FM | Comecemos pelo parto. O nascimento
da música como ela te precede. Algum DNA a ser recordado? Ou o Cássio vai
descobrindo seu mundo sem referências familiares?
CG | Não houve nenhum familiar no passado que se dedicou à música. Aliás,
teve uma tia que cantava em um coral. Só isso! Havia em mim uma tendência na
infância. Adorava as reuniões familiares em que todos cantavam as músicas do
cancioneiro antigo – coisas da Era do Rádio: Francisco Alves, Orlando Silva,
Carlos Galhardo, Sílvio Caldas, as antigas marchinhas de carnaval ou juninas;
Aracy de Almeida, as irmãs Baptista, Emilinha Borba e sua rival Marlene…
Aquilo, certamente foi muito importante na minha formação. Claro que eu também
vivenciava as coisas da época ainda sem nenhum tipo de discernimento crítico: a
música que ouvíamos nos festivais da TV Record, a Jovem Guarda, Bossa Nova… E a
música internacional: o rock e as baladas softs, folk… A música erudita
também. Mais à frente, houve outras informações que foram me entusiasmando pela
disposição de compor. O contato com aquele som brasileiro dos anos 1970 que é
referência para muita gente da minha geração: Chico Buarque, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Milton Nascimento e por aí seguindo…
FM | Nesse primeiro momento há algum
interesse no aprendizado musical: instrumentos, partituras etc., ou a música vai
crescendo em teu íntimo de forma intuitiva?
CG | Estudei muito, de um modo geral, como autodidata. Falo sobre a parte
teórica da música: sentia necessidade de escrever minhas canções e arranjos no
pentagrama. Instrumento?… Sempre quis aprender piano, mas acabei fazendo uma
meia dúzia de aulas de violão. Desisti logo porque achei que dali para frente
eu daria conta sozinho. Acho que por isso não me tornei um bom instrumentista.
O violão acabou se transformando apenas em uma ferramenta de apoio para compor.
Certa vez, um amigo compositor me pediu a
indicação de alguém que lhe ensinasse a parte teórica da música. Eu apontei: Não
faça isso! Ele era excepcionalmente original, possuía uma característica
muito própria. Sua espontaneidade ao compor, ao criar um dedilhado raro no
violão, talvez se perdesse com a preocupação de seguir as boas regras da
teoria. Deixe estar! Mantenha essa sua simplicidade, a mesma simplicidade de
um Dorival Caymmi, um Luiz Gonzaga, um Cartola…! Esse pensamento me obriga
a sempre tentar me isentar de conhecimentos teóricos na hora de compor.
FM | E em termos de audição, de
convívio com a música, sem pensar necessariamente em nomes, há alguma
inclinação em termos de gêneros, detalhes de arranjos, timbres, vozes?
CG | Acabo me tornando um pouco híbrido na minha criação devido ao gosto
musical provindo de várias fontes diferentes. Em termos de gêneros ouço a dita MPB,
a música pop, o rock, ouço de tudo um pouco. Posso hoje ouvir um choro, amanhã
uma série de valsas, um fado ou um tango, samba-enredo, baião, música gaúcha;
torna-se enfadonha a lista de estilos com o qual me identifico porque acho tudo
instigante. Um rap com uma estrutura bem elaborada é muito interessante. Acho
que basta apenas saber se transportar aos diferentes universos musicais na hora
em que o coração avisa: Este é o momento de ouvir esse ou aquele estilo.
Arranjadores brasileiros são geniais – desde
os primeiros, Radamés Gnattali e Pixinguinha, passando pelos arranjos do Tom
Jobim, o maestro Gaya, depois Rogério Duprat, Francis Hime, Wagner Tiso, Rildo
Hora, até os pops Lincoln Olivetti e Robson Jorge, eles são muitos… Miguel
Cidrás e Zé Rodrix também valem menção. Citei os primeiros que me vieram à
cabeça. Certamente omiti nomes.
