terça-feira, 19 de julho de 2016

FLORIANO MARTINS & LEILA FERRAZ: Os mais deliciosos cadáveres da terra: 2015/2


Em 2015, adentrando o primeiro semestre de 2016, mantivemos, Leila Ferraz e eu, uma intensa correspondência virtual, praticamente a diário. Durante este período tratamos de assuntos os mais diversos, dentre eles a nossa participação em uma Exposição Internacional do Surrealismo realizada na Costa Rica e um livro de poemas/fotografias que estamos os dois preparando, uma deliciosa aventura a quatro mãos. Também foram oportunos os momentos de memória de nossas relações com o Surrealismo, bem como uma valiosa troca de ideias acerca de poesia, surrealismo e arte. O que reproduzimos aqui, em três capítulos, cada um deles dedicado a um semestre, é um fragmento desse diálogo sem fim, diálogo franco de dois criadores que em muito se identificam. Espero que seja igualmente valioso para nossos leitores.

● JULHO 03

LF | Comecei a escrever um poema em sequência. Hoje está difícil. Há fantasmas rondando meus cabelos. Lembranças costuradas no tapete de nuvens que cobre o céu. Minhas dores sobem e descem as escadas com um lustre nas mãos. Esvazio pela boca todos os pensamentos e o que resta é um cérebro rendado e ausente. Um desenho flutuando pelas folhas do meu chá.

FM | Escreveste este: Comecei a escrever um poema em sequência. Hoje está difícil. Há fantasmas rondando meus cabelos. Lembranças costuradas no tapete de nuvens que cobre o céu. Minhas dores sobem e descem as escadas com um lustre nas mãos. Esvazio pela boca todos os pensamentos e o que resta é um cérebro rendado e ausente. Um desenho flutuando pelas folhas do meu chá.

LF | Meu amigo, quem seria eu se não fosse você?

FM | Seríamos outros, mesmo considerando a existência de alguém chamado Leila e outro alguém chamado Floriano.

LF | Sábio poeta que conhece as respostas. A esfinge que me decifra e não devora. E olha de um penhasco distante as minúcias dos tempos trançados. Seríamos outros se não fôssemos nós. Seríamos um sentido em setas sem certezas. Um alísio nas fronteiras dos ventos. Os pontos cardeais entre planetas e estrelas. O som da concha envolvendo os betéis. Seríamos se não fossemos nós.

FM | Se não fôssemos quem somos os espelhos teriam que aprender a viver sem nós.

LF | E sem espelhos seríamos presas das imagens entre nós.

FM | De algum modo as esfinges não sabem romper o casulo dos espelhos em que se ocultam. De algum modo não fazemos a menor ideia do que pensam a nosso respeito os espelhos.

LF | Eles nos fitam ao contrário do que somos. Invertem a razão pela emoção e sem contar o mínimo segredo revelam os signos em transmutação.

FM | E são irônicos justamente porque sabem que desconhecemos o reflexo de cada mínimo gesto nosso. Jamais céticos em seus reflexos e reflexões, estes espelhos se estilhaçam a um simples olhar cravado no coração.

FM | Guardam em si a severa ironia do ícone que fingimos ser, lacram o revés de tudo o que projetamos como nossa existência comum.

LF | E impossíveis de se verem, decidem já o começo e o fim desse trajeto que existe apenas no lacre das palavras, nos sonhos inaudíveis e nos momentos em que os passos se perdem de seus pés.

FM | E se desfazem em rastros que se confundem e erram por entre pernas que se desconhecem e simplesmente borram as linhas que sugerem uma saída ou uma nova rota.

LF | Desfocam seus contornos em aquarelas. Cálices de licor furta-cor. Lábios delicados de aromas e mãos que desatam em nós.

FM | E somem no interior de um abismo que afiançamos como nossa única fonte de vida.

LF | A escura e fria escultura da noite modelada aos toques, dedilhada aos cegos e velada às bocas de quem fala deslizando um poema pelos dedos fugindo pelas teclas de um piano noturno.

JULHO 04

FM | Algo de que sempre discordei do Sergio Lima é que se recusava a corrigir seus poemas. Ora, o que entendo por escritura automática é a busca de um momento em que não precisemos mais corrigir os poemas, que tenhamos alcançado um grau intenso de espontaneidade sem perda do ambiente estético.

LF | Concordo contigo. Porém eu cometo uns erros, pequenos erros, sei eu, mas que podem comprometer a fluência da leitura e o prazer que um poema proporciona ao seu leitor. Você sabe como acertar tons disléxicos… Sei por que Sergio Lima é assim. Mas é uma dificuldade de fala da qual ele sofre. O que não o impede de nada, apenas de compartilhar. O ambiente estético, para mim, se chama talento. Na escrita automática ele se revela na plenitude!

FM | Entre os 20 e os 30 eu trabalhei na imprensa, escrevia críticas, resenhas, crônicas, traduzia, entrevistava, ou seja, me expunha a toda prova. E como não tinha papas na língua, acabei criando um celeiro de desafetos. Com isto tive que aprender que não se pode ser crítico sem antes ser autocrítico. Sim, é o talento em seu grau mais elevado, já com todos os problemas básicos solucionados, tais como o domínio dos instrumentos…

LF | Certo. Em publicidade também é assim. Só que convertido ao cruel.

FM | Meu pai, sem querer, me alertou para a necessidade desse domínio generalizado. Tinha uma biblioteca tão mesclada, tão caótica, em casa que eu tive que aprender como sair de um livro para outro, tamanho o abismo que os separava. Com isto fui aprendendo primeiramente o gozo pelo domínio, antes da regra.

LF | Na verdade, atravessei várias reformas ortográficas e não me atualizei. Tenho vícios e eles me torturam. Li e li e reli tudo o que aconteceu e passou pelas minhas mãos. Com ou sem vícios de linguagem. Depois, li muito em francês e inglês. Nesta última escrevi alguns dos meus mais emocionantes poemas… E te admiro pela disciplina impecável, pela clareza e domínio dos significados e transmutação das palavras e estas na frase.

FM | Não há para mim coisa mais indesculpável do que um criador descuidado consigo mesmo. Eu queria muito ler os teus poemas em inglês. Olha, acho que poderias preparar um livro teu, recuperando estes poemas em português, francês e inglês. Desde já sabes que podes contar comigo. Eu não acredito no "tarde demais" (nem de menos). Voltando ao nosso livro, acho que agora são primordiais duas coisas: que definas os teus desenhos para os meus poemas, e que me envies os teus poemas. Que bonito disse certa vez o Cirlot: "A tentativa do surrealismo não é outra senão a de integrar, até o ponto factível, esse estado de irracionalidade afetiva própria do primogênito e auroral".

LF | Cirlot, o que escreveu sobre signos e mitos? Certo. Ele toca no ponto factível – muitas vezes desconhecido pela maioria humana, porém latente através de suas representações e signâncias.

FM | Eu tenho uma grande admiração pelo Cirlot. Justamente por isto, por sua percepção do factível.

LF | Ao tornar algo factível revelamos segredos que talvez devessem permanecer no campo do sagrado, ou do profano… O que achas?

FM | Sim, e de fato eles permanecem como representações do sagrado ou do profano, porém me atrai a ideia de desvelar essas sereias.

LF | As sereias são tentações simbólicas… A expressão lírica para uma vida individual, segundo o próprio Cirlot… E quando se torna factível está mais próxima do augúrio ou da profecia, segundo ele. Profetizamos encantamentos, fórmulas matrizes… que se encontram, dentro de nós e procuram seus sentidos no inconsciente.

FM | Bem dentro de nós. Porém as sereias são de uma multiplicidade de signos, de lâminas do desejo, de um laboratório secreto de encantos, de uma magia que extrapola o bosque em que cresceu.

LF | Essa é a tentação! Ela seduz Ulisses, que se faz amarrar num mastro do navio, simplesmente para ouvi-las e não sucumbir a elas… Pouco depois, impotente se rende aos seus encantos, se olvida de si e de sua Ítaca, deixa Penélope a bordar e a desfazer seu tapete e se entrega aos recantos obscuros das cavernas… lá permanecendo pelos tempos que se perdem em si mesmos.

FM | A dupla cauda da sereia acaso terá alguma relação com a língua bífida da serpente?

LF | Sim! Ao abrir-se devora quem a desconhece! Farei umas anotações por aqui e sumirei dentro de uma asinha de frango com espinafre.

JULHO 07

FM | Que coisa bonita diz o Cruzeiro Seixas: "Asa, que bom! Perguntei há dias a alguém o que é que gostava mais de ter, além do que já tinha. E a pessoa disse-me 'asas'. Claro que, se as pessoas pudessem ter asas, estragavam por completo todo o voo. O voo ainda é uma coisa sublime. Aquilo em que o homem toca estraga! Mas eu gostaria de ter asas porque acho muito bonito. Não tanto para voar. Sou muito agarrado à terra." Chegaste a conhecê-lo, Leila, ou somente ao Cesariny?

LF | Talvez eu tenha conhecido o Cesariny. Não me lembro. Tinha acabado de dar à luz as minhas gêmeas, e ia com elas para montar a Exposição do Surrealismo na FAAP. Quem via eu dando de mamar dizia que parecíamos um quadro de Renoir! Eu, no meio de caixas que tinham vindo de todas as partes, com obras de vários artistas e de vários lugares. Painéis, molduras, chupetas, carrinhos de bebês, fraldas, desenho do Hans Bellmer, roupagens de funcionamento simbólico de Leila Ferraz e Jean Benoit, textos do manifesto do surrealismo de André Breton ligando com fios as palavras encantatórias do texto às obras dos artistas participantes. Então imagine o cenário afetivo: ao centro, como uma madona renascentista, uma jovem mãe dando seus dois seios… um para cada pequenina filha. Aos seus pés, o Movimento Surrealista prestes a ser montado. Os olhares dos quadros, desenhos, fotos e colagens assistiam mudos e comovidos àquela cena aconchegante do aleitamento materno! Vida pulsante sob o frio do inverno. Boquinhas ávidas do leite da vida. Austero ar… silêncio solene. As crianças mamam no regaço surrealista. Personalidades, poetas, jornalistas se aquietaram naquele instante. Nada se movia. Nem as agulhas da Anticintura de Castidade que a jovem mãe costurara. As crianças mamavam uma parte da história desse movimento entre o sonho, o inconsciente e a loucura. Talvez lá estivesse Mário Cesariny. Sim, havia uma comitiva de "Reis Magos" que vieram para a Exposição. Quero lembrar-me de seus nomes… se vieram de Portugal, da Argentina ou de outros países distantes. A memória esvaiu-se como o leite pela boca das gêmeas. E não sei mais como é perguntar para o pai delas se conheci ou não estes senhores de ternos e gravatas que vieram prestar homenagem ao Surrealismo recém-nascido naquela 1a Mostra. Talvez sim, talvez não. Escaparam como areia por meus dedos imemoriais. Assim como André Breton, que tanto queria me conhecer, morrera poucos dias antes de eu lhe dar um abraço. […] Querido amigo! Não imaginas a minha felicidade ao ler nosso poema! Que lindo! Completo e perfeito ficou. Pode alguém desejar mais? Sim! Vamos escrever mais poemas a quatro mãos… em estado semi-inconsciente, xamânico e alquímico! Beijo grande!

