Tudo branco e preparado para o corte, o bisturi esterilizado
esfumaçando… Este é o início de Apêndice, um poema de Gottfried Benn. Lendo-o, sentimos
o corte fundo no abdômen, sangue e pus que se misturam e se espalham em nossa visão.
A primeira reação do leitor ao ler Morgue (1912), uma pequena coletânea de poesias, é a repugnância
e o asco. Apêndice, por exemplo,
parece não pertencer à arte e sim à ciência, à medicina. Contudo Benn transgride
o limite entre arte e ciência e revela que não apenas o belo é poético e que a poesia
não é limítrofe, mas abrange campos diversos da sabedoria e sentimento humanos.
Transformar o feio em poético é com certeza mais desafiador do que poetizar o belo.
No entanto, também o feio faz parte da natureza estética, a arte incorpora o conflito
interior do artista concatenado ao meio em que ele vive, a arte é endógena. Significa
que o artista é obrigado a enfrentar o feio, a conhecê-lo e relacionar-se com ele,
para criar o belo. O feio também existe e está a nossa volta. Talvez seja principalmente
a partir do feio que nasça o belo - o belo é sempre a total negação do feio. Mas
além do emético nas poesias de Benn, encontra-se uma lírica repleta de elementos
pertencentes à paixão, natureza e experiência dramática.
Este pequeno livro foi responsável por um furor no meio literário, que contribuiu
para a fama de Benn até os dias de hoje. O estilo do poeta, naquela época ainda
com vinte e cinco anos, chocou os críticos e leitores. Até então não havia na história
da literatura alemã o culto ao grotesco, ao enfaro. Benn transforma o feio num objeto
de contemplação, interpretado pela linguagem lírica. A temática de Morgue aborda o frio cotidiano no ambiente clínico,
a desilusão de um mundo abjeto, a decomposição da realidade, através do ninho de
rato dentro da barriga de uma menina morta por afogamento, a coroa de ouro dentro
da boca do cadáver de um mordomo, homem e mulher que visitam o pavilhão dos cancerosos,
mulheres insanas e histéricas… enfim, cadáveres na mesa de dissecção, corpos em
decomposição.
HOMEM E MULHER VISITAM O PAVILHÃO DOS CANCEROSOS
Homem:
aqui, estas fileiras são dos ventres cancerosos
e esta fileira dos seios cancerosos.
Leito por leito fétido. As enfermeiras se revezam de hora em hora.
Venha, pode levantar esta coberta.
Olhe, este amontoado de gordura e secreção pútrida,
já foi antes tudo para um homem
e significava também sussurro e pátria.
Venha, olhe para esta cicatriz no peito.
Está sentindo o relevo macio e branco?
Pode tocá-lo, a carne é macia e não dói.
Aqui, esta sangra como trinta corpos.
Ninguém tem tanto sangue assim.
Aqui, desta tiveram que tirar primeiro
uma criança de dentro do ventre carcinomatoso.
Deixam-nas dormirem. Dia e noite. -Às novas
se diz: aqui se dorme até ficar sã. -Só aos domingos
deixam-nas um pouco conscientes, para a visita.
Alimento é pouco ingerido. As costas
estão em chagas. Você vê as moscas. De vez em quando
a enfermeira as banha, como se tivesse lavando bancos.
Aqui, por cada leito o túmulo incha
Carne nivela-se com a terra. A energia se esvai.
Sangue escorre incessante. A cova chama.
aqui, estas fileiras são dos ventres cancerosos
e esta fileira dos seios cancerosos.
Leito por leito fétido. As enfermeiras se revezam de hora em hora.
Venha, pode levantar esta coberta.
Olhe, este amontoado de gordura e secreção pútrida,
já foi antes tudo para um homem
e significava também sussurro e pátria.
Venha, olhe para esta cicatriz no peito.
Está sentindo o relevo macio e branco?
Pode tocá-lo, a carne é macia e não dói.
Aqui, esta sangra como trinta corpos.
Ninguém tem tanto sangue assim.
Aqui, desta tiveram que tirar primeiro
uma criança de dentro do ventre carcinomatoso.
Deixam-nas dormirem. Dia e noite. -Às novas
se diz: aqui se dorme até ficar sã. -Só aos domingos
deixam-nas um pouco conscientes, para a visita.
