Cometa dos maiores do firmamento surrealista português, como cometa luminoso aparece no primeiro momento dessa aventura individual e coletiva, moral, ética, política e estética, e como cometa desaparece para voltar a surpreender-nos com a sua luz nestes nossos dias de escuridão em que as palavras da tribo – digamos liberdade, digamos desejo, digamos amor ou poesia, por exemplo – continuam a pedir-nos urgentemente a restituição do seu mais limpo e puro significado e o seu sentido profundamente transformador prostituído e degradado, quando não silenciado e condenado à morte. Cometa a um tempo aparecido e desaparecido, da sua biografia pessoal quase nada quis desvelar e expor à curiosidade dos investigadores, dos argonautas, dos aventureiros ou dos noviços. Assim resumiu essa biografia quase sem biografia (ou sem fatos, como diria o Bernardo Soares), um dos seus seguidores na senda da única real tradição viva:
Nascido em Lisboa em 1930, Henrique Risques Pereira, amigo e companheiro de António Maria Lisboa e de Fernando Alves dos Santos, entra em contato com o grupo dissidente (Os Surrealistas), através de Pedro Oom em 1949, participa nas sessões do J.U.B.A. e nas duas exposições do grupo, e assina alguns dos mais importantes manifestos, panfletos, cartas e textos coletivos que surgiram ao longo da breve, convulsa e rica história do Surrealismo português no seu momento de intervenção mais ou menos organizada.
Dessa história de guerrilhas surrealistas (as do tal Grupo Dissidente) e da incorporação progressiva dos seus membros ao tumulto e à festa e à tragédia, fala-se, por exemplo, na carta aberta de António Maria Lisboa “Ao Sr. Dr. Adolfo Casais Monteiro”, datada de “Agosto 31-1950” e reproduzida por Mário Cesariny em A intervenção surrealista (Lisboa: Ulisseia, 1966 | reed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997). Dos membros do grupo, Risques Pereira manteve sempre uma muito particular relação de amizade, cumplicidade e colaboração com António Maria Lisboa, de que resultariam, entre outras derivações paralelas, alguns manifestos e textos poéticos conjuntos (vid., por exemplo, Poesia de António Maria Lisboa. Texto estabelecido por Mário Cesariny de Vasconcelos. Lisboa: Assírio & Alvim, 1977; aí inclui-se também, as págs. 386-387, o depoimento emocionado e esclarecedor de Risques Pereira a propósito da sua relação com o autor de “Erro próprio” e com o resto dos surrealistas portugueses). Morto António Maria Lisboa em 1953, a aventura deixou de ser necessidade e ter sentido para Risques Pereira, substituído no palco pelo Engenheiro civil Risques Pereira, embora muitas vezes aquele gato que um dia partiu à aventura voltasse ao telhado do Sr. Engenheiro para renovadas conversas e confidências mais tarde metamorfoseadas em poemas arrumados pacientemente na mala clandestina do quarto mais escuro, talvez à espera de luz, mais luz, como Goethe queria e Mário Cesariny seguia reclamando. O poeta verbal sobreviveu (sobreviveu-se), mas não o poeta plástico que hoje e pela primeira vez em exposição individual aqui lembramos e concelebramos em pública homenagem. Da poesia plástica de Risques Pereira ficou dito:
Levado por uma preocupação de experimentação, realizou, entre 1949 e 1952, um conjunto amplo de desenhos que recriam um mundo figurativo delirante, em que a ocultação, as formas geométricas dos cristais, as manchas pretas e a aplicação de água sobre o suporte para impedir a adesão uniforme da matéria pictórica, foram algumas das técnicas fundamentais, além do traço curvo que será distintivo do seu trabalho (Catálogo da exposição Surrealismo em Portugal 1935-1953. Lisboa/Badajoz: Museu do Chiado/Museu Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, 2001, p. 366).
E escrito ficou também o parecer poético do Amigo, na seguinte passagem do manifesto “Erro próprio”:
Muito para além da chamada Obra de Arte, e tanto para além que a nega, a Cabala Fonética abriu, entre nós, o caminho que se pretende – pois nos concretiza e dispersa, nos arruína e constrói e, Catapulta, nos vertigina para o Planalto! O mesmo poderemos dizer da sua expressão pictórica, ou doutra atividade Mágica: a re-invenção do Desenho Colorido de Henrique Risques Pereira. Aqui, não são as palavras o elemento Alquímico, mas o Desenho e a Cor que translúcida a nossa posição Cósmica.
UMA CONVERSA ENTRE ANTÓNIO GONÇALVES E RISQUES PEREIRA
AG Risques Pereira, um nome ligado ao Surrealismo Português. Como se dá este encontro com o Surrealismo?
