Revistas na América Hispânica
São duas as circunstâncias básicas que norteiam
a criação de uma revista literária: concentram em suas páginas os postulados
estéticos de um determinado movimento ou escola, ou então se realizam na
simples difusão eclética de textos. Os dois casos são perfeitamente corretos
desde que o editorial defina e assuma a tendência escolhida.
Mais recentemente as revistas se inclinam
pela segunda opção, o que nos leva a uma aparente digressão: o que há por trás
da reduzida ocorrência de movimentos literários ao longo das últimas décadas,
hoje praticamente extintos? Entre os muitos valores que perdemos encontram-se o
da palavra dada e o de compartilhar interesses. De todas as formas o homem foi
levado a isolar-se em si mesmo e a não encontrar mais significado em honrar
princípios e compromissos. Isto se deu de maneira tão simples que é um absurdo
que tenhamos caído em artifício tão pouco engenhoso.
E qual foi este astuto
mecanismo? Isolar imagens, conceitos, significados, ecos. Tudo passa a ter
sentido isoladamente, esdrúxula falácia, como se tivéssemos um homem aqui, uma
cadeira ali e uma revista mais à frente. À medida em que ganha terreno esta
falácia, deixamos de nos ver. Trocamos, por exemplo, o diálogo franco com pessoas
pela oficina literária. Desacreditamos na ideia compartilhada e nos tornamos
vassalos de uma autossuficiência inóspita.
A comunicação à
distância, por um outro exemplo, fascina a todos pela rapidez com que se dá,
imprimindo ao tempo um caráter mais essencial que ao espaço, e sobretudo
esquecendo-se de que não há razão de ser para conceitos como tempo e espaço se
não têm no homem sua medida única e inconfundível. Somos levados a engolir tudo
com a máxima velocidade, uma voracidade sem princípio. Desta forma, muitas
vezes sem que nos apercebamos, comemoramos mais o surgimento de uma nova
revista do que o marco de uma outra haver chegado a seu número 100.
Este número para nós soa
como um escândalo. Como algo pode durar tanto? Esta é a heresia pós-moderna:
que algo dure mais que um instante. Então deveríamos queimar na fogueira do
esquecimento um equatoriano chamado Fredo Arias de la Canal, por haver
publicado no mês passado o número 407 da revista Norte, que edita no México desde 1929. Trata-se verdadeiramente de
um escândalo e não pode aqui ser tomado como base para a nossa conversa.
Contudo, podemos pensar
no esforço do paraguaio Marcos Reyes Dávila que há onze anos edita em Porto
Rico a revista Exégesis, mesmo país
em que Manuel de la Puebla edita há 18 anos a revista Mairena. Por quase duas décadas esteve Octavio Paz envolvido com a
direção da revista Vuelta, por ele
fundada. Há mais de dez anos o argentino Eduardo Mosches edita no México a
revista Blanco Móvil e também por
mais de uma década Luis Alberto Crespo dirige na Venezuela a revista Imagen.
Quando se fala hoje no
nome do venezuelano Juan Liscano fatalmente o vinculamos ao largo período em
que esteve à frente da revista Zona
Franca, uma das mais importantes de seu país. Mais recentemente não se pode
deixar de mencionar os esforços de Juan Riquelme ou Gonzalo Márquez Cristo, que
se encontram à frente da venezuelana Babel
e da colombiana Común Presencia. São
muitos países e a referência a todos seria obviamente infrutífera, quando menos
cansativa.
O que talvez tenhamos
percebido neste breve inventário é que me referi antes ao diretor do que à
revista em si. Isto se dá porque intencionalmente citei revistas que pertencem
àquela segunda instância inicialmente tratada, ou seja, que não se encontram diretamente
vinculadas a um movimento ou a uma escola literária. Não quer dizer que não
tenham um conselho executivo, a compartilhar ideias. Mas sabemos que é forte e
decisiva a presença de seu diretor, ao mesmo tempo em que ali estão definidas
linhas editoriais desvinculadas desta ou daquela tendência estética.
São revistas que buscam
uma medula a partir da abrangência. E o fazem por uma razão muito simples:
entendem que representam, cada uma para seu país e seu tempo, o importante
papel de catalisador de tudo o que se passa à sua volta, em todo o mundo, em
termos de valores literários. Nenhuma das revistas até aqui mencionadas pôs em
confronto aspectos regionais, políticos, etnográficos ou quaisquer outras
formas de eventual reducionismo cultural. Isto quer dizer que souberam
reconhecer igual importância a uma expressão local e outra oriunda do exterior.