Alimento é pouco ingerido. As costas
estão em chagas. Você vê as moscas. De vez em quando
a enfermeira as banha, como se tivesse lavando bancos.
Aqui, por cada leito o túmulo incha
Carne nivela-se com a terra. A energia se esvai.
Sangue escorre incessante. A cova chama.
MANN UND FRAU GEHN DURCH DIE KREBSBARACKE
Der Mann:
Hier diese Reihe sind zerfallene Schöße
und diese Reihe ist zerfallene Brust.
Bett stinkt bei Bett. Die Schwestern wechseln stündlich.
Komm, hebe ruhig diese Decke auf.
Sieh, dieser Klumpen Fett und faule Säfte,
das war einst irgendeinem Mann groß
und hieß auch Rausch und Heimat.
Komm, sieh auf diese Narbe an der Brust.
Fühlst du den Rosenkranz von weichen Knoten?
Fühl ruhig hin. Das Fleisch ist weich und schmerzt nicht.
Hier diese blutet wie aus dreißig Leibern.
Kein Mensch hat so viel Blut.
Hier dieser schnitt mann
erst noch ein Kind aus dem verkrebsten Schoß.
Man läßt sie schlafen. Tag und Nacht. -Den Neuen
sagt man: Hier schläft man gesund. -Nur Sontags
für den Besuch läßt man sie etwas wacher.
Nahrung wird wenig noch verzehrt. Die Rücken
sind wund. Du siehst die Fliegen. Manchmal
wäscht sie die Schwester. Wie man Bänke wäscht.
Hier schwillt der Acker schon um jedes Bett.
Fleisch ebnet sich zu Land. Glut gibt sich fort.
Saft schickt sich an zu rinnen. Erde ruft.
Hier diese Reihe sind zerfallene Schöße
und diese Reihe ist zerfallene Brust.
Bett stinkt bei Bett. Die Schwestern wechseln stündlich.
Komm, hebe ruhig diese Decke auf.
Sieh, dieser Klumpen Fett und faule Säfte,
das war einst irgendeinem Mann groß
und hieß auch Rausch und Heimat.
Komm, sieh auf diese Narbe an der Brust.
Fühlst du den Rosenkranz von weichen Knoten?
Fühl ruhig hin. Das Fleisch ist weich und schmerzt nicht.
Hier diese blutet wie aus dreißig Leibern.
Kein Mensch hat so viel Blut.
Hier dieser schnitt mann
erst noch ein Kind aus dem verkrebsten Schoß.
Man läßt sie schlafen. Tag und Nacht. -Den Neuen
sagt man: Hier schläft man gesund. -Nur Sontags
für den Besuch läßt man sie etwas wacher.
Nahrung wird wenig noch verzehrt. Die Rücken
sind wund. Du siehst die Fliegen. Manchmal
wäscht sie die Schwester. Wie man Bänke wäscht.
Hier schwillt der Acker schon um jedes Bett.
Fleisch ebnet sich zu Land. Glut gibt sich fort.
Saft schickt sich an zu rinnen. Erde ruft.
Benn criou uma nova sintaxe para versificar o mundo deteriorado, a redução
do ser humano ao nada, que foi tirado do pó e ao pó retorna - o poeta celebra a
destruição de todo sentido no mundo, seguindo à risca a filosofia de Nietzsche.
Em Morgue as palavras regressam ao seu significado original,
através do uso de substantivos, versos curtos, a expressão adquire maior força e
o sentimento é intensificado. Sob a mesma temática da decadência física surgiu a
coletânea Carne (Fleisch, 1916), juntamente com os contos de Cérebros (Gehirne, 1916), de um niilismo extremo.
Gottfried Benn faz parte do movimento expressionista, que teve início por
volta de 1910. Anteriormente um conjunto de obras do pintor francês Julien-Auguste
Hervé, em 1901, foi intitulado expressionismo. Em 1911, realizou-se uma exposição
com pintores franceses em Berlim e tais pintores foram chamados de expressionistas.
