Não podemos falar da
poesia de Nikola Madzirov sem procurar entender um pouco os duradouros e profundos
conflitos envolvendo os países dos Balcãs. Digo um pouco porque esta região é considerada
uma das mais instáveis e complexas na Europa, devido à diversidade de etnias e aos
conflitos bélicos que perduram há séculos. Sendo assim faço apenas um esboço, no
final da entrevista, sobre a história e a literatura da Macedônia.
Nesta entrevista, cuja
tradução em inglês foi publicada no site da revista literária online pan-europeia
Versopolis, Madzirov
fala de suas origens e de sua criação poética.
O SANGUE E A POÉTICA DO NÃO-PERTENCIMENTO
Nikola Madzirov
Diante do refinamento de uma cultura aprisionada em formas e limites que mascaram
tudo,
o lirismo é uma forma bárbara cujo valor é não ser nada mais do que
sangue, sinceridade e fogo.
EMIL M. CIORAN
Você pertence aos Balcãs e não há sangue em sua poesia…, me perguntam com frequência.
O sangue circula na minha memória. Sempre que vejo uma árvore solitária, os traumas
herdados e testemunhados da guerra me levam a pensar no cadáver de um soldado embaixo
de suas raízes. Não tenho a ilusão de estar dizendo algo novo, porque tudo está
presente mesmo sem ser documentado, como minerais em uma mina ainda a ser descoberta.
Acredito mais em brinquedos escondidos do que nos principais segredos das guerras.
Às vezes, para escrever, é preciso permanecer nesta solidão que não engendra temores
e lembranças maiores do que a própria morte. A melhor maneira de recordar nosso
último sonho é não olhar pela janela quando despertamos. Acredito que o desejo de
(re)contar existirá enquanto houver o mistério de partir e regressar. Muito frequentemente
me sinto mais seguro quando falo em sonhos e me calo na realidade. Os críticos têm
dito que a primeira coisa a lembrar sobre o metafísico
John Donne é que ele era católico, e a segunda é que ele tinha traído sua fé. Acredito
ser esta uma maldição silenciosa que persegue os escritores: trair aquilo do qual
pertencem no momento em que sentem que começaram a pertencer. Em uma de suas últimas
entrevistas intitulada, Sou católico fracassado,
mas ainda católico, Adam Zagajewski disse: A procura reside no ato de procurar, não em definições fortes (search is in searching, not in strong
definitions). Na maioria das vezes eu me sinto como um nômade, mesmo
sem mover a gaiola do meu corpo de uma realidade imposta para outra. Viajei e pesquisei
muito por mais de vinte anos, mas minha avó costumava me dizer que ela havia viajado
por vários países apenas sentada em seu velho sofá na sala. Nos Balcãs, você pode
ter essas intermináveis viagens através de ideologias, reinos e novas fronteiras
simplesmente sentado no sofá de sua sala.
Elizabeta Sheleva escreve
que os escritores, independentemente do lugar onde vivam, são sempre seres estranhos
e estão sempre destinados – com base na potência de sua inquietação criativa – a
permanecer e existir como desabrigados. [1]
Por um lado, desabrigado significa sentar-se na frente da lareira e sentir a força
do vento, mas quando se está distante de casa, significa ler o mundo à luz do fogo.
As guerras começam com
a mudança dos nomes das cidades e das pontes, com a reconstrução da memória pessoal
– a dura linguagem da bala vem depois. Nos Balcãs, as pessoas muitas vezes glorificam
a história de forma equivocada, receiam que sua linguagem se torne história. A língua
em que escrevo é falada por apenas dois milhões de habitantes que emigram todos
os dias em busca de um lar seguro, colocando suas memórias nos novos espaços, mesmo
antes de arrumar os móveis. Devido ao pânico causado pelo desaparecimento, muitas
nações e líderes provisórios dos Balcãs voltaram-se para a história, o que lhes
ofereceu um espaço e а fogueira em torno da qual podem contar histórias
assustadoras. A poesia foi construída através
da estética do desaparecimento
(como disse Paul Virilio) e se alimentou das raízes daquilo que era apenas narrado
e ainda não escrito. Nos Balcãs, estávamos juntos na guerra e sozinhos na poesia.
