Em 2015, adentrando o
primeiro semestre de 2016, mantivemos, Leila Ferraz e eu, uma intensa
correspondência virtual, praticamente a diário. Durante este período tratamos
de assuntos os mais diversos, dentre eles a nossa participação em uma Exposição
Internacional do Surrealismo realizada na Costa Rica e um livro de
poemas/fotografias que estamos os dois preparando, uma deliciosa aventura a
quatro mãos. Também foram oportunos os momentos de memória de nossas relações
com o Surrealismo, bem como uma valiosa troca de ideias acerca de poesia,
surrealismo e arte. O que reproduzimos aqui, em três capítulos, cada um deles
dedicado a um semestre, é um fragmento desse diálogo sem fim, diálogo franco de
dois criadores que em muito se identificam. Espero que seja igualmente valioso
para nossos leitores.
● JANEIRO
02
LF | Querido!
Que lindo poema você escreveu. Não só este último. Mas os últimos. São a
comoção de minha alma. O poema que te escrevi foi nascendo sem controle ou
ritmo. Nasceu de repente e solto. Ventania de palavras que se juntavam aos
poucos a esta ou aquela imagem. Formaram um cenário quase caleidoscópico. Foi
um poema de adolescente e preciso mexer nele. Submetê-lo a um espaço
conformado. Guiá-lo. Dar a ele o rumo para o qual nascer. Fazer algo que você
faz. Meu poema saiu descabelado e rebelde. Belo e selvagem.
FM | Minha
querida, eu tive uma bela sensação lendo teu poema, "descabelado e
rebelde", bem o sabemos, porém repleto de uma intensidade intrigante,
contagiante. Eu o senti me percorrendo todo, como uma descarga elétrica, eu o
senti como se fosse exatamente tu.
LF | E
é! Estranho! Só escrevia assim quando muito, muito jovem. Como se ainda não
soubesse de nada. E era só emoção. Levei um susto!
FM | É
um poema-vertigem, disposto a nos levar a algum lugar.
FM | Hoje
escrevi quatro poemas, a rigor foram sete novos poemas nos dois últimos dias. Eu
me sinto ainda um pouco febril, porém um tanto esgotado.
LF | Recordo
que Bounoure tinha cheiro de cachimbo. Joyce Mansour cheirava a charuto
finíssimo. Eu cheirava a Gauloises.
FM | Hoje
estava vendo um seriado e escutei a frase: Queria
que a minha esposa me fingisse amar tanto quanto você. É profundamente
triste, porém ao mesmo tempo tão cheia de beleza… Joyce fumava muito? Era uma
poeta magnífica.
LF | Que
frase triste mesmo! Quase sem saída. Deve ser estranho para um homem ter que
dizer isso. As mulheres sempre dizem: O
que ela tem que eu não tenho!, ou pior: O
que ela te dá que eu não dou! É sempre triste. Joyce fumava. Linda!
Feminina, chique, rica, elegante. A voz rouca e o olhar além. Falava
pausadamente. Refletindo entre uma frase e outras. Todos se calavam. E sua voz
macia enchia a mesa no La Promenade de
Venus. Seu marido era um mistério. Às vezes – muito pouco – cheguei a
vê-lo. Isso em 1968. Aquele movimento que acabou por cindir os surrealistas de
vez.
LF | Alguns
eram pela art engagée, outros
radicalmente contra. E alguns, como Jean Benoit, José Pierre, Kurt Selligmann,
eu e Paulo, por um momento… Éramos anarquistas. Pertencíamos ao Grupo
Anarquista. Paulo Juntou-se à Jeunesse
communiste revolutionaire. Havia discussões homéricas entre Bounoure e
Schuster. Une malaise.
● JANEIRO 04
FM | Olá
querida. Hoje foi um dia esplêndido, pelo que realizei e o que decidi. Já viste
a edição dedicada ao César Moro? Depois de amanhã será a vez do Aimé Césaire.