Mais tarde, a denominação passou a designar pintores como Cezanne, Matisse, van
Gogh. Mas foram os pintores alemães que criaram um estilo próprio, que atribuiu
o contorno e peso característicos ao estilo expressionista. Pintores como Georg
Grosz, Paul Klee, Otto Dix, Ernst Ludwig Kirchner, Emil Nolte, Max Beckmann, entre
outros, com suas pinturas chocantes e inovadoras, foram os maiores precursores do
expressionismo na arte.
Na literatura o movimento desenvolveu-se baseado na filosofia de Nietzsche,
com uma tonificação política: a I Guerra Mundial. Uma das vertentes desta filosofia
era o eterno retorno do mesmo, die Wiederholung
des Gleiches, a outra vertente levou
à tona o niilismo, filosofia fundada na demolição dos antigos dogmas, ídolos e tradições,
na qual são desmoronadas as medidas de valores e a crença de mais de dois mil anos
de sabedoria ocidental. As idéias de Nietzsche foram empregadas para criticar a
cultura européia, assim veio a recusa a tudo que era relacionado ao mundo positivista
e a negação do realismo, da moral, metafísica e religião. O objetivo da ciência
era interpretado como a destruição do mundo, a política era comparada ao teatro,
isto é, encenação, fora do real. A busca do pleno nada, da fatalidade de tudo aquilo
que foi e será, e da falta de sentido em tudo, faziam parte da filosofia da época.
Desta forma nasceu o expressionismo, através de um linguajar combatente e
de expressões veementes e pouco articuladas (literatura de grito), que procurava
deteriorar, destruir, demolir os valores burgueses. Gottfried Benn, com a força
eruptiva de sua linguagem, a visão fria e cínica, registra a decadência, doença
e desolação da vida humana, através de uma fria e precisa terminologia científica,
com a técnica de um cirurgião dissipando a realidade, mostrando suas vísceras.
Atualmente, na literatura alemã somente o poeta contemporâneo Durs Grünbein,
(sobre quem escrevi na Agulha.12),
seguiu esta linha, descrever o horrível e asqueroso na sociedade através da linguagem
poética e coloquial. A diferença é que Grünbein não possui o conhecimento científico
de Benn, ele não estudou medicina e sua visão é mais vergada à arte, enquanto que
nas poesias de Benn, devido a sua experiência como médico, sua temática é acompanhada
de uma forte visão científica.
A I Guerra Mundial serviu, a princípio, como libertação para alguns jovens
intelectuais, contra a monotonia do cotidiano. No entanto, com o tempo e as iníquas
conseqüências da guerra surgem as reflexões de como melhorar o mundo. O pacifismo
passa a ser o centro de pensamento do expressionismo e a luta contra o poder, responsável
pela escravidão do indivíduo. Os expressionistas eram reptantes à mecanização, industrialização
e ao capitalismo. Foi um movimento de revolta: contra a civilização técnica e mecânica,
contra a autoridade, isto é, Quem poetiza,
está contra o mundo todo (A
poesia pode melhorar a vida? Soll
die Dichtung das Leben bessern?).
Além de Gottfried Benn, para mencionar alguns nomes do expressionismo na
literatura, seus expoentes foram, entre outros, Ernst Stadler, Kurt Hiller, August
Stramm, Georg Trakl, Geog Heym, Franz Werfel. O expressionismo surgiu na Alemanha
com a publicação de duas revistas literário-artísticas, em 1910, A Tempestade (Der Sturm), fundada por
Herwarth Walden e A Ação (Die Aktion), fundada por Franz Pfenfert.
E a publicação das poesias Aurora (Dämerung) de Alfred Lichtenstein, em 1911, e no mesmo
ano Fim do Mundo (Weltende), de Jacob van Hoddis.