FM | Vamos sim, vamos escrever dois mil poemas assim, tomados de assalto pela grandeza do acaso objetivo. Vejo agora que não conheceste o Cesariny, porque ele não veio ao Brasil. Um dos senhores de terno era o Aldo Pellegrini, tenho inclusive fotos dele ao lado do Sergio. Mas adorei o teu relato automático, que bonito, tens que refazer tudo isto, a cena dos seios em meio à montagem, excluindo o Cesariny dali.

JULHO 08

FM | Mas já começaste o poema. Acordei pensando na Eva May e me veio este imagem: "Os teus olhos me descamavam todos os símbolos da casa." Vou dar sequência. Teremos outras oportunidades. Mil beijos.

LF | Não consigo mais parar… Parece que há um vulcão há muito adormecido em mim que só queria embelezar a terra ao sair. Jamais impedi-lo. Rendo-me plena às suas forças…

FM | Eu me encho de alegria ao te ler, que bom, dá-me intensa felicidade…

LF | É um estado de graça que jamais pensei reaver…

FM | Que lindo! Eu ando nele, depois te falo, já de algum tempo, aquela sensação de que posso parir a qualquer momento, inesgotavelmente…

LF | Acabei de ler o que vi escreveu que está lá no tablet. Aqui é o smartphone. Nossa fiquei muito feliz com teu comentário. Muito obrigada. Me sentia excluída por pensar assim…

JULHO 09

FM | Eu penso exatamente assim. Eu detesto a escola em que por muitos foi convertido o Surrealismo. Acho que gente como o Cesariny e Sergio Lima, dentre muitos outros, ferraram com o Surrealismo…

LF | Li teu editorial e me perguntei: aonde posso me colocar no surrealismo a não ser na escolha de ser surrealista! Embora tenha intimidade com as obras, pensamentos e poesias, colagens, desenhos e pinturas… história e até mesmo convivência com os surrealistas europeus e brasileiros, durante certo período, senti-me distanciada por muitos anos. Claudio Willer, principalmente, andou me procurando, incentivando e chamando para que eu me aproximasse… depois do período SL. Contudo, mergulhada no trabalho para sobreviver com minhas filhas, posterguei uma parte de mim. Porém, não mais entendia a vida sem ser surrealista. Eu era e fiquei sempre surrealista por opção intelectual. Por identificação moral e estética. Por decisão racional e irracional. Como se fora tatuada, marcada para sempre. Não consigo teorizar e citar razões e justificativas, ou mesmo pactuar com o sentido dado a certos movimentos em direção a tendências. Ou grupos… ou linhas de pensamentos dicotômicos. Ou radicalismos e fundamentalismos. O que me incomoda é que cada vez que alguém se diz surrealista ou opta por ser surrealista é intimidado a se justificar através de correntes, linhas de pensamento ou apropriações. Nada contra. Acho impressionante o conhecimento abarcado por anos de estudos. Pesquisas e convenções. Mas eu tenho uma fórmula própria muita parecida com uma frase dita por Breton: Trouver le lieu et la formule et se confondre avec. Ou um provérbio Zen, que me marcou a vida inteira, desde os 17 anos: O caminho da cobra é a serpente. Você já conhece meu poema, ritmo e respiração. A liberdade com que transito pelo canal direto com a psique, alguns desenhos entre o sonho, a imaginação e a liberdade de soltar as imagens que me apaixonam, sem ser apenar imagética… Talvez agora, só agora, possa começar a responder às perguntas que me fazes e me localizar perante referências fundamentais para mim: Fourier, Duchamp, Man Ray, Sergio Lima, Breton, você. Estive muito tempo adormecida. Cuidando do profano e pensando o meu sagrado. Colocar a máquina em marcha é um processo. Você sabe disso e respeita a velocidade de reaver. O teu editorial foi um start up para minha memória crítica.

FM | Acho que esta tua resposta é a peça de resistência que o tema tanto necessita. Brilhante. Porque não é de outro modo que me sinto surrealista e não é de outro modo que recuso em grande parte a gente que tão facilmente se declara surrealista. Houve uma época em que eu estava tão enojado de tudo isto que sempre que alguém me dizia surrealista eu rejeitava. Belíssima reflexão a tua. Nem necessita pergunta, a resposta já está dada. […] Eu agora vou encarar um frango, essa curiosa ave que não voa.

JULHO 10

FM | Eu estou definitivamente atravessando uma fase de transe, o que está de certa forma me preocupando, porque me esgota e ultimamente tem vindo com maior frequência. Hoje tive também a ideia de como montar o vídeo que levarei para a Costa Rica em outubro. Mas alguma hora eu terei que descansar… Teus poemas são belíssimos. Tenho que refazer a montagem final da capa do livro do Sergio Campos, pois a gráfica já me espera para imprimir tudo. Amanhã eu cuido de nós.

JULHO 11

FM | Leila, hoje o dia acordou com outra vazante, resolvi concluir o capítulo de meu transe, escrevi mais três poemas do que venho fazendo nos últimos dias. Agora estou exausto. Minhas desculpas. Eu não paro de parir.

LF | Já dei conta de mais outros poemas para te enviar. Também estou em transe. Há uma Leila fascinante da qual eu me havia esquecido. Não paro de achá-la.

JULHO 16

FM | Leila querida, hoje eu excepcionalmente tive que cuidar de minha neta, levá-la à natação e agora ao jazz, de modo que somente à noite poderei enviar o arquivo com os poemas. De todos modos, queria aqui comentar que gosto muito de todos eles, mas não me parece um conjunto coeso dentro do ambiente de nosso livro proscrito das taras. Poemas como "Soada a quatro mãos", "Imagens derretidas", "Ondinas", "Misteriosa e traviata", "Mentiras", "Acabo de acordar", "A língua imantada do amor", "Primeiro mestre – O mago", e "O desejo do cosmos", me parecem prontos, coesos e muito expressivos. Por outro lado, "AI5" é um poema que me parece inteiramente fora de nosso projeto. Gosto dele, porém o imagino como poema lido, ao modo daquele belo poema radiofônico do Artaud, "Para acabar com o julgamento de Deus". "Poema reza dos enamorados" e "A prisioneira e o prisioneiro", eu acho que são irregulares. Deste último desconfio que o título é que me parece frágil, o poema ganharia mais força se o título fosse simplesmente "Os prisioneiros". Ao todo, para o capítulo de nosso livro, devem ser 14 poemas. Eu gostaria de ler mais, de conhecer outros, a minha ideia é que façamos um livro muito forte, que ele todo seja uma intensa excelência. Mil beijos.

LF | Estava em dúvida quanto a esses que você mencionou. Nesse caso vou levar alguns poemas para São Sebastião e se estiverem dentro do que esperamos, os mandarei. Caso contrário, será um prazer criar novos. O que você acha… Assim está bem? Parto amanhã cedo. A linguagem imantada do amor é um título lindo. Obrigada! Transitarei por esse caminho. Você está em ótima companhia com tua netinha. Para as crianças esses momentos são inesquecíveis. Conforme eu crie novos poemas, vou postando.

FM | Desfruta bem dos dias com tua mãe, querida. Esqueci de mencionar ainda uma coisa: acho que deveria sair aquela "Ah!" final no poema "Soada a quatro mãos". Mas quando eu te enviar o arquivo com a minha revisão verás tudo. Eu também adorei o título que os deuses me deram para teu poema. Seguimos. Mais e melhores beijos. Agora vou à academia de dança com a Elise.

LF | Já tinha tirado a Ah! Na última versão que te mandei. Que bom que pensamos em uníssono!

JULHO 19

FM | Leila querida, tomei a liberdade de reduzir teus poemas a 10, dar um título geral para este capítulo e revisar a ortografia de todos eles. Este final de semana foi um grande baile de gestação, de modo que ampliei a minha parte para 20 poemas, o que significa dizer que precisaremos de 20 poemas teus. Desta forma, vamos reduzir para 10 as imagens que acompanharão cada capítulo, ou seja, 10 imagens tuas sobre meus poemas, 10 minhas sobre os teus. Hoje também comecei a fazer uns rascunhos de colagens, porque já captei o clima de teus poemas. Estou começando a ficar mais livre para pensar em nosso projeto.

LF | Hoje me veio uma imagem linda: as unhas das ondas tatuam minha pele em rendas para você rasgar… Elas invadem nossos corpos em algas e pressentimentos. Soltam suas velas pela costa da muralha. Ainda não comecei a desenhar… Espero que amanhã eu tenha um tempo solene para isso. Seriam desenhos a uma só cor ou podem ser fotos digitalizadas? Queria usar rendas… ou conchas ou pedras e areias (fotografias). Ainda não sei ao certo.

FM | Vou deixar para te enviar o arquivo completo, já do livro todo estruturado, quando me enviares os poemas. Quanto às imagens, querida, eu também estou pensando em algo que nunca fiz, uma mescla de objeto, colagem e fotografia. Hoje mesmo estive rabiscando janelas e cortinas. Também estou querendo estrear uns lápis que me presenteou o Valdir Rocha. Isto quer dizer que os teus desenhos podem ser em cores, assim como podem ser fotos etc. Desde já adoro a ideia de rendas, pedras, conchas, areias, tudo de ti pousará bem em meus poemas. Já temos a nossa afinação. Basta pensar no modo como me descreveste a imagem que veio à tua cabeça, que coisa mais linda. Beija tua mãe por mim. Cada vez estou mais feliz com este nosso encontro. Abre todas as portas e janelas para o transe. Nossa ausência é apenas uma das formas de nossa presença. Meus beijos são teus.

LF | Minha mãe também te manda beijos e se encanta com esta tablita, que quando era criança no interior era uma pequena lousa onde se escrevia com giz. Ela acha este meu smartphone "muito bonitinho". Ela foi professora de metade da cidade e, depois, bibliotecária. Esperta como ela só. Com artroses atrozes e fraquinha em seus 91 anos e meio. Bem, então são 11. Trouxe alguns poemas mais antigos para cá. Alguns bem coesos, como dizes… outros estão embrionários. Sintomas de poema, ainda. Insinuam-se do limbo em cores e sonhos. Pintam meus cabelos e excessos de vermelho e voltam por falta de atrevimento. Por enquanto é tempo. Grande beijo.

