Uma das maiores
distorções a que se tem submetido o estudo da literatura portuguesa tem sido a
ênfase injustificável na metodologia estética pseudonímica a que o poeta
português nomeou por “obra heterônima”. Esse processo de criação literária,
existente desde os tempos bíblicos, reveste-se de uma ficcionalização especial
nas mãos de Fernando Pessoa, em meio ao tédio e ao autoritarismo da Lisboa das
primeiras décadas do século passado. No entanto, trata-se quase de uma
constante em terras lusitanas: veja-se Miguel Torga (Adolfo Correia da Rocha),
José Régio (José Maria dos Reis Pereira), Antonio Gedeão (Rômulo Vasco da Gama
de Carvalho), Herberto Hélder (Luís Bernardes de Oliveira), Mário Cláudio (Rui
Manuel Pinto Barbosa Costa), Adília Lopes (Maria José da Silva Viana Fidalgo de
Oliveira). E também em terras lusófonas africanas: José Luandino Vieira (José
Vieira Mateus da Graça) e Mia Couto (Antonio Emílio Leite Couto). O Brasil não
fica de fora, com Marques Rebelo (Eddy Dias da Cruz), Tristão de Ataíde (Alceu
Amoroso Lima) e o contemporâneo Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira).
Também foram muitos os escritores de língua estrangeira que usaram
pseudônimos Novalis (Friedrich Von Hardenberg), Voltaire (François Marie
Arouet), Sthendal (Henri Beyle), Anatole France (Jacques Anatole François
Thibault), André Maurois (Emile Herzog), George Sand (Amandine Aurore Lucile
Dupin), Paul Éluard (Eugène Grindel), Mark Twain (Samuel Langhorne Clemens),
George Orwell (Eric Arthur Blair), Lewis Carroll (Charles Lutwidge), Rubem
Dario (Félix Ruben Garcia Sarmiento), Pablo Neruda (Neftali Ricardo Eliecer
Reys Basoalto), Gabriela Mistral (Lucila Godoy y Alcayaga). Entre muitos
outros, inclusive vários laureados com o prêmio Nobel.
Em língua portuguesa, o maior uso de pseudônimos vamos encontrar no
padre Manuel Antunes: ao todo cento e vinte e quatro, colaborador que era da
revista Brotéria em temas filosóficos
e literários – no seu caso, o recurso intensivo à pseudonímia tem sido
explicado pela necessidade de apresentar diversificação autoral, uma vez que
precisava escrever vários artigos em um mesmo número de revista. Sem falar em
se constituir uma utilidade estratégica para iludir a censura do Estado Novo,
que averiguava mensalmente os conteúdos publicados. Manuel Antunes começa a
colaborar na Brotéria em 1949 e foi
seu diretor de 1965 a 1982; escreveu nela quatrocentos e dez artigos dos quais
duzentos e cinquenta e dois deles foram assinados com os seus múltiplos
pseudônimos. O que significa dizer que os adeptos do primado da pseudonímia pessoana
nas letras portuguesas, já teriam, diante de Manuel Antunes, que justificar no
mínimo a sua pouca informação e reconhecer de imediato o padre como objeto
analítico maior do aludido primado.
O pseudônimo, como se sabe, é um nome artístico. É usado com mais frequência
na música e no cinema: Woody Allen (Allen Stewart Konigsberg), Charles Aznavour
(Shahnour Aznavurjan), Brigitte Bardot (Camille Javal), Enya (Eithne ní
Bhraonáin), Rita Hayworth (Margarita Carmen Cansino), Marilyn Monroe (Norma
Jean Mortenson). Ele representa uma nova vinda ao mundo, desta vez, no berço da
arte. Apesar de típico do romantismo, atravessou as vanguardas e se estendeu
até nossa época. Trata-se de um novo nascimento a partir de um novo batismo.
O uso do pseudônimo tem um caráter liberador, tanto em relação aos
outros como a si mesmo. Assumir essa postura implica em contestar a imagem da
identidade na antiguidade clássica, entendida como cópia ou duplicação de um
modelo sempre igual a si mesmo. Na literatura, se por um lado, permite ao autor
reduplicar-se, por outro, talvez consiga protegê-lo da opinião pública, além de
atuar, também, como estratégia discursiva.