O grande poeta alemão conviveu com a destruição provocada pela guerra, era
filho de um pastor evangélico, estudante de teologia e filosofia, antes de voltar-se
definitivamente à medicina. Trabalhou como médico legista em alguns hospitais de
Berlim. Ele passou os últimos meses
inerte, foi médico num instituto patológico por dois anos, isto significa, aproximadamente
dois mil cadáveres passaram por suas mãos sem que ele tivesse tempo para refletir
e isto levou-o à exaustão de uma forma estranha e inexplicável (Cérebro): (Er hatte die letzten Monate tatenlos verbracht; er war
zwei Jahre lang an einem pathologischen Institut angestellt gewesen, das bedeutet, es waren
ungefähr zweitausend Leichen ohne Besinnen durch seine Hände gegangen, und das hatte
ihn in einer merkwürdigen und ungeklärten Weisen erschöpft). Em 1916, em Bruxelas, trabalhou para os militares
como médico dermatologista num hospital para prostitutas: (Um posto totalmente
isolado… tinha pouco serviço, podia andar em traje civil, não me prendia a nada,
não dependia de ninguém, não entendia quase nada do idioma, andava a ermo pelas
ruas… eu vivia à margem, no limiar da existência e onde o Eu começa: (ein ganz isolierter Posten… hatte wenig
Dienst, durfte in Zivil gehen, war
mit nichts behaftet, hing an keinem, verstand die Sprache kaum; strich durch die
Strasse… ich lebte am Rande, wo das Dasein fällt und das Ich beginnt).
A biografia de Benn não é considerada das mais impressionantes se for comparada
com a biografia de Rilke, por exemplo, que viajou por vários países. Gottfried Benn
nasceu em 1886 na cidade de Mansfeld e faleceu em Berlim, em 1956. Foi o segundo
filho numa família de seis irmãos, casou-se com a viúva Edith, oito anos mais velha
do que ele e teve uma filha, Nele. A esposa faleceu três anos depois. A filha foi
entregue aos cuidados de uma tia na Dinamarca. O filho do primeiro casamento de
Edith, que era muito apegado a Benn, faleceu vítima de tuberculose aos dezoito anos.
Casou-se novamente com a jovem Hertha von Wedemeyer, que se suicida levada pelo
sofrimento causado pela separação do marido, durante a guerra: sem receber nenhuma
notícia dele, pensou que ele tivesse morrido. Casou-se pela terceira vez com a dentista
Dra. Ilse Kaul, vinte e cinco anos mais jovem do que ele. Fora isto, Benn foi um
mulherengo, que muito discretamente traiu as esposas.
O poeta sentia verdadeira paixão por Berlim, onde viveu a maior parte de
sua vida, foi esta cidade que modelou seu pensamento crítico perante a arte. Não
é para menos, Berlim era o centro do movimento expressionista. Hoje Berlim é uma
cidade repleta de canteiros de obras e que passa por uma constante e alígera transformação
arquitetônica e política. Nos anos dez e vinte Berlim era uma cidade bem definida,
vibrante e populacionada, desde aquela época com a mania dos superlativos, era a
maior cidade industrial alemã, mantinha uma vida noturna agitada e diversificada
e era um centro cultural europeu. Mas como toda cidade grande, também possuía os
seus contrastes, vivia de escândalos políticos, do esnobismo e dos indigentes, criminosos
e prostitutas. O dermatologista tinha o seu consultório no bairro de Kreuzberg,
na rua Belle Alliance, hoje Mehringdamm, uma ampla avenida, margeada por castanheiras,
calçadas largas, lojas, bares, restaurantes e moradias. Aqui Benn atendia seus pacientes
infecciosos ou não. E residia no bairro vizinho, Schönenberg, onde costumava freqüentar
o bar da esquina e se encontrar com o amigo Walter Lennig para tomar cerveja, fumar,
falar de política e literatura, também liam e comentavam cartas, jornais e revistas.
Ou então o poeta preferia ficar só, observando o movimento no bar e através deste
momento corriqueiro surgiram suas poesias mais lindas, em meio à fumaça de cigarro,
goles de cerveja, ruídos de conversas alheias, garçonetes passando, bulício de música
e copos…
Benn dominava o dialeto local e amava Berlim de uma forma que refletiu totalmente
em sua obra, alguns vocabulários e expressões idiomáticas são típicos berlinenses.
Também a bíblia teve grande influência em sua linguagem, sendo filho de um pastor,
o autor conhecia muito bem a bíblia, principalmente o capítulo do apocalipse. Gottfried
Benn faleceu aos setenta anos, em 7 de julho de 1956, no apartamento térreo em Schönenberg.