FM | Importante é que seja mantida essa relação direta com o tema central de nossa aventura. Por vezes gosto de voltar a mergulhar em poemas antigos, ver como eles resistem a novos transes. Não deixe de atiçar o auge de seus atrevimentos, querida. Verás pelos meus mais recentes o quanto eles reagiram bem às minhas provocações. Um beijo.

JULHO 20

FM | Hoje acordei com um séquito inteiro de demônios, fui à academia: pilates, esteira, bicicleta, voltei para começar a organizar minhas estantes e de repente, puff, me veio a sacrossanta epifania, o tipo de cenário que eu deveria fotografar para os teus poemas, fiz então 75 fotos que me servirão de base, e agora começo a trabalhar nelas… […] Testei fotografar com interferência de uma lupa, o resultado foi lindíssimo… Mas agora eu quero a tua opinião…

LF | O que mais me apaixona nessa foto é que a alcova me lembra o Étant donnée la lampe d' éclairage et un chutte d' eau do Duchamp… Que é minha obra predileta. Eu a vi através do buraco de uma fechadura! Amei o boudoir. Não sei se conseguirei criar imagens tão lindas quanto a tua. Minha mãe já está querendo saber o que é que estou fazendo…

FM | Fala pra ela que descolaste um amante virtual na terceira lua de Júpiter. Tens uma vantagem imensa em relação a mim, pois sabes desenhar… Eu jamais brechei Duchamp, morro de inveja de ti!

LF | O mais estranho de tudo isso é que ontem à noite eu estava justamente dentro da tua fotografia! Produzi várias fotos… Porém, hoje pela manhã apaguei-as. Primeiro vou descobrir como sobrepor fotos, depois dedico-me a criar imagens. Os desenhos pontilhados, como Pitonisa, levam séculos para fazer. Vou tentar ser mais lépida!

LF | Brechar significa ver através de uma brecha? Você deve conhecer esse Ètant donné dele… É um quarto que passou fazendo durante seus últimos 20 anos de vida. O original está nos Estados Unidos. Há uns dois anos ou mais houve uma retrospectiva dos trabalhos dele aqui em Sampa. La boîte en vallise, que vi na Galeria Schwartz, em Milão, estava aqui. Bem como esse quarto – ou alcova – criado por Duchamp e que só pode ser admirado através do buraco da fechadura. Lá, entre outras maravilhas, está um pergaminho moldado na coxa de Maria Martins – por quem foi apaixonado. É um torso nu lindíssimo! Essa obra abre todos os meus poros e por eles respiro os perfumes do amor entre Marcel e Maria. Tudo isto é definitivo e tão claro para mim.

FM | Sim, este é o amoroso significado de brechar. Eu jamais vi a obra do Duchamp ao vivo, posso espreitá-la apenas com o que li a respeito e com a minha imaginação. Tampouco vi a obra da Maria Martins, exceto através de fotografias. Continuei traçando alguns esboços para teus poemas, mas hoje estou mesmo cansado. Amanhã retomo. Vamos ver se o que estou planejando dará em bom resultado. Um beijo, querida.

LF | Um beijo para você! A imaginação é perfeita.

JULHO 21

LF | Bom dia! O vendaval chegou. Há folhas espalhadas por todo o jardim, e venta como se não houvera vento antes desta manhã. Leva para o mar todas as memórias da luxúria. E eu me abro para mais um dia, outro dia, novo dia. Para quem perdi meus dedos nesta noite. Acordei com estrelas e bambus. Odores sensuais cozeram meu corpo à cama e as lembranças de sedas, rendas, cadeiras tombadas e ilógicas derramaram um esquecimento lilás. Meu leque roxo se fechou de medo e o vento grita seu nome através do canal. Procuro a terceira lua de Júpiter em pleno dia e minhas virtudes já se confundem em confissões. Taras me perseguem por todos os lados e me viram do avesso enquanto rezo o café da manhã.

FM | Acordaste dentro de um poema. O vendaval é outro, e me sinto aí contigo.

LF | Décimo poema pronto! Grande beijo, hálito da manhã!

FM | Nossos beijos são uma tempestade! Poema que nasce pronto é uma dádiva. Quando se trabalha com colagem é comum recorrer a imagens alheias (Lautréamont autoriza). Comecei fazendo colagens assim, como (creio) todo mundo. Mas depois aprendi a trabalhar somente com as minhas imagens. Por isto tratei de comprar câmara fotográfica. A tua colagem é linda…

LF | Estou enviando algumas colagens que fiz para teus poemas. Saiba, porém, que não sou apenas delicadeza e filha de Maria. Sou bruxa, escandalosa, devassa e profana. Uma perdição.

FM | Eu quero o teu escândalo… Outra coisa: eu gosto de trabalhar com séries, mas não tens que me seguir nisto.

LF | Tentarei chegar à praia, que é na frente de casa. Mas minha mãe não pode andar e resisto a deixá-la sozinha. Mais tarde, quem sabe. Preciso de inspiração e cheiros de mulher.

FM | Dá uma caminhada, querida. O mínimo de roupa no corpo, sem nada apertando. Tua mãe ficará bem. Diz a ela que estou lhe guardando o espírito. Não há fragrância, aroma ou cheiro melhor no mundo do que o de uma mulher…

LF | Só o do homem…

FM | Ah ah ah, para ti.

LF | Na verdade os dois perfumes misturados criam uma essência rara. Amêndoas, cerejas, tâmaras, ostras e maresias… Salivas, suores e sementes. Que maravilha não sermos deuses abstratos e sim humanos decaídos.

FM | Raros homens sabem perceber essa mistura, sabes disto. Escuta, escrevi isto agora, queres me seguir? Eu sopraria em teu ouvido as vozes mais elétricas e um vento caprichoso que remodelasse o acaso. Um povoado inteiro de imagens deixadas para trás tu saberias recolher graças ao mapa dessas vozes.

LF | Essas fotos foram tiradas por Maureen Bisilliat – a da cobra coral é uma reprodução da pintura de Boticceli, a modelo desse pintor se chamava Simoneta Vespucci e era prima do Vespucci, que cá esteve. A Simonetta também foi a modelo para a Vênus. As outras foram feitas pela Lenita Peroy, quando fui modelo, aos 25 anos. Na foto da Maureen eu tinha acabado de ter Camila e Renata. Meus seios estavam cheios de leite e a coral entrou em equilíbrio térmico com o meu calor. Pense nessa moça quando lembrar-se de mim.

FM | Eu penso em ti hoje, exatamente agora.

LF | Que homem lindo, Flor!

FM | Hoje estamos aqui, e me sinto feliz com a tua presença. Acho que é a primeira vez que me chamas de Flor…

LF | Ainda bem… assim as taras ficam como devem ser… loucuras incontroláveis.

FM | Jamais abrirão sindicância para as nossas taras… Leila, acho que estás guardada em si por muito tempo. Não sei o que pensas de ti hoje. Eu me sinto feliz por haver aberto uma fresta. Posso te ver daqui, através das imagens, e de minha intuição, mas sei que um dia nos sentaremos a conversar e meu olhar buscará em tua expressão um jeito de preencher os vazios de minha percepção. Gosto muito de nosso encontro. Outro dia conversava com o Zuca Sardan sobre as máscaras dos brasileiros. São camadas e camadas e cada rosto não sabe mais a quem pertence.

JULHO 22

LF | Bom dia! Chove, garoa, venta, esfria. Revendo tuas colagens, fiquei fascinada pela dos pés. Na verdade, a do pé adiante e descalço sobre as conchas. Há um véu vindo de não sei aonde nublando a imagem esmaecida e pronta para caminhar. O sonho brinda a manhã e as lembranças permanecem. Outro dia pronto para acontecer entre o limite possível e o deslumbramento. O que será? Quem virá? Enquanto não vêm as respostas – e não virão – eu construo e dia sem arrimo, sem cal e sem saberes.

FM | EXTENSÕES DESCALÇAS / Há um véu vindo de não sei onde, nublando a imagem esmaecida e pronta para caminhar. O sonho brinda a manhã e as lembranças permanecem. Um outro dia pronto para acontecer entre o limite possível e o deslumbramento. O que será? Quem virá? Enquanto não vêm as respostas e não virão eu construo o dia sem arrimo, sem cal e sem saberes.

LF | Bem… outro poema: 11!

FM | O acaso esbanja carinho, e eu agradeço… A vida tem sido muito bonita comigo, Leila.

LF | Fico feliz!

FM | Lindíssimo poema, o teu, que me fez trocar os olhos, os meus. Diabos é que ando feito uma índia parideira, te leio e já me vem um tesão intenso de parir…

LF | Gostaria de parir junto contigo. A quatro mãos. Mamãe já percebeu a existência da memória em gigas e reclama dos tempos modernos. Agora temos visita e como uma senhora bem comportada, preciso fazer sala. A conversa é sobre padres, igreja, missa e a prefeitura que não poda as árvores. Agora reclamam dos portugueses que matavam índios. Amigo você nem imagina. Aqui tem um livro de humor negro pronto! É só digitar. Grande beijo!

FM | Pois eu levaria umas tantas histórias sobre prefeituras, podas de árvores e canibalismo, elas iriam dar gargalhadas ou então me expulsariam da sala.

LF | Nós, os vetustos, somos de outro planeta e fazemos mímicas para despistar… você vai chegar lá, meu grande amigo!

FM | Chegarei… sim, em outro planeta…

LF | Hoje fui à cata de conchas, algas, pedras, pedacinhos de vidro polidos. Espero que amanheça com sol. Assim posso fazer fotos ou desenhos na praia. Fico pensando… Até onde podemos ir com as Taras Proscritas. Chegaremos ao erótico? Ao provocador? Além do espaço conformado? Ao maravilhoso transgressor dos sentidos que nos ultrapassa, deixando um rastro inesquecível e indelével? Marcando a ferro em brasa nossas carnes e memórias? Até onde buscaremos as linhas do infinito? Que signo regerá nossas taras? Como libertar nossas almas de nossos corpos extenuados?

FM | Não creio haver limite nenhum. Os dois primeiros capítulos tomam o pulso do que nos propomos esteticamente cada um em separado. Esta pulsação será o referencial para quando formos para o terceiro capítulo, parindo a dois. Ali sim, podemos nos pautar pela ideia de deixar "um rastro inesquecível e indelével, marcando a ferro em brasa nossas carnes e memórias". Imagino o terceiro capítulo como a Grande Trepada que jamais deram dois poetas juntos.

LF | Concordo! Assim não deixaremos margens às dúvidas.

FM | Digamos que nos dois primeiros capítulos nós estamos nos conhecendo, estamos na paquera, primeiros instantes de um namoro…

LF | Sim. Tateando nas sombras.

FM | Inclusive tateando as sombras.

