quarta-feira, 30 de abril de 2025

NINA MARIA | Dois ensaios: Quilombo e Artes plásticas

 


1. …E o Quilombo segue resistindo

De acordo com João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (2012) a escravidão de africanos nas Américas arrancou aproximadamente 15 milhões de homens e mulheres de suas respectivas origens. Sabe-se também que o tráfico negreiro demarcou a criação do mundo moderno, desde um sistema econômico, bem como a forte contribuição cultural das diferentes etnias. Em Liberdade por um fio (2012) acredita-se que o Brasil recebeu cerca de 40% dos escravizados da África e, somado à mão de obra indígena, os africanos e seus respectivos descendentes formaram por mais de trezentos anos a maior e principal força de trabalho durante o período de escravização e segue persistindo aos dias atuais. No entanto, apesar da dura realidade, os africanos contribuíram fortemente para a formação dos aspectos culturais, materiais e espirituais do Brasil, desde a agricultura, como culinária, religião, música, artes dentro outros.

Sem dúvidas, o maior símbolo de resistência e característica inerente à escravidão é a fuga individual ou em grupo de escravizados, que procuravam por meio do anonimato fazer parte da massa de negros livres ou formavam quilombos, também conhecido como mocambo, comunidades com os remanescentes fugitivos, chamados de quilombolas ou mocambeiros, que buscaram enfrentar e escapar da brutalidade eurocêntrica e racista. Os aquilombamentos ocorridos no período colonial brasileiro são símbolos de resistência territorial, social e cultural dum povo que, ainda hoje, segue resistindo e confrontando os fantasmas deixados pela colonialidade atrelados com os fenômenos da sociedade capitalista e moderna.

Em meio aos assombramentos da escravidão, no que tange a Bahia, descobriu-se ouro na Chapada Diamantina, fazendo crescer a brutalidade dos Bandeirantes sobre os escravizados. No sertão adentro da Bahia, ao sul da Chapada, nos arredores da cidade de Rio de Contas, formou-se uma comunidade quilombola, nomeada de Quilombo da Barra. Tal comunidade se originou com os homens e mulheres fugitivas e assolados pelos horrores da exploração escravista e, durante muito tempo, serviu como esconderijos para os quilombolas devido à mata fechada assegurando proteção. Com isso construiu-se várias casas feitas de pau a pique dentro da mata e distante uma das outras. Os mocambeiros da Barra se encontravam nas estradinhas feitas por dentro da mata para quando os barões os atacassem, eles tivessem como se reunir e fugir, como conta Dona Jovina, descendente quilombola e figura importante dentro da comunidade. Como lhe foi passado pelos seus ancestrais, Jovina narra que a água e a luz tardaram em chegar à comunidade mesmo pós-abolição. Antes a única fonte de água era o Rio Brumado e aos poucos tudo foi melhorando até as estradas, pois a caminhada para Rio de Contas e Livramento durava três longos dias adentro do sertão da Chapada. E o Quilombo da Barra segue resistindo.


Como uma comunidade centenária remanescente, os quilombolas da Barra possuem para além de resistências, tradições que contam muito sobre a origem e a constante luta para permanência de seu povo, a saber, o artesanato, a sua maior herança cultural. Na região da Barra plantava-se muito algodão, cada casa possuía hectares originados das bisavós da comunidade, que pegavam o algodão fiavam numa linha e prosseguiam para o tear, onde era feito o tecido de algodão. Com isso, desfiava-se o tecido para produzir peças de roupa, como anáguas, camisas, cobertas, dentre outros. A comunidade não possuía acesso aos estudos – uma das grandes marcas do pós-abolicionismo –, o artesanato criado pelas tataravós e bisavós, como símbolo de resistência, apelidado de Saberes e Fazeres – saberes e fazeres tipicamente da cultura negra – refere-se à época na qual os quilombolas em dia de festa, geralmente aos sábados, reuniam-se dentre comadres e amigas e partiam com o fio, a linha e o fuso e passavam à tarde costurando, quando uma não sabia a prática do artesanato, aquelas que a dominavam a prática as ensinavam, tal como uma contação de história, para manter a tradição viva até os dias atuais. No entanto, com o passar do tempo muitos quilombolas foram falecendo e os artesanatos antigos jogados fora dado o entendimento que, ao morrer, não fazia mais sentido manter aquelas peças que remetiam as pessoas. Verifica-se então, que muitos itens se perderam, posto que dada à influência do racismo externo e a falta de comunicação entre os mais velhos e os mais novos, contribuiu-se para o apagamento da cultura, bem como a autocensura após a abolição da escravatura, tendo em vista que não foi ensinado aos negros a valorização das suas origens, como aponta a organização Repórter Brasil, que realizou uma pesquisa e entrevista não só no Quilombo do Barra, como também em Bananal, uma outra comunidade quilombola da região de Rio de Contas.