FM | Agora entramos na criação: por
onde começas? Primeira canção, a quem mostrar, como atentar para destino a ser
dado às canções etc. Ao que tudo indica o teatro foi o grande portal, onde
tiveste alguma experiência como ator, mas, sobretudo, como autor de trilhas
sonoras. Creio que também vem daí o teu particular interesse pela montagem de
videoclipes. A imagem sonora em sua relação com sua direta relação cênica, o
que naturalmente tem muito a ensinar em termos de comportamento de palco. O
modo como o corpo percebe e se relaciona com os ritmos sonoros.
CG | Normalmente começo uma criação escrevendo a melodia e a harmonia,
tentando me isentar de qualquer interferência teórica. Depois procuro escrever
uma letra de acordo com a inspiração que tal melodia me transmite. Quase nunca
faço as duas coisas ao mesmo tempo: dentro de mim são sensações diferentes ao gerar
uma ou outra coisa. Incrível que têm grandes artistas que conseguem essa
façanha.
Faço também com menos frequência (e alguma
dificuldade) o processo oposto: musicar letras, poemas…
Minha experiência com teatro começou como
ator da extinta companhia NAR Produções Artísticas durante quatro anos. Aquilo
foi realmente uma escola em que lidávamos com a interpretação, a música, a
dança.
Minhas primeiras trilhas vieram depois e
foram experiências muito gratificantes. Algumas destas canções foram feitas para
espetáculos infantis e eu acabei reunindo uma parte delas no meu terceiro álbum,
O Quintal do Vizinho, um trabalho voltado para o público
infanto-juvenil.
Falando sobre os videoclipes, sei que fazem
parte de uma aventura e de um eterno aprendizado. São experiências que realizo
mais no sentido de ilustrar alguma canção (dentro das minhas limitações) do que
com outra pretensão maior.
FM | Parceiros destacados (dentre eles,
Aldir Blanc, Zeca Baleiro, Chico
César, Vicente Barreto, Luiz Tatit, J.C. Costa Netto, Sílvia Góes, Roberto
Gava, Mário Montaut, Graccho, Léo Nogueira, Floriano Martins), intérpretes
preciosos (dentre eles, Cida Moreira,
Zeca Baleiro, Ana Lee, Márcia Salomon, Miriam Maria, Tutti Baê), comentaristas
relevantes (dentre eles, Tom Zé, Jorge
Mautner, Ana de Hollanda, Luiz Tatit, J.C. Costa Netto, Aquiles Rique Reis [do
MPB4]), recordo inclusive uma certeira observação da Ná Ozzetti, ao
dizer que a tua música, no que pese a presença de arranjos densos e cheios de detalhes, possui uma melodia simples,
eu acrescentaria que contagiante. Como uma colagem plástica cujos elementos
constitutivos são bem pequenos, entrosados de modo complexo, mas que acabam
criando uma imagem nítida elementar e elegante. Pensas em tudo isto no momento
da composição, ou apenas quando cuidas de seu arranjo? Também poderias comentar
um pouco sobre as relações com alguns desses parceiros, do start do encontro até o resultado das parcerias, evidência,
retorno, permanência de algumas etc.
CG | Alguns desses parceiros queridos fazem parte de grupos de amigos que
vêm há anos se encontrando em eventos, festas, aniversários ou mesmo pra dar
origem a novas criações.
Alguns outros travei contato a partir da
gravadora por onde lancei meus dois primeiros álbuns. Um desses compositores é
o Luiz Tatit – artista que tenho grande respeito por sua obra original e de uma
qualidade indiscutível. Outro que também conheci por essa época é o Vicente
Barreto – parceiro de Alceu Valença, Gonzaguinha, Vinícius de Moraes e muitos
outros grandes nomes. O Vicente me entregou na ocasião duas melodias lindas para
que eu pusesse letra. Zeca Baleiro é um grande nome que sempre foi muito
generoso comigo e com o meu trabalho. Fizemos nossa primeira música em 1999 e
vinte e dois anos depois fizemos nossa segunda parceria. Falando em
generosidade, não posso omitir o nome do Chico César que conheci através de uma
amiga em comum e me recebeu em sua casa com muito carinho. Compusemos naquele
momento duas lindas canções. Eu tenho por todos os nomes citados por você (e
outros que não estão ali) um carinho muito especial e um agradecimento pela
cumplicidade.