Além de criar nomes artísticos para os poemas que escrevia, Pessoa
deu-lhes cosmovisões, estilos de época, biografias. Já tivemos oportunidade de
discorrer em ensaio sobre esse aspecto, em 1985, aos cinquenta anos da partida
do poeta ("A Lenda de Fernando Pessoa", 2003). No ano de 1935 ele
escreve a conhecida carta a Adolfo Casais Monteiro explicando a possível gênese
dos “heterônimos” tendo em vista que sua obra poética contém versos em seu
próprio nome e outros assinados por Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de
Campos, pseudônimos que Pessoa converte em “personagens de um drama” lírico
monologal. A partir daí a pseudonímia começa a ter em Fernando Pessoa um relevo
que não acontecera em outros autores, chegando-se ao extremo de afirmar o
chamado “primado da heteronímia”, segundo o qual “a singularidade da poesia de
Pessoa estaria na proposição não de um só poeta, mas de quatro”: aí residiria o
enigma e a força da sua poesia.
Quando criança eu inventava livros e falava sozinha com eles nas tardes
intermináveis do sobrado da Rua do Lima, no enorme silêncio gerado no espaço
entre o sono da tarde da minha avó Lucila e a mímica habitual de Maria, a
empregada muda e surda. A solidão cria uma metodologia especial para a
necessidade de comunicação e a arte tem sido sempre uma efetiva e presente
resposta, diálogo permanente e companhia fiel que termina por sobreviver ao seu
próprio agente criador. A capacidade imaginativa do artista habitualmente o
arrasta por caminhos inacreditáveis ao senso comum, mas que, ao surgirem,
sempre lhe parecem simples e familiares. Essa maneira de olhar e atuar no mundo
funciona inclusive como um código de reconhecimento entre os que são artistas
verdadeiramente e aqueles que apenas aspiram a essa condição. Na verdade, além
de implicar no domínio técnico, escrever bem um poema é, sobretudo, manter-se
fiel às brincadeiras mágicas da infância, sem qualquer medo da censura pública,
transportando-as à idade adulta com ousadia e naturalidade.
Ao longo do nosso exercício do magistério em literatura portuguesa,
começamos a observar a ênfase progressiva no método autoral pessoano: do famoso
baú deixado pelo poeta foram-se descobrindo um total de setenta e dois autores
/ pseudônimos e isso criou quase como uma obsessão entre os estudiosos,
preocupação a ultrapassar em alguns casos a análise da beleza, do sublime, da
modernidade e da eternidade dos versos do poeta. E mais: observamos uma
ignorância relativa ao contexto social português ao tempo em que Pessoa
produziu as suas obras. Além disso, como lembra José Augusto Seabra, Pessoa
chegou a pensar em deixar sua obra anônima, assumindo, assim, a nulidade
semântica do seu próprio nome; Seabra muito acertadamente recorda que esse
fato, apesar de sabido, raramente é posto em relevo:
Pensei, primeiro, em publicar
anonimamente, em relação a mim, estas obras, e, por exemplo, estabelecer um
neopaganismo português, com vários autores, todos diferentes, a colaborar nele
e a dilatá-lo. Mas, sobre ser pequeno demais o meio intelectual português, para
que (mesmo sem inconfidência) a máscara se pudesse manter, era inútil o esforço
mental preciso para mantê-la.
O professor da Universidade do Porto, Arnaldo Saraiva recolheu um texto pessoano
datado de 1914:
Cada um de nós, na sua vida
realizada e humana, não é senão a caricatura da sua própria alma. Somos sempre
menos do que somos. Somos sempre a tradução para grotesco daquilo que quisermos
ser, e que, por isso, intimamente e verdadeiramente somos.
Inventar “pessoas”: não é isso que faz o ficcionista, o dramaturgo? Ser
o que se é: ser o que se deseja ser. Ser a si mesmo como se fosse um outro.
Identidade pessoal, identidade narrativa. Uma alteridade que atingisse um grau
tão intimo que não se pudesse pensar em um sem pensar igualmente no outro. Uma
hermenêutica de si mesmo: se a poesia nasce de uma desavença interior, às vezes
o recurso à máscara pode nos fazer dizer a verdade. Assumindo vários “eus”, o
poeta persiste na dúvida e no mistério sem racionalizar – é o que Keats chamou
“capacidade negativa”, ou seja, a permanência na incerteza, a capacidade de
suportar o desconhecido. Para lembrar Nietzsche, é preciso que, de vez em
quando, descansemos de nós próprios.
