As relações de Mário
Cesariny e de Luiz Pacheco constituem dentro do surrealismo português, ou das
suas adjacências, no período que vai de 1966 a 1974, um verdadeiro campo de
batalha. Nenhuma polémica foi dentro do movimento, e até fora dele na mesma
época, tão prolongada, tão violenta e tão extensa como esta. Nenhuma outra
contribuiu como ela para dividir os surrealistas portugueses, ou os próximos, em
dois campos sem reconciliação – os que ficaram com Cesariny e os que seguiram
Luiz Pacheco. Mas nenhuma outra apresenta também o choque catártico que nela em
profundidade se desvela. Os dois conheceram-se em 1946, em Lisboa, no Círculo
dos Amigos do Teatro, no quadro das actividades juvenis oposicionistas do MUD
mas o seu convívio só se tornou próximo e efectivo no final da década e
sobretudo no início da seguinte, em que Luiz Pacheco orientou a actividade da
sua chancela, Contraponto, criada em 1950, para a edição dos surrealistas
dissidentes que se haviam agrupado, desde o final de 1948, em volta de Cesariny
e António Maria Lisboa.
Luiz
Pacheco publicou em 1953 opúsculo de António Maria Lisboa, Isso Ontem Único, e no mesmo ano, o do falecimento deste poeta aos
25 anos, deu ainda a lume o manifesto do grupo dissidente, A Afixação
Proibida, com colaboração de Pedro Oom, de Lisboa, de Cesariny e de Risques
Pereira e que foi distribuído no ano seguinte. Esta última edição constituiu a
primeira fricção nas relações entre Luiz Pacheco e os membros do grupo, logo
Mário Cesariny, pois em nota editorial, em extra-texto intitulado “Rompimento
Inaugural”, o responsável pela edição desvincula-se dela, parecendo seguir de
perto o que já O’Neill dissera na nota prévia da sua estreia poética em livro, Tempo
de Fantasmas (1951) – a aventura surrealista não tinha em Portugal
significado. Não obstante esse ponto de perturbação, que podia ter originado
uma quebra duradoura, as relações de Pacheco e de Cesariny recompuseram-se e
correram, nos anos seguintes, próximas e sem dissídio. Luiz Pacheco foi nessa
época, e num período ainda considerável que vai de 1952 a 1957, o primeiro
editor das obras de Mário Cesariny – que antes apenas dera a lume um poema em
opúsculo, Corpo Visível (1950), edição de autor. Quatro obras
fundamentais do Cesariny poeta são editadas nessa meia dúzia de anos pela
chancela de Luiz Pacheco, Contraponto: Discurso sobre a Reabilitação do Real
Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos
(1953), Manual de Prestidigitação (1956) e Pena Capital (1957).
Por sua vez
Mário Cesariny, que entre 1958 e 1962 se responsabilizou por um conjunto de
livros a que chamou “a colecção em 1958”, foi o primeiro a editar em livro, ou
em opúsculo, nessa colecção, o escritor
Luiz Pacheco, com Carta Aberta a José Gomes Ferreira, edição que tudo
indica ser de 1958 – é este ano que João Pedro George aponta para o opúsculo na
biografia que escreveu de Luiz Pacheco (Puta
que vos Pariu, 2011: 581). É também nesse período, o dos encontros no café
Gelo, que Cesariny e Pacheco aparecem juntos na revista Pirâmide. É
ainda aí, no café Gelo, que Cesariny organiza a colectânea Surreal-Abjeccion-ismo,
que aparecerá em 1963, com importante colaboração “neo-abjeccionista” de
Pacheco.
Tudo
aponta pois para uma colaboração estreita entre os dois entre os anos de 1952 e
1963, não obstante a fricção que foi o extra-texto “Rompimento Inaugural” em
1953, a que se deve somar em 59 a troca por Cesariny da editora Contraponto, de
Pacheco, pela Guimarães Editores, de Cunha Leão, levando também consigo a obra
António Maria Lisboa, o que não podia agradar, nem agradou, ao proprietário de
Contraponto, que fora o primeiro editor dos dois. Meteu-se pois com ele, no
momento da publicação do livro Nobilíssima
Visão (1959), mas à defesa, com moderação, num texto dedicado à primeira
exposição plástica de M. Cesariny, que aconteceu no Porto, em 1959, na Galeria
Divulgação, num texto ambíguo, “Cesariny ou do Picto-Abjeccionismo”. Mais grave
foi a edição em 1962 dos dois volumes de António Maria Lisboa, feitos por
Cesariny na editora de Cunha Leão. Aí Luiz Pacheco carregou nas tintas,
publicando um folheto paródico, “Cesariny muito cansado”, em que moteja as
ligações de Cesariny com a Guimarães.
