Diane di Prima levava a poesia a sério. O
poeta como vate; o poeta como visionário; o poeta como amante; o poeta como
sangue vital do mundo – e a poesia como libertação da mente. Ela escreveu sem
parar, levantando-se cedo para não ser interrompida, guardando aquilo que era
necessário e burilando cada frase. Acrescentava e revia muitas vezes o seu trabalho.
Tenho para comigo que só os surrealistas levam a poesia a sério.
Nesse
encontro falámos bastante e depois ela perguntou-me quando nos podíamos voltar
a ver. Não tardou que viesse passar alguns meses em Chicago! Isso permitiu-me
apresentar-lhe Paul e Beth Garon, Joel Wiliams, Tamara Smith e todos os outros
que faziam parte do Grupo Surrealista de Chicago. Ela juntou-se a nós para o
nosso encontro semanal no restaurante Gulliver na Rua Howard. O Gulliver era um
tesouro com compartimentos e mesas – candelabros Tiffany, espelhos enquadrados
em molduras doiradas, Vénus esculpidas em mármore em grande profusão. Uma vez
estivemos lá com Michael Löwy e ele cumprimentou assim o dono: “Não há nada de
parecido com isto em Paris.” O dono, por sua vez, replicou: “Não há nada de
semelhante em todo o mundo.”
Algumas
vezes fui ao apartamento de Diane perto da Rua Rush para conversarmos.
Gostávamos de falar sobre a estadia de Emma Goldman em Chicago e ainda sobre o
grupo Free Society. Era uma boa amiga. No ano passado, quando lhe perguntei se
se sentia mais próxima dos beats ou dos surrealistas, não hesitou em
responder-me: “Sem dúvida, dos surrealistas.” Ela pertence ao meu livro Surrealist Women – an international
anthology (1998), mas quando o publiquei, ela era já muito conhecida e o
meu objectivo nesse livro era trazer para a luz as mulheres surrealistas
esquecidas.
Escritora
e mulher entre os poetas da beat, Diane di Prima nasceu em Brooklin, em 1934. O
seu avô, Domenico Mallozi, um emigrante italiano, que vivia com a família, teve
grande influência sobre ela. Anarquista e alfaiate, era amigo próximo de Carlo
Tresca que fazia parte da central sindical IWW e se tornou um eminente
organizador de greves. Como anarquista, Tresca editou vários jornais. Mallozi
escreveu para um deles, Il Martello,
um jornal fortemente anti-fascista, anti-estalinista e contra o crime
organizado. Era ainda um orador e um conversador nato e a sua neta cresceu a
ouvir as histórias de Sacco &
Vanzetti, de Lawrence Strike, de Goldman e do trágico homicídio de Tresca. O
seu avô incitou-a a ler Dante, Giordano Bruno e Maquiavel. Boa aluna, ela
passou pela Hunter High School e pelo Swarthmore College, onde pensou tirar uma
licenciatura em Física. Sentindo-se vocacionada para desenvolver a sua escrita,
abandonou a academia e instalou-se num apartamento da East Village em Nova
Iorque. Trabalhou como empregada num gabinete de Wall Street, num laboratório
de electrónica da Universidade de Columbia, em lojas de comércio e posou ainda
nua como modelo artístico, onde recebia três dólares à hora, tarifa superior à
de qualquer outro emprego que teve.
Diane di
Prima e uma caravana de amigos deixou Nova Iorque em 1967 em direcção à Costa
Oeste. Viajavam num camião com crianças e cães. Pararam em Chicago para visitar
a livraria Solidarity e para fazer leituras em escolas, galerias e bares. Com
os filhos a cargo e com necessidade de dinheiro, apelou em 1968 para Maurice
Girodias, de modo a que os livros banidos nos Estados Unidos devido ao seu
conteúdo sexual explícito pudessem ser publicados em Paris. Escreveu Memoirs of a Beatnik que se vendeu muito
bem e a tornou a mulher mais célebre da geração Beat. As leis da censura foram
contestadas na Tribunal Supremo dos Estados Unidos pelo procurador de Chicago
Elmer Gertz quando em 1964 apelou para o caso do livro de Henry Miller, Tropic of Cancer.
Di Prima
foi uma voz poderosa a favor das mulheres. A sua mãe era uma mulher ilustrada,
que era filha de um anarquista e foi professora. Foi ela que lhe disse que não
confiasse nos homens mas apenas em si própria. Diane teve cinco filhos que
muito amou, cuidando deles e encaminhando-os para “questionarem a autoridade”.
