segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

PENELOPE ROSEMONT | Diane di Prima (1934-2020)

 


O meu encontro com Diane di Prima aconteceu na Primavera de 2000 numa leitura de poesia no Columbia College. Com o auditório cheio, tive de me sentar nas filas de trás. Diane estava sentada na frente, vestida de preto, com uma bela e cintilante mantilha passada pelos ombros. O seu cabelo era longo, encaracolado e emoldurava o seu rosto de forma perfeita. Com 66 anos era bela e irradiava tranquilidade. O modo como ela disse as suas palavras e o que afirmou foram o bastante para criar em todos nós um encantamento. Cada um ficou quieto, sustendo a respiração, desejoso de se deixar levar nas asas das suas palavras.

Diane di Prima levava a poesia a sério. O poeta como vate; o poeta como visionário; o poeta como amante; o poeta como sangue vital do mundo – e a poesia como libertação da mente. Ela escreveu sem parar, levantando-se cedo para não ser interrompida, guardando aquilo que era necessário e burilando cada frase. Acrescentava e revia muitas vezes o seu trabalho. Tenho para comigo que só os surrealistas levam a poesia a sério.

Nesse encontro falámos bastante e depois ela perguntou-me quando nos podíamos voltar a ver. Não tardou que viesse passar alguns meses em Chicago! Isso permitiu-me apresentar-lhe Paul e Beth Garon, Joel Wiliams, Tamara Smith e todos os outros que faziam parte do Grupo Surrealista de Chicago. Ela juntou-se a nós para o nosso encontro semanal no restaurante Gulliver na Rua Howard. O Gulliver era um tesouro com compartimentos e mesas – candelabros Tiffany, espelhos enquadrados em molduras doiradas, Vénus esculpidas em mármore em grande profusão. Uma vez estivemos lá com Michael Löwy e ele cumprimentou assim o dono: “Não há nada de parecido com isto em Paris.” O dono, por sua vez, replicou: “Não há nada de semelhante em todo o mundo.”

Algumas vezes fui ao apartamento de Diane perto da Rua Rush para conversarmos. Gostávamos de falar sobre a estadia de Emma Goldman em Chicago e ainda sobre o grupo Free Society. Era uma boa amiga. No ano passado, quando lhe perguntei se se sentia mais próxima dos beats ou dos surrealistas, não hesitou em responder-me: “Sem dúvida, dos surrealistas.” Ela pertence ao meu livro Surrealist Women – an international anthology (1998), mas quando o publiquei, ela era já muito conhecida e o meu objectivo nesse livro era trazer para a luz as mulheres surrealistas esquecidas.

Escritora e mulher entre os poetas da beat, Diane di Prima nasceu em Brooklin, em 1934. O seu avô, Domenico Mallozi, um emigrante italiano, que vivia com a família, teve grande influência sobre ela. Anarquista e alfaiate, era amigo próximo de Carlo Tresca que fazia parte da central sindical IWW e se tornou um eminente organizador de greves. Como anarquista, Tresca editou vários jornais. Mallozi escreveu para um deles, Il Martello, um jornal fortemente anti-fascista, anti-estalinista e contra o crime organizado. Era ainda um orador e um conversador nato e a sua neta cresceu a ouvir as histórias de Sacco & Vanzetti, de Lawrence Strike, de Goldman e do trágico homicídio de Tresca. O seu avô incitou-a a ler Dante, Giordano Bruno e Maquiavel. Boa aluna, ela passou pela Hunter High School e pelo Swarthmore College, onde pensou tirar uma licenciatura em Física. Sentindo-se vocacionada para desenvolver a sua escrita, abandonou a academia e instalou-se num apartamento da East Village em Nova Iorque. Trabalhou como empregada num gabinete de Wall Street, num laboratório de electrónica da Universidade de Columbia, em lojas de comércio e posou ainda nua como modelo artístico, onde recebia três dólares à hora, tarifa superior à de qualquer outro emprego que teve.


