Para reparar essa misoginia surrealista,
o poeta Floriano Martins (1957), um dos mais importantes estudiosos desse movimento,
escreveu 120 noites de Eros – mulheres surrealistas
(ARC Edições, 2020), em que traça 120 perfis de mulheres que receberam influência
dos ideais surrealistas e os colocaram em prática em diversas manifestações artísticas.
Trata-se de obra inovadora, pois não se sabe de nenhum outro estudo que tenha tido
esse objetivo.
Obviamente, sempre é possível que alguma
artista, poeta ou escritora em todo o planeta tenha escapado da rigorosa seleção
feita pelo autor que levou em conta principalmente a adesão explícita de cada uma
ao Surrealismo. Só por isso, como observa no prefácio Jacob Klintowitz (1941), o
principal crítico de arte do Brasil, esta obra, com certeza, tem tudo para se tornar
“referência obrigatória no estudo do Surrealismo”, considerando-a “de uma ousadia
extraordinária, pois se confronta, não há como não pensar isto, com os 120
dias de Sodoma, do filósofo e escritor francês Marquês de Sade
(1740-1814), e oferece a sua contradição fundamental”. Para Klintowitz, “à tese
de que tudo é possível devido à ausência de Deus, em Sade, encontra o seu oposto
em Floriano, pois nele encontramos a tese de que a ética, e nela a criação humana,
é uma construção social e psíquica de milênios da espécie humana”.
II | No ensaio que constitui
a primeira parte do livro, Floriano Martins observa que, apesar de o Surrealismo
defender o amor, a poesia e a liberdade, “a mulher permaneceu no momento em segundo
plano, sempre idealizada, inclusive como aparente protagonista de obras escritas
por homens”. Para tanto, ele destaca Nadja, personagem do romance de Breton que
leva o seu nome, lembrando que, apesar da homenagem à mulher, o único protagonista
da narrativa é o próprio autor.
Ou seja, apesar do discurso, a mulher continuou
a ser apenas um objeto nas mãos do maior nome do Surrealismo, sem que visse nela
nenhum dote criativo. Para completar a visão machista de Breton, Floriano Martins
cita uma passagem que consta de La Révolution Surréaliste,
nº 4, de julho de 1925, publicação do movimento, em que ele dizia que lhe parecia
“essencial abrir as colunas desta revista apenas para homens que não estão em busca
de um álibi literário”.
Mais adiante, cita uma frase da poeta e
artista norte-americana Diane di Prima (1934-2020), que fez parte da geração beat,
em que ela diz que, para a sociedade daquele tempo, “quando os homens se rebelavam,
eram românticos, livres”, enquanto “as mulheres que se rebelaram foram categorizadas
como loucas”. Não é preciso mais para deixar clara a evidência do “banimento da
mulher, por parte dos surrealistas, como criadora e intelectual”, como diz o autor.
III | Diante
disso, Floriano Martins tratou de pesquisar e encontrou pelo menos 120 mulheres
que “foram aviltadas no Surrealismo pelos excessos ortodoxos e a misoginia” e das
quais procurou traçar seus retratos literários. Entre as europeias, destacam-se
a poeta e teatróloga francesa Claude Cahun (1894-1954), cujo nome de nascimento
era Lucie Schwob, que assumiu “um personagem masculino, mais do que simples escolha
de um pseudônimo”, bem como a irlandesa Elizabeth Bowen (1898-1973), poeta, romancista
e dramaturga, e a francesa Anaïs Nin (1903-1977), “que rompe a imagem de mulher-objeto
do Surrealismo”, famosa por seus romances e narrativas autobiográficas.
Do Brasil, há três nomes bem representativos.
O primeiro é o da escultora, desenhista, pintora, gravurista e musicista Maria Martins
(1894-1973), que foi ignorada até o final da década de 1950 pela elite brasileira,
que preferia a arte Bauhaus, escola de arte vanguardista na Alemanha, à arte
erótica de sua conterrânea. Outro nome é o da poeta, fotógrafa e artista plástica
Leila Ferraz (1944), que descobriu o Surrealismo ainda bem jovem e depois se afastou
do movimento, quando começou a despertar sua atenção para a misoginia que contaminava
as relações do grupo surrealista no Brasil e no exterior.
Entre
as brasileiras também está a escritora, poeta, pedagoga e produtora cultural paraibana
Anna Apolinário (1986), a quem Floriano Martins define assim: “em nenhuma poeta
brasileira se encontram entalhadas de modo tão inquietantes as relações entre Surrealismo
e sexualidade”.
Já entre as portuguesas, encontram-se nomes
como o da poeta e tradutora lisboeta Luíza Jorge Neto (1939-1989), que, tendo sido
casada por dois anos com o poeta e escritor surrealista António Barahona (1939),
largou o casamento e foi viver em Paris, onde escreveu poemas tangidos pelo erotismo
e que iam contra os “cânones bafientos” que dominavam o Portugal de sua época, o
que a levou a guardar seus escritos que só depois de sua morte seriam publicados
por empenho de sua família.