LF | Gosto dessa imagem: dedos com olhos ao invés de digitais. Tatear nas sombras era uma brincadeira erótica na antiga China. Um véu de senda entre os amantes que se tateavam delicadamente. Velados.

FM | Uma mão com olhos nos dedos, sim, uma delícia…

LF | Seda.

FM | O erro também é um acerto: um véu de senda, um véu de trilha. Há um jogo erótico de deixar o parceiro nu com os olhos vendados e flanar as mãos por todo seu corpo sem tocá-lo, flutuando, levitando, para que ele sinta apenas a eletricidade que emana dos dedos.

LF | Aposição de mãos. Deixar apenas a energia magnética tocar o corpo. É erótico e curativo! Sei como fazer, porque em meus doze anos de estudos místicos sempre o aplicava para cura.

FM | Sim, minha primeira experiência foi exatamente buscando energizar os chackras, porém a força erótica era tamanha que sempre avançávamos em busca de outras curas.

LF | Pois é! Você tinha parceria. Assim é chegar perto do estado divino.

JULHO 23

FM | Hoje acordei com aquela sensação de atraso, de que estou devendo algo ao mundo. Ainda nem abri a janela e lá fora está um sol de ensurdecer a alma…

LF | Troquemos de polos então. Dou-te esta manhã fria e molhada. Por uma réstia ensurdecedora de almas. Minha mãe geme de dores. E nada posso fazer, a não ser distraí-la vez ou outra. Ela fala sozinha e se esquece do que disse. Confunde o amanhã com o ontem. E eu me assusto com o futuro. Se não tivesse o dia de hoje… Vou colocá-la em meu cavalo branco. E galopar com ela pelas estradas. Talvez enganemos a dor. Grande beijo.

FM | OFERTÓRIO / Dou-te esta manhã fria e molhada, por uma réstia ensurdecedora de almas. Minha mãe geme de dores, e nada posso fazer, a não ser distraí-la em seu catre de persistentes eternidades. Ela fala sozinha e se esquece do que disse. Confunde o amanhã com o ontem. E eu ainda me assusto com o futuro. O dia de hoje é quase uma lágrima fugidia. Minha mãe soletra uma repetição de mil vidas. Vou colocá-la em meu cavalo branco, quem sabe a galope enganemos a dor.

LF | Ah! Floriano! Que lindo! Vou ler para ela, que sempre declamou poesias desde menina. Ainda sabe tantas de cor! Vamos alegrá-la. Que seu ego quase adormecido desperte, trazendo-lhe a paz dos encantados.

FM | Mais do que do poema em si, estou certo de que ela se encherá de felicidade com o fato de que o escreveste para ela.

LF | Acabei de ler nossa conversa e poemas para ela. Seu rosto iluminou-se de um sol ensurdecedor e sua alma curou as dores. Disse-me que já gosta de você e agradeceu pelo título que é belíssimo! Agradeceu a mensagem e te abençoa, querido amigo! Que momento mágico. A doação vale pela eternidade!

FM | Que mais posso dizer? As duas meninas conseguiram me deixar sem palavras.

LF | Não diga nada. O segredo do silêncio eleva-nos à música das esferas! Quando damos, nos entregamos.

FM | Está posta a mesa, pronto! Toquemos este adágio místico do silêncio. Hoje começo a ler um livro do Carlo Ginzburg sobre sabás, com o belo título de História noturna. Ontem recebi exemplar do volumoso Surrealismo, el oro del tiempo, do espanhol Pérez Corrales, amigo do Sergio Lima. O livro é expressivo, vistoso, porém repete aquela coisa clubista intragável do surrealismo, é um livro de amigos sobre amigos, e não um retrato fiel do surrealismo no tempo. Graças à sua amizade com o Sergio, limita a presença brasileira àqueles nomes que participam de um rol de amizade. Acho isto muito triste, mas já cansei de brigar com os outros. Não brigo mais. Prometi a mim mesmo. Acho que a última briga em que entrei foi um texto que escrevi sobre os equívocos do Augusto de Campos sobre um poeta surrealista romeno.

LF | Às vezes penso que Sergio sairá da história por tanto ter excluído as pessoas. Também abomino esse comportamento. Fui excluída da vida dele quando três trabalhos meus foram expostos no MASP e os dele não. Ele me disse: "Está acabado! Aguento tudo, mas isso não…" Creio que esse poeta surrealista romeno menciona um trecho de um poema que escrevi em 65. Cheguei a imprimi-lo. E não o encontro em meu caos particular. Você tem o nome dele? E não brigue mesmo. Não vale a pena. Ele, o Sergio, gosta de vendettas. Isso me assusta. Mas se ele não te considerar, é uma afronta. Se quiseres me responder, pode fazê-lo. Vou sair um pouco com a mamãe. Mais tarde retomamos esta conversa, que muito me interessa. Outra coisa: guarde nossa troca de correspondências. Tem muita história nelas.

FM | O poeta romeno é o Ghérasim Luca, um dos fundadores do grupo surrealista na Romênia. Olhe, o Sergio um dia se queixou a amigos comuns acerca de um ensaio meu em que eu apontava méritos e falhas do Surrealismo no Brasil. Nunca me disse nada, mas quando lhe enviei o documento de cessão de direitos de seus poemas que eu deveria publicar em uma volumosa antologia do surrealismo que preparei para a editora venezuelana Monte Ávila, ele então me escreveu dizendo que não me autorizava e que a partir dali eu estava proibido de mencionar seu nome (o que é uma ingenuidade, pois se trata de uma pessoa pública, além do que eu não questiono a pessoa e sim a obra). Raul Henao, colombiano, tomou as dores do Sergio e também não me autorizou. Ou seja, o volume com quase 500 páginas, uma bela e rara edição da poesia surrealista em todo o continente americano, saiu com a ausência de ambos.

LF | Eu sinto muito. De verdade!

FM | Eu também sinto, Leila. Se não fosse tão tonto, poderia ter buscado apoio para levantar uma fundação. Seu acervo é brilhante, e sua obra inédita é excelente. Sua falta de domínio da língua toca o irresponsável. Fiz correção ortográfica de dois de seus livros. Uma vez me enviou um pacote com poemas inéditos, de uma tristeza, pela falta de clareza e domínio de estilo… Ah Sabias que tens uma xará que é famosa atriz de filmes pornôs…?

LF | Não apenas uma. Mas várias. Sobre a proibição de mencionares o nome, é bem típico. Quando digo vendetta, significa isso mesmo. Eu sinto uma tristeza imensa quando sei que o pai de minhas filhas é capaz de concretizar atos que vão contra a verdade. Por mais insignificante que seja a verdade histórica. Na exposição de 1967, aqui em São Paulo, deu-se exatamente isso. Ou poda ou os artistas não quiseram endossar as posturas dele. É uma lástima!

FM | O Mario Cesariny, em Portugal, querida, foi o grande responsável pelos barbarismos ali acontecidos. Acerca do Sergio conversei com o André Coyné e Pierre Rivas – este aqui esteve a convite da Aliança Francesa. Todos vinham me perguntar, creio que de algum modo estranhando, porque já o conheciam e eu havia participado daquela segunda formação grupal do Surrealismo.

LF | Por conta da separação, fui perdendo o contato com todos. Mesmo porque Sergio sempre foi centralizador. Enquanto pude, continuei pela senda. Quando pude, em 1968, consegui condições para ir à França continuar meus estudos e, ao mesmo tempo, encontrar possibilidades de mudarmos para Paris. Já tinha emprego, conseguira uma creche para as meninas e procurava um trabalho para o Sergio. Contudo, aconteceu o Maio de 68 e tudo ficou em suspenso. Minha família interferiu e Sergio foi me buscar… Mas nem sei por que falo disso agora…

FM | Não tens que buscar uma razão para estarmos falando qualquer coisa, querida. Estamos nos abrindo, como dois bons amigos. Seguimos abrindo nosso coração, e sinceramente acho isto uma delícia. Outro dia me escreveu Cruzeiro Seixas dizendo que estava desaprendendo a falar, de tão isolado que se sente. É uma lástima. Acho que vou dar um pulo no apartamento de meu filho, estou com saudades da netinha.

LF | Vai sim, meu amigo! As crianças só trazem coisas boas e descobertas. Que delícia! Eu fico aqui amanhã e depois chega meu irmão. De lá eu dou uma passada na casa de minha irmã, em Taubaté, que é caminho para Sampa.

JULHO 25

LF | Floriano! Revendo as colagens que fizestes para os poemas me dei conta de como são encantadoras, delicadas e sensuais. Elas já têm o elemento água e os papiros. Papiros são os corpos e a água a fluidez das imagens. São lindas. Encantatórias. Cada uma conta uma história… sinto-me uma entidade das águas. Obrigada. Achei que você gostaria de ver estas fotos de aquário Talvez eu a use para ilustrar os teus poemas. Fiz várias outras de muitos e diferentes elementos.

FM | Eu achei as duas fotos lindíssimas, são enigmáticas, o cenário é fascinante. Já estou roendo as unhas para ver a série toda, pois tens uns olhos rapinantes, desses que sabem onde o ouro se esconde. Já lavei uma pilha de louça (esta quinzena é de férias da empregada), agora vou tomar um banho…

JULHO 27

LF | Bom dia! Ainda durmo. Estou na casa de minha irmã em Taubaté… sem fazer barulho. Aqui moram as netinhas dela, que estão de férias e acordam tarde. Meus passos são de lã.

FM | Lã nos pés… Nos falamos mais tarde, tenho uma manhã de rua, me banho e chispo…

LF | A foto digitalizada foi refeita em cima desta, que prefiro àquela. O que você acha? Esta é sobre conchas. Merece um corte. O que já fiz e está na Galeria da série de estudos que estou fazendo. Ainda não sei, porém, se estas serão as linhas que adotarei para teus poemas… Enquanto isso, balanço para lá e para cá numa rede boa que tem na varanda.

FM | Ah inveja dessa rede… Acabei de chupar uma tangerina geladinha e agora pouso por aqui… A foto das conchas não me diz nada. Trata-se apenas de um elemento à espera de uma ideia.

LF | Hoje tivemos mexilhões de almoço. Myrian, minha irmã, os prepara divinamente.

FM | Os mexilhões mexem comigo, eu quero, eu quero, eu sou o pássaro quero-quero. Ah senhora dona Leila, trate de ousar bastante com as minhas taras. A foto do deus das águas? Eu me divirto muito com essas fotos… A minha neta australiana, a pequena deusa Maya, adora fazer fotos minhas bem maluconas… Olhe, isto do novo e vital, Leila, será sempre uma questão de momento. O que se poderia chamar de fase para nós não passa de um instante. Eu estou bem comigo em muitos instantes. Mas há algo bem travesso em mim que ainda não consigo ajustar, um menino rebelde que eu tento acalmar…

LF | Também acredito nesse instante. Apenas um momento de dupla em criação. O que tem a mais é uma amizade grande que tenho por você. Um respeito imenso pelo poeta e pensador que és e um carinho pelo ser humano que você me mostra.