Em meio a essa grande perda cultural, há 30anos a tradição artesanal na comunidade renasceu por intermédio do Curso do Crivo Rústico – saco de algodão que ensacava os frutos das plantações – pelo SENAC e SEBRAE para resgatar todas as produções artesanais da Barra. Os professores foram os próprios quilombolas, detentores de todo conhecimento e tradição, que se alocaram na igreja de São Sebastião da comunidade e lá foram feitos muitos panos de prato, jogos americanos, centros de mesas, almofadas. As primeiras peças construídas por elas, as descendentes de toda tradição, que começou através do fio trançado atraindo muitos turistas, que visitavam a cidade de Rio de Contas e partiam para conhecer a comunidade. Muitos desses visitantes adquiriam as peças artesanais e contribuíam para fonte de renda do Quilombo da Barra, bem como incentivava mais e mais mulheres a também produzirem, a fim de divulgar a tradição, como relata dona Jovina. No pátio da igreja foi feita uma cabana com palha de banana e lona para realizar as vendas, no entanto, por causa das chuvas, o sol e a poeira constante, que danificavam toda a produção, foi construído uma loja de blocos, apelidado de rancho por Dona Jovina, para reunir todo trabalho realizado por um grupo de quarenta artesãs e melhor recepção e atendimento dos turistas. Devido ao número grandioso de artesãs foi construído uma segunda loja, não só para dividir as peças, mas para incentivar toda a equipe a produzir e adquirir seu ganha-pão, tendo em vista com o passar do tempo e a modernização, muitas mães possuem filhos na universidade e as vendas do artesanato ajudam a mantê-los estudando, assim como contribui para a renda da família dentro do quilombo. Porém, mesmo com todos esses avanços parte da comunidade, principalmente algumas mães, migrou para outros territórios com melhor desenvolvimento social e econômico, como Vitória da Conquista à procura de estudos para seus respectivos filhos. Deste modo, restou uma pequena parte das artesãs do Quilombo da Barra, que seguem resistindo pela da cultura do artesanato, passando seus conhecimentos para gerações mais novas a fim de manter toda a tradição secular dos saberes e fazeres, que tanto diz sobre o passado doloroso, assim como o presente repleto de lutas e o futuro com possíveis inseguranças, mas inabalável com a fé a força de um povo, que busca se firmar cada vez mais.


Dessa forma, é tempo de aquilombar-se como colocou Joselicio Júnior (2019) na Revista Forúm e Conceição Evaristo no poema “tempo de nos aquilombar”. É tempo de se reconectar com as ancestralidades e os saberes do povo negro, para atuar no presente e contribuir para um futuro melhor, pois, entende-se como quilombo uma comunidade que se originou pela coragem e inteligência de um povo subestimado, que procurou não se curvar, como diz Júnior (2019), para as dificuldades e barreiras oriundas desde o tempo da escravidão.

A luta do Quilombo é uma luta de sobrevivência, uma luta contra a falta de emprego, assim como também por políticas públicas básicas e necessárias para a população remanescente. E essa luta política e social que precisa ser coletiva, pois aquilombar-se é, além de nutrir e buscar autocuidado e afeto, construir uma luta e organização antirracista. Sem dúvidas, é tempo de aquilombar-se.

 

 

2. Artes Plásticas: Uma arte de Resistência em Rio de Contas/Bahia

Segundo o Houaiss, arte – do latim, ars, artis – é uma maneira de ser ou de agir, bem como uma habilidade natural, um verdadeiro dom que pode ser adquirido e aprimorado ao longo do tempo. Um conhecimento técnico, ofício, habilidade, profissão. No que tange as artes plásticas, são uma forma de expressão artística criada pelo homem pelo uso de diversos materiais, cujo formam imagens ou formas reais ou imaginarias de acordo com a visão do artista.

Remontam da Pré-história os primeiros registros das artes plásticas, que foram se modificando e evoluindo até aos dias atuais, bem como os materiais utilizados para tal expressão, como papel, argila, metais, madeira, tinta, e, para além disso, materiais tecnológicos. Na contemporaneidade, a arte ultrapassa a simples expressão de emoções e desejos, o artista se torna um porta-voz da sociedade, e seu trabalho também se caracteriza como uma reprodução da nossa história, seja para contar e refletir sobre momentos históricos e suas respectivas figuras marcantes, seja para projetar anseios, quereres e perguntas sobre o futuro, e, além disso, avivar o presente com uma produção artística que nos saltam os olhos, assim é o trabalho do artista plástico.

 A Bahia é um verdadeiro reduto de expressões artísticas, que seguem resistindo território adentro, manifestando toda diversidade baiana e suas respectivas influências trazidas por além-mar e como elas se cruzam até os dias de hoje com o nosso povo e a nossa história, a história do povo negro.

