Em O
Teatro e seu duplo, obra na qual apresenta o conjunto de ideias que
constituíram o teatro da crueldade, Antonin Artaud defende uma linguagem que
pudesse exprimir objetivamente verdades secretas. Uma
linguagem mais concreta que a utilizada para falar da esfera
psicológica: mudar a finalidade da palavra no teatro é servir-se dela em um
sentido concreto e espacial, combinando-a com tudo o que o teatro contém de
especial e de significação em um domínio concreto; é manipulá-la como objeto
sólido, capaz de abalar as coisas inicialmente no ar, e em seguida em um
domínio mais misterioso e mais secreto.
Por
isso, o teatro da crueldade é um ritual, valorizando o gestual e o objeto,
trocando o lugar de palco e plateia. Em outras de suas obras, como Heliogábalo,
o anarquista coroado e Viagem ao país dos Taraumaras,
criou uma recíproca desse teatro, uma espécie de semiologia onde as coisas têm
significado e formam discursos. A leitura de Viagem ao país dos
Taraumaras, e do que escreveu depois sobre o ritual do peiote, mostra que
esse rito do sol negro foi, para ele, a mais autêntica realização do teatro da
crueldade.
Em uma
das Cartas de Rodez, quando esteve internado nessa instituição
psiquiátrica em 1945, Artaud responde a Henry Parisot, que lhe havia mandado
o Jabberwocky (Jaguadarte) de Lewis Carroll (obra na qual é
inventada a palavra-baú) perguntando-lhe se não queria traduzi-la. Diz que não,
que Lewis Carroll não tem uma visão fecal do ser, e o acusa de haver roubado um
texto seu: tendo escrito um texto como Letura d'Eprahi Talli Tetr Fendi
Photia O Fotre Indi, não posso tolerar que a sociedade atual (…) só me
deixe traduzir um outro feito a sua imitação. (…) Aqui estão alguns
experimentos de linguagem aos quais a linguagem desse livro antigo devia
assemelhar-se. Mas que só podem ser lidos se escandidos em um ritmo que o
próprio leitor deverá achar para entender e para pensar:
ratara
ratara ratara
atara
tatara rana
otara otara
katara
otara
retara kana
ortura
ortura konara
kokona
kokona koma
kurbura
kurbura kurbura
kurbata
kurbata keyna
pesti
anti pestantum putara
pest
anti pestantum putra
Há
outros exemplos dessa linguagem em Artaud, em sua fase pós-internamento. Mas
ele não a inventou: o uso de fonemas não-semantizados é arcaico. Octavio Paz,
no ensaio Leitura e Contemplação (publicado na coletânea Convergências),
trata das glossolálias, o "falar línguas", expressão de estados
alterados de consciência por gnósticos e outras doutrinas místicas. Analisa o
modo como reaparecem em autores modernos –
Huidobro, Khlebnikov, Fargue, Michaux, Hugo Ball e Artaud: na história da poesia moderna, reaparece a mesma obsessão dos gnósticos e dos cristãos primitivos, dos montanistas e dos xamãs da Ásia e da América: a busca de uma linguagem anterior a todas as linguagens, e que restabeleça a unidade do espírito. Embora intraduzível para tal ou qual significação, essa linguagem não carece de sentido. Mais exatamente: aquilo que enuncia não está antes, mas depois da significação. Não é um balbuciar pré-significativo: é uma realidade ao mesmo tempo física e espiritual, audível e mental, que transpôs os domínios do significado e os incendiou.
Huidobro, Khlebnikov, Fargue, Michaux, Hugo Ball e Artaud: na história da poesia moderna, reaparece a mesma obsessão dos gnósticos e dos cristãos primitivos, dos montanistas e dos xamãs da Ásia e da América: a busca de uma linguagem anterior a todas as linguagens, e que restabeleça a unidade do espírito. Embora intraduzível para tal ou qual significação, essa linguagem não carece de sentido. Mais exatamente: aquilo que enuncia não está antes, mas depois da significação. Não é um balbuciar pré-significativo: é uma realidade ao mesmo tempo física e espiritual, audível e mental, que transpôs os domínios do significado e os incendiou.