FM | Eu falei de instante por conta do que me dizes, da foto do Netuno, da chama de vitalidade na expressão do rosto. Eu também achei. E justo em uma semana bem complicada para mim, pois estou aqui com algumas pequenas dissipações de espírito.

LF | Quanto ao menino rebelde, não mude. Eu o adoro!

FM | O dilema do menino rebelde é que ele tem me levado a um estranho auge de hedonismo que começa a me preocupar. Tanto revelei e dei consistência à minha alma de uma crença no instante que deixei uma janela escancarada por onde se foi todo e qualquer propósito de vida. Sinto-me inteiramente preenchido pelo instante, porém sem nada mais de vulto para o momento seguinte. Nem sei se me explico. Acho que eu mesmo ainda não entendo o que se passa. Quanto à ousadia, na criação, ela pode ser através das fotos, desses ângulos mágicos de pequenas coisas, como o aquário, não era a temas ou técnicas que eu me referia, mas sim à intensidade de tratamento.

LF | Agora preciso de um tempo para reflexão. Essa é questão primordial para mim. Vou ter que buscar dentro de mim… num lugar profundo e que já acreditava perdido…

JULHO 29

FM | Oi querida. Boas vindas. Passei o dia todo na rua, ainda estou meio zonzo (risos). Beijos

LF | Pare o pêndulo! Reduza a velocidade ao passar por entre as nuvens. Acerte o ritmo dos ponteiros enquanto o tempo se demora no espaço da respiração. Cante em voz alta todos os sons entre o alfa e o ômega. Esqueça de ti por um segundo atemporal. Ponha seu olhar de penumbras e seus lábios no coração. Encontre uma sombra entre as luzes e passe para o outro lado da razão. Se for preciso liberte a gravidade do corpo e Entregue-se sem motivo algum. Seja apenas um som ecoando sem compasso pelas palmas de sua mão. Seja bem-vindo! Leila.

FM | Isto vale para uma vida inteira. Obrigado, querida. Hoje fiz uma sessão de eletro-acupuntura, e também aplicação de laser numa orelha. Na segunda terei a consulta com a minha psi. O almoço com o poeta que veio de Natal foi uma delícia. Ele tem uma paz interior fascinante. Eu perdi um pouco a minha. Ando disperso comigo mesmo. Preciso cuidar disto.

JULHO 30

LF | A aparição misteriosa desta deusa universal – Grande mãe terra – surge de relance insinuando os sortilégios e mistérios das profundezas que deverão se revelar. Algo mudou. Um estado de anima. A premonição de um tremor desconhecido, assustado. Uma pausa solene invade esta caverna de transparentes águas azuis… passos cautelosos sobre o que não pode ser controlado deixam suas pegadas porém evitam deixar vestígios. Pisam sem saber ao certo aonde querem chegar São a pausa solene para o descanso dos desejos Que se desconhecem das máscaras usadas em seus atos de loucura. Um arrepio delicado assopra cautelosas mensagens por enquanto inaudíveis. Os pares descansam de loucas tempestades. E tateiam murmúrios delicados porque o sono não deixará vestígios.

FM | ANTES QUE O SOL SE PONHA / A aparição misteriosa desta deusa universal – grande mãe terra – surge de relance insinuando sortilégios e mistérios das profundezas que deverão se revelar. Algo mudou. Um estado de ânimo. A premonição de um tremor desconhecido, assustado. Uma pausa solene invade esta caverna de transparentes águas azuis… Passos cautelosos, sobre o que não pode ser controlado, deixam suas pegadas repletas de silêncio. Pisam sem saber ao certo aonde querem chegar. São a pausa solene para o descanso dos desejos que se desconhecem das máscaras usadas em seus inumeráveis atos de loucura. Um arrepio delicado sopra um berrante de sigilosas mensagens, por enquanto inaudíveis. Os pares descansam de abruptas tempestades. E tateiam murmúrios delicados e inquietos, enquanto o sono se esvai sem deixar o menor vestígio.

LF | Nem sei o que dizer! Como pode? Um toque mágico e a magia se manifesta em toda sua raridade! Surpresa leio o poema como se meu não mais fosse e sim nosso ele se transformara…

FM | Acho que é um dom, mas é um duplo dom, e nosso, porque raramente um poeta gosta que outro interfira em sua criação. Eu sempre achei isto mais uma das famigeradas tolices do ego, claro. E adoro que desfrutes comigo esta magia de uma criação compartilhada. Agora, o poema é teu sim, inteiro teu, tem o teu cheiro impregnado em cada sílaba, em cada letra, em cada imagem.

FM | Tu me deixas feliz. É uma sensação raramente manifesta entre dois criadores. Dentro de teus poemas eu me sinto em casa.

LF | Alegria saber disso! Obrigada, mas fiquei assustada. Ainda falarei com o médico, na consulta. Vamos ver o tamanho da bronca. E a bem da verdade estou detestando ter que viver cheia de químicas estranhas como atorvastatinas e afins.

FM | Acabo de sair vitorioso de uma batalha infernal: uma pilha de louças sujas. Sinto-me como Flor, o conquistador de pias… Olha, há coisinhas naturais que podem ajudar, como sementes, além de pequenos cortes. Se tens ácido úrico, corta a tomate (mas como será possível viver sem tomate?!), se tens trigli (me recuso a dizer o resto) cortas açúcar, cafeína… Se é colesterol, te livra de umas gordurinhas deliciosas que pomos para dentro do organismo a todo instante…

LF | Um dia desses vou comprar máquina de lavar louças… Adorei o "conquistador de pias"…

FM | Eu já me habituei a viver sem algumas coisas que antes me parecia impossível. Eu sabia que ias gostar do conquistador de pias. Estamos na quinzena semestral de férias da empregada, é um horror, só vai rindo e ouvindo música…

LF | Sem tomates é impossível!

FM | Minha filha tem máquina de lavar louça, mas é uma droga, porque a gente tem que pre-limpar, o que significa meter metade do corpo na lama…

LF | Fiquei impressionada com tua entrevista. Você é muito importante para nossa cultura e me sinto muito privilegiada em ser tua amiga! Você disse algo que acontece comigo direto. A poesia e a vida caminham juntas. São tão naturais para mim, que não saberia viver ou escrever ou dar um depoimento que não fosse poético. Embora tenha me dedicado enormemente aos estudos, eles foram a base para a minha poética. Não tenho regras prontas… Creio que poderia teorizar. Mas esse tempo já passou. Afirmou-se no passado. Hoje, plenamente livre de autocobranças, sinto extrema felicidade em escrever poemas e se possível, comunicar-me assim sempre. É uma forma de ser feliz em mim mesma e dar essa felicidade a quem quiser ou precisar dela. É como alçar um voo! Nadar entre as estrelas, ter um orgasmo. Ou se encontrar em todas as manifestações do universo. Continuo, sim, a estudar os símbolos e seus significados. Amo as palavras. As ditas e as não ditas. Amo as palavras pensadas, imaginadas ou criadas, inventadas. As palavras são os meus olhos para a eternidade. Querido amigo, nem sabes o quanto és importante para esta poeta aqui. Você quis me ouvir. E eu adoro falar! Inclusive com imagens fotográficas, pinturas ou desenhos. Nós somos infinitos e perpétuos em nossas escolhas! Obrigada.

FM | Querida, o Brasil é um imenso problema, cada vez mais me dou conta disto, e um problema insolúvel. Exige demais de cada um de nós. Por vezes chega a afetar a minha saúde espiritual. Nos próximos meses eu vou ao Caribe e à América Central, farei duas conferências sobre Surrealismo na América, lançarei um livro e um vídeo etc. Como sempre, não haverá uma única nota na imprensa brasileira a este respeito. Adoro ouvir, tenho umas oiças afiadas, sempre me interessei mais por aprender do que por ensinar. E quero que não pares nunca de falar, além do que quero teus poemas, fotografias, pinturas, desenhos, tudo de ti…

LF | Você não deveria se abalar com esse problema aparentemente insolúvel. Aceitamos, isso sim, com extrema cara de pau as incorporações estrangeiras… Nos alijando de nossas raízes. Até parece que temos vergonha delas. Ás vezes eu me assusto com isso. Reflexo de um colonialismo mental subserviente. Não levamos a termo os movimentos que iniciamos. Não sabemos gritar e há quem não saiba ouvir. E são muitos! Estou indignada.

FM | Bem sei de tudo isto, querida. E sempre cuidei para que tais coisas não interferissem em minha vida. Porém há momentos em que nos debilitamos, ainda que por instantes. Nas últimas semanas eu andei baixando a guarda, mas sinto que já começo a me recuperar. A rigor, eu vivo muito solitário em Fracaleza Drinks. Também por isto o nosso diálogo é tão significativo para mim.

LF | Os latinos de língua espanhola são orgulhosos de suas raízes. Valorizam e são valorizados no exterior por essa luta cultural… Uma luta de unidade emocional. De respeito ao idioma. De certa arrogância necessária para a sobrevivência em grupos e movimentos. Mantidas as distâncias históricas, as Américas Latina e Central de língua espanhola projetam-se como uma raiz de pensamentos futuros… Você me entende ou estou sendo muito radical e intolerante com nossa intelectualidade?

FM | Não, estás tocando o problema em seu dilema maior. O Brasil sempre padeceu enorme dificuldade de se definir e criar um leque de princípios graças aos quais reger a sua existência. A nossa intelectualidade sempre foi amiudada, sempre pensou de modo mesquinho, em grande parte por jamais ter uma compreensão de mundo em sua totalidade.

LF | Verdade. Dificuldade de criar, reger e difundir…

FM | Dificuldade antes de tudo de compreender a si mesma e de defender-se dentro do que se é. Depois me vem o Mário de Andrade com aquela conversa para boi dormir do Macunaíma e agiganta um complexo de inferioridade que já era bastante expressivo em nossa história. E a presunção do Mário (nisto seguido por toda uma casta intelectual) de menosprezar a cultura hispano-americana foi um dos mais contundentes tiros no próprio pé…

LF | Acho que essa questão também pode ser olhada de um outro ângulo. A adoção, por uma preguiça demonstrada em Macunaíma, por Mario de Andrade, em pensar com os elementos culturais que conquistamos e possuímos… Por que estaríamos condenados a ser exóticos para sempre? Engraçado! Pensamos, nós dois e ao mesmo tempo, na mesma obra e no mesmo autor. Será que mesmo com suas estranhezas ele é a única referência válida que temos pra valer?

