encontra Isabella
Blow”:
(...) O dia é uma exploração do impossível. Sempre acordei
assim, com uma espécie de extravagância me mantendo afastada da morte. Os meus decotes
seduziram todos os corpos, de um modo que a queda sempre foi o meu desafio. Eu mesma
me declarei o extremo de mim mesma, meu despenhadeiro de corpo e alma. Como alguém
que provavelmente saiba identificar a origem do inferno (...).
Dividida em três
seções – Caligrafias do espírito, Representação consentida
e Inventário da pintura de uma época –,
a obra constitui mais uma experiência do poeta em uma trilha marcada pela experimentação
linguística, pela intertextualidade, em sua busca por novas formas de expressão.
Com certeza, o maior estudioso brasileiro do Surrealismo, movimento que teve início
em 1924 na França a partir de ideias defendidas por André Breton (1896-1966), Philippe
Soupault (1897-1990) e Guillaume Apollinaire (1880-1918), Floriano Martins procura
sempre adotar uma linguagem marcada por uma imaginação sem amarras e pelos sonhos,
que é expressa de forma automática, livre de censura ou preconceitos. Procura passar,
dessa maneira, para o papel os conteúdos profundos da mente. É o que se pode ver
neste trecho final do texto intitulado “Liu Rushi:
(...) Travestir a própria identidade era um hábito. Fomos
criadas em um mundo onde a renúncia ao genuíno era a principal das normas sociais.
Toda vida é um bordado lento a caminho do desespero e da tragédia. Tornar-se uma
lenda é como ser proscrita duas vezes. Duas pinturas vendidas a bom preço e apócrifas,
como a própria realidade de nossa existência.
II No prefácio que escreveu para esta obra, o escritor, crítico
e editor de arte, conferencista e jornalista Jacob Klintowitz, do alto de sua experiência
como autor de 192 livros sobre teoria de arte, arte brasileira, monografias de artistas
e ficção, também procura definir a arte de Floriano Martins, observando que “os
textos mais curtos são contos, devido a sua unidade temporal. Mas são igualmente
poesia". E ressalta: “É encantador como o texto se interroga e se comenta de
maneira permanente. Quem será o autor? Tantos personagens, tanta energia feminina,
tantas definições”.
Klintowitz admite,
implicitamente, que é difícil definir a obra de Floriano Martins, mas lembra que
a parte ensaística de seu trabalho está de tal maneira impregnada pelo poético e
pela ficção “que reforça o sentimento de que a nossa época tem a sua radicalidade
justamente na junção dos diferentes”. E observa mais adiante que, em vários gêneros,
é difícil apontar o que é literatura no cinema, o que é movimento no teatro, o que
é roteiro na dança, o que é imagem visual na poesia. E o faz para concluir: “Um
dos exemplos mais marcantes nas últimas décadas é exatamente o livro Sombras
no Jardim”.
Já a poeta, tradutora,
professora e artista visual Elys Regina Zils no texto de apresentação (“orelhas”),
observa que “a arquitetura espiritual com a qual o livro avança envolve o leitor
que é teletransportado para cada uma das distintas realidades que se constroem em
paisagens inquietantes”. E acrescenta: “Assim, o poeta ultrapassa o véu que separa
os mundos para coletar as tintas que irão escrever esses retratos do inesperado
que brota do sussurro íntimo de cada canto das paredes que escondem o abismo individual”.
III Nascido em Fortaleza-CE, Floriano Martins tem se dedicado,
em particular, ao estudo da literatura hispano-americana, sobretudo no que diz respeito
à poesia. Foi editor do jornal Resto do Mundo (1988/89) e da
revista Xilo (1999). Em janeiro de 2001, a convite do poeta e jornalista
Soares Feitosa, criou o projeto Banda Hispânica, banco de dados permanente
sobre poesia de língua espanhola, de circulação virtual, integrado ao Jornal
de Poesia.
Criou em 1999 a
Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições, com mais de
100 livros publicados de autores de diversos países. Estudioso da tradição lírica
hispano-americana e um dos maiores estudiosos do Surrealismo na América, é autor
dos livros de ensaios: Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América;
Escritura conquistada – Poesia hispano-americana; e 120 Noites de Eros –
Mulheres surrealistas, entre outros.
Entre os seus livros
mais recentes, destacam-se: Un poco más de Surrealismo
no hará ningún daño a la realidad
(ensaio, México, 2015), Antes que a árvore se
feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo
(novela, com Berta Lucía Estrada, Brasil, 2020) e El frutero de
los sueños (poesia, Estados Unidos, 2023). Traduziu livros de César
Moro (1903-1956), Federico García Lorca (1898-1936), Guillermo Cabrera Infante (1929-2005),
Vicente Huidobro (1893-1948), Enrique Molina (1910-1997), Jorge Luis Borges (1899-1986),
Aldo Pellegrini (1903-1973) e Pablo Antonio Cuadra (1912-2002), entre outros autores
espanhóis e hispano-americanos.
Esteve presente
em festivais literários realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa
Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá,
Portugal e Venezuela. Foi curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil,
2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), do Concurso Nacional
de Poesia (Venezuela, 2010) e do Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil,
2015). Atuou em 2010 como professor convidado da Universidade de Cincinnati, em
Ohio, Estados Unidos.
Sombras no Jardim, de Floriano Martins, com prefácio de Jacob Klintowitz e apresentação de
Elys Regina Zils. Natal-RN: Sol Negro Edições, R$ 40,00, 192 páginas, 2023.
Site da editora: www.solnegroeditora.blogspot.com. E-mail da editora: www.edsolnegro@hotmail.com.
ADELTO GONÇALVES. Jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.
Agulha Revista de Cultura
Número 252 | junho de 2024
Artista convidada: Ilca Barcellos (Brasil, 1955)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
∞ contatos
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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