A aceitação do jogo de contrários de que se compõe o mundo remete a uma
postura que representa a realidade em estruturas discursivas fragmentárias, em
oximuros que deconstróem as fronteiras entre os opostos: daí haver quem diga
que os chamados “heterônimos” de Pessoa poderiam ser uma resposta à
descontinuidade básica entre a realidade e o discurso que deseja representá-la
– quem sabe uma declaração artística da impossibilidade do conhecimento da
essência das coisas.
O que verificamos é que a multiplicação dos pseudônimos, do ponto de
vista da instituição literária, não significa apenas novas personalidades
ficcionais criadas por Pessoa, mas um problema que está se tornando sério
ligado à questão da autoria: qual a legitimidade da publicação em nome de um
autor de uma obra por ele não autorizada? Até que ponto isso pode justificar o
interesse editorial de um sempre ávido mercado literário? Por acaso o Fernando
Pessoa de hoje, ano de 2007, não surge também modificado pelos organizadores de
seus textos, ou quem sabe de acontecimentos desconhecidos do público que
ultrapassam a genuína criação da obra?
Carlos Filipe Moisés reforça a idéia dos pseudônimos / personagens
proferindo seus monólogos e fornecendo ao leitor perfis de várias
personalidades: o enredo ou drama de que essas figuras fariam parte correria
por conta da imaginação de quem lê. O mesmo C. F. Moisés menciona haver Pessoa
criado os “heterônimos” como quem constrói a sua Family Romance, constituída de mestre e discípulos, influências e
contrastes: essa expressão é empregada por Harold Bloom em seu livro “A
Angústia da Influência”, para designar o background
literário de todo escritor de gênio. Ele refere o caráter de obra fragmentária,
in progress, deixada pelo poeta e
reafirma tratar-se do exercício semelhante ao praticado pelo romancista ou
dramaturgo essa relação ortônimo / pseudônimos. Dessa forma Pessoa cristalizou
em seu texto a noção da vida como um teatro, as pessoas com suas máscaras, as
personas.
Conforme Eduardo Lourenço, de Pessoa poder-se-á dizer que existiu de
forma superlativa por haver concedido a si mesmo vidas imaginárias; espectador
privilegiado do seu próprio espetáculo, autor de um “drama vivo” que toma à
letra e às avessas a fórmula da teatralidade moderna ilustrada na Itália por
Pirandello e na Argentina por Jorge Luis Borges. De modo que sua vida será ela
vivida sob o signo da teatralidade, considerando-se que o poeta é o sujeito e o
objeto da ação, sendo ainda o espaço da representação: o poeta Pessoa há de
fazer tudo o que o ser humano possa realizar para não abandonar o reino da
infância em que é o rei dos seus sonhos.
Octavio Paz definiu a obra de Pessoa como a busca de uma identidade
perdida: para os românticos, como para Nerval, Rimbaud e os poetas da
modernidade, o eu era um obstáculo; Georges Gunthert destaca o “palco poético”
em que o autor português se veria a si próprio, representando através dos
pseudônimos, mas sem que ninguém conhecesse, à exceção de Sá-Carneiro, o
segredo da sua identidade; destaca o importante fato de que para Pessoa, como
para outros que o antecederam (Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche) o
pensamento não teria raízes no espírito, mas na realidade, coisa que os
românticos, alemães e ingleses, há muito teriam pressentido.
A questão dos múltiplos pseudônimos bem como da criação de “personagens”
para atribuição de poemas, é coisa bastante antiga em literatura, já realizada
e bastante conhecida por autores como o poeta escocês James MacPherson e o
filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard.