FM | Seu livro jamais foi visto por este ângulo e nem creio que o próprio autor, considerando a sua defesa de um país alheio a seu entorno mais direto – um país cercado por 19 outros que falam um mesmo e distinto idioma -, posto que o próprio Modernismo se baseia nessa alienação, uma alienação que diz respeito inclusive ao nosso passado. Não se funda uma cultura por decreto ou fechando os olhos para o passado. O Concretismo repete o mesmo equívoco, a mesma presunção. Não, as nossas referências são outras, elas se encontram, infelizmente, em autores que jamais foram tão cultuados quanto o Mário. Eu me refiro, ainda na mesma época, a nomes como Manuel Bandeira, Raúl Bopp, Augusto Meyer e Sergio Buarque de Holanda, por exemplo.

LF | Muitos dos nossos artistas plásticos recentes e atuais têm esse mesmo ranço referenciado em outras culturas. Somos órfãos por opção e comodismo.

FM | Por falta de opção, ou seja, por ignorância, por presunção, petulância e, claro, por imenso comodismo.

LF | Sim. Agora você tocou numa esperança de sobrevivência intelectual autenticamente brasileira. Geograficamente localizada até…

FM | Sim, há grandeza natural, a expressão de nossa cultura, porém posta em diálogo permanente com a cultura do continente como um todo.

LF | Sim. Você acredita que seja por causa de falarmos idiomas semelhantes, porém de raízes emocionais diferentes?

FM | Não, não tem nada que ver com o idioma. Fosse assim e teríamos os mais fortes laços culturais com Portugal, o que não temos. É curioso observar o paralelismo em relação a Brasil e Portugal em termos disto que chamo de complexo de inferioridade. Portugal em relação à Europa, mais precisamente em relação a seus vizinhos imediatos: Espanha, França e Inglaterra. E o Brasil em relação à América Hispânica. Não nos esqueçamos que a insípida coroa portuguesa tinha por paradigma a coroa inglesa, o que já explica metade do percurso.

JULHO 31

FM | Receito a velha e tradicional ciência da pá, a paciência… Quando estiveres em casa, mala desfeita, pés para cima, então converso contigo sobre meus/nossos planos. Agora vou arrumar uma comidinha para a Socorro, que acaba de chegar da aula de tango…

LF | Sim mesmo porque hoje quando sobrou tempo tentei reunir todos os poemas, textos e umas poucas das nossas conversas… Onde há belos momentos poéticos por nós produzidos e algumas declarações minhas e tuas sobre surrealismo. Mas você deve ter tudo mais organizado, certo? Aula de tango? Qué mujer tienes! Beleza!

FM | Eu tenho tudo aqui, é claro, porém não tratei de organizar estas nossas conversas pela Net. Talvez possa valer uma parte da entrevista. Amanhã verei isto. Socorro dança, nada, pinta, faz academia (pilates, esteira), tem uma bicicleta, é uma danada. Eu não posso com sua vitalidade…

LF | Que homem de sorte você é! E que mulher de sorte ela é! Na verdade, vocês formam um casal lindo! Foram capazes de atravessar a maior parte da vida, temperados pelo amor!

FM | Por inúmeras vezes eu atrapalhei este percurso, querida, de tal modo que cabe à Socorro a maior fatia de responsabilidade por esses 38 anos de vida de nossa relação.

LF | Que homem feliz é você! Quisera eu ter conseguido manter pelo menos um dos meus três casamentos! Tua mulher deve ter muita fibra e te amar muito. Vocês têm uma família linda! Fico feliz por você… Assim pode ser quem é. Ela deve te dar espaço e tempo que você precisa para ser quem é. Num certo sentido, fiz o mesmo com o Boi. Mas essa é uma outra história que fica para outra vez.

FM | Eu quero um dia falar de tudo isto (coisas minhas, coisas tuas), porém ao vivo, porque gosto de falar olhando a pessoa. Não sabes o quanto me inquieta falar ao telefone! Me dá uma aflição por não poder ver a pessoa com quem estou falando…

LF | Sinto o mesmo. Talvez você seja a única pessoa com quem consegui me expor de forma tão honesta e sensível. Talvez porque eu tenha envelhecido, certo é porque você me conhece de um jeito que nunca mostrei a ninguém e sem qualquer cobrança. Por pura amizade e carinho. Cumplicidade e um desejo imenso de criarmos juntos. Pode ser. Você consegue fazer comigo o que um poema ou minha busca incansável pela beleza da imagem faz. Isso me dá um grande prazer!

FM | Estou tentando fotografar a lua azul, mas o céu está bem nublado, cai uma chuvinha que me atrapalha a lente… Que bonito tudo isto que me dizes, Leila. Eu sinto o mesmo, um diapasão mágico que nos faz tocar tão afinadinhos. Uma grande fortuna, a nossa!

LF | Estou procurando a lua por aqui para fotografá-la e mandar-te a foto. Vou tentar… Sem cair da janela, claro.

FM | Mas sem cair da janela não tem graça… (risos)

AGOSTO 01

LF | Floriano querido: não me acho capaz de responder às perguntas com o brilhantismo que vejo outros entrevistados o fazerem. Tenho alguns esquecimentos por ter ficado muito tempo sem esgrimir e num diálogo interno ecoando insensato.

FM | Queres deixar para lá a ideia de uma entrevista?

LF | Sei que são memórias afetivas! Mas quando leio as entrevistas que você faz, cada entrevistado tem um arsenal de referências. Eu não tive muito tempo, nos últimos anos, para me atualizar. Não sei se quero deixar para lá a ideia de entrevista. O que você perguntaria?

FM | Desde o princípio a minha ideia era clarear aquele cenário nebuloso em torno do primeiro grupo, da revista, da exposição, e seus desdobramentos, porque a única versão existente é a do próprio Sergio, que inclusive é bem nebulosa. E também conversaríamos sobre a tua obra em si, tua ausência de cena não torna inexistente os bastidores, é certo. Imagino, na sequência do que já escreveste, uma série de perguntas bem pontuais…

LF | Sergio não criou um movimento orquestrado. Tinha relacionamento e o manteve até certo ponto, com Willer, Piva, Bicelli, Paranaguá. Com Wesley também. Contudo, por um período relativamente extenso, trabalhou para ganhar dinheiro e sustentar uma família de mulher e duas filhas. Pouco tempo, ê verdade, porque logo arregacei as mangas e me meti de cabeça no quotidiano do princípio da realidade. Ele mesmo não queria uma família e suas consequências. Queria uma mulher bela, talentosa, sensual e inteligente – o que eu era. Fraldas, mamadeiras e banhos… nem pensar. Nesse período não houve um movimento surrealista. Ele produzia muito e passou a não mais partilhar suas atividades. Foi publicitário na área do cinema e TV e manteve suas atividades surrealistas solitárias. Talvez se correspondesse com alguns surrealistas do grupo francês… Mas, embora sua esposa, tinha ficado bem claro que eu teria que trabalhar para me sustentar e às meninas. Foi o que aconteceu. E mais… Logo eu fui para a Escola Brasil – um movimento que teve origem a partir da união de quatro ex-alunos de Wesley Duke Lee e que adquiriu corpo e força, formando a próxima geração de artistas plásticos da década de 70 em diante. Que eu saiba, não havia nessa época um movimento surrealista por aqui.

FM | Estas três atividades – a formação do grupo, a exposição, a edição da revista –, como tudo isto se deu em face dessa ausência do que chamas de "um movimento orquestrado"? Eu não me refiro à Escola Brasil. Dela eu gostaria que me falasses um pouco mais, porque aí já entra a tua experiência criativa. Para mim, estes são os três pontos básicos que eu mais gostaria de esclarecer. O Willer me diz que praticamente não houve um grupo, que eles se encontravam para conversar, mas que não havia a formalização de um grupo.

LF | Willer está absolutamente certo!

FM | Pois é, eu já havia intuído isto, pelo próprio tempo que passei com o Sergio. Mas peço que comentes tudo isto, de forma clara, sem ressentimentos, apenas para pontuar este momento da história.

LF | As críticas da época foram bastante negativas. Eu gostaria, se ainda for possível, resgatá-las nos dados dos jornais de época. O jornal O Estado de S. Paulo, principalmente. Geraldo Galvão Ferraz foi muito contundente e chegou a dizer que Sergio fez aquela exposição para sua mulher, que era eu… Por conta da peça e trabalhos que apresentei. Praticamente não houve outros brasileiros participando. Sergio acabou pressionado pelo curto espaço de tempo que tínhamos e pela não adesão dos então surrealistas da época – os que ele considerava surrealistas. Foram incluídos trabalhos de internos do Instituto Franco da Rocha. Creio que para justificar a manifestação do inconsciente, liberando-se livremente, um artista primitivo: Cássio M'Boi Mirim. Que me lembro neste instante. Posso verificar com mais calma e te passar os dados. As críticas não foram boas porque os artistas que eram tradicionalmente surrealistas naquela época e antes dela, como Walter Levy, Maninha, Gregório Gruber, o próprio Wesley não aderiram porque não queriam ser engajados em um movimento tão ortodoxo, como foi apresentado. Do Brasil, participou também o Raul Fiker… de momento não me lembro de outros.

NOVEMBRO 25

FM | Antes do acidente do tornozelo eu andava meio sem gosto, Leila. O acidente me ajudou também na concentração! Fiz uma boa faxina espiritual! Nossas conversas têm sido um ninho de pérolas para mim!

NOVEMBRO 26

LF | Querido amigo, você está a todo vapor. Parece que aquela fase na qual você se sentia estranho, passou! Fico bem feliz em ver- te bem e guerreiro como sempre! E isso sem o micro! Imagine quando ele chegar amanhã!

FM | Sim, retomei meu velho ritmo insano de trabalho! A falta de micro foi fundamental!

LF | Um ritmo que te faz bem! Vibrante e alegre!

FM | Sim, eu sou um doido em estado natural!

LF | Assim o I Ching define o Criativo!

FM | Eu sei. E isto me define muito bem. Quando estou assim todas as coisas se põem de pé! Há um belo verso do peruano Javier Sologuren que me cai muito bem: vibro de mim mesmo. […] Precisamos voltar a parir juntos para completar o terceiro capítulo. Podem ser 12 poemas. Desta forma cada um de nós mandaria seis fotos para o outro intervir. Acho que esta é a estrutura do livro, quatro capítulos, o que achas? Pode haver um quinto capítulo em que cada um de nós escreve algo sobre o outro!

LF | Certo. Contudo, ando meio rigorosa comigo mesma. Quero que sejam perfeitas. E risco e rabisco cada uma delas com cuidado.

FM | Este rigor é essencial, exceto quando se torna uma trava.

FM | A lágrima adormecida após haver aprendido A distinguir os vultos se arrastando dentro da máscara. O mito exposto à própria fagulha. Ácido queimando as tuas visões. Um flerte desprendido do truque de tantas preces. Deita-me à sombra de teu pecado. Mora em mim, ao menos até que a lágrima desperte.