A
discórdia entre os dois, a sério, sem reposição, só acontecerá porém em 1966,
com um conjunto de pontos de discórdia, que não mais reverterão e tocarão
depois, em 1968, o pico. A edição de Lisboa na Guimarães foi água que passou,
como se vê nas cartas que ambos trocam depois disso e na colaboração que Pacheco
deu à antologia de 1963. Pouco depois de Mário Cesariny publicar em Janeiro de
1966 o poema A Cidade Queimada, este
já na editora Ulisseia, Luiz Pacheco compõe e publica em Abril um panfleto,
“Comunicado ou Intervenção da Província”, em que se refere à prisão de Cesariny
em Fresnes no final de 1964. Relendo hoje o texto, que tem expressões como
“somos nós, nós que nos queixamos e protestamos, o Cesariny em verso e eu em
prosa”, não se esperaria que fosse ele o primeiro ponto sério e irreversível de
ruptura dos dois. Mas foi. Cesariny não gostou de se ver associado a Fresnes e
fê-lo em carta depois incluída no Jornal
do Gato, e que será a derradeira que escreveu a Pacheco. Este respondeu com
duas cartas, próximo do indignado. Não mais as relações dos dois se recomporão.
Nesse
período, entrada de 1966, está Cesariny a ultimar aquela que podemos tomar como
a primeira tentativa de fazer a história do surrealismo em Portugal, A Intervenção Surrealista, que sairá no
final da Primavera. Pacheco fez recensão do livro no Jornal de Letras e
Artes (n.º 251, 7 de Setembro de 1966, p. 21), “O Caprichismo Interventor
do Senhor Mário Cesariny”. Na colectânea de Cesariny, A Intervenção
Surrealista (1966), a
presença de Luiz Pacheco é pouco menos do que inexistente. Na cronologia que
abre o livro, chama-se ao episódio de 1953 “edição abusiva e distractiva”. A
recensão, pelo fosso que abriu, pela guerrilha continuada e depois intermitente
a que deu lugar, pelo arregimentar de partidários dum lado e do outro, tendo
por consequência uma divisão irremediável nos que se agrupavam em torno do
surrealismo em Portugal, merece atenção. O texto, como logo se tira do título,
parte dum equívoco atribuído a Mário
Cesariny, o capricho, ou o sistema dele – capricho que o dicionário define como
uma “vontade súbita e irreflectida”, uma “variabilidade de gostos e de ideias”
e um exagerado “sentimento de amor-próprio”. Segundo o crítico, a acção de
Cesariny no domínio da historiografia do surrealismo em Portugal não passaria
de frustrada precipitação, sem consequências sérias, práticas ou teóricas.
Estava encontrado o mote ou o justificativo para o tom ácido e corrosivo, com
que L. Pacheco avaliaria a partir daí a criação de Cesariny. A republicação do
postal “Cesariny muito cansado” (Jornal
de Notícias, 31-8-1967) é porventura o momento em que o embate entre Luiz
Pacheco e Mário Cesariny começa a subir de tom, para vir a atingir o seu pico,
pouco depois, em 1968.