Em 1760, por insistência de amigos, James Mac Pherson (1736-1796)
publicou os “Fragmentos de Poesia Antiga coletados nas Altas Terras da Escócia”,
que seriam supostamente traduções suas dos antigos poemas gaélicos. Em 1761 e
1763, sugeriam Fingal e Temora,
respectivamente apresentados como obra do poeta irlandês do século III Ossian;
em 1765 viria a publicação “Os Trabalhos de Ossian”. Os irlandeses se
revoltaram com a mistura realizada com a cultura escocesa; a autenticidade dos
poemas foi questionada por Samuel Johnson o qual, após investigação local
afirmou em “Uma viagem às Ilhas Ocidentais da Escócia” (1775) que se MacPherson
havia mesmo encontrado fragmentos de antigos poemas e algumas estórias, ele os
reunira em um poema de sua própria composição. O certo é que a partir daquela
época, “Baladas Ossiânicas” foi o termo utilizado para designar poemas da
tradição gaélica comuns tanto à Escócia como à Irlanda. Tratando-se Ossian de
um poeta nórdico antigo, será contraposto ao Homero e a chamada poesia Ossiânica
irá influenciar toda a cultura européia do século. Depois da morte de MacPherson,
chegou-se a um acordo de que ele mesmo compusera a maior parte da poesia tida
como supostamente antiga; no final do século XIX verificou-se a inexistência de
Ossian. No entanto, esses poemas em prosa, rítmicos e melancólicos
influenciaram poderosamente o crescimento do movimento romântico.
Como resta claro, James MacPherson escreveu um poema a partir de várias
fontes, dizendo-se delas tradutor. Uma pergunta: como escreveu Homero a” Ilíada
“e a “Odisséia?” O certo é que o tratamento dado por MacPherson às lendas
antigas, direcionaram a sensibilidade dos românticos: Herder e Goethe tanto o
admiravam que o último chega a citá-lo em “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, no
qual o personagem escreve em seu diário: “Ossian suplantou a Homero em meu
coração”. Em síntese: os poemas ossiânicos foram escritos pelo irlandês James
MacPherson e não por Ossian, suposto poeta escocês do século III. O curioso é
que tenha havido quem se recorde desse fato como uma “fraude” e não como um
recurso plenamente legítimo de criação literária, que inclusive chamou a
atenção de todos para a antiga tradição oral que estava desaparecendo na
Escócia.
A poesia de James MacPherson deflagrou na Europa uma atmosfera voltada
para o sonho e o passado, o gosto pelas ruínas. Em 1764 acontecerá a publicação
de “O Castelo de Otranto” de Horace Walpole, cenas de terror teatral em
passagens subterrâneas; em 1786, William Beckford escreve “Vathek”, califa
oriental sedento de prazer cujo satanismo irá também marcar o romantismo e que
prenuncia Byron, bem como o romance gótico que irá se constituir em uma reação
da aristocracia à burguesia industrial inglesa que iria se consolidar na era
vitoriana, abolindo a primazia do prazer e instituindo as regras do decoro e da
virtude. Daí se verifica a divisão do romantismo: a linha voltada para o homem
comum (Wordsworth e Robert Burns) e o romantismo maldito e paradoxal que
apresenta a fusão da libido com o instinto de morte. Em 1790 surge William
Blake (1757-1827) com o seu visionarismo apocalíptico no livro “O casamento do
céu e do inferno”. A respeito deste poeta, diz George Bataille que nele a
sensualidade se opõe ao primado da razão e em nome daquela ele condena a lei
moral, abrindo o seu espírito, também à verdade do mal. Essa atmosfera chegaria
a influenciar autores do século XX, como o português José Régio, autor do
“Cântico Negro”, incluído em seu livro “Poemas de Deus e do Diabo”(1925),cuja
ideologia transgressora “dark” e “noir” já tivemos oportunidade de comentar
Se a poesia de Wordsworth era coloquial e creditada ao estudo e esforço,
Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) escrevia poemas de temática sobrenatural,
acreditando na inspiração e concebendo a poesia como desvinculada do real; ele
recorria a visões que lhe apareciam em sonhos como o caso de “Kublakhan”, além
do demonismo presente em “O Velho Marinheiro” e “Christabel”, que tem em comum
com o gótico a ambiência medieval e a atmosfera de pesadelo. O homem fatal
romântico tem rosto pálido devastado pelas paixões, é misterioso e tem origem
desconhecida, como nas obras “Os mistérios de Udolpho” e “O italiano” de Ann
Radcliffe (1794 e 1797), bem como “O Monge” de Mathew Lewis (1796). Ocorre que,
em 1667, John Milton havia publicado “O Paraíso Perdido” no qual se destaca
Satã, o Príncipe das Trevas: esplendor nublado, majestade arruinada, beleza
amaldiçoada. Como destaca Mário Praz em “A agonia romântica”, as metamorfoses
de Satã irão comparecer ao romantismo inglês nas figuras de Prometeu, Caim e
outros. E chega-se então ao modelo encarnado por Lorde Byron (1788-1824) em
suas obras “Prometheus, Caim, Childe Harold, Manfred e D. Juan”. “The Vampyre”
(1819), escrito por John Polidori, primeiro texto sobre vampiros na literatura
inglesa, foi inspirado pelo próprio Lorde Byron. Os vampiros vão encarnar, no
romantismo inglês, uma das configurações das metamorfoses de Satã; porque ele
conjuga o sobrenatural, o mítico e o aristocrático, Eros e Thanatos. Esse gosto
pelo horrível e exótico vai estar presente também na poesia de Percy Bysshe
Shelley (1792-1822); quanto à figura da mulher fatal romântica, presente, por
exemplo, em Salomé, Cleópatra e Monalisa, ela vai se destacar sobretudo no decadentismo
do final do século XIX; tem como obra precursora “La Belle Dame Sans Merci”, do
poeta John Keats (1795-1821). Conforme Fernando Monteiro de Barros, em seu
estudo “O mal-do-século no romantismo inglês”, a vigência romântica na
Inglaterra vai até 1832, quando tem início a era vitoriana que chegará ao ponto
de censurar a obra de Shakespeare.