O seu livro Loba, constituído por um
único e longo poema, foi editado em 1973. Loba é o seu alter-ego que explora
experiências na vida selvagem. As profundezas da autora conseguem evocar o
espírito animal e a natureza bravia e tudo isso veio ao de cima no momento
mesmo em que a consciência social da importância da vida selvagem estava a
crescer. Numa visita a Chicago ela fez um recital de poesia no estúdio do companheiro
da IWW Carlos Cortez – poeta também ele. Chegámos cedo para conversar com
Carlos e eu fiquei impressionada com a afinidade do pensamento de ambos. Diane
gostou muito dos trabalhos em madeira de Carlos, que evocavam Joe Hill e Lucy
Parsons. Poetisa, escritora e revolucionária, a voz corajosa e independente de
Diane di Prima ainda hoje ressoa e nos toca. Falou, pensou e escreveu mais de
meia centena de livros. A maioria foram publicados pela imprensa alternativa –
isto pelo menos até ao livro Reccolections
of my Life as a Woman (1993). A relação amorosa mais duradoura que teve foi
com Sheppard Powell, artista e cineasta. Shepp documentou cinematograficamente
intervenções faladas dela e ela dedicou-lhe “Pieces of a Song”.
Diane
estava sempre a ler, escrever, pensar, agir. Parecia estar sempre a
convidar-nos para nos juntarmos a ela e fazermos parte da grande aventura da
vida. As suas primeiras palavras eram quase sempre: “Vamos embora!” A que se
seguia: “Ver o mar”, “ouvir jazz”, “ao bairro japonês”, “à loja dos chineses”.
Foi ela que me levou pela primeira vez a ver o oceano Pacífico. Para uma
surrealista como eu, encontrar o grande e antigo oceano de Lautréamont foi um
grande momento. Gritei então em inglês e em francês – “Eu te saúdo!” Até a loja
dos chineses na sua companhia não chegava a ser uma desilusão.
Quem era Diane di Prima? Se o
leitor quer saber, leia por favor os trabalhos dela e lembre-se dos antigos
revolucionários que a inspiraram. Leia o poema dela “Memorial Day”, escrito em
2003. Foi escrito como resposta subversiva a um patriótico colunista do jornal Chicago Tribune – “Dear Abby”. Começa
com a seguinte introdução: “Hoje é o Memorial Day. Dedica algum tempo a lembrar
aqueles bravos que deram as suas vidas pela liberdade.” E segue assim: “Dear
Abby, lembra Sacco & Vanzetti,
lembra Haymarket, lembra John Brown, lembra a revolta dos escravos, lembra
Malcolm X.”
NOTA
Texto original publicado na revista The Oystercatcher (nº 18, 2021) com o
título “Diane Di Prima: The She-Woolf – as anarchist poet/surrealist
provocateur”.
PENELOPE ROSEMONT (Estados Unidos, 1942) is a surrealist painter, writer, photographer, and collagist. In 1965, she and her husband Franklin Rosemont co-founded the Chicago Surrealist Group, following a trip to Paris and meeting with French surrealist André Breton. The group, known for its radical politics and revolutionary aesthetics, went on to hold numerous exhibitions at the Gallery Bugs Bunny and the Gallery Black Swan. Penelope edited Surrealist Women: An International Anthology (University of Texas Press, 1998) and is the author of Surrealist Experiences: 1001 Dawns, 221 Midnights (Black Swan Press, 2000) as well as several books of poetry. In the course of our conversation at the Heartland Café (which has also exhibited the Chicago Surrealist Group), another Chicago (now Madison) surrealist, Lester Doré, stopped by. We began by talking about the short-lived Gallery Bugs Bunny.
FIRMINO SALDANHA (Brasil, 1906-1985). Pintor, arquiteto. Cursou arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes/Enba, em 1931, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, inicia-se como autodidata em pintura. Em 1957, é escolhido, juntamente com Candido Portinari, para concorrer aos prêmios Guggenheim e participar da exposição realizada em Paris. Além disso, integra a comissão encarregada de projetar a Cidade Universitária, no Rio de Janeiro, ao lado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy; atua como presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB; e realiza, dentre outros, o mural do Banco Nacional – Palácio do Planalto, em Brasília. A seu respeito disse Flávio de Aquino: Nas telas de Saldanha sentimos formas, linhas e cores se movimentando, criando contraste, se ajustando ou se opondo umas às outras, como se nascessem do mesmo ritmo, obedientes à composição geral, com seus elementos fortemente ligados através de uma coerência formal, de onde emerge a mensagem emocional com limpidez e transparência. Por sua vez, observou Joaquim Tenreiro que Firmino foi um pintor filiado aos princípios plásticos de Braque. Sentiu-lhe intensamente a influência, especialmente no formalismo, na esquematização, na composição da obra. Assim foi durante algum tempo, e nisto está uma força e uma constância, que fazem Saldanha trabalhar continuamente até chegar à atual fase, já livre daquela influência, evidenciando sempre, porém, uma forte consciência de pintor. Firmino Saldanha é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 09 – A IDEIA – REVISTA DE CULTURA LIBERTÁRIA (PORTUGAL)
Artista convidado: Firmino Saldanha(Brasil, 1906-1985)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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