Nesse
mesmo ano de 1966, Luiz Pacheco publica o seu primeiro livro em circuito comercial,
Crítica de Circunstância, na editora
Ulisseia (a mesma que edita, pela mão de Victor Silva Tavares, A Intervenção Surrealista), com prefácio
de Virgílio Martinho, logo seguido no ano seguinte por Textos Locais, este com chancela Contraponto. Virgílio Martinho,
que na época, por convite de Mário Cesariny, exercia crítica regular no Jornal de Letras e Artes (é notável por
exemplo a crítica que em Março de 1968 fez a livro de Agustina Bessa-Luís),
transformado então em revista mensal, entregou nota sobre o livro Textos Locais para ser publicada e que
acabou recusada ou esquecida por interferência de Mário Cesariny, que por essa
altura deu as melhores pastas à publicação, uma dedicada por exemplo à XIII
exposição internacional surrealista, que ocorreu na cidade de S. Paulo, em 1967
(n.º 258, Dezembro de 1967). No número de Maio de 1968 (n.º 261, p, 17), talvez
o melhor de sempre do jornal, aparece um texto, “Esclarecimento necessário”,
que muito ajuda a perceber os meandros a que o livro de Luiz Pacheco deu lugar.
Reproduzimo-lo: A propósito de certos
rumores que chegaram ao nosso conhecimento, desejamos comunicar o seguinte: por
termos verificado pelo último trabalho que nos entregou – crítica a Textos
locais de Luiz Pacheco – que a sua
orientação e concepção da crítica não coincidem com as que são preconizadas
pela direcção do Jornal, esta, e quantos nele trabalham, resolveram, por
unanimidade, deixar de confiar ao escritor Virgílio Martinho a secção
permanente que tinha a seu cargo. Cumpre-nos assinalar que tal facto não afecta
a consideração pessoal e artística que Virgílio Martinho nos merece, pelo que
esperamos continuar a contá-lo entre os nossos colaboradores, embora de futuro
apenas a título eventual. A nota, que aparece ao lado dum poema desenho de
António Maria Lisboa, não está assinada mas pode-se, sem erro, assacá-la a
Mário Cesariny.
Virgílio
Martinho vê-se assim afastado do Jornal
de Letras e Artes, a que não regressará. Em resposta à nota dá a lume uma
folha crítica violentíssima, “As funções de Cesariny”, que será distribuída mão
a mão. Virgílio e Cesariny haviam sido próximos desde 1955 ou 1956, altura em
que se conheceram no café Royal ou no Gelo, tornando-se Cesariny, na colecção
“a antologia em 1958”, com Festa Pública,
o primeiro editor de Virgílio. A folha “As funções de Cesariny”, sem data, mas
dada a lume ainda em Maio de 1968, no rescaldo imediato do “Esclarecimento
necessário” acima transcrito, é hoje quase desconhecida e vale por isso a pena
ser transcrita: Mário Cesariny de Vasconcelos,
secretário do Jornal de Letras e Artes,
no exercício das suas funções de empregado escritor deste jornal resolveu
suprimir arbitrariamente a crítica referente a Textos Locais de Luiz Pacheco, conquistando assim um
posto policiário que o integra no senso comum e o reabilita definitivamente na
ordem cultural daqui. Ou por outras palavras: Sabia que foi poeta dos bons/ Sabia que foi surrealista/ Sabia que é
também pintor/ Sabia que se António Maria Lisboa/ estivesse cá ele não era
assim/ Sabia que é estratega das letras e artes/ Sabia que foi do Marquês de
Sade/ Sabia que mete a tesoura no Breton e até no Arthur Miller/ Sabia da sua
inclinação patriótica pela Vieira da Silva/ Sabia que a Fundação Gulbenkian o
queria/ Sabia que está cadáver exquisito/ Sabia que ganha a vida com
surrealismo de cá/ e lá por grosso e a retalho// Sabia mas achei sempre graça/
Porque não sabia que ERA CENSOR//
Agora que sei e por haver muitos/ comunico da sua recente profissão/ Virgílio
Martinho.
A
folha de Virgílio Martinho funcionou como um combustível incendiário nas
relações entre Luiz Pacheco e Mário Cesariny. É a partir dela que se pode
desenhar o ponto alto desta polémica. Virgílio Martinho terá sido a primeira
vítima do tiroteio entre os dois; as relações de Virgílio e Cesariny, boas até
aí, ainda em 1966 (Outubro) os dois assinam texto a propósito da morte de André
Breton, não mais se recomporão. Luiz Pacheco utiliza o momento a seu favor para
voltar a demolir a antologia de 1966 de Mário Cesariny em texto dado a lume no Jornal de Notícias (23-5-1968), “Da
Intervenção à Abjecção”. Aproveita o texto para dar a conhecer em termos
públicos episódio recente ocorrido entre Mário Cesariny e os amigos, episódio
este exterior ao que aconteceu no Jornal
de Letras e Artes e que nos obriga a regressar a 1965/66.