A claustrofobia tornou-se a principal filosofia de vida – onde os apartamentos possuem
pequenas sacadas e tetos baixos para melhor preservar a própria insegurança. E assim,
a fragmentação da memória dorme em todas as casas. Meus antepassados eram refugiados
e não escreviam poesia enquanto atravessavam fronteiras e montanhas a pé, e não
levavam livros quando fugiam de suas moradias, por causa do peso. Por outro lado,
há tantos livros escritos sobre êxodos, que creio não caberem em todas as casas
abandonadas do mundo. Nestas circunstâncias, acredito que escrever é como plantar
uma semente em um vulcão adormecido.
Escrevo sobre coisas,
pessoas e processos não para elogiá-los, mas para desmistificar a áurea da história
que os cerca. Vivo em uma pequena cidade perto de três fronteiras – macedônia, búlgara
e grega – então, atravessar uma fronteira para mim é como atravessar a rua quando
os semáforos fecham. Kapka Kassabova escreveu: As pessoas morrem atravessando fronteiras, e às vezes só de estar perto
delas. [3] Às vezes, penso que cada
ruga no meu corpo é apenas um reflexo das fronteiras que atravessei. Contudo, o
maior desafio foi atravessar a fronteira do tempo, a fronteira da história, uma
vez que todas as guerras balcânicas começam com a conquista do passado – somente
posteriormente é que se fala de territórios. Históricos
e histéricos –
eis uma unidade perfeitamente fatídica! Nesse sentido, eu me considero um arqueólogo
ilegítimo que, ao escrever poesia ou ensaios, tenta desmistificar a mitomania herdada
e todas as grandes narrativas, colocando-as numa perspectiva diferente, mais iluminada
ou mais escura. Contar histórias sobre objetos esquecidos é mais importante do que
as cartas e ordens assinadas pelos líderes de guerra. Certa vez, enquanto eu viajava
pelo Cáucaso, parei em algumas sepulturas distantes, porque eram diferentes de todas
as sepulturas que eu havia visto antes: não havia uma única lápide nos túmulos.
No entanto, vi desenhos na placa de pedra horizontal que cobria a sepultura – desenhos
que retratavam a vida e a morte das pessoas sepultadas embaixo da pedra. Isso é
um belo exemplo de como as pessoas podem se transformar em histórias e viver através
das vozes de testemunhas que nunca as conheceram enquanto estavam vivas. Uma vez
escrevi que a poesia sempre esteve distante das estatísticas da popularidade convencional.
Ao longo da história, ela tem tido o nível elevado de uma forma de arte cordial,
mas também tem sido uma espécie de resposta punk-rock à esterilidade social ou aos
suaves brandos nacionais. A poesia não é apenas leitura; a poesia é diálogo. Ornamentada
ou não, a poesia possui um círculo menor de leitores, semelhantes a espelhos – com
ou sem molduras, e o reflexo é igualmente limitado. A poesia está próxima do silêncio,
mesmo quando é lida em um bar ao som de uma máquina de café ou em uma estação enquanto
se espera por um trem atrasado. Não me incomodaria o fato dos versos serem impressos
na embalagem dos saquinhos de açúcar servidos com o café. Isso poderia ser visto
como uma campanha promocional. Como todas as coisas produzidas pelas poderosas indústrias,
a poesia é tratada como uma mercadoria, o que não está longe de ser uma das ideias
de Heidegger em A
origem das obras de arte.
No entanto, é a estética que move a poesia através da profundidade do tempo. Cada
verso é polido pelos anos como uma rocha é polida pelo mar. Não tenho certeza do
que é mais representativo hoje: um livro
de poesia colocado na caixa registradora de um supermercado ao lado das lâminas
de barbear e das gomas de mascar, ou um livro de poesia, exaltando algum herói local,
exposto atrás de uma vitrine empoeirada de museu. Minha infância foi moldada por
um sistema ideológico no qual a poesia devia ser aprendida de cor. Foi uma tarefa
árdua, em vez de um ato de memorização. Os líderes políticos são deuses contemporâneos
que querem transformar a poesia em uma rotina, e os deuses e as rotinas têm um poder
mortal porque passam despercebidos e são invisíveis.
As palavras escritas
são como peixes jogados no poço de uma nova realidade – seu turbilhão mantém a água
limpa.