Sua biografia não é considerada impressionante, o que mais chama a atenção
em sua vida é uma dislogia, o fato de, em janeiro de 1933, o poeta ter aderido ao
movimento nacional-socialista. Através de um discurso para um programa de rádio, O Novo Estado e os Intelectuais (Der Neue Staat und die Intellektuellen)
ele assume sua posição política a favor do novo regime. Este grande equívoco perdurou
exatamente um ano e foi o suficiente para obscurecer sua biografia, também serviu
como fonte inesgotável de críticas cáusticas. A dislogia criou maior indignação
porque teve origem na mente de um dos maiores intelectuais do século XX. Assim como
no caso do filósofo Heidegger, onde o leitor se depara com o dilema: como admirar
as obras de alguém que pode simpatizar-se com um regime extremamente infenso ao
humano; como fazer usufruto das idéias originárias de uma mente incapaz de reconhecer,
logo de início, o anti-humano nos princípios nacionalistas? É um paradoxo aparentemente
inexplicável. E foi com o extermínio de cem personalidades, na chamada "revolta
de Röhm", cujos condenados foram mortos sem julgamento, que Gottfried Benn
se distanciou definitivamente do regime.
Na realidade, o filho do pastor não conhecia a fundo os princípios e ordens
do nacional-socialismo, não fazia parte de nenhum partido político e não conhecia
ninguém relacionado diretamente à política. Era mal informado ao tomar esta posição.
Porém, apesar de seu equívoco ter proveniência mais em um estado emocional do que
racional, não foi o suficiente para livrá-lo do lastro da culpa e limpar seu nome,
este trecho permanece como uma sombra sinistra em sua biografia e obra. Naquela
época a Alemanha atravessava um período de forte crise de desemprego e a aliciante
retórica de Hitler com suas promessas atraiu miríades de cidadãos até então céticos.
As promessas e parolas criaram esperanças nos indivíduos e Benn alimentou perspectivas
errôneas. Ao reconhecer o engano, o poeta cai num silêncio profundo e vive no isolamento.
No ensaio Caminho Biográfico de um Intelectual
(Lebenswege eines Intelektuelles), Benn
se distancia da política cultural de Hitler e semeia novos inimigos. Numa carta
a Ina Seidel os sentimentos do poeta são revelados na seguinte frase: o pensamento e a arte não provém de vitórias, mas de naturezas destrutivas (Der Geist und die Kunst kommt nicht aus
sieghaften, sondern aus zerstörten
Naturen), significa que é um caminho
escabroso aquele que leva à perfeição e toda dor provém de uma destruição: destruição
de um sentimento, de uma visão ou o desfalecimento físico e a destruição da vida
pela morte. E ainda: "a vida"
não é mais nenhuma realidade, é apenas a repetição de absurdos… hoje considerados
como História. ("das Leben"
ist überhaupt keine Wirklichkeit,
es ist nur eine Wiederholung von Absurditäten… heute aufgezogen als Geschichte), aqui o poeta
faz menção ao eterno retorno do mesmo de Nietzsche. Desta época é datada a poesia Mais solidão jamais (Einsamer nie):
Mais solidão jamais em agosto:
Horas que completam -, nos campos
Ardente rubro e dourado
Mas onde se encontram teus jardins de desejo?
Os lagos claros, o céu aumenta
Os campos limpos e brilhando fraco
Mas onde estão a vitória e seu facho
Do reinado que tu representas?
Onde tudo está da sorte dependendo
E o olhar trocado e os anéis invertidos
No sussurro das coisas, no perfume dos vinhos
Tu serves ao antônimo do pleno, do pensamento.
Horas que completam -, nos campos
Ardente rubro e dourado
Mas onde se encontram teus jardins de desejo?
Os lagos claros, o céu aumenta
Os campos limpos e brilhando fraco
Mas onde estão a vitória e seu facho
Do reinado que tu representas?
Onde tudo está da sorte dependendo
E o olhar trocado e os anéis invertidos
No sussurro das coisas, no perfume dos vinhos
Tu serves ao antônimo do pleno, do pensamento.
Einsamer nie als im August
Erfüllungsstunde -, im Gelände
die roten und die goldene Brände,
doch wo ist deiner Gärten Lust?
Die Seen hell, die Himmel weich
die Äcker rein und glänzen leise,
doch wo sind Sieg und Siegsbeweise
Aus dem von dir vetretenen Reich?