Assinalam-se
neste período, final de 1965 e início de 1966, duas edições de Fernando Ribeiro
de Melo, na editora Afrodite, propriedade sua, que acabam por se intrometer, ao
menos a primeira delas, nas relações de Cesariny e Pacheco. Falamos de Filosofia na Alcova de Donatien Alfonse
François de Sade, com prefácio de Luiz Pacheco e ilustrações de João Rodrigues,
que se suicidaria de seguida, em 1967, e de Antologia
da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia e
em que Cesariny colabora. Ambos os volumes foram incriminados na justiça, por
abuso de liberdade de imprensa e ofensas à moral pública, com processos
demorados e penosos, que resultaram, no caso de Sade, na condenação em finais
de 1967 do editor, do tradutor e do autor do
prefácio, e no caso da antologia, na condenação em 1970 do editor, da
organizadora e dalguns colaboradores, um deles, Mário Cesariny. Ora a propósito
do primeiro, por causa do processo judicial a que deu lugar, correu já no princípio
de 1968, ou ainda no final do ano de 1967, um baixo assinado sobre Sade, Affaire Sade Ici, que foi assinado segundo
a informação de Luiz Pacheco por Ricarte Dácio, Virgílio Martinho, António José
Forte e Ernesto Sampaio. Solicitado a subscrever, Cesariny recusou, o que levou
a novas picardias de Luiz Pacheco no texto do final de Maio do Jornal de Notícias já atrás referido.
Vale
a pena citar do texto de Luiz Pacheco o passo que se refere a este episódio, já
que dele resultará um texto quase desconhecido de Mário Cesariny. Diz Luiz
Pacheco: E quando a presença de Mário
Cesariny de Vasconcelos é solicitada para o seu não discutível (e nobre,
repito) anterior papel de Papa (nem havia de ser preciso solicitar-lha; devia
ser ele o promotor, o primeiro a correr, a assinar), Sua Eminência Parda
desliga o telefone, e por medo; caso passado há poucos meses, do qual invoco,
como testemunhas, porque não assisti ao “fenómeno”, Ricarte Dácio, Virgílio
Martinho, Ernesto Sampaio, António José Forte, signatários responsáveis pelo
dito manifesto. Concluindo: da intervenção, Mário Cesariny passou à abjecção.
Cesariny,
se deixou passar em branco, sem resposta, a folha de Virgílio, não ficou quieto
ante as diabruras de Luiz Pacheco no Jornal
de Notícias, produzindo de imediato, ainda no mês de Maio, um panfleto de
três páginas, sem título, sem indicação de tipografia e de tiragem, assinado
por Mário Cesariny/ Maio-1968. É um
texto raro, de seis parágrafos e quatro notas finais, que reproduzi na íntegra
no epistolário de Mário Cesariny, Cartas
para a Casa de Pascoaes (2012, pp. 27-30), já que nunca havia sido
reproduzido pelo autor em qualquer livro seu. Trata por um lado da crítica
demolidora de que A Intervenção
Surrealista foi alvo no texto do Jornal
de Notícias e por outro do manifesto a favor de Sade, que se recusou a
assinar. A propósito deste acaba por tocar ou mesmo impugnar a edição
portuguesa de Filosofia na Alcova de
Donatien Alfonse François de Sade, que é o segundo livro de Sade a surgir em
Portugal, sendo primeiro uma edição de Luiz Pacheco na Contraponto, Diálogo entre um Padre e um Moribundo
(1959), em tradução de José Manuel Simões. Cito: É realmente como cidadão que achei uma conversa de pássaro bisnau
aquele papelinho e o seu propósito de dignidade, como acho uma borrada das
maiores a operação portuguesa que lhe deu origem, a autêntica associação de
malfeitores que promoveu a primeira e já
agora única edição mundial idiota de La Philosophie dans le boudoir, de Sade, filha maneta de um comerciante
excitado, de um prefaciador em apuros, de um tradutor merdoso que despacha para
o preto que eu não sei quem é e de um ilustrador a milhas de distância.