Hoje tive última sessão de hidroterapia e decidi cancelar a musculação. A
partir de amanhã intensifico a dieta e passo a caminhar 90 minutos três dias
por semana. Também decidi que 2016 será ano sem álcool. Preparei uma agenda
pesada, de modo que o ano passará rápido como o salto de uma rã. Mas tu estás
presente em todos os dias de meu calendário.
● JANEIRO 05
LF | Que
depoimento relevante este teu! Tão bem escrito e novo. É o posfácio da peça?
FM | Sim,
criamos uma situação de que a peça estreou no Cassino da Urca com sucesso de
público e fracasso de crítica. Um único repórter se interessou por nos
entrevistar, e publicamos a entrevista.
LF | Tão
real. Chega a surpreender e assustar se não há um esclarecimento de que é
ficção. A última frase é inquietante. Porque pouco importa o que o leitor
achou… Porém a frase provoca um retorno ao início do próprio texto. A tendência
é a releitura para conferir aonde foi mesmo que eu perdi o fio da meada…
● JANEIRO 06
LF | Bom
dia! É tragicômico! É maleavelmente musculoso. Nos envolve como uma gigantesca
sucuri e nos regurgita à realidade enquanto a dúvida nos devora. Será mesmo uma
ficção. Esta entrevista está acontecendo alhures ou na arena? Tão alinhada e
consistente e já repleta de mistérios. Sem dúvida uma colagem de Max Ernest não
seria tão enigmática. Conceitos se liquefazem. Os nós são desatados por conta e
risco. Que crítica formidável vocês fazem aos textos mais respeitados por falta
de entendimento e não pela clareza. E, portanto, é tão clara a prosa que me
engendro.
FM | Gostou?
Evidente que sempre fica faltando algo… Eu evito delongar-me demasiado nas
respostas. Mas estou gostando do papo. Tem ainda a parte do Zuca, que deve ser
mais picante.
LF | Se
gostei? Estou adorando. Que jogo delicioso! É 100% lúdico. Sensível e sutil.
Capcioso mesmo, diria eu. É como os Deuses brincam no Olimpo!
FM | Sim,
porque a rigor há certo fundo falso onde o coelho esperto escova seu pelo
esperando a hora de saltar com cara assustada da cartola, ou seja, estamos
falando de circo, mas a rigor estamos descarnando as diversas formas de
representação.
Eu
vi a tua foto, a cadeira ali é todo um personagem.
LF | A
cadeira de Flávio de Carvalho. Verdade. Sob minha ótica deformada. Fundo falso.
Falsete. Nesse sentido crítico? Porém há tanta veracidade que nos comove por
completa percepção do truque.
FM | Eu
sei, eu sei. Mas é que o Circo Cyclame está ali, no lugar de um picadeiro, como
um truque, como um cenário citadino montado por Fellini.
LF | A
verdade dos fatos é consistente ao estado de ficção circense.
FM | É
um ardil: "Vamos ao circo", e de repente chegamos lá e percebemos que
não se trata de um circo, mas aí é tarde…
LF | Mais
que Fellini. É um espaço inédito. É um espaço-crisma. Gostou do meu último
trabalho?
FM | Leila,
esta foto está uma lindeza, ela tem um mistério labiríntico que nos convida a
passear por suas mil faces. Vejo como as paredes internas de um caleidoscópio é
algo que te fascina. Como gostas dos salões de espelhos. Dos labirintos. É todo
um mundo através do qual descortinas as tuas imagens. O impacto do seio se dá
pelo que ele cria de caminhos internos, de passagens secretas, mais do que
propriamente pela corrente erótica.
LF | Sim
um seio e seus múltiplos desdobramentos. A partir dele se cria o corpo do amor.
E a cor ficou perfeita.
FM | A
cor é outro elemento muito feliz em tua foto, porque ela transmite um efeito
espelhado que dá o verdadeiro toque mágico da tridimensionalidade. Olhamos e
vemos os caminhos secretos se adentrarem no espaço-cena. É fascinante, Leila,
porque perdemos a noção regular do corpo, o falante na foto passa a ser o
mistério convidativo que as sinuosidades criam. É uma foto hipnótica.