Com 19 anos correspondeu-se epistolarmente com o poeta Kenneth Patchen, que publicava na revista Liberation, fundada por Dave Dellinger, Dorothy Day e A. J. Muste. Assinale-se que o livro de Dellinger, Revolucionary Non-Violence, foi um dos textos marcantes para os revolucionários dos anos 60. Em 1956, com 22 anos, vivendo a vida boémia da baixa de Manhattan, Di Prima encontrou Jack Kerouac e Allen Ginsberg. O controverso poema de Ginsberg, Howl, acabara de ser publicado por Ferlinghetti na chancela City Lights Books. O seu primeiro livro de poemas, This Kind of Birds Flies Backwards, foi publicado em 1958 na Totem Press de Hettie e LeRoi Jones (Amiri Baraka), que também publicou Ginsberg e Kerouac. Fazendo parte da “revolução da mimeografia” e determinada em ter os seus próprios meios de impressão, editou a revista Floating Bear com Jones entre 1961 e 1963. O FBI prendeu-os e acusou-os de obs­ce­ni­dade por causa de uma peça de William Burroughs. Como consequência o número 9 da publicação foi confiscado e proibido de circular. Em 1961,Diane di Prima iniciou o grupo New York Poets Theatre em ligação estreita com o Living Theatre de Judith Malina e Julian Beck, cujo objectivo era a “bela e não violenta revolução anarquista”. Em 1964 fundou Poets Press e publicou livros de Audre Lorde, David Henderson e Herbert Huncke. Trocou em 1966 a cidade de Nova Iorque pelas montanhas de Catskill, no interior norte do Estado, embora ainda tenha passado algum tempo em Millbrook, Nova Iorque, na comunidade de Timothy Leary.

Diane di Prima e uma caravana de amigos deixou Nova Iorque em 1967 em direcção à Costa Oeste. Viajavam num camião com crianças e cães. Pararam em Chicago para visitar a livraria Solidarity e para fazer leituras em escolas, galerias e bares. Com os filhos a cargo e com necessidade de dinheiro, apelou em 1968 para Maurice Girodias, de modo a que os livros banidos nos Estados Unidos devido ao seu conteúdo sexual explícito pudessem ser publicados em Paris. Escreveu Memoirs of a Beatnik que se vendeu muito bem e a tornou a mulher mais célebre da geração Beat. As leis da censura foram contestadas na Tribunal Supremo dos Estados Unidos pelo procurador de Chicago Elmer Gertz quando em 1964 apelou para o caso do livro de Henry Miller, Tropic of Cancer.


O seu grande trabalho poético, Revolucionary Letters, ganhou corpo pouco a pouco. Ela começou por ler pequenas peças no exterior, em manifestações pela paz com os Diggers, cuja principal preocupação era criar uma sociedade livre... livre das ditaduras do dinheiro e do capitalismo. Depois, começou por enviar regularmente as suas cartas para a Liberation News Service, uma central alternativa de notícias, que as distribuía por mais de 200 jornais contraculturais. A sua voz era ouvida cada vez mais longe. Revolucionary Letters foi assim sofrendo um processo de transformação, que passou pelas palavras recitadas nas manifestações, pela sua reprodução em jornais, pela edição mimeografada de um livro e por fim na recente edição de grande tiragem da City Lights. Ouvi várias vezes a sua leitura pessoal destes textos na Feira Anarquista do Livro de San Francisco. Quando ela por razões de saúde não pôde estar presente, aconteceu mesmo eu própria lê-los por ela. Ron Sakolsky chamou as “cartas revolucionárias” de Diane di Prima “fractais cintilantes de luz revolucionária que chamam por nós numa voz pessoal que é  também desafiadora, revoltada, ciosa, zangada, forte, questionadora e filosó­fica.” Dentro da grande literatura criada nos anos 60, o seu livro Revolutionary Letters é sem dúvida um dos mais proeminentes. No jornal anarquista Fifth Estate, Peter Lamborn Wilson chamou à sua autora “a primeira poeta anarco-hermética dos Estados Unidos (e provavelmente do mundo).”

