I. “Na noite de l6 de Março de 1970 - conta-nos Agustín
Izquierdo, na Introdução do volume que a Editora Valdemar fez sair em 97 e integrou
na “Clube Diógenes” – uma curiosa procissão, constituída por cerca de 150 estudantes
e encabeçada por três professores, percorreu o bairro de College Hill, em Providence,
munidos de tochas e lanternas, numa homenagem local póstuma, 33 anos após o seu
falecimento, ao obscuro “recluso de Rhode Island”, H.P.Lovecraft. Por fim, o cortejo
deteve-se ao pé da Casa Afastada, que em vida fora a morada do homenageado e procedeu-se
à leitura de “Fungi from Yuggoth”, num cerimonial que teria feito as delícias do
seu autor”.
Este cerimonial, já com Lovecraft feito em pó, é
um bom sublinhado da simulação que efectivamente sempre foi a vida do autor
de “O horror de Dunwich”. Esta era, no capítulo da existência através dos livros,
das letras, das imaginações mais desvairadas a que convencionou chamar-se Literatura,
uma imitação perfeita. HPL simulava uma vida de mistério, de sonho e de caminhadas
por mundos inquietantes ou francamente sinistros, o que na verdade era tão-só uma
translação em volta dum mundo pessoal expresso em factos compreensíveis,
de características mais ou menos naturais e quotidianas, em geral penosas, que constituíam
o cerne da sua existência de desenquadrado: entre muitas outras, a sua profunda
repugnância por répteis e peixes, de tal forma pronunciada que a visão dum exemplar
esquartejado dum dos últimos o deixava à beira do vómito; a marcada aversão por
carnes e a preferência, mesmo a paixão, por bolos e gelados, semelhante ao carinho
que acalentava pelos gatos. Saber-se de que doença rara ele sofria (1) também concorrerá
para, com eficácia, poder traçar-se um mapa adequado do complexo e malfadado, apesar
de misterioso e exaltante a mais dum título, continente Lovecraft. E decerto nenhum
bem lhe teria feito a opinião frequentemente emitida por sua mãe, a pobre destrambelhada
Susie Philips que vira o marido morrer louco ia HPL nos oito anos de idade, que
o alertava amiúde para o facto de que apesar de haver nele génio em quantidade e
qualidade suficientes não devia expor-se muito aos olhares da rua, devido à extrema
fealdade do seu rosto e à suposta repelência geral do seu aspecto.
Sendo os “Fungi”, como são em grande parte, uma simulação
de poesia, vão ao encontro no outro lado do espelho das surpreendentes
efabulações engendradas pelo Autor que, diga-se a talhe de foice, nunca viu um livro
de sua lavra ser dado a lume em editora profissional e jamais recebeu em vida (e
muitos anos após a sua morte) a menor consideração dos habitantes desses lugares
onde, presumivelmente, se fazem as sólidas reputações dos escritores ou dos pretendentes:
as universidades e as academias d’aquém e d’além mar.
No que respeita aos “Fungi”, sublinhe-se que o acervo
a partir do terceiro poema dispersa-se enquanto unidade consequente – e é isso precisamente
que, a meu ver, faz o seu encanto e acaba por lhe conferir outra significação mais
poderosa. Ao excursionar num mundo a meio caminho entre o sonho e as encenações,
digamos, de cariz cinematográfico experimental tal como hoje as conhecemos (HPL
era um cinéfilo fervoroso, posto que o não confessasse a todos ), o autor deixa
perceber que estaria no seu primeiro intuito ir singrando numa progressão dentro
da qual se passaria dum texto a outro numa sequência temática lógica e pautável
que seria como que o diário de uma experiência limite no mundo lírico terrorífico.
Mas como num relato surreal, ou onírico, o que está em baixo passa a estar em cima
ou dos lados; os poemas vão aparecendo sem que aparentemente haja uma razão lógica
para estarem ou não estarem naquele ou noutro sítio. Porque aparece este no décimo-segundo
lugar? E porque não em sétimo, em vigésimo ou em quinto? Na verdade, os poemas são
na sua maior parte primos carnais dos seus contos, o mundo neles descrito é tributário
do das novelas mas transfigura-se, transmuta-se e finalmente, no derradeiro poema,
revela a sua real figura, o seu espelho filosofal.(2) Em os “Fungi”, deliberadamente
ou não, Lovecraft conta de facto histórias em verso, histórias condensadas ou fragmentárias
que, por subtil inflexão, deixa que apontem noutra direcção dependente de um mundo
“mais real que este que conhecemos”(sic). O tom próprio das baladas irlandesas,
das canções de taberna ou de marinheiros (que todas ele conhecia bem) ou os laivos
emprestados por E. A. Poe, são o veículo de que se serve para que elas se tornem
significativas, verosímeis ou mesmo possíveis. Ficaremos totalmente esclarecidos
se lermos e consultarmos os seus outros poemas (a lista completa vai em anexo).