MACEDÔNIA E A REGIÃO DOS
BALCÃS
A região dos Balcãs
é formada por pequenos países de diferentes grupos étnicos cuja população se desloca
de região para região, como é natural do ser humano. Há sérvios vivendo no Kosovo
e vice-versa, e para determinados líderes políticos nacionalistas isso basta para
anexar certa região ao país e criar conflitos bélicos. Houve fronteiras modificadas,
ao longo dos séculos, países destruídos e reconstruídos, grupos étnicos que sofreram
genocídio, idiomas e expressões culturais proibidos, e muitas guerras. E a região
continua a ser um barril de pólvora! Os Balcãs é composto pelos países Albânia,
Grécia, Romênia, Bulgária, além das repúblicas que compunham a ex-Iugoslávia: Eslovênia,
Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Macedônia, Sérvia, e Kosovo. A Iugoslávia
era uma república socialista, formada pelos países Bósnia e Herzegovina, Croácia,
Eslovénia, Macedónia, Montenegro e Sérvia. Esta última tinha duas províncias autônomas
(Voivodina e Kosovo). A Iugoslávia atravessou uma forte crise econômica e política
durante a década de 1980, período da ascensão do nacionalismo, fatores que levaram
à desintegração do país e às Guerras Iugoslavas, consideradas as mais brutais da
Europa desde a Segunda Guerra Mundial. O país deixou de existir em 2006 com a declaração
de independência do Montenegro, enquanto a província até então autônoma do Kosovo
declarou unilateralmente a sua independência da Sérvia dois anos depois, em 2008.
Diferente da Sérvia, Kosovo possui a população majoritária composta por albaneses.
Até hoje, os conflitos se reacendem como atualmente entre Sérvia e Kosovo.
A Macedônia obteve a
Independência em 1991 e tem fronteiras com a Bulgária, Grécia, Albânia e Kosovo.
O norte possui o nome de República da Macedônia do Norte, a parte próxima à Bulgária
chama-se distrito búlgaro de Blagoevgrad e próxima ao norte da Grécia localiza-se
a província grega da Macedônia. Diante da verdadeira “salada” de grupos étnicos
que vive no país, no início dos anos dois mil a Macedônia foi abalada por violentos
tumultos entre a minoria albanesa e a maioria macedônia. Do lado macedônio, existiam
os receios de uma Grande Albânia, incluindo o Kosovo e partes do noroeste da Macedônia.
Através da mediação da UE, o Acordo-Quadro de Ohrid, assinado em 2001, os antagonismos
entre albaneses e macedônios diminuíram consideravelmente. O país é habitado pela
maioria greco-macedônia e uma pequena minoria eslavo-macedônia. Além disso, existem
ainda as populações Aromaniana, Meglenoromaniana e Armênia, que são, no entanto,
em grande parte assimiladas e cujas línguas são hoje consideradas ameaçadas.
A maior contribuição
para a codificação da língua macedônia, que havia sido admitida como língua oficial
a partir de 1945 (anteriormente chamada de dialeto búlgaro), foi feita pelo filólogo,
letrista Blaze Koneski (1921-1993). Entre
os primeiros autores estavam Vlado Maleski, Gogo Ivanovski e Jovan Boškovski. O autor Taško Georgievski
exilou-se na Iugoslávia após a guerra civil grega em 1947 e escreveu o romance A Semente Negra (inglês 1974)
sobre a perseguição de revolucionários macedônios na Grécia.
Uma das figuras mais
importantes da literatura contemporânea macedônia é o autor Slavko Janevski. Ele escreveu o primeiro romance em macedônio,
Seloto zad sedumte jaseni
(1952). O romance de Petre M. Andreevski, Pirej (1980; inglês “Quecke”,
2017) também é um dos mais representativos, e trata do período após o fim do domínio
otomano nos Bálcãs, durante a Primeira Guerra Mundial e posteriormente, no qual
a população em parte sérvia e em parte de língua búlgara se torna jogo político
entre a Sérvia, Bulgária e Grécia. Petre M. Andreevski foi recentemente descoberto
como um dos grandes narradores de histórias europeias do século XX. A Segunda Guerra
Mundial também permaneceu um tema frequente até depois da independência da Macedônia
do Norte, nos anos 90, por exemplo, no romance de Vlada Urošević,
Minha prima Emília (1994).