LF | No altar de um ritual de iniciação. Onde me apresento e atravesso umbral a umbral até a câmara sagrada. A cada passo solenemente um grau é alcançado. Secreta é a voz dos sacrifícios Pois nela pernoitam as revelações e as divindades. A cada fechadura uma chave é dada E assim se temperam os corpos em prata, ouro e diamante. O sagrado ato se consome à luz de velas E os astros cumprem suas progressões no bojo de um útero pleno de mistérios.

FM | Um pequeno sol aturdido no casulo da lágrima, Devota suas noites a transbordar as imagens de tantas salas que reproduzem os pigmentos de tua solidão. Ergo os tapetes de tua pele e rogo para que não me esqueças. Encontro a tua natureza volátil brincando comigo entre um jardim e outro, antes mesmo que as noites atendam ao nosso chamado.

NOVEMBRO 27

LF | Floriano, bom dia! Esta gravura é de 1967/68. Ponta seca. Gosto muito dela e acho que poderia ser uma da série. Trabalhei digitalmente sobre ela, aplicando alguns efeitos. O que você acha? O nome desta é Aurélia – uma suíte que fiz baseada nos poemas de Kleist. Diga-me o que achas. Há outros tratamentos…
FM | Acho linda e melhor a versão tratada, esta segunda. Tenho que fazer as correções no arquivo e ver como resolvo o prólogo! Amanhã eu remonto o poema que escrevemos ontem e te mando.

NOVEMBRO 28

FM | Recebi todo o material e para a mostra da Costa Rica as mais antigas serão um primor. Deixa o tarot para nosso livro. Eles ficarão encantados com as fotos da roupagem. […] Acho que está na hora de fazer uma revista contigo, nós poderíamos fazer uma entrevista automática, aqui no chat, conversando exclusivamente sobre criação, o que achas? […] La melodía de la muerte nos convierte en estatuas que salen a bailar por los milagros calcinados, como solemnes prodigios de la libertad. ¿Qué tiempo necesita el hombre para invadirse por completo? El límite de las cosas es una fábula que atiende a las satisfacciones personales. No hay como restituir memoria a la imaginación, no importa a cuantas máscaras nos encontremos condenados. Un libro se escribe dentro de otro hasta el infinito y no hay inquisición suficiente para cerrar las puertas a la lectura de lo esencial.

LF | Que maravilha Flor! É de uma profundidade sagrada e de uma sensibilidade emocionante! E nos fala das peles da alma! Lindo!

FM | E aqui um pouco mais: Ahora hay que preparar la materia para aceptar sus limitaciones. El empleo de la imaginación puede cegar los espejos de la dominación. No me leas hasta que descubras el sentido de tu biblioteca de infortunios. El alfabeto cautivo acumula sus líneas de cansancio, la descreencia en un buen lector que llegue para recortar las escrituras y transfigurarlas. Allí estamos, múltiples como la disciplina del abismo, rellenos de movimiento como la pátina fantástica de los ríos, fértiles como la invisibilidad de lo que se mueve en nuestro íntimo. Para que el mundo vuelva a ser imprevisto hay que creer en las profecías de lo inconciliable.

LF | Nos elevamos aos altiplanos. Já não somos mais desta esfera. Alçamos voos rumo aos olhares perdidos nos limites do infinito. Somos frágeis chamas hipnóticas. Ainda não me temperei o suficiente para os imprevistos entre as profecias do inconciliável. E o encontro com o que suavisa o coração. Mãos que perdoam suas palmas se elevam e são eternas em seus gestos de perdão E invisíveis Mergulhadas na imaginação. […] Tenho minhas dúvidas com rimas… Enfim, saiu assim.

FM | O dilema real da rima é o de qualquer outra pedra de efeito, ou seja, quando nos tornamos reféns dela. Não há problema com a rima, como um recurso de dinâmica ou acento de um verso.
Não te esqueças nunca que Robert Desnos foi um poeta surrealista que prezou pela métrica e a rima.

NOVEMBRO 29

LF | As imagens lindas que estou criando são para nosso livro. Não te contei ainda, mas Robert Benayoun me influenciou sobremaneira. Fascinou-me! Não sei se era porque eu já estava grávida e no fundo intuía que teria gêmeas. Por isso os espelhos tanto me atraem. Ganhei um lindo trabalho de Robert Benayoun – que está aqui comigo. Há essa duplicidade formando a una e indivisível imagem. É a conjunção carnal formando um único corpo ligado pelos sexos e lugares de prazer. Mesmo em fase posterior ao meu engajamento total com o surrealismo, quando comecei a pintar e desenhar o canibalismo dos vegetais, dividia a tela em duas: chamando-as de esquerdo e direito. Em meus sonhos, essa situação se evidencia sobremaneira. Diferencio o que acontece do lado esquerdo do que acontece do lado direito. Ao narrá-lo, gesticulo, apontando com o braço correspondente a que lado estou me referindo. Às vezes me assusto e acredito sofrer de alguma patologia… que pouca importância teria em minha idade atual. Estou falando do meu trabalho. Dando um depoimento espelhado de minha obra e concepção de arte. Busco um equilíbrio óbvio.

FM | Me delicio com este teu relato de uma dualidade. Somos de algum modo patologicamente incuráveis, e este é nosso maior trunfo! Desde a morte de minha mãe que eu passei a sonhar em um cenário que mesclava as três casas onde vivi até a adolescência. Não importa que houvesse uma cena no mar ou na selva, selva e mar estavam dentro das três casas, que eram indivisíveis. Continuei sonhando assim, meu pai morreu e posteriormente a minha avó materna. Com a morte dela meus sonhos perderam essa marca, como se houvessem encerrado um ciclo.

LF | Na poesia, corro solta. Não há linhas de separação. Nem maniqueísmos. É curioso, há anos não refletia sobre meu trabalho. Mudei. Os tempos mudaram. Os trabalhos voltaram às suas origens. Esse processo pode levar uma vida inteira. E não tem fim!

FM | Tudo isto que estamos falando aqui é o que eu pretendo registrar como nosso diálogo automático, que pode ser o capítulo final de nosso livro, uma conversa nossa sobre o processo genético do que somos e do que criamos. Podemos falar de infância, sonhos, frustrações, amores, filhos, criação, influências, linguagem etc.

LF | Verá que houve um crescimento fantástico do meu acordar e percepção, de mim, de você e da minha posição dentro do surrealismo. Quero tanto te contar o sonho que tive com Breton. No exato momento de sua morte. E o que ele me disse e mostrou… Preciso fazer isso logo. Quero que você registre e divulgue esse momento mágico!

NOVEMBRO 30

LF | Estou envenenada. Já cega. Imóvel. Um frisson atemorizado percorre meu corpo em êxtase. Fui picada pelo veneno fatal. Já não estou aqui. Transpareci-me travestida em areia. Dissipo-me lentamente seduzida e entregue. Adeus, densa noite de estrelas cadentes. Uivo de prazer. E o vento leva meu prazer. Leva meu prazer. Leva meu prazer.

● DEZEMBRO 07

FM | Finalmente vim ligar o micro, mas o dia foi mesmo dedicado a nada fazer.

LF | Que bom que você deu um tempo para si mesmo e não fazer nada. A mente deve relaxar também! Hoje estou melhor! Espero que a chuva passe para ir à gráfica buscar um impresso de foto. Buscar meus óculos novos e seguir a vida. Passei praticamente dois dias sem comer e estou fraquinha. Também me recupero. Também senti tua falta. Aos poucos a gente acorda.

● DEZEMBRO 11

LF | O que o Cruzeiro achou do título Confissões de um espelho?

FM | Ele gostou muito. Inicialmente chegou a sugerir cinco outras opções, mas nenhuma me pareceu adequada para título de livro. Então sugeri usar algumas frases de seus poemas como título dos capítulos. Hoje ele rejeitou a minha ideia de incluir um ensaio fotográfico dele como modelo no capítulo final, dos depoimentos e entrevistas, pois prefere que o protagonista siga sendo a obra e não o artista.

LF | Ele conseguiu – e você também – conceber que não apenas somos tipificados dentro de um movimento da arte. Mas é preciso abraçar o surrealismo como parte de nossa vida. Posso dizer que vivo surrealistamente desde jovem. Eu escolhi essa forma de viver. Expressando-me em tudo o que fizer. Como Dalí, eu sou o surrealismo.

FM | Sim, tens razão, e não há outra forma de sê-lo, ou melhor, não há outra forma de alguém ser essencialmente íntegro.

LF | Desde o momento em que se pise dans ce terrain vague é impossível voltar. Podemos nos enganar. Contudo, será apenas um engano. O que mais gostei no que tu narras é sobre o desenho ou a plástica, como dizes, ser um poema e vice versa. Por isso tenho tanta dificuldade em teorizar.

FM | Eis uma coisa curiosa. Não acho que um detalhe esteja ligado ao outro. Veja bem: ele também tem lá suas dificuldades em teorizar, aparentemente. O mesmo poderíamos dizer de Ludwig Zeller ou Hans Arp. Porém o que observo é que todos eles (e creio que o mesmo se passa contigo) têm uma forma muito singular de teorizar.

LF | É isso. Não consigo disciplinar, conceitualizar, citar etc. O que sei fazer é que começo a manifestar um pensamento e embasá-lo teoricamente. E na sequência, o pensamento se transforma em poética e assim se mantém. Vi o mesmo em Cruzeiro. Fiquei encantada em pensar que não sou a única que permite ao poema tomar conta do destino da ideia. Muitas vezes o mesmo acontece com a plástica. E sempre com a fotografia. Veja a releitura que fiz da minha antecintura. Ela saiu do seu caixão… Tomou forma sensível e se transformou em seu propósito primevo. Erótico.

● DEZEMBRO 14

LF | Querido Floriano! Às vezes a memória se torna distante. No caso de Vincent Bounoure, ele foi um grande estudioso e surrealista engajado. Antropólogo dedicado a estudos sobre a Polinésia. Creio que as máscaras que vi em seu apto, há 50 anos, eram máscaras usadas pelo povo da Polinésia. Breton também tinha muitas máscaras em seu apto, com Elise. Talvez ambos tivessem máscaras africanas. Com certeza também tinham. Em 1966 ganhei de Vincent Bounoure um exemplar de brinco celta utilizado pelos pastores para lhes aguçar a visão. Apenas uma argola em forma de oroborus. O ritual consistia em furar o lóbulo da orelha em um ponto determinado e relativo ao olho. Usei o brinco na orelha esquerda por anos. Apenas uma pequenina argola. O que era inquietante para a maioria dos brasileiros. Um só brinco em um só lóbulo da orelha. Mas houve um ritual. Uma iniciação. Micheline Bounoure deu um pequeno pique com uma agulha. Um ponto de beleza tatuado em meu pulso esquerdo. Às vezes ponho-me a pensar que carisma eu tinha para ser tão carinhosamente tratada pelos amigos surrealistas de Paris. Talvez a extrema juventude e uma inocência quase fatal nas transgressões do erotismo e nas propostas sérias e politicamente engajadas. Há muito tempo não chegavam jovens revolucionários, como eu e Paulo Paranaguá, por exemplo. Éramos muito, muito jovens, surgidos de um país que apenas Benjamin Péret conhecera. Fomos uma surpresa. Um hálito jovem e suficientemente forte dentro de um movimento maduro e muitas vezes crítico por demais. O espaço aberto pour la jeunesse foi encantatório para nossos velhos amigos surrealistas.