Rio de Contas, cidade conhecida como paraíso da Chapada Diamantina, terra de muita resistência – um dos palcos do Brasil Colonial –, é um lugar de expressões artísticas, principalmente as artes plásticas, tendo como principal artista contemporâneo Pedro Souza, amante da técnica do papel machê e papietagem, que iniciou a sua trajetória em 1987, retratando grandes personalidades e parte do passado da sua cidade através de caricaturas feitas com argila, modelando com papel, na busca de um maior e melhor acabamento para atingir a perfeição.

Rio de Contas possui de oito a dez artistas plásticos; que se dedicam à arte da pietagem, isto é, uma técnica artesanal que usa papéis rasgados e colados sobre um molde, tomando uma forma e criando uma peça artesanal. No entanto, Pedro é o único artesão que utiliza da técnica do papel machê, sendo um método totalmente novo para cidade, em que é feita uma massa com o papel picado misturado à cola branca; para moldar objetos de tamanhos variados, sendo possível fazer esculturas maiores com tal procedimento; Vale ressaltar, que tal técnica surgiu no século XVII em Veneza.

As artes plásticas estão presentes também no carnaval da cidade – mesmo modernizado –, que é considerado um dos mais antigos do Estado da Bahia, onde marchinhas das bandas de sopro locais, os chorrós e as caretas tomam contas das ruas históricas. Pedro ao lado de um grupo com 30 participantes resgataram durante 10 anos as máscaras de papel, marca tradicional do carnaval de Rio de Contas, abrilhantando e colorindo ainda mais os desfiles dos mascarados e os blocos com as marchinhas.


Pedro Souza, para além das festividades, desenvolve suas habilidades e trabalho em outras cidades e com diferentes públicos. Já trabalhou com adolescentes  bem como pacientes do CAPS na cidade de Livramento, próximo à Rio de Contas. Participou de feiras e eventos em Vitória da Conquista e Salvador, além de uma exposição no Rio de Janeiro. Souza também trabalha decorando praças, utilizando sempre da papietagem e do papel machê. Sua atividade mais recente fora uma oficina com crianças. No entanto, devido à pandemia da COVID-19, tal ofício fora paralisado.

Pedro tem 35 anos de carreira, pois começou a trabalhar com 13 anos. Hoje seus filhos participam o mesmo ofício que o seu, elevando a máxima da hereditariedade, tendo sempre como objetivo dar continuidade ao legado do pai – não só por ser uma habilidade da família, mas devido à mensagem passada com e pela arte. Pois, Pedro reproduz fortes passagens do período da escravidão em Rio de Contas, retratando todo sofrimento e luta do povo negro, a fim de que não nos esqueçamos de tal passado e dos horrores praticados. Porém, o artista não deixa de criar peças como cores vivas para homenagear a beleza e grandiosidade da cultura negra, como as esculturas de mulheres negras com toda sua graça, beleza e força. Tal trabalho se faz de grande importância para que possamos questionar como as artes plásticas também estão imbuídas de significados, influências e aprendizados para com o presente e a posterioridade. Com isso, se faz necessário divulgar e partilhar essa técnica, produzida em sua própria casa, sendo que o maior desejo do artista e de sua família é ter o lar, espaço de criação, transformado em um espaço-lugar de visitação, para que se preserve os laços familiares partilhados com o trabalho artístico.

Além disso, com a técnica da papietagem e do papel machê Pedro reaproveita de sucata e materiais recicláveis, contribuindo artisticamente com um meio ambiente mais justo e sem poluição, na qual suas artes plásticas seguem resistindo e ensinando não somente a população de Rio de Contas, mas todos os turistas que a visitam, principalmente na Casa de Câmera e Cadeia na cidade, onde estão concentrada a maioria da sua produção, – em grande parte a representação da população negra, assim como através do grupo dos mascarados.

Em seu ateliê Raízes do Rio (@raizesdorioate), Pedro Souza segue fazendo história expressando e espalhando a cultura popular da Chapada Diamantina.

 



NINA MARIA. Natural do interior da Bahia, da cidade de Santo Estevão. Nascida em 2000. É preta, autista, poeta, escritora, editora e curadora da revista e site Ruído Manifesto. Graduanda em letras com língua francesa – UEFS. É autora dos livros A flor da Pele (2019), Ela – Poemas e Cartas de amor (2020), Há nove luas em mim (2020), Eu vendaval Eu furacão (2021). Possui a poesia como essência e guia de vida, escreve para não morrer e dar sentido ao universo do qual vive. Sua poesia existe e resiste de maneira à flor da pele, presente em algumas antologias nacionais e internacionais, e poesias traduzidas e publicadas no exterior.





RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.






 


Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)

Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

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