O
paralelo entre a escrita de Artaud e ideias gnósticas e herméticas também é
apontado por Susan Sontag, comentando as passagens, em Artaud, nas quais
as palavras são tratadas primariamente como material (som): elas têm um
valor mágico. A atenção ao som e forma das palavras, como distinta de seu significado,
é um elemento do ensinamento cabalístico do Zohar, que Artaud estudou na década
de trinta. Isso é evidente em textos como Para acabar com o
julgamento de Deus, onde afirma que toda verdadeira linguagem é
ininteligível, e exemplifica com glossolálias: potam am cram/ katanam
anankreta/ karaban kreta/ tanamam anangteta/ konaman kreta/ e pustulam orentam/
taumer dauldi faldisti. Para acabar… é um catecismo de
heresias. Afirma que onde cheira a merda, cheira a ser,
perguntando, em uma suprema blasfêmia: É deus um ser?/ Se o for, é
merda. São blasfêmias ditas a partir de um ponto/ em que me vejo
forçado/ a dizer não,/ NÃO/ à negação. A liberdade está no avesso: Então
poderão ensiná-lo a dançar às avessas/ como no delírio dos bailes populares/ e
esse avesso será/ seu verdadeiro lugar.
Semelhante
escrita do avesso é uma sobrevivência de ideias gnósticas, nascidas nas areias
da Palestina, inventadas por um concorrente do Cristo, Simão o Mago, para
depois se disseminarem em remotos séculos I e II, por seitas que buscavam
formar religiões secretas, principalmente no Egito, convivendo com o
neoplatonismo e o hermetismo. Os crentes na criação do mundo por uma divindade
decaída, o Demiurgo, e na salvação humana pela obtenção de um conhecimento
resultando, não da adesão, mas da luta contra Deus. Para alguns, pela adoção de
um código moral às avessas. Desapareceram diante da organização teológica e
política do cristianismo, perseguidos e combatidos como hereges, para
reaparecer na Idade Média como bogomilos e, no século XIII, como cátaros da
Provença, exterminados militarmente. A inversão da história do Jardim do Éden,
na qual a serpente é portadora, não da perdição, porém da sabedoria, além de se
manter em cultos demoníacos da Idade Média e da Renascença, aparece na criação
literária como adesão ao avesso, fascinação romântica e pós-romântica pelo
desafio, não apenas à ordem social, mas universal. A permanência da heresia
como sombra da História é a expressão da revolta contra um mundo e uma
sociedade onde tudo está errado, fora do lugar. Por isso, engendrado por um
ente maligno, o Demiurgo. William Blake, que acreditava em um Deus ruim e
opressor, em conflito com um Deus bom, é um escritor antecipado pela Gnose,
mais que pelo paganismo. Assim como, a seu modo, Baudelaire, Nerval,
Lautréamont, Jarry e Artaud.
Cosmogonias
invertidas, glossolálias e pensamento mágico também comparecem nos delírios,
nos surtos psicóticos. Diferentes sociedades em diferentes épocas tiveram suas
representações da loucura e lugares para o louco. É possível mostrar que no
xamã, sacerdote tribal primitivo, os três lugares são o mesmo. Confundem-se
também em William Blake, que conversava com profetas bíblicos. A loucura de
Artaud consistiu em ele ter sido um personagem de si mesmo, identificando obra
e vida. Inspirado em seus textos, praticou-os na vida real, como no famoso
episódio, relatado por Anais Nin, da palestra (O Teatro e a peste,
de O teatro e seu duplo), em que declarou que não iria falar da
peste, porém mostrá-la, encarnando o empesteado, sofrendo, contorcendo-se até
cair no chão, de forma tão chocante que esvaziou o auditório. Ou nas ocasiões
em que afirmou que Paris era Roma antiga e ele, Artaud, era Heliogábalo.