Wo alles sich durch Glück beweist
und tauscht den Blick und tauscht die Ringe
im Weingeruch, im Rausch der Dinge -:
Dienst du dem Gegenglück, dem Geist.
Erfüllungsstunde -, im Gelände
die roten und die goldene Brände,
doch wo ist deiner Gärten Lust?
Die Seen hell, die Himmel weich
die Äcker rein und glänzen leise,
doch wo sind Sieg und Siegsbeweise
Aus dem von dir vetretenen Reich?
Wo alles sich durch Glück beweist
und tauscht den Blick und tauscht die Ringe
im Weingeruch, im Rausch der Dinge -:
Dienst du dem Gegenglück, dem Geist.
Gottfried Benn ficou proibido de escrever durante dez anos (1935 a 1945),
nesta época trabalhou como médico para os militares.
A coletânea poética Poesias Estáticas (Statische Gedichte, 1948) dá início
a um novo período de concepção, que se distancia do cinismo e hediondo característicos
de sua primeira fase. São 44 poesias criadas entre 1935 a 1948, considerado o período
mais fecundo. Tal concepção alcançou um nível poético cimeiro. O conteúdo estético
de Poesias Estáticas abrange desde estrofes com versos octógonos
até poesias lacônicas, rítmicas, desde a composição espontânea e prosaica até a
composição sob uma técnica rígida. A obra é acompanhada de um grande amadurecimento
e enriquecimento empíricos do poeta.
No entanto, é a coletânea Morgue que permanecerá como um marco na história da
literatura, representando a inteira irrupção com uma estética tradicionalmente voltada
para o belo. Morgue simboliza a forte desilusão e decadência surgidas
no início de um século arrasado por duas guerras Mundiais, avassalado pela miséria
humana tendo como última instância a decomposição física, a putrefação do corpo.
Como médico o autor de Morgue ganha, em sua anti-estética, a autenticidade
necessária que nos impede de interpretar em sua poética apenas o enfaro, o repugnante.
Sabemos que Gottfried Benn manteve um relacionamento científico com o corpo humano,
onde, em muitas vezes, ele serve apenas como objeto de estudo. Mas esta decomposição
física é também a devassidão cultural e mental do indivíduo numa sociedade abalada
pelos efeitos da guerra, o apodrecimento pustuloso e fétido de uma existência, que
foi aos poucos, destruída pelos vermes gerados pela miséria imposta com o conflito
bélico. Morgue não é um livro fácil de se ler, é preciso estar
preparado para encarar o funesto que, logo de início, nos suga para as duras profundezas
da morte, como uma voragem. No entanto, ao superarmos este impacto, renascemos para
o mundo poético, único capaz de nos entregar esta abordagem da vida da maneira mais
profunda. Reforço o substantivo vida porque, embora Morgue refira-se à decadência humana em forma de decomposição
física, embora Gottfried Benn tenha sido um discípulo fiel à filosofia niilista
de Nietzsche, sua poesia não deixa de ser um grito repleto de cinismo e engulho
contra a destruição.
Por outro lado, seus ensaios e discursos sobre a forma de poetizar e o efeito
da literatura, principalmente do gênero lírico, contém passagens inspiradoras, que
repercutem no mundo literário até os dias atuais. Sua concepção de que, apenas seis
ou oito poesias são perfeitas no total da obra poética de um autor, o resto é interessante
apenas sob o ponto de vista biográfico (Problema da lírica, "Problem der
Lyrik"), tornou-se medida de aferição
para muitos críticos literários. Benn ainda explana que é através das experiências
e o acúmulo de sabedoria do autor que a poesia é concebida, nada deve tornar-se
aleatório, a poesia faz parte de um processo racional, que possui como matéria-prima
o sentimento. Avesso à criação primitiva e espontânea, Benn escrevia e rescrevia
seus poemas várias vezes, além de permitir que o tempo amadurecesse a idéia. O poema Poesias Estáticas, por exemplo, é composto
de apenas duas estrofes, mas estão vinte anos distantes uma da outra. Além disso,
não é através de um momento propício, por exemplo, onde um homem e uma mulher estão
sentados, admirando o crepúsculo, que surge um poema. Ele promana das experiências
profundas de natureza dolente e da paixão. Segundo Kierkegaard: a verdade vence
através da dor. A essência da poesia
é a plenitude e a fascinação (A
poesia pode melhorar a vida?).