Fernando
Ribeiro de Melo, o “comerciante excitado” que produziu a segunda edição
portuguesa de Sade, não se ficou. Em Junho de 1968 faz sair novo panfleto, As Avelãs de Cesariny, duas folhas
tipográficas e três páginas de texto. É uma das peças mais cruéis deste
tiroteio cruzado e múltiplo. Para defender a edição que fez de Sade, cita a
folha de Virgílio Martinho acusando Cesariny de censura e resvala para a
homofobia contra Cesariny e Cruzeiro Seixas (tratado por Cuzeiro Seixas), que
nesta guerra ficou na trincheira de Cesariny, o que nem sempre aconteceu
noutros embates. Conheço e tenho cópia do folheto, que deve ser raríssimo e de
que citei uma ou duas passagens no volume Cartas
para a Casa de Pascoaes (2012, pp. 114-115). Abre do seguinte modo: De Mário Cesariny de Vasconcelos, grande
poeta surrealista-funcionário-Censor do Jornal de Letras e Artes, ex-delegado-delegou-se do Breton para o
Café Gelo (…). E termina: Muito bem,
Sua padreca! O tópico machista da homofobia é em exclusivo seu, pois nem
Pacheco nem Virgílio o usam nas diatribes contra Cesariny.
Depois
disso o fogo suspendeu. Fale-se em trégua. É a altura em que o processo movido
a Ribeiro de Melo, a Natália Correia e a Mário Cesariny avança em tribunal
plenário, levando à condenação dos três em 1970. Luiz Pacheco continua porém de
quando em quando, nos jornais, a atirar uma seta ervada contra Cesariny, como se
vê no texto “O que é feito do Argelino” (Diário
Popular, 24-8-1972). Não passam porém de pequenas faíscas soltas, que não
chegam para reatar a saraivada de bala que cortou em várias direcções em 68.
Cesariny, tanto quanto se percebe, permanece impassível, não dando sinal das
pequenas ferroadas que de vez em vez Luiz Pacheco lhe ferrava.
No
início de 1974 surge a publicação de Pacheco
Versus Cesariny, vasta compilação dos materiais que constituem o terreno
minado desta guerra. Pelo volume, pela transcrição das cartas pessoais que aí
se apresentam, pela organização e notas o livro terá demorado o seu tanto a
organizar, tanto mais que Luiz Pacheco fez neste período as primeiras
desintoxicações sérias de alcoolismo, e foi decerto pensado no rescaldo da mortandade de 1968. Reúnem-se no livro
algumas das peças fundamentais das relações de Luiz Pacheco e Mário Cesariny. O
livro abre com o extra-texto de 1953, “Rompimento Inaugural” e fecha com uma
carta de Manuel de Lima (20-11-1972) a Luiz Pacheco. Além de transcrever muitas
cartas de Cesariny, de Virgílio Martinho, de Cruzeiro Seixas, de António José
Forte, de Manuel de Lima, de Bruno da Ponte, de Victor Silva Tavares e de
Ricarte Dácio, republicam-se os textos cruciais de Pacheco sobre Cesariny,
desde “Cesariny ou do Picto-Abjeccionismo” até “Da Intervenção até à Abjecção”,
passando por “Cesariny muito cansado” e pelo “Caprichismo Interventor do Senhor
Mário Cesariny”, todos atrás referidos. Ao conjunto acrescentam-se textos pouco
conhecidos, ou mesmo inéditos, mas de grande pertinência para a polémica, como
esse paródico “Cesariny, o Esfrangalhador?... Homessesa!”, que termina com um
muito cáustico grito de guerra: Real,
real, por Dom Cesariny I, o Esfrangalhador de Portugal! Ou do Freixial. Por
um momento a labareda parece voltar a pegar em palha seca. Cesariny sente-se
incomodado, deixa cair o perfil impassível que mantivera nos últimos tempos e
organiza o seu volume de controvérsia, a que chamará Jornal do Gato e a que dará subtítulo contribuição ao saneamento do livro Pacheco versus cesariny edição
pirata da editorial estampa colecção direcções velhíssimas. Mais tarde,
substituirá este letreiro por um mais simples e eficaz, Jornal do Gato (resposta a um cão). A polémica parece subir de tom
mas tudo o que encontra é o seu símbolo zoológico. Desse ponto de vista as
emoções baixam enquanto as imagens sobem, acabando por tomar conta do espaço e
do tempo.