Insisto neste ponto, e
vou me reportar aqui uma única vez à experiência editorial brasileira, pelo que
foge de nosso tema, pelo rol inúmero de exemplos em que uma revista em Curitiba
só publica gaúchos ou a revista de uma Universidade não publica quem não
integre seu corpo acadêmico ou uma revista carioca exclui textos por atritos
pessoais entre autor e diretor, revistas que não veem necessidade na publicação
de textos bilíngues, no caso de publicação de autores de outros países, ou que
dispensam a tradução de textos oriundos do espanhol etc.
Encontro em algumas
revistas hispano-americanas uma relevância do texto e uma despreocupação com a
insustentável contagem de páginas, linhas ou caracteres exigida em outras
instâncias. Não raro encontramos edições inteiras dedicadas a um único autor,
ou mesmo um largo espaço destinado ao diálogo sobre esta ou aquela
circunstância literária. Exemplos temos na venezuelana Babel, que ocasionalmente surge com edição inteira destinada à
revisão crítica de alguns dos principais movimentos ou grupos decisivos à
história da literatura em seu país; assim como as revistas Auditorium, da República Dominicana, ou Lotería, do Panamá, costumam realizar homenagens, que tomam toda
uma edição, a seus principais escritores.
Surge aqui um outro
aspecto a ser destacado. Estas duas últimas revistas pertencem ao Estado, a
exemplo da mexicana Fronteras e
tantas outras mais, ou seja, são iniciativas de uma instância governamental.
Mesmo assim, alcançam isenção suficiente para avaliar a trajetória estética de
determinado autor sem prejuízo de ordem alguma. O aspecto a destacar seria a
propriedade do Estado entender que não pode interferir no substrato da cultura
que orienta a tradição de uma zona por ele administrada apenas
circunstancialmente. Em outras palavras: nenhum governo, qualquer que seja sua
apetência política, deve interferir no desdobramento estético de uma cultura.
Mas antes que concluamos
o que for possível concluir, não nos esqueçamos daquela outra circunstância que
norteia a criação de uma revista literária: seu vínculo a movimentos, escolas,
tendências. Em nome desta ligadura importantes revistas foram criadas na
América Hispânica. Vou me referir a cinco delas em particular apenas para não
tornar-me mais impertinente ou enjoativo que o devido. A cubana Orígenes, a mexicana Contemporáneos, a argentina Poesía Buenos Aires, a colombiana Mito e a chilena Mandrágora. Exceção feita a esta última, que trazia manifesta sua
defesa do Surrealismo, as demais foram uma súmula da efervescência cultural que
demarcava sua existência.
Todas estiveram
vinculadas a um grupo. E surgiram como um ideal comum, ou seja, como a fonte
possível de um diálogo, o que se pode fazer brotar a partir da convivência de
ideias. Neste sentido, creio que são as mais importantes revistas surgidas na
América Hispânica. É curioso que nenhum historiador se deteve a estudá-las
conjuntamente. Mais grave ainda: a fortuna crítica de algumas delas foi
arregimentada por seus próprios diretores, não despertando até hoje a merecida
atenção por parte de estudiosos do assunto.
A mexicana Contemporáneos foi fundada em 1929
graças a um frutífero diálogo entre poetas como Jaime Torres Bodet e Xavier
Villaurrutia. Jaime havia viajado a Cuba, onde tomara conhecimento de uma outra
publicação, a polêmica Revista de Avance
(1927-1930). Entendiam então que o prestígio internacional alcançado por
algumas publicações européias poderiam se repetir a partir do México, desde que
a aventura possuísse uma definição estética e fosse bem apresentada. Surgia
assim revista e grupo, definindo uma das mais consistentes gerações em toda a
América Hispânica.
No Chile, dez anos
depois, quando já surgira o grupo Mandrágora, que tinha entre seus
articuladores Braulio Arenas e Enrique Gómez-Correa, ao final de 1938
resolveram criar a revista homônima, dando seqüência a um projeto editorial
proposto pelo grupo. Por sete números editaram então a revista Mandrágora.
Em 1944, o cubano José
Lezama Lima funda a revista Orígenes,
juntamente com o crítico José Rodríguez Feo. A inquietude de Lezama já o levara
a fundar três outras revistas: Verbum,
em 1937, da qual saíram três números; Espuela
de plata, em 1939, que alcançaria a marca de seis números editados; e Nadie parecía, com Angel Gaztelu, em
1942, que chegaria ao décimo número. Segundo o próprio Lezama, a raiz dessas
publicações foi a amizade, o diálogo freqüente e o respeito mútuo pelas
opiniões peculiares. O nome da revista acabou confundindo-se com o de toda uma
geração de escritores e artistas plásticos. Orígenes
alcançou a marca de 40 números, durando até 1955.
O grupo de intelectuais
arregimentado por Raúl Gustavo Aguirre na Buenos Aires de 1950 insurgia-se
contra toda forma de ortodoxia, ao mesmo tempo em que refutava ingerências
acadêmicas no mundo da criação literária. Assim surgia Poesía-Buenos Aires, que por dez anos se manteve em franca
atividade. A revista possuía textos programáticos, o que lhe dava um caráter de
movimento.