Identificar
linguagem e realidade, querer que o símbolo se torne efetivo, ativo no plano da
realidade, é pensamento mágico E também pensamento poético, busca da anulação
do tempo. A confusão entre criação, ideias típicas do sintoma e temas de uma
tradição esotérica chega a nós pela corrente subterrânea da história; passa a
ser um dos modos da tradição da ruptura, para utilizar a expressão criada por
Octavio Paz (em Os filhos do barro). Em seus elogios e homenagens a
Lautréamont, Nerval e Poe, Artaud se assume como representante dessa tradição.
Reescreve uma história da literatura como história de escritores loucos, que
culmina nele.
É
especialmente fascinante como Artaud, depois de viajar ao México para tomar
peiote entre os Taraumara, de ter uma crise ao voltar e ser internado, produziu
textos literariamente superiores, pela força, ritmo e riqueza de imagens. Onde
se pode ver como antagônicos, em muitos escritores, um componente psicótico,
destrutivo, e um componente criador, em Artaud ambos interagiam; um alimentou o
outro. Sua obra culmina, em 1947, com Van
Gogh, o suicidado pela sociedade, esplêndido poema em prosa onde reitera que louco é o homem que a sociedade não quer ouvir, e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis. Afirma que um dos meios da sociedade burguesa marginalizar artistas videntes é através de bruxarias. Insiste em que seu internamento é obra de uma conjuração, pois, se o deixassem solto, mudaria o mundo. Caracteriza Van Gogh como vítima solidária do mesmo enfeitiçamento.
Gogh, o suicidado pela sociedade, esplêndido poema em prosa onde reitera que louco é o homem que a sociedade não quer ouvir, e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis. Afirma que um dos meios da sociedade burguesa marginalizar artistas videntes é através de bruxarias. Insiste em que seu internamento é obra de uma conjuração, pois, se o deixassem solto, mudaria o mundo. Caracteriza Van Gogh como vítima solidária do mesmo enfeitiçamento.
Assumindo
a ótica de Artaud, distinguir entre categorias como normalidade e loucura, ou
entre arte, sintoma e delírio, é uma falsa questão. É inevitável, ao
discuti-lo, adotar a perspectiva e o tipo de epistemologia defendida por Michel
Foucault na parte final de As Palavras e as Coisas, e, a meu ver,
de modo mais consistente pelo surrealismo. Consiste em pensar o delírio, tanto
quanto o sonho e a criação poética, como meios de conhecimento. Assim como a
linguagem científica abre campos de conhecimento, a linguagem não-instrumental,
não-discursiva, abre outros campos de experiência do real. Entender o
inconsciente como consciência não-discursiva ajuda a esclarecer a modernidade
de Hölderlin, Nerval, Lautréamont, Corbiére, Germain Nouveau, Jarry e Artaud.
Permitindo a intervenção do inconsciente, rompem com o discursivo e com a sociedade:
rompem com o discurso da sociedade. Fazem arte revolucionária, pela
radicalidade da rebelião individual, e por sua crítica à realidade: por isso
falo em tomá-la como meio de conhecimento, e não apenas como algo a ser
interpretado, como objeto do paradigma clínico ou de uma teoria literária. A
inserção consciente de Artaud na tradição da ruptura acentua o caráter
universal de sua contribuição, por mais que esta se tenha manifestado de modo
particular, irredutível, que não permite uma escola ou doutrina de seguidores,
apesar da sua influência em tantos campos da modernidade: teatro, poesia,
contracultura, antipsiquiatria. É universal por expressar contradições
fundamentais, entre o sujeito e o mundo que lhe é exterior, o imaginário e o
real, o absoluto e o contingente, o poético e o prosaico.
*****
Organização a cargo de
Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado:
Salvador Dalí
Agradecimentos a Hernán
Alejandro Isnardi
Imagens © Acervo Resto
do Mundo
Esta edição integra
o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de
Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de
Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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