Como se vê, todo um período literário que se estende até os nossos dias
não só em best-sellers como em
sucessivos filmes de platéia lotada, foi tornado possível a partir dos poemas
de “Ossian” de James MacPherson, o qual, a partir de um artifício estratégico
de composição artística, ou seja, de um modo de criação literária entre a ficção
e a dramaturgia, deu voz a todo um direcionamento estético inglês, europeu,
universal. E isso de tal maneira que as obras contemporâneas de autores
respeitados como Umberto Eco, no caso o romance “O Nome da Rosa”, permanecem
fieis ao método de recorrer, para a narração discursiva, a supostos textos e
documentos encontrados ao acaso em sebos ou bibliotecas.
Fernando Pessoa, aluno brilhante em cidade de colonização inglesa da
África do Sul, onde ficou dos sete aos dezessete anos, ou seja, onde construiu
sua formação, por certo estudou com profundidade esse processo de criação de
MacPherson com as suas consequências na literatura ocidental. Atribuir a um
personagem ficcional um poema de autoria própria: não é certamente por essa
razão que cada vez mais se respeita e admira a obra do grande poeta português.
E não será também pelo aspecto da pseudonímia que se torna grande a sua poesia.
Com a sua rigorosa formação filosófica, com toda certeza tinha Fernando Pessoa conhecimento
do método pseudonímico aplicado à produção de seus livros pelo filósofo
dinamarquês Sören Kierkegaard.
A pseudonímia como estratégia discursiva, como artifício literário do
romantismo, é chamada por Johannes Climacus (Kierkegaard) de polionímia; ela estabelece a desconstrução
do unívoco e através de um mecanismo de ambiguidade dissolve a tensão do
paradoxo, convertendo-a em um teatro de máscaras que dialogam entre si, através
de uma “comunicação indireta”, desdobramentos paradigmáticos de concepções
estéticas e visões do mundo. Sabe-se que Kierkegaard publicou seus trabalhos
filosóficos sob vários pseudônimos, que possuíam personalidades distintas com
suas perspectivas de vida específicas (Johannes Climacus foi o mais socrático
entre eles e trata do dilema entre a dúvida e a fé; Vigilius Haufniensis
ocupa-se dos aspectos psicológicos pecado / ansiedade; Johannes de Silentio e
Constantin Constantius cuidam da ética; Anticlimaco é o cristão modelar). O seu
propósito não seria o anonimato, mas desvincular sua personalidade dos assuntos
polêmicos que tratava. Chegou a publicar, em 1842, uma “Confissão Pública”, em
seu próprio nome, desautorizando os boatos em que era ele o autor de artigos
assinados com pseudônimos; considerava essencial para a dialética autoral que
queria criar que estivesse desvinculado da autoria desses artigos.
Em 1843 publicou “Ou / Ou: um fragmento de vida: Segunda Parte (Papéis
de B)”. A primeira continha os papéis de A e tratava de questões estéticas; a
segunda era sobre o casamento; o editor era Victor Eremita, cada parte tinha um
autor e Kierkegaard, para que o público não soubesse que ele era o autor,
chegou a fazer os originais serem copiados por mãos diferentes, a fim de que os
empregados da gráfica não o identificassem pela caligrafia; completando a
farsa, uma semana após o lançamento do livro, publicou um artigo seu no “A
Pátria” com o pseudônimo “A. F.” onde ele próprio indaga quem seria o autor de
“Ou / Ou”?