HPL, que modestamente se considerava um escritor de segunda ordem(3), efectuou sempre
com alguma angústia à mistura uma navegação à vista, mas olhando frequentemente
para bem longe. Sendo fundamentalmente um entusiasmado leitor (aprendeu a ler aos
três anos e nunca mais parou), era um navegador sem norte e sem estrela, emendo:
com a estrela da maravilha, mesmo que horrífica e devastadora(4), um poeta seminal
que a exemplo do sucedido com outro feiticeiro - Raymond Chandler, mediante as novelas
policiais - precisamente devido à sua ingenuidade frente ao sublime, à sua sinceridade
na simulação, continua a encantar-nos.
II. Lovecraft, lírico bissexto na acepção cunhada por Manuel Bandeira, é assim
um irmão colaço do Lovecraft das sagas e das utopias inventadas por uma alma inquieta
e sedenta de transfigurações e, patentemente, um irmão gémeo do Lovecraft viageiro
imaginário e inventor de excursões por Innsmouth, Providence, Aylesbury e finalmente,
por bandas alheias, a mítica Cthulhu. O que nos importará relancear agora é o perfil
da sua poética, o mapa desvelado da viagem que efectuou pelos campos onde a imaginação
é projectada por sinais específicos que na palavra e na múltipla organização
que se lhe sucede se consubstanciam e onde não contam os recursos da invenção de
mundos alucinantes e alucinados mas sim a lógica interior dum discurso a que alguns
chamam inspiração e que não é mais, afinal, que o conhecimento instintivo do valor
das palavras desembaraçadas de peias e de escórias dum tempo normalizado, prosaico,
realmente reaccionário. Em Poesia o que conta é o poder da palavra organizada em
frases que, como num salmo encantatório, não só sugerem como revelam quotidianos
ou fragmentos muito para além do ramerrão das horas civis – e que são as suas iluminações
criadas, as suas propostas assumidas ou as suas figuras essenciais. Como dizia Chesterton,
o poeta é aquele que sabe ( e que alcança enquanto hacedor) que todo o
encadeamento de palavras leva ao êxtase, todos nos podem conduzir ao país das fadas.
Temos, assim, que a nostalgia é um dos pontos
em que se apoia a lírica lovecraftiana, ancorada em vestígios e em símbolos que
elementos reconhecíveis, implícitos ou expressos – o mar, as estrelas, a memória,
os ventos, a chuva, a noite, o deserto ou as decadentes cidades dos homens – tornam
familiar a quem lê. Nela, o homem (ou o protagonista, voluntário ou involuntário)
está sempre dependente dum percurso que passa pelas recordações e pelas vivências
dos tempos idos, ornadas pelo prestígio duma ancestral e inquietante sabedoria e
onde as figuras espaciais dos Grandes Antigos se irmanam com uma primeva inocência
da Humanidade. Pagão e animista a seu modo, Lovecraft é manifestamente um parente
de, por exemplo, William Blake e Odilon Redon naquilo que estes tinham de visionários,
mas difere de qualquer deles no significado último da sua filosofia: ao banir racionalmente,
do mundo que encenou, os alvores da manhã e as flores das tardes ensolaradas – que
lhe aparecem apenas como sinais dum paraíso inalcançável – o criador de “O caso
de Charles Dexter Ward” faz-nos saber claramente que, no tempo conturbado que lhe
foi dado viver, os fulgores da noite - dessas estrelas vespertinas que lhe feriam
os olhos - constituíam um mais adequado receptáculo para a aventura do espírito
onde as efígies dos deuses imaginários contavam na medida em que eram, por antítese,
os referentes dum conhecimento amaldiçoado ou perverso mas, talvez por isso mesmo,
gerador de sinais mais reveladores e verdadeiros, porque seriam o prelúdio de uma
maior realidade, ainda que conquistada a golpes de clava, a tiro ou mediante secretas
invocações purificadoras. No fundo, mesmo quando o leitor - irmanando-se com o autor
- entra nos mundos que este engendrou, alcançando a revelação de algo que se entende
como sério e quase iniciático (sensação comum a todos os que, tendo conservado a
inocência e a frescura, deparam com a arte de Lovecraft como com um universo revelado)
– a dado passo constata que existe nessa arte um halo muito marcado de humor negro,
pois a própria seriedade dramática absoluta da simulação nos ensina que esse
“exagero” é afinal pedagógico noutra direcção: os monstros que sobem das
profundezas são em geral dominados ou, pelo menos, impedidos de difundirem alargadamente
os seus miasmas. Os monstros in-domináveis são bem outros, são as bestiagas muito
reais do quotidiano infausto que a todos atinge – e o leitor que arrole a lista
que mais lhe quadre.(5) Em suma: os Grandes Modernos que fazem da limpa vida do
espírito algo de estranho, de inusitado e de marginal – e que, involuntariamente,
ajudam a que nos reconheçamos leitores fervorosos e interessados da escrita deste