● DEZEMBRO 16

LF | Minhas primeiras lembranças dos surrealistas europeus vêm de 1965. Nessa época eu era casada com um surrealista brasileiro que convivera, anos antes, com o Grupo Surrealista de Paris. Surgiu-nos o desejo de realizar uma Exposição Surrealista em São Paulo. Devido aos laços estreitos entre Sergio Lima e o grupo francês, pareceu-nos viável realizar tal Evento. E assim começamos a planejar uma Exposição Internacional que congregasse surrealistas brasileiros, europeus e latino-americanos. Até aquela data, talvez um ano antes, quando trabalhava na Cinemateca Brasileira, minha proximidade com o surrealismo se deu através de Festivais de Cinema com temas ligados aos princípios surrealistas. […] Floresta recurvada e exposta aos teus olhares Que devoram as pétalas de todas as pétalas Em um ritual de sacrilégios.

FM | Árvores elétricas antevendo o dilúvio. Cartas espalhadas pelo dorso da floresta recurvada e exposta aos teus olhares que devoram as pétalas de todas as pétalas, em um ritual de sacrilégios. Atalhos sangrados como último recurso até o beiral de teu perfil, onde me aguardas com uma chávena de chá. Vem para dentro do amanhecer. Vem descansar o olhar no balanço barroco dessa insólita despedida. Antes que o tempo deixe de ser um hábil refúgio.

LF | Os pecados lambidos pelo desejo afloram em suores calcinados. Um jorro sem fim até que peças para desfalecer ou morrer nos braços de teus próprios olhares. Dois incandescentes pergaminhos quase arruinados se consomem em fogo sobre a água. E assim o homem superior não erra.

FM | Mais um desenlace do céu com a terra. Talvez uma memória contaminada ou uma elipse inquieta. Quem as minhas trevas navega me renasce.

LF | Devo receber neste meu corpo um espírito xamânico ou um índio cego. Talvez uma náiade perdida e prostituída. Que vórtice louco me arrebata e de mim se apossa sem mais pudores! Já não sou eu quem aqui demora, porém um fio da meada de um carretel de memórias. Já não consigo conjugar verso a verso. Meti-me sonâmbula em solilóquios e vou-me embora antes que o sono atravesse minha razão.

FM | Tudo volta a caminhar ao revés. Como uma catapulta engolindo pedras. Como um sigilo decorando as letras de seu silêncio impossível. Como um lagarto regurgitando a evolução da espécie.

● DEZEMBRO 26

FM | Vamos lá. Esta foto de base é uma rara foto das ruínas do teatro do Cassino da Urca. Ali planejamos a estreia do Circo Cyclame. O livro traz ao final uma entrevista com os dois tramaturgos, sobre o sucesso de público e fracasso de crítica da estreia. O cenário do circo é uma sobreposição sobre o cenário da peça. Assim como no roteiro a realidade se sobrepõe a si mesma mostrando o quanto ela é falsa.

LF | Nossa, agora enxerguei! Parecem as catacumbas de um coliseu romano. Impressionante. Palco de paixões!

FM | O roteiro satírico da peça-circo dá sinal da existência de um conflito em estágio final entre a realidade e seu espectro.

LF | A colagem é tridimensional? Tem perspectiva. Ê bastante interessante e impressionante!

FM | Sim, tenho procurado um efeito tridimensional nas colagens. Isto porque ela são sobrepostas a cenários montados aqui em miniatura. Dá um bom efeito e agora eu vou lidar mais com ele.

LF | Ah! Sim. Como nos balés ou peças de teatro. No filme O fantasma da Ópera, creio, há uns efeitos assim, mas menos impressionantes e decisivos. Os dois são belos!

FM | Há coisas em montagens hollywoodianas (O fantasma de Ópera é uma delas) que são atrativas, porém se perdem pelo excesso, são uma overdose de paetês.

LF | Sim. Esse foi o problema. Too fashion! Você é um grande coreógrafo! Coreógrafo da alma! A alma sutil e a alma libertária. Que mundo é esse em que habitas? E por onde transita tocando cada segundo com a ponta dos dedos mágicos? A imaginação manifesta em verdades fluídicas e por vezes imensamente concretas? Como não te perdes entre tantas palavras, signos, ecos de signâncias e vozes viventes em caracóis auditivos! Sim. Quem és que vai e volta com as mãos cheias de belezas? Construtor de enigmas. Assim é você que se mostra e se esconde tão depressa que não consigo acompanhá-lo. Posso esperá-lo em um ponto de fuga do universo, que em segundos você atravessa seus horizontes ilimitados e se materializa como um planeta novo e surpreendente.

FM | Que beleza tudo o que dizes, querida. Como me identificas a inquietude perene! Como reconheces meus abismos!

LF | Sobre os cenários, fiquei tão impressionada que vez ou outra, entre um cochilo e um susto, vi-me na Arena do teu circo, às vezes como protagonista, outras como invisível expectadora. Virei uma mínima pessoa, para passar desapercebida. A sensação foi tão forte, que entrei nas imagens e me misturei a elas.

FM | Que bonito o que me falas sobre o cenário, pois é sinal de sua funcionalidade. Eu ainda quero fazer mais algumas, porque depois selecionaremos apenas 12. Também pensarei em uma capa onde eu possa inserir em meio às colagens os desenhos do Zuca. Ele fez uma galeria de retratos, desenhos de 12 personagens, uma beleza.

LF | O trabalho é intenso e sério. Um contraponto com o humor dos diálogos. Vocês estão mergulhados nele, no trabalho. Como expectadora eu permeio entre imagens e textos com a liberdade que vocês proporcionam.

FM | Desde o princípio consideramos de forma bem natural esse contraponto entre nós. Vimos de escolas diferentes, além da imensa diferença de idade. Zuca Sardan é mais satírico do que eu, que sou mais trágico.

LF | Sim, porém o texto é atemporal. Não revela idades. Isso fica mais presente quando acompanhado das imagens.

FM | A certa altura, quando criamos os dois personagens NARRADOR UM e NARRADOR DOIS, maneira que encontramos de nos inserirmos na peça, ele me disse que eu havia trocado as falas, que eu era o Um e ele o Dois. Então eu lhe disse que havia misturado as nossas falas para não criar aquele tipo de expectativa de certo leitor de querer nos identificar.

LF | Vocês chegaram ao uníssono.

FM | Há inclusive casos em que a fala de um mesmo personagem foi escrita por nós dois, intercalando frases.

FM | Há uma trama, a existência de um pequeno circo de interior que visita uma cidade, já em estado final de equipamento, todo avariado, ele chega ao ponto de desabar, de modo que por ali fica, até que as autoridades tratam de buscar patrocínio para ajudar o circo a se recompor. […] A reestreia do circo se dá na forma de uma grande missa campal, com representante do Vaticano, que é um dos patrocinadores… Então o circo se torna uma carroça que adentra um labirinto e suas cenas começam a ser projeções que vêm e vão nas paredes vivas do labirinto. Há uma interação com a cidade, através de uma rádio, do prefeito, do padre, do delegado. E depois tudo se torna pura magia. Ao final se sentam os dois narradores para conversar, um diálogo intrigante, onde se misturam realidade e ficção.

● DEZEMBRO 28

LF | É surpreendente e fascinante! Consigo enxergar o que leio e além. Ver você e Zuca contracenando à distância e tão próximos como ao teclado de um piano. Gostei imenso da figura alquímica. Da pedra angular e seus elementos de transformação. A cada tirada satírica, uma verdade manifesta. Um ato poeticamente correto. Sem deixar de ser político. Aguça os sentidos. Intriga os incrédulos. Provoca os que creem demais. Atinge o patamar patafísico, como dizem vocês, e não perde o fio da meada. Uma parceira de somas de tempos. Acréscimos diferenciados em uníssono. Belo trabalho. Algo de novo entre Hamburgo e Fortaleza acaba de nascer.

FM | Zuca me escreveu: Formidável, Floriano. Mande os mercis com uma beijoca estalada do Zuca, pra Leila. Avante Avante Abraxxxas Zuca.

● DEZEMBRO 30

LF | Descobri um rascunho intrigante. Numa primeira ocasião de correspondência com o grupo de Paris, em 1966, não havia concordância ou unanimidade do grupo em relação ao tema da 1ª expo surrealista no Brasil. Há uma carta que rascunhei justificando as razões de nossa escolha aqui no Brasil. Toda a correspondência dessa época ficou com SL. De vez em quando surgem aqui e ali peças arqueológicas, como os primeiros esboços que fiz para a divisão física do espaço aonde deveria estar a expo. Em seguida um desenho a lápis de cor… de tamanho grande, que levei a Paris para mostrar ao Grupo. Enfim, é o desenho de uma mão adaptada ao espaço que tínhamos disponível. Hoje vejo o que na época não vi: esse desenho representa a mão emitindo um sinal pouco educado.

FM | Leila, hoje te foste e deixaste o diabo em mim… Escrevi três poemas que praticamente jorraram, não mudei uma palavra ou demorei uma vírgula em aceitar seu reinado!

LF | Eu levei um susto! Li muitas vezes o teu poema. Pensei palavra por palavra. E mergulhei nos significados extremos de cada frase. Então emudeci. Paralisei a garganta. Tranquei os pensamentos dentro dos ossos e fugi. Sei lá para onde fui. Saí de casa sem pensar. E tua voz corria atrás ou se impunha à minha frente. Não sosseguei até beber um copo d'água. E mesmo não querendo, algo foi sendo arrancado de dentro. Extirpei um soluço e a mágoa passou.

FM | É o baralho louco que mencionas. Após o período satírico com o Zuca, hoje voltou o Floriano elisabetano.

LF | Gosto dos dois.



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Leila Ferraz (Brasil, 1944). Poeta, artista plástica, ensaísta. Contato: leilaferraz2006@gmail.comPágina ilustrada com obras de Leila Ferraz (Brasil), artista convidada desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 19 | Agosto de 2016
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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