Kierkegaard pertence a uma classe de filósofos (como Nietzsche e Platão)
que une ao seu discurso intelectual um “pathos” poético com uma qualidade
literária difícil de superar. Ele desenvolveu uma forma de expressão peculiar
por meio da criação de pseudônimos, com uma nova forma irônico-sarcástico de
fazer filosofia. Considerado o primeiro existencialista, a problemática
principal de Kierkegaard consiste exatamente na irracionalidade da nossa
experiência do real. Como um divino enganador, chega mesmo a afirmar: “não há
nos livros pseudônimos uma palavra que seja minha”. Essa advertência
Kierkegaardiana, se fosse levada a sério, implicaria em só reconhecer como de
sua autoria os textos que ele assinou com o seu nome; no entanto, como não
reconhecer como sua a totalidade da obra pseudônimo?
Pablo U. Rodriguez recorda que o sentido comum do nome próprio é algo
que outro elegeu para mim, por que ele é a superfície de uma identidade que
também escolheram para mim; o mesmo sentido comum reconhece no pseudônimo
aquilo que eu escolhi para mim. Ou seja, o pseudônimo é a escolha de uma
identidade que eu reconheço em mim, ou que eu desejo para mim. Assim, o
pseudônimo é uma identidade que provoca uma libertação.
A pseudonímia, chamada por Kierkegaard “comunicação indireta”, remete
aos jogos de cubos infantis em que um maior oculta outro menor sucessivamente,
tal como as famosas bonecas russas Matruskas (Babuskas). Essa imagem é sugerida
pelo pseudônimo editor imaginário Victor Eremita, ao referir-se que um dos
autores se encontra de certo modo no outro, como caixinhas chinesas. Não
satisfeito em apresentar um carrossel de personagens, Kierkegaard chega ao nonsense
pirandelliano de declarar que os pseudônimos estariam desejando o desaparecimento
do seu autor: em seu “Pós-Scriptum” às migalhas filosóficas, declara o filósofo
dinamarquês:
Percebo, desde o início, que
minha existência pessoal é algo embaraçoso para os pseudônimos. Estes devem, de
um modo a uma só vez patético e egoístico, desejar que esta realidade
desapareça, quanto mais cedo melhor, ou que seja tornada tão insignificante
quanto possível, embora desejem com uma ansiedade irônica, conservá-la diante
deles próprios, como um modo de se sobressaírem. Pois meu propósito em relação
a eles é o de dar-lhes unidade, como faria um secretário. Além de, o que não é
sem ironia, fazer o papel de autor do autor (dialeticamente reduplicado) ou de
autor dos autores.
Como destaca Guiomar De Grammont em obra acerca de Kierkegaard o sentido
que a comunicação indireta toma em
sua obra visa à expressão da existência como interioridade: a forma mais
profunda de expressar sua tese central é criar personagens que são o testemunho
vivo dela. E prossegue afirmando que ao nos perguntarmos quem é Kierkegaard,
corremos o risco de nos perdermos nessa floresta de personagens que se movem
como bonecos de cera aos quais um gênio houvesse insuflado vida; essa seria a
imagem que ele próprio nos apresenta de si em relação aos pseudônimos, em uma
definição que lembra o “ponto”, figura comum no teatro até há um tempo atrás
que “soprava”para os atores as falas esquecidas – Kierkegaard “inspiraria” seus
pseudônimos da mesma forma, seria apenas seu “desvelador”:
eu sou, com efeito, pessoal ou
impessoalmente, um insuflador (souffleur) em terceira pessoa, que produziu
poeticamente autores, os quais são autores de seus prefácios e, mesmo de seus
nomes.