Que
ficou desta polémica? Tal como por ora está, pode dizer-se que este embate, nos
seus diversos momentos, na polifonia das suas vozes, dá a conhecer alguns dos
intervenientes do surrealismo em Portugal, ajudando a perceber melhor as
questões por eles tratadas. Não é por um acaso insignificante que a literatura
de Sade se torna a peça fundamental do jogo, aquela que está na origem do seu
momento mais explosivo, em 1968. A carta crucial deste jogo parece-me
reveladora antes de mais da liberdade sem peias nem teias do grupo.
Uma
guerra tão desgastante como a que opôs Pacheco e Cesariny pode levar o leitor
desprevenido a encará-la como divisão inconsequente dum grupo pequeno e
fechado, que assim perdeu alcance e força diante doutras correntes culturais do
tempo, em primeiro lugar o neo-realismo, em cujo seio estavam proibidos, por
ordem superior, os dissídios internos, e sobretudo a sua pública exposição.
Vale a pena consultar a revista Vértice, o órgão do grupo neo-realista
que se publicou a partir de 1940, e onde a polémica interna é por sistema
evitada e, quando existe, parece que se processa de forma surda, quase às
escondidas. O que interessava ao neo-realismo era aparecer como um bloco
frentista sem fissuras, com uma aparência de coesão e de unidade que nada podia
quebrar. As polémicas internas são por isso abafadas. No grupo dos surrealistas
passa-se o contrário. A desavença entre Pacheco e Cesariny rachou a meio, na
praça pública, aos olhos de todos, com folhas volantes e artigos em páginas de
importantes jornais, os surrealistas. A situação foi aproveitada com gosto
pelos neo-realistas, que assim puderam acusar de fratricidamente degradante um
grupo rival. Em voz baixa ou mesmo alta fazia-se passar a ideia que um colectivo
onde estalavam as biscas de Pacheco e de Cesariny não merecia qualquer crédito
como oposição à cultura dominante.
Encarada
desta forma a polémica perde porém o seu núcleo mais característico. Trata-se
em primeiro lugar de libertar a verdade instintiva, de falar sem calar, de
expressar sem recalcar, dando assim origem a uma franqueza interior total, sem
censuras, base fidedigna dum diálogo leal e sem hipocrisias. É por esse motivo
que esta vasta e demorada polémica entre dois dos mais talentosos escritores do
século XX português pôde libertar uma riquíssima inventiva linguística, com
essa anedota sublime que é o esfrangalhador
do Freixial e esse momento poético, quase trágico, que é jornal do gato. Deste ponto de vista a
polémica mostra um aspecto individual libertador que seria lastimável esquecer
e ganha ainda um suplemento de catarse sublimatória, caso raríssimo no género
em causa, muito marcado, mesmo em meio burguês e convencional, por uma
improvável liberdade de linguagem mas também por uma subalternação que depressa
leva esta liberdade ao esquecimento.
Na
verdade, para bem dizer, Pacheco e Cesariny são dois dos raros que em tempo de
censura, a do regime e a do neo-realismo, que não admitia fissura, tiraram a
mordaça e disseram o que lhes dava na real gana. Nesse sentido o embate ficará
para a história e para a memória com um dos exemplos mais gratificantes de
libertação verbal, ganhando assim o estatuto de acto poético.
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO (Portugal, 1956). Poeta, ensaísta e editor. Estudioso do
Surrealismo e da obra de Teixeira de Pascoaes. Em poesia publicou Murmúrios do mar de Peniche (1977), Corpos celestes (1990) e Estâncias reunidas: 1977-2002 (2002).
Entre os títulos ensaísticos destacam-se Viagem
a Pascoaes (2006) e Notas para a
compreensão do Surrealismo em Portugal (2012). Atualmente dirige a revista A Ideia. Contacto: acvcf@uevora.pt. Página ilustrada com
obras de J. Karl Bogartte (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 11 | Junho de 2015
editor geral | FLORIANO MARTINS | arcflorianomartins@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Muito bem exposto! louvável.
ResponderExcluir