Sobre o comentário da excelente Ná Ozzetti
que você registra acima, ela escreveu aquilo por ocasião da estreia do meu
grupo Sras & Srs nos anos 1990.
Ainda sobre o processo de composição, quando
crio uma melodia, às vezes imagino o arranjo, mas isso não é comum.
FM | Embora pareça que estamos tendendo
essa nossa conversa para o ambiente brasileiro, queria saber como se movimenta
o ouvido atento e crítico do Cássio Gava em relação à música feita no exterior:
compositores, cantores, arranjos, predileção por instrumentos, andamentos etc.
se por um lado o mercadão pop empastelou a música, por outro surgiram áreas
mais restritas de grande qualidade experimental em gêneros como jazz e R&B.
Sou fascinado, por exemplo, pelo trabalho que realiza a rapper estadunidense Meshell Ndegeocello. Como transitas com esse
universo de fusão de gêneros que consegue alcançar um altíssimo grau de
qualidade?
CG | A fusão de gêneros, acredito que
seja uma opção a mais no universo da experimentação. Os resultados, às vezes,
são muito provocantes e eficazes.
Agora, com
relação à música feita no exterior, é impossível para gente escapar dessa
interferência. Na época em que o mundo não era interligado, já escutávamos as
árias cantadas por Caruso, o foxtrote e o jazz das Big Bands; o tango, as
guarânias, boleros, a música cubana… Tudo sempre foi consumido por aqui: Elvis
Presley, os Beatles, as baladas francesas e italianas dos anos 1960, o R&B,
a gravadora Motown com seu traquejo completamente original… Tudo! Dali para
frente, o ouvido brasileiro já estava tão familiarizado com essas linguagens,
que tornou-se natural esses gêneros conviverem com o samba, o choro, o baião…
Mais que isso, a criatividade do brasileiro passou a compor também rocks,
blues, raps…
Ainda a
respeito da impressão que tenho sobre a música feita fora do país, digo que música
é música. Seja erudita, seja popular, seja folclórica. E tudo, praticamente
tudo, me atinge.
Você me
pergunta ainda sobre a predileção por instrumentos. Gosto muito da mistura
entre a formação clássica do pop (baixo, bateria, guitarra, teclado) com
instrumentos de orquestra — seja um grupo camerístico, uma orquestra sinfônica
completa, ou mesmo pequenas participações em duos, trios, quartetos… A mistura
de timbres — como bem sugere Rimsky-Korsakov em seus escritos de orquestração —
forma novas cores e amplia a riqueza sonora. (Este comentário do mestre
refere-se exclusivamente à mistura orquestral, embora a combinação com
instrumentos da música popular também seja fascinante.)
CG | Depois que comecei a ser independente, minha divulgação tornou-se
precária, infelizmente. Tem horas em que penso: Ou eu faço música, ou
divulgo. Fica difícil conciliar as duas coisas, especialmente porque a
segunda é mais voltada para gente preparada – afinal, é complicado vender seu
próprio trabalho.
Hoje, a principal ferramenta de divulgação é
a internet, com todos os recursos que ela oferece. É por meio dela que uma
carreira pode sair da garagem e ganhar existência – tornando-se acessível,
ainda que em um canto pouco visitado da rede. Além disso, a internet permite
que desconhecidos encontrem sua obra e, a partir desse contato, escolham
acompanhá-la.
FM | Ao refletir sobre essa barafunda a que parece nos levar a
descoberta de uma Inteligência Artificial (IA) é possível observar alguns aspectos.