LF | Como
não tenho modelos, sigo o conselho de Charles Fourier no museu do volume O grande Mundo Amoroso. Aonde cada um
pode expor as partes de si mais belas e atraentes. Eu me transformo em imagens
belas porque tenho fascínio pelo belo. Procuro em cada pequena parte do corpo o
objeto máximo do desejo e do êxtase. Está é uma posição frente ao surrealismo.
Minha.
LF | Não
tenho modelos. Eu sou a modelo de minhas fotos. Assim, alquimicamente,
transformo o tempo e trago seu ouro e a eterna juventude renovada pela magia! O
mistério do conhecimento, velado e silencioso, explode em sua intensidade
transgressiva. Além de mim, eu mesma.
FM | A
todo momento nos descobrimos, Leila, isto não tem fim (nem mesmo motivo para
tê-lo)…
LF | Você
me aceita como sou. Acerta aqui e ali e cria em mim o que é latência. Foram
poucos nesse sentido de me deixarem existir.
FM | Esta
é uma falha imensa nas relações de qualquer ordem, as pessoas estão sempre se
projetando no outro, daí que querem a todo instante corrigir o parceiro. Eu
não, eu te quero exatamente como és. Não vejo sentido em mergulhar no outro
para moldá-lo a meu prazer. Eu quero é aprender com o outro. Não vejo como
possa ser alteridade se não for assim.
LF | O
encanto da obra é quando ela ultrapassa seu autor, criando a surpresa da
descoberta de algo que nem sabia caber em si.
FM | A
maravilha suprema, quando um leitor chega nos dizendo que encontrou ali algo
que nós sequer suspeitávamos.
● JANEIRO 10
LF | Adoro
essa base, o fundo sobre o qual você imprimiu a origem de tudo.
FM | Foto
que fiz de uma estopa.
LF | Ventosas seculares, ventosas do mar
vermelho. Ventosas que imprimem as páginas dos pergaminhos que Duchamp moldou
na coxa de Maria.
FM | Ventosas docemente reveladoras dos
segredos do oceano que nasce em teu corpo, ventosas como geiger anotando as
radiações de teu orgasmo.
LF | Orgasmos que se repetem indefinidamente.
Galopantes e iluminados vertendo o perfume das amêndoas e miskis. Uma mistura
fatal solta nas entranhas do planeta. Todos luxuriosos e inundados de volúpia,
já não se aguentam e mergulham em seus corpos do avesso.
FM | O avesso relido pelas tempestades e que
refazem os labirintos do planeta de teus sonhos, tua aurora em compassos bruxos
que delineia toda a minha voragem. […] As minhas noites gemem no interior da concha
de suas visões. […] Eu comprei essas letras de madeira… Colei em um
plástico, suspendi e fotografei.
LF | Gostei
da figura vermelha saltando para o outro lado. As letras são de madeira?
Ficaram preciosas.
FM | As minhas noites gemem no interior da
concha de suas visões. Vaticinam álgebras esquecidas entre as dobras de uma
ventania sagaz. Eu me recrio inúmeras vezes dentro de cada canto entoado em
tuas axilas. Eu recobro meus vultos no bosque de teus enredos.
[…] Sim, letrinhas de 3 cm de altura, de madeira.
LF | Sei
dessa fonte inesgotável de prazer, o secreto esconderijo. Bebo dessa água
fértil sem saber de sua origem. Não me reservo o direito da dúvida por ter
esquecido me envolver nos cabelos de Ariadne. Nem tampar os ouvidos. Reserv0-me
o direito… Minha sina não tem volts… Não consigo mais enxergar… Desfaleci…
FM | Agora
com o nome dos autores.
LF | Que
autores! Use um negrito. Experimente.
FM | Desfaleces em meu corpo, a ele
misturando-se, como um fogo líquido que enumera silente em seu íntimo as turvas
lições do abismo. […] Vou experimentar, querida. Mas amanhã, pois
hoje meus olhos já estão fechando.
LF | Os
meus também. Estamos condenados.
FM | Também
experimentarei outra fonte. Condenados a nada, somos esplêndidos! Fechar os
olhos também é uma dádiva.
LF | Condenados
ao esplendor.