e doutros interrogadores do Universo e suas leis possíveis e impossíveis. Finalmente
e como numa espécie de tributo – relembrando, com emoção, que o li pela primeira
vez há 45 anos num tempo encantado e numa cidade com muito do ambiente da sua Providence
pessoal – pergunto-me (é uma maneira de falar) porque há ainda lovecraftianos, porque
há ainda gente que se dá ao trabalho de ler as suas efabulações caídas talvez um
pouco em desuso pelo facto de agora já se saber tudo, de se conhecerem não
apenas as vias da realidade quotidiana, onde não querem deixar caber a fantasia
criadora, mas também as suas ruínas indubitáveis: os mundos da chamada realidade
circundante – todos eles muito mais perigosos e avassaladores que as pobres
sombras fantasmais de HPL. O célebre fascínio que costuma invadir-nos ante uma escrita
sugestiva a meu ver não explica suficientemente o assunto. Creio que a resposta
reside noutra circunstancia. Acredito que isso acontece porque se sente que na simulação
concebida por Lovecraft e que ele colocou na dependencia de geometrias não-euclidianas
há, afinal, qualquer coisa de digno e de honrado no seu horror e na sua desmesura,
na sua mágoa e na sua assumida encenação de um Mal que nos assalta mas que é, digamos,
como que directo e sincero – bem diferente, para tudo dizer, desse mal de facto
terrível e destruidor porque mentiroso e sem classe, pequeno-burguês e passa-culpas
que frequentemente constitui o nosso triste quinhão de realidade e o nosso
lamentável momento de ilusão neste século que é o herdeiro virtual do outro que
há bem pouco se evolou.
Por último, uma chamada de atenção para um detalhe
pelo menos curioso: HPL, em data inserida no manuscrito e que o dactiloscrito reproduz,
dá os “Fungi” como tendo sido elaborados entre 27 de Dezembro de 1929 e 4 de Janeiro
de 1930. Mesmo conhecendo-se a espantosa fecundidade do autor de “A música de Erich
Zann”, que além da sua obra em prosa e em verso escreveu a confrades, amigos, conhecidos
ou simples correspondentes cerca de cem mil cartas – o que implica uma evidente
destreza e velocidade na escrita... – não podemos deixar de nos colocar uma pergunta:
Lovecraft teria mesmo criado a obra em nove dias (nove, número dos degraus
da sabedoria alquímica (6) da qual ele era um apaixonado) ou tratou-se, pelo contrário,
de uma chave com que a sua simulação nos quis, uma vez mais, pôr à
prova?
NOTAS
1 Poiquilotermismo, ou seja não se possuir a capacidade, comum a todos os mamíferos, de manter constante a temperatura do corpo, ficando-se precisamente ao nível do peixe e do réptil.
1 Poiquilotermismo, ou seja não se possuir a capacidade, comum a todos os mamíferos, de manter constante a temperatura do corpo, ficando-se precisamente ao nível do peixe e do réptil.
2 Anos depois do seu falecimento foi encontrado entre as muitas folhas deixadas
por HPL um conto inacabado, com o título de “O livro”, que segue ponto por
ponto os três primeiros poemas dos “Fungi”. Seria depois “completado” por Martin
S. Warnes, que o intitulou “The black tome of Alsophocos”.
3 Lovecraft guardava a sua admiração, aliás justificada, para outros autores
como M.R.James, Algernon Blackwood, Walter de la Mare, Arthur Machen ou Lord Dunsany,
a quem sinceramente chamava verdadeiros clássicos que contrastavam com insignificantes
aficcionados como ele (sic). Lemos estes nomes não só com o gosto natural
de quem ama a imaginação e a grandeza mas, igualmente, com a admiração pela modéstia
real que define HPL como o homem de bem que sempre foi.
4 Os décimo-sexto, vigésimo-oitavo e trigésimo poemas, comoventes na sua exposição,
mostram-nos isso.
5 Era um panorama que HPL, como todas as pessoas lúcidas, conhecia na perfeição.
Muitos quiseram ver nisso passadismo conservador, mas o adestramento de Lovecraft
no segundo quartel da vida desmente-os. A este propósito leia-se o texto de Franklin
Rosemont in “Cultural Correspondence” # 10/11. O trigésimo poema dos “Fungi” também
é significativo e esclarecedor.
6 Embora não fosse um irmão do orvalho e um trabalhador per ignem,
HPL tinha consideráveis conhecimentos filosofais. O seu conto “O alquimista”, ainda
que encene uma fantasia, faz certas discretas alusões que provam tal facto suficientemente.
****
Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta, artista plástico e ensaísta. Autor de livros como Passagem de nível (1992), Flauta
de Pan (1998) e Os olhares perdidos (2000). O presente ensaio foi originalmente
publicado como prólogo a Os fungos de
Yuggoth (2002), antologia poética de
Howard Phillips Lovecraft organizada e traduzida por Nicolau Saião. Contato: nicolau19@yahoo.com. Página ilustrada com obras
de Iván Tovar (República Dominicana). Agulha Revista de Cultura # 36. Outubro
de 2003.
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