Quanto a questão se a poesia pode melhorar a vida, Benn responde que a poesia
não tem o poder de melhorar a vida, mas modificar. Altera o modo de pensar do leitor,
difere sua visão de mundo e aumenta a sensibilidade no tocante à observação do real.
A poesia não serve apenas para embelezar ou consolar, ela envolve um processo de
concepção extremamente complexo dentro da psique humana, para esboçar ou traduzir
um estado de espírito diante da realidade, da história ou da própria imaginação.
Outro ponto culminante em seu discurso
A poesia pode melhorar a vida? é a teoria de que o poeta é um ser que paira
sobre o tempo e a história, não possui o poder de modificá-la, "obras de
arte são fenomenais, mas não têm o poder
de influenciar no percurso da história". Ao contrário de Günter Grass que defende a literatura
subversiva, isto é, de cunho político e social, Benn propugnava o direito do autor
de escrever sobre si próprio e foi muito criticado por esta visão narcisista da
literatura, denominada literatura de
umbigo. Entretanto, sua obra não perdeu o valor, pelo contrário, com o tempo
foi adquirindo cada vez mais importância singular na literatura moderna de língua
alemã.
As impressões exógenas que o poeta coleciona no seu intro, para tranformá-las
no material lírico, é a inquietude interior que faz dele um ser estóico que observa
a realidade à sua volta assimilando todas as oscilações, transformações, as maiores
conjeturas vulníficas ou seus ínfimos detalhes angustiosos. Na concepção de um poema, observa-se não apenas o poema, mas a si próprio. (Bei der Herstellung eines Gedichtes beobachtet man
nicht nur das Gedicht, sondern auch sich selber - Problema da lírica). São as impressões exógenas armazenadas no
interior do poeta, aguardando o momento de erupção, o que faz: a poesia já está pronta, antes mesmo
de ter começado, o poeta só não
conhece a sua grafia ainda, (das
Gedicht ist schon fertig, ehe es begonnen hat, er weiß nur seinen Text noch nicht-
Problema da lírica).
Uma palavra
Uma palavra, uma frase -jorra dos signos
vida reconhecida, abrupto sentido,
o sol nasce, esferas em silêncio
e tudo choca-se nisso.
Uma palavra, um brilho, asa e fogo,
uma faísca em chama, uma estrela no breu -
e de novo o escuro, monstruoso,
no espaço vazio entre o mundo e eu
Uma palavra, uma frase -jorra dos signos
vida reconhecida, abrupto sentido,
o sol nasce, esferas em silêncio
e tudo choca-se nisso.
Uma palavra, um brilho, asa e fogo,
uma faísca em chama, uma estrela no breu -
e de novo o escuro, monstruoso,
no espaço vazio entre o mundo e eu
Ein Wort
Ein Wort, ein Satz -: aus Chiffern steigen
erkanntes Leben, jäher Sinn,
die Sonne steht, die Sphären schweigen
und alles ballt sich zu ihm hin.
Ein Wort - ein Glanz, ein Flug, ein Feuer,
ein Flammenwurf, ein Sternenstrich -
und wieder Dunkel, ungeheuer,
im leeren Raum um Welt und Ich.
Ein Wort, ein Satz -: aus Chiffern steigen
erkanntes Leben, jäher Sinn,
die Sonne steht, die Sphären schweigen
und alles ballt sich zu ihm hin.
Ein Wort - ein Glanz, ein Flug, ein Feuer,
ein Flammenwurf, ein Sternenstrich -
und wieder Dunkel, ungeheuer,
im leeren Raum um Welt und Ich.
Viviane de Santana Paulo (São Paulo, 1966). Poeta,
ensaísta e tradutora, reside na Alemanha, ali trabalhando na Embaixada do Brasil.
Poeta inédita em livro, em 1998 fundou a União dos Escritores Brasileiros residentes
na Alemanha (UEBRA). Página ilustrada com obras de Iván Tovar (República Dominicana).
Contatos: vsantana@brasemberlim.de. Agulha Revista de Cultura # 15. Agosto de 2001.
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