FM | Evocados
pelo esplendor. Doados ao esplendor.
LF | Ou
o obscurecimento da luz. Fechei meus cílios.
FM | Como
Goya em suas gemas negras, retiramos a luz da mais plena escuridão. Eu beijo
teus cílios fechados.
LF | Gostei
muito do que você acaba de escrever.
FM | Sobre
Goya ou sobre os cílios? De igual modo, eu te desperto de teu sono mais
profundo.
LF | Goya
sem os cílios não saberia trazer a luz para a escuridão.
FM | Não
sei se te recordas de desenhos que ele fez em pequenas pedras negras, raspando,
já em seus últimos anos de vida. Durmamos com Goya. Ele me chamou a atenção
para a raspagem, raspar o fundo negro até que ele nos revele suas formas
ocultas. Quando vi um documentário e ele próprio (o personagem) comenta a
respeito, ensinando sua afilhada a raspar as gemas, aquilo me arrepiou a alma.
LF | Você
e teu imenso conhecimento do belo simplesmente me fascinam. Lembre-se sempre
disso.
FM | Essas
pequenas pedras de luz vão me contando seus segredos, querida.
LF | Imagem
belíssima! Não conhecia essa! E não sabia que você tinha psicografado Blake!
Que privilégio!
FM | O
livrinho está para ser publicado este ano. Traz até duas anotações biográficas,
uma escrita por ele e outra pela esposa. Foram quatro ou cinco sessões, em que
os recebi e o resultado é um livro que mescla diálogos, reflexões, poemas,
autobiografia etc.
LF | Às
vezes penso que também psicografo, tal a força com que as palavras brotam. Não
penso quando poeto. As palavras fluem. O mesmo acontece quando começo a
declamar em voz alta. As pessoas não acreditam que o poema flui. Pensam que
seja algo decorado!
FM | Não
creio que essa fluidez, esse jorro quase incontrolável da criação tenha sempre
que ver com psicografia. Digo isto porque descobrimos uma voz própria (bem
minha) em tudo o que escrevo. No caso de Blake houve mesmo algo intencional,
bom, algo me chamou e atendi, porém o fiz desde o princípio sabendo que
passaria por tal experiência, eu me preparava para ela, criava ambiente.
LF | Você
consegue ver a sutil sombra de Deus entre a mão do Profeta e a cabeça de Maria.
Apenas uma insinuação?
FM | É
de uma delicadeza, um véu quase invisível.
LF | Fico
tão feliz em conhecer este teu lado sagrado.
FM | Ainda
estamos debulhando nossa primeira safra de intimidades.
LF | Pode
ser, querido. Tomara que seja! Há muito além do que supomos na superfície da
pele.
FM | Uma
coisa é certa: para chegar até aqui é preciso haver uma afinidade nos guiando.
Já descobrimos que a temos.
LF | Ás
vezes eu imagino que já escrevemos um romance inteiro através destas breves e
digitais cartas. Nesses momentos lembro- me de Seixas, que missiva além de
digitar. Nosso livro, visto in totum,
deve ser algo impressionante. Que travessia! As grandes águas frente ao
desconhecido.
FM | Cada
vez mais penso que nos três arquivos que tenho guardado com nossas falas se
encontra a chave de um capítulo de nosso livro. Este desenho me fascina.
LF | Que
qualidade de desenho e aquarela. Parece a fuga do Egito.
FM | Uma
das coisas que mais me impressiona é a forma como em pleno século 17 Blake
lidava com a aquarela, o desenho, a gravação em chapas de metal, assim como
Goya com os carvões e a raspagem.
LF | Fiquei
muito assustado ao ver no Prado a sala de Goya sobre os horrores da Guerra.
Texto algum expressou melhor o bordado dentro do bastidor da pugna.
FM | Goya
não deixou nada de fora, nada que justifique se escrever sobre sua obra, exceto
do ponto de vista técnico, de sua grandeza técnica. Sua narrativa é
translúcida, impecável.
LF | Ê
mais. Arranca nossos mais viscerais temores e revela nossos ódios por mais
sobrevivência. Não há clemência para Goya. Somos os condenados.