Por fim, o autor inclui entre as surrealistas
lusas a poeta, dramaturga, teatróloga, ensaísta e editora Maria Estela Guedes (1947),
responsável pelo importante site cultural TriploV, pois, embora seus poemas
e peças de teatro tenham raízes que a filiam ao movimento, nunca aceitou o Surrealismo
“como algo doutrinário ou cristalizante”. Segundo ele, Estela Guedes “se nutre da
percepção de multiplicidade de linguagens e de planos de leitura da realidade, que
vão de encontro a toda a ortodoxia”, o que a leva a ser definida como surrealista.
IV | Nascido em Fortaleza,
no Ceará, Floriano Martins, poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor,
tem se dedicado, em particular, ao estudo da literatura hispano-americana, sobretudo
no que diz respeito à poesia. Foi editor do jornal Resto do Mundo,
1988/89) e da revista Xilo (1999). Em janeiro de 2001, criou o projeto Banda
Hispânica, banco de dados permanente sobre poesia de língua espanhola, de
circulação virtual, integrado ao Jornal de Poesia.
Criou em 1999 a Agulha Revista
de Cultura e o selo ARC Edições, com mais de 100 livros publicados de autores
de diversos países. Um dos maiores estudiosos do Surrealismo na América, é autor
de dois livros de ensaios nessa área: Um novo continente – Poesia e Surrealismo
na América (Fortaleza, ARC Edições, 2016) e Escritura conquistada – Poesia
hispano-americana (Fortaleza, ARC Edições, 2018).
Uma atualização de sua atividade editorial
nos leva a citar o projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, tradução de poesia,
que ele realiza nas páginas virtuais da revista Acrobata, do Piauí; e a “Coleção
Livros Impossíveis”, e-books distribuídos gratuitamente, em parceria com a poeta
Juana M. Ramos, de El Salvador.
Entre as suas obras mais recentes, destacam-se:
Sombras no jardim (Natal-RN, Sol Negro Edições, 2023); Tríptico
da agonia, co-autoria com Berta Lucía Estrada (Natal, Sol Negro Edições,
2021); A grande obra da carne (Fortaleza, ARC Edições, 2017); Confissões
de um espelho: Cruzeiro Seixas, organização,
amparo crítico e revisão geral (Fortaleza, ARC Edições, 2016); O Iluminismo
é uma baleia, co-autoria com Zuca Sardan (Fortaleza, ARC Edições,
2016); Un poco más de Surrealismo no hará
ningún daño a la realidad (ensaio, Universidad
Autonoma de la Ciudad de México, 2015);
Antes que a árvore se feche (Fortaleza,
ARC Edições, 2020); Naufrágios do tempo, novela, co-autoria
com Berta Lucía Estrada (Fortaleza, ARC Edições, 2020); e El frutero
de los sueños (poesia, Wilmington, EUA, Generis Publishing,1997),
entre outros.
Traduziu livros de César Moro (1903-1956),
Federico García Lorca (1898-1936), Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), Vicente
Huidobro (1893-1948), Enrique Molina (1910-1997), Jorge Luis Borges (1899-1986),
Aldo Pellegrini (1903-1973) e Pablo Antonio Cuadra (1912-2002), entre outros autores
espanhóis e hispano-americanos.
Esteve presente em festivais literários
realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana,
El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela.
Foi curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do
júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), do Concurso Nacional de Poesia (Venezuela,
2010) e do Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil, 2015). Atuou em
2010 como professor convidado da Universidade de Cincinnati, em Ohio, Estados Unidos.
120 noites de Eros – mulheres surrealistas, de Floriano Martins, com prefácio de Jacob Klintowitz.
Fortaleza-Ceará, ARC Edições/Agulha Revista de Cultura, R$ 35,00, 168 páginas, 2020.
Site da editora: http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/ E-mail do autor:
floriano.agulha@gmail.com
ADELTO GONÇALVES (Brasil, 1951), jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
JULIA OTXOA (Espanha, 1953). Poeta, narradora y artista gráfica Entre sus últimas exposiciones: “Llocs de Pas” Espectáculo colectivo audiovisual-MACBA-Barcelona 2006, “Absinthe Review” Nueva York 2007; “New Sleepingfis Review”, Nueva York 2007; “Certamen Internacional de Fotografía Surrealista”, Eibar 2007; “Fragmentos de Entusiasmo”-Catálogo de la exposición Antología de la Poesía Visual española 1964-2006”-“Poesía Visual Española” (Antología) Editorial Calambur,Madrid,2007; “La Fira Mágica”, Exposición colectiva de Poesía Visual Ayuntamiento de Santa Susana Barcelona, 2007; “Homenaje a Manuel Altolaguirre”, Exposición Poesía Visual – Instituto Cervantes en Fez (Marruecos, 2007 ); “Miguel Hernández – Muestra de Poesía Visual” (Universidad Miguel Hernández-Elche, 2008); “Exposición libros de artista”, Museo de San Telmo San Sebastián, 2023; “Tres senderos que convergen”, Centro cultural Oquendo, San Sebastián. Julia Otxoa es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 254 | agosto de 2024
Artista convidada: Julia Otxoa (España, 1953)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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