Di Prima foi uma voz poderosa a favor das mulheres. A sua mãe era uma mulher ilustrada, que era filha de um anarquista e foi professora. Foi ela que lhe disse que não confiasse nos homens mas apenas em si própria. Diane teve cinco filhos que muito amou, cuidando deles e encaminhando-os para “questionarem a autoridade”. O seu livro Loba, constituído por um único e longo poema, foi editado em 1973. Loba é o seu alter-ego que explora experiências na vida selvagem. As profundezas da autora conseguem evocar o espírito animal e a natureza bravia e tudo isso veio ao de cima no momento mesmo em que a consciência social da importância da vida selvagem estava a crescer. Numa visita a Chicago ela fez um recital de poesia no estúdio do companheiro da IWW Carlos Cortez – poeta também ele. Chegámos cedo para conversar com Carlos e eu fiquei impressionada com a afinidade do pensamento de ambos. Diane gostou muito dos trabalhos em madeira de Carlos, que evocavam Joe Hill e Lucy Parsons. Poetisa, escritora e revolucionária, a voz corajosa e independente de Diane di Prima ainda hoje ressoa e nos toca. Falou, pensou e escreveu mais de meia centena de livros. A maioria foram publicados pela imprensa alternativa – isto pelo menos até ao livro Reccolections of my Life as a Woman (1993). A relação amorosa mais duradoura que teve foi com Sheppard Powell, artista e cineasta. Shepp documentou cinematograficamente intervenções faladas dela e ela dedicou-lhe “Pieces of a Song”.

Diane estava sempre a ler, escrever, pensar, agir. Parecia estar sempre a convidar-nos para nos juntarmos a ela e fazermos parte da grande aventura da vida. As suas primeiras palavras eram quase sempre: “Vamos embora!” A que se seguia: “Ver o mar”, “ouvir jazz”, “ao bairro japonês”, “à loja dos chineses”. Foi ela que me levou pela primeira vez a ver o oceano Pacífico. Para uma surrealista como eu, encontrar o grande e antigo oceano de Lautréamont foi um grande momento. Gritei então em inglês e em francês – “Eu te saúdo!” Até a loja dos chineses na sua companhia não chegava a ser uma desilusão.


Em 2003, Diane iniciou um manifesto surrealista: “A Poesia Conta – sobre a perseguição mediática a Amiri Baraka”. Defendendo Baraka, disse aí: “ A perseguição a Amiri Baraka é para sufocar a poesia, suprimir o espírito crítico, silenciar a dissidência. É para impor a censura e a coerção, a conformidade e a miséria – é a negação da liberdade.” Juntando-se ao nome de Diane, o manifesto contou com muitas outras assinaturas, entre elas a do Grupo Surrealista de Chicago.

Quem era Diane di Prima? Se o leitor quer saber, leia por favor os trabalhos dela e lembre-se dos antigos revolucionários que a inspiraram. Leia o poema dela “Memorial Day”, escrito em 2003. Foi escrito como resposta subversiva a um patriótico colunista do jornal Chicago Tribune – “Dear Abby”. Começa com a seguinte introdução: “Hoje é o Memorial Day. Dedica algum tempo a lembrar aqueles bravos que deram as suas vidas pela liberdade.” E segue assim: “Dear Abby, lembra Sacco & Vanzetti, lembra Haymarket, lembra John Brown, lembra a revolta dos escravos, lembra Malcolm X.”



NOTA

Texto original publicado na revista The Oystercatcher (nº 18, 2021) com o título “Diane Di Prima: The She-Woolf – as anarchist poet/surrealist provocateur”.



PENELOPE ROSEMONT
(Estados Unidos, 1942) is a surrealist painter, writer, photographer, and collagist. In 1965, she and her husband Franklin Rosemont co-founded the Chicago Surrealist Group, following a trip to Paris and meeting with French surrealist André Breton. The group, known for its radical politics and revolutionary aesthetics, went on to hold numerous exhibitions at the Gallery Bugs Bunny and the Gallery Black Swan. Penelope edited Surrealist Women: An International Anthology (University of Texas Press, 1998) and is the author of Surrealist Experiences: 1001 Dawns, 221 Midnights (Black Swan Press, 2000) as well as several books of poetry. In the course of our conversation at the Heartland Café (which has also exhibited the Chicago Surrealist Group), another Chicago (now Madison) surrealist, Lester Doré, stopped by. We began by talking about the short-lived Gallery Bugs Bunny.




FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

  



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA  REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)

Artista convidado:  Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025




∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




Nenhum comentário:

Postar um comentário