RP Um encontro que em princípio é casual, através de um amigo comum, Pedro Oom, entramos em contato com o grupo surrealista que já existia, diga-se de passagem que o nosso pequeno grupo foi muito bem aceite.
AG O que é para si ser-se surrealista?
RP Surrealismo naquele contexto consistia em fazermos e dizermos coisas que as pessoas normalmente escondiam. Era um ato de liberdade.
AG Que informação tinha do movimento surrealista internacional?
RP Naquela época era muito pouca porque a maior parte dos livros e revistas era censurada.
AG Como via a existência de dois grupos surrealistas em Portugal? Acha que pode existir distância ou aproximação entre os grupos passando por razões poéticas, plástica, ou meras razões pessoais?
RP Eram meras razões pessoais.
AG Se houve algum autor ou autores que o influenciassem nesta adesão ao movimento?
RP Uma pergunta complicada… André Breton.
AG Nos elementos do grupo existia uma forte relação de amizade com António Maria Lisboa. Essa relação influenciou-o na colaboração com o grupo?
RP O encontro apareceu casualmente, não houve qualquer preparação ou alguém em grupo que viesse influenciar a pessoa para aderir.
AG Qual a descrição que faz de António Maria Lisboa dentro do grupo?
RP António Maria Lisboa tinha uma personalidade muito forte e todas as coisas que nós fazíamos no grupo eram discutidas nas mesas do café, onde era deliberado o que cada um ia fazer. António Maria Lisboa dentro do grupo era o timoneiro que orientava a barca onde íamos todos lá dentro.
AG Quanto à sua obra plástica, onde começa esta necessidade de se expressar?
RP Eu sempre tive uma grande tendência para encontrar na parte plástica uma forma de me exprimir que me dava prazer e se houve alguém que me influenciou foi Mário Cesariny.
AG Como alguns dos membros do grupo também opta pela utilização de meios e materiais muito simples para realizar os seus trabalhos, há alguma razão em especial?
RP Não ter dinheiro.
AG Como me descreve a sua obra plástica?
RP A minha obra plástica realizou-se num período muito curto, e a influência foi de mim para os outros do grupo e dos outros do grupo para mim. Quero dizer que se havia algum problema ele era debatido entre nós.
AG Fez alguma exposição individual?
RP Não, nunca.
AG A sua obra não passa só pelas Artes Plásticas, é também na poesia que encontra um outro meio de expressão. Como os relaciona? Sente uma relação direta da sua obra plástica com a poética?
RP Para mim eram iguais, simplesmente utilizo num a expressão plástica e noutro a escrita.
AG Durante este período onde “o gato partiu à aventura” continuou a desenvolver o seu trabalho enquanto artista ou simplesmente abrandou ou abandonou a criação?
RP Abandonei a criação plástica; a expressão poética, mais fácil de levar no bolso, foi a que continuou comigo.
AG Nunca teve a pretensão de viver da pintura ou poesia?
RP Nunca, não era cego.
AG Há alguma obra que ainda gostaria de realizar ou não há qualquer intenção de o fazer?
RP Não tenho nada de especial neste momento, sabe-se lá o que será amanhã.
AG Na atualidade o surrealismo é o movimento que se encontra vivo, ou mais um movimento arquivado?
RP Arquivado e bem arquivado.
AG Que avaliação faz hoje, quanto à intervenção do movimento surrealista na cultura portuguesa?
RP Ele é patente nos artistas que agora têm formado pequenos grupos ou células de pensamento.
AG Um comentário à cultura portuguesa na atualidade?
RP Sinto que há menos cultura agora que naquele tempo, houve perda de dinamismo, de energia, hoje os artistas andam todos a fazer o possível para viver da escrita ou da pintura, por isso eles adaptam-se a todas as exigências que lhe são feitas.
AG Hoje faria as mesmas opções que fez?
RP Faria as mesmas.
AG Para terminar, qual a sua opinião e até possíveis conselhos para o projeto do Centro de Estudos do Surrealismo na Fundação Cupertino de Miranda – Vila Nova de Famalicão?
RP Considero um trabalho muito importante, porque se não for a ação de uma fundação, a obra surrealista dilui-se no tempo, vai-se dispersando, perdendo-se.
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Perfecto E. Cuadrado (Espanha, 1949). Crítico de arte e ensaísta. Coordenador do Centro de Estudos do Surrealismo, da Fundação Cupertino de Miranda (Portugal). Os textos aqui presentes, artigo e entrevista, foram preparados em função da exposição “O regresso do gato que partiu à aventura”, de Risques Pereira, para a referida Fundação (2003). Contato: p.cuadrado@uib.es. Página ilustrada com obras do artista Risques Pereira (Portugal).
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