No ensaio “A Lenda de Fernando Pessoa” que escrevemos aos cinquenta anos
da morte do poeta (1985), já reclamávamos da super-valorização da crítica com
relação ao processo estético dos pseudônimos, que não teriam qualquer
importância não fosse a poderosa beleza e humanidade dos versos do poeta
português:
Numa lembrança mais que oportuna
é caso de se perguntar o que seria da Filosofia se os filósofos se estendessem
além da conta sobre os caracteres psicológicos de Victor Eremita, Johannes de
Silentio, Constantin Constantius, Johannes Climacus, Virgilius Hafniensis,
Nicolaus Notabene e Hilarius Bogbinder: os sete “indivíduos” fictícios que
Sören Kierkegaard fazia assinar as suas obras…
Numa feliz coincidência, em 2003 no mesmo ano em que editamos nosso
ensaio (durante dezoito anos acreditamos poder editá-lo em Portugal), Guiomar
De Grammont publica “Don Juan, Fausto e o Judeu Errante”, em que declara:
A pseudonímia, característica
romântica da qual Kierkegaard se apropria, encontrou, como sabemos, em Fernando
Pessoa, uma concretização comparável em excelência. Na obra de Pessoa
encontram-se extraordinárias semelhanças com a forma como Kierkegaard construiu
sua obra filosófica, as quais mereceriam ainda ser mais profundamente
exploradas. Ambos assinam suas obras sob pseudônimo e muitos dos temas dos
pseudônimos estetas de Kierkegaard encontram-se sob nova luz nos heterônimos de
Pessoa.
A autora recorda a posição de Maria Esther Maciel, segundo a qual esse
processo consistiria em um sair de si mesmo para viver a experiência da
“outridade”. Conclui Guiomar De Grammont que a pseudonímia Kierkegaardiana
estaria estreitamente relacionada à ironia como um método filosófico inspirado
na maiêutica socrática; como se cada pseudônimo constituísse uma peça de um
quebra cabeças o qual, no entanto, jamais deixará de ser indecifrável. Na
verdade, a autora reconhece que ao utilizar-se de editores imaginários em
pseudônimos, Kierkegaard estaria utilizando procedimentos da escola romântica;
para compreender a extensão da sua critica sugere que se deveria procurar
esclarecer com quem Kierkegaard polemiza em seu trabalho da autocompreensão da
existência humana.
Em seu diário, declarou Kierkegaard: “depois da minha morte ninguém
encontrará entre meus escritos (eis aí minha consolação), o menor
esclarecimento sobre o que propriamente preencheu a minha vida”. O autor de
“Temor e Tremor”, “Tratado do Desespero” e tantos outros textos que iriam
resultar no existencialismo, fará com que Adorno, em nossos dias, venha
evidenciar a sua atualidade por tornar “a dialética das coisas” uma “dialética
da comunicação”. Os pseudônimos seriam alegorias através das quais se
encontrariam as categorias filosóficas, personagens estéticas a representar-se
como em uma cartilha; a fascinação seria a força mais terrível, para Adorno, da
obra de Kierkegaard e o recurso à pseudonímia atuaria exatamente no sentido de
sedução estética para obter esse fascínio.
Recordado – e demonstrado - o fato de que os recursos literários
utilizados por Fernando Pessoa são de uso antigo, com destaque concedido nesta
evolução ao poeta irlandês James MacPherson e ao filósofo dinamarquês Sören
Kierkegaard, resta-nos a compreensão crítica de que os processos e métodos
pseudonímicos são anotações à margem, preocupações periféricas, que não ajudam
nem interferem na compreensão de uma poesia que de modo ininterrupto tem
avançado na leitura e na companhia aos que são magnetizados por versos que
revelam o grande paradoxo do êxtase e da angústia da condição humana. Que se
leia nas universidades o texto pessoano, que se compreendam os condicionamentos
do pacto autobiográfico de Philipe Lejeune e se perceba o fundamento do diálogo
com a sua existência pessoal, mas que não se pretenda reduzir a excelência de
uma poesia tão grandiosa a um simples mecanismo de execução pseudonímico, a um
simples recurso da metodologia estético-literária. Já é tempo.
Lucila
Nogueira
(Brasil, 1950). Poeta, crítica, contista e tradutora. Professora dos cursos de
graduação e Pós em Letras da UFPE, onde leciona literaturas de língua
portuguesa, espanhola, teoria da literatura, além de disciplinas como
Literatura Comparada, Teoria da Poesia, Estética do Surrealismo, Loucura e
Literatura. Tem 24 livros de poesia publicados e está traduzida ao inglês,
francês e espanhol. Contato: lucnog1@gmail.com.
Página ilustrada com obras de Fabio Rincones (Venezuela), artista convidado
desta edição de ARC.
Nenhum comentário:
Postar um comentário