Em relação à poesia,
Kotcho Ratsin ou Kočo Racin
(1908-1943) foi um poeta e revolucionário comprometido com os comunistas macedônios
e juntou-se à resistência em 1943. Foi morto no mesmo ano em circunstâncias inexplicáveis.
Os poemas de Racin em Beli
Mugri (1939; White Dawns), que contêm muitos elementos da poesia folclórica
oral, foram proibidos pelo governo da Iugoslávia antes da Segunda Guerra Mundial.
O poeta Kole Nedelkovski (1912-1941), cujo poema revolucionário “Uma voz da Macedônia” (Glas od Makedonija)
é um dos mais importantes da literatura macedônia. E para mencionar as poetas mulheres, Danica Ruchigaj (1934), Vesna Acevska
(1952), Lidija Dimkovska (1971) são alguns nomes
de destaque. Em homenagem a Danica Ruchigaj, que tragicamente faleceu
em um terremoto em 1963, foi criado um prêmio de poesia com o seu nome.
NOTAS
1. Elizabeta Sheleva: ‘Otadžbina/domovina/tuđina’
(‘Fatherland/Homeland/Foreign Land’).
Sarajevske sveske,
no. 45/46, 2014.
2. Dubravka Ugrešić: The Age of Skin. Open
Letter, 2020.
3. Kapka Kassabova: Border:
A Journey to the Edge of Europe. Graywolf Press, 2017.
4. From Wisława Szymborska’s poem ‘The Joy of Writing’ (View with a Grain of Sand: Selected Poems,
Harcourt Brace, 1995).
5. Danilo Kiš: The
Lute and the Scars (‘Lauta i ožiljci’). Dalkey Archive Press, 2012.
6. Hannah Arendt: Thinking
Without a Banister: Essays in Understanding, 1953- 1975. Schocken, 2018.
VIVIANE DE SANTANA PAULO (Brasil, 1966). Poeta, romancista, ensaísta e tradutora. Estudou filologia germânica e românica na universidade de Bonn. É autora dos livros, lebendiges wensen namens gedicht – vom satelliten aus gesehen / ser vivo chamado poema – visto do sattélite (coletânea de poesia bilíngue – Engelsdorf Verlag, Leipzig, 2023); Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014). Foi membro da equipe editorial da ila-latina, revista de cunho social-político com sede em Bonn (Informationsstelle Lateinamerika e.V.). Seus textos foram publicados em revistas e antologias na Europa e América Latina. Traduziu diversos poetas alemães, incluindo Jan Wagner, Nora Bossong, Ron Winkler, Josef Kafka, Sarah Kirch, Paul Celan, Gottfried Benn. Viviane é autora da introdução e tradutora do texto de Nikola Madzirov aqui reproduzidos.
ARIADNA PINEDA (México, 1980). Estudió la Licenciatura en Artes Visuales en la Facultad de Bellas Artes de la UMSNH, así como Diseño de moda en Instituto INMODART en la ciudad de Morelia, Michoacán. Su experiencia profesional se ha forjado creando pintura, escenografía teatral, diseño de vestuario teatral y dancístico, escultura, fotografía, ilustración y muralismo. Sus exposiciones individuales han girado la mayoría en torno al arte con técnicas experimentales realizando obras arte háptico-senso-perceptual para personas con discapacidad visual, otras exposiciones de arte fumage y pintura al óleo, todas con su particular estilo surrealista. A la fecha son 13 sus exposiciones individuales desde el 2011. Participa en exposiciones colectivas desde 1996 dando un total de 38 colectivos. Algunas de sus obras se encuentran en Italia, Canadá, EU, en manos de coleccionistas privados. Ariadna en su creación encontró un nuevo camino con precedencia a partir de años de exploración, experimentación y especialización en la pintura al óleo y el arte fumage, encontrando su propio lenguaje, hoy busca dar a conocer con luz propia su obra surrealista más reciente para tomar con mayor fuerza los caminos de la creación. Ariadna Pineda es la artista invitada de esta edición especial de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 06 – ATHENA (PORTUGAL)
Artista convidada: Ariadna Pineda (México, 1980)
Editores:
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