Em primeiro lugar, não há limites para a invenção humana. O que é ótimo, mas
que nos leva a outro fato: o homem sempre inventará algo para alimentar a sua
inesgotável fonte de evocações do bem e do mal. A cada época pensamos que uma
novidade pode ser a queda de todos os valores que a antecedem ou então, ao
contrário, que pode ser a ressignificação da própria vida, em um sentido
positivo do termo. As duas leituras são míopes, a começar pelo fato de que são
inseparáveis as diversas formas de usufruto de uma novidade. Não parece que a
aplicação da IA na criação artística possa distorcer a arte, ou mesmo
destruí-la. Isto dependerá sempre do grau de afetação que a tecnologia possa
exercer sobre o artista. Pode vitimá-lo? Sim, se ele o permitir, ou se for desonesto
o suficiente para usurpar as fontes, formas, cores, sons, fingindo autoria onde
existe apenas cópia. A IA pode ter o benefício da sugestão, a disposição de
infinitas opções que podem ser utilizadas como elementos favoráveis à criação.
No caso da IA utilizada para a composição musical, por exemplo, vem sendo
bastante ampliado o banco de dados em relação a ritmos, timbres, possibilidades
harmônicas e melódicas etc. São estímulos à criação para aqueles compositores
intuitivos que não dominam instrumentos ou são incapazes de escrever arranjos.
A carência que ainda permanece diz respeito a um conjunto de timbres de vozes,
mas já existe a opção de se gravar a própria voz para que seja inserida em uma
escala própria com afinação impecável. Isto fará com que todos possam criar?
Ora, mas não era isso que defendia Lautréamont ao dizer que a arte deve ser
feita por todos? Evidente que Lautréamont não podia imaginar que os recursos
tecnológicos também fariam parte dessa totalidade criativa. Seja como for,
estamos diante de uma intensa mudança de conceitos, que não chega a ser o
prenúncio de uma nova estética, mas que certamente cria as suas ondas múltiplas
de fascinação e repúdio. O cuidado maior é com o mercado das artes, que pode se
aproveitar dessa onda para inventar novos ídolos de barro.
Fiz esta
extensa provocação para que pudéssemos conversar um pouco mais a respeito de um
tema que se encontra ainda naquele momento de espanto, quando não se sabe ao
certo o que achar dele, o que fazer com ele. Gostaria de ouvir a tua minuciosa
opinião a respeito.
CG | Acho muito recente ainda fazer uma avaliação mais apurada sobre a IA. Se
por um lado é algo no mínimo curioso, por outro, o suor do ser vivo na criação,
na pesquisa, na elaboração lenta, é descartado em segundos pela força da
máquina.
Apesar de nenhuma lei ser infringida, tem-se
a sensação de saborear o óleo e não a fritura. Se a artimanha não for
perceptível, a degustação pode até ser agradável.
Já vi a IA criar desenhos prodigiosos, mas
muito semelhantes entre si; poemas bem-feitinhos, mas com características
ginasianas; designs, projetos, com certa individualidade, porém nitidamente
frios; músicas dos mais diferentes estilos que, porém, não comovem… Mas eu me
pergunto: até quando? Até quando serão frios, ginasianos, desestimulantes…?
De todo modo, ainda não me sinto totalmente
preparado para opinar mais sobre isso.
CG | Acho perfeita a ideia de parceria e
gosto das suas percepções a respeito dessa nova onda. Achei muito interessante também
a sua observação sobre o papel da fotografia dentro da IA. Considero ainda
fundamental a informação sobre a fonte, como você sugere. Enfim, temos que dar
o braço a torcer, nem que seja pra perceber até onde podemos chegar com esse
novo apetrecho.
FM | Esquecemos algo?
CG | Acredito que o essencial foi dito.
Agradeço a oportunidade de estar presente na Agulha Revista de Cultura.
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entrevista realizada em maio de 2025.
FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983). Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes, aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30 anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 261 | junho de 2025
Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
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http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com










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