Em seu decorrer, ali
próximo, em Bogotá, Jorge Gaitán Durán e Hernando Valencia Goelkel propunham o
mais arrojado plano de desdobramento cultural de seu país. Pode-se dizer que a
formação do grupo Mito, que logo sustentaria a publicação de uma revista
homônima que atingiria a circulação de 25 números, foi o acontecimento mais
marcante em toda a cultura colombiana, tanto por sua dimensão estética quanto
por sua interferência no plano político. Esta é a geração de Alvaro Mutis e
Gabriel García Márquez, os dois mais conhecidos dos brasileiros.
Estas revistas tinham
uma raiz comum: o entendimento de que cabe ao poeta zelar pela firmeza da
cultura. A partir desta frase tão simples surge uma curiosidade: qual o limite
de uma cultura? Até onde a minha orelha supura por má influência da cultura
alheia ou me embriago glorioso sobre os restos de uma cultura dizimada por mim?
Parece que não entendemos mais a ação da rosa dos ventos sobre o território da
cultura. A defesa de uma expressão artística não pode estar vinculada a uma
ramificação estética, mas o contrário jamais será dispensável. Não importa o
quanto Velázquez era barroco, mas sim o quanto que o barroco espanhol foi
expresso a partir da obra de Velázquez. Este deslocamento indevido tem sido a
raiz de grande parte do prejuízo que hoje resulta de um inventário da produção
artística em nosso tempo.
De volta às revistas,
hoje raridades só encontradas em coleções especializadas, como vimos, à frente
delas estiveram alguns dos mais destacados poetas hispano-americanos deste
século: José Lezama Lima, Xavier Villaurrutia, Raúl Gustavo Aguirre, Jorge
Gaitán Durán e Enrique Gómez-Correa.
Mas não as tenhamos aqui
como casos isolados. No áureo período das vanguardas surgiu um verdadeiro
enxame de revistas, algumas das quais com amplo destaque, a exemplo da peruana Las Moradas, dirigida por César Moro e
Emilio Adolfo Westphalen, ou a argentina Ciclo,
que trazia Enrique Molina e Aldo Pellegrini à frente. Relacioná-las, contudo,
tomaria um tempo pouco aceitável.
O que nos cabe aqui,
além do informe geral, é compreender que as revistas literárias não se apartam
de um leque de plumas sagradas da atividade humana na terra. O que isto quer
dizer? Que não fazemos revistas e fazemos cadeiras e fazemos amor, como
aspectos isolados de uma mesma natureza humana. Somente a estultice crê em uma
gaveta desorganizada combinando com paz de espírito. O que isto quer dizer? Que
revistas literárias não são anfetaminas ou jogos de guerra. Como somos dados à
fraude, sempre levamos o meio para cama e o tratamos como fim.
O que isto quer dizer?
Que o empecilho real na edição de uma revista não é seu aspecto financeiro, mas
antes o caráter da iniciativa. Mesmo diante da dificuldade financeira, o que se
tem que discutir é como validar meios. Embora seja imenso o abismo procriado
pelo equívoco entre os valores da fé e a fé em valores, a verdade é que o homem
não é nada senão aquilo em que acredita. As revistas literárias nada são a não
ser uma das formas de crença do homem nos valores humanos.
Os editores
*****
Página ilustrada com
obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
ÍNDICE
ANTÓNIO
CÁNDIDO FRANCO | Brasílica de Benjamin Péret
CAMILO PRADO | Marcello
Gama: decadente, supersticioso e anárquico
DAVID CORTÉS CABÁN | Un acercamiento a Hilo
de pájaro, de Antonio Trujillo
EDUARDO MOSCHES | La poesía contemporánea -
Latinoamérica navega por la región de la
tradición y la vanguardia
FLORIANO
MARTINS | Las llaves del deseo y el surrealismo en el siglo XXI - Diálogo con
Amirah Gazel y Alfonso Peña
HAROLD ALVARADO TENORIO | De sobremesa, la única novela
de José Asunción Silva
LEONTINO
FILHO | As esquinas alegóricas da cidade: um olhar
LILIAN PESTRE DE ALMEIDA (Em colaboração com ANTONELLA
EMINA) | Léon-Gontran Damas, o terceiro homem ou o primeiro poeta da
Negritude francesa?
RICARDO
ECHÁVARRI | Antonin
Artaud, Una nota sobre el peyote
VIVIANE DE SANTANA PAULO
| O território imagético do escritor na pós-modernidade
artista
convidado | JACOB KLINTOWITZ | Marcello Grassmann: matéria dos sonhos
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 14 |
Janeiro de 2016
editor geral
| FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente
| MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design
| FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
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