FM | Acho
que até que mais do que condenados, somos a condenação. Porque ele nos
descarna, não nos coloca como vítimas.
LF | Os
condenados executores de seus destinos. Como os suicidas ou os país famélicos
que devoram os próprios filhos. Que tormenta deve ter vivido esse homem!
FM | Goya
viveu entre dois mundos, porque convivia com a nobreza que o sustentava, era um
pintor da corte espanhola, até começar a ter visões e pesadelos, o que se
agravou ao sair da cidade para uma pequena casa de campo, lá onde pintou com
velas na cabeça e nas paredes da habitação, a conhecida época de suas pinturas
negras.
LF | Sabe
Floriano, esses são os meus ancestrais surrealistas. Meus e de todos nós.
FM | Algo
de Goya nós encontramos muito depois no venezuelano José Antonio Ramos Sucre,
que escreveu três livros em prosa poética que são fascinantes, e suicidou-se
aos 40 anos, aterrorizado por suas visões, um transbordamento de imagens
terríficas que lhe visitavam em função de uma incurável insônia que o massacrou
a vida toda.
LF | Sim,
conheci esses trabalhos esfumaçados e quase gordurosos. O que mudava era o
tema. Mas a verdade intrínseca já estava lá. Na negritude das sombras nas
veladuras das mãos quase descarnadas.
FM | O
grande surrealismo vem dessa profusão vertiginosa da criação. Estes trabalhos
gordurosos em nada distam das gravuras satíricas. Certa vez vi uma exposição de
400 delas…
LF | Bom
dia! De quem é esse trabalho lindo!
FM | Ah
Giacometti. Uma de suas minúsculas esculturas. Giacometti era também um
precioso desenhista. Seus esboços de escultura são belíssimos e ficaram para
trás, como ocorreu com os cenários que Fellini desenhava. O cinema roubou de
nós o grande desenhista que foi Fellini. Um dia vou fazer uma Agulha com os desenhos do Fellini.
LF | Atualmente, dei para conversar sozinha! É muito engraçado! Descubro
coisas incríveis! Deve estar acontecendo alguma coisa da qual ainda não me dei
conta. Mais um pouco, estarei apta a escrever o maior romance de todos os
tempos. Pelo nível de consciência e beleza que atingirei! Já estou na metade da
tradução.
FM | O ensaio do Arp pertence a um livro que se chama On my way.
LF | Queria escrever minhas memórias afetivas daquele jeito.
FM | Embora comece com um belo poema dedicado à sua mulher Sophie, é um livro
de pequenos ensaios, de notas críticas. Ele é um escritor de mão cheia,
excelente, e sempre bem humorado. On my
way é o título que ele deu à sua obra completa publicada em inglês.
Posteriormente. Há um breve texto intitulado "L'art est un fruit",
que é outra delícia.
LF | Que delícia! Acho então que posso me soltar mais na tradução.
FM | E outro dedicado à arte concreta. Sim, Arp adorava brincar com as
palavras, seus sons e significados. Era um brincalhão. Escreveu aquelas novelas
a quatro mãos com o Vicente Huidobro. Eu já as traduzi e as publiquei.
Escreveram originalmente em francês, porém Huidobro as publicou em espanhol.
Arp é que as publicou no original. Eu tenho as duas versões. Eu era ainda
garoto quando um amigo argentino me deu de presente a edição original em
espanhol, foi um impacto em minha vida.
LF | Estou na companhia de todos os dadaístas. Eles me adoraram!
FM | Eles que não inventassem de não gostar de ti. Este texto estava guardado
para ti, um lauto banquete Dadá, para celebrar tua entrada na matéria! Não
sabes o quanto estou feliz por isto. Agora eu vou revisar o material sobre
Breton, para a edição especial. Mas estou por aqui. Vai almoçar…
LF | Querido! Acabei de almoçar. Estou cansada e com dor nas costas. Vou
descansar um pouco. Falta apenas meia página do texto para terminá-lo e depois
ler cuidadosamente e melhorar o estilo aqui e ali. Mas se eu continuar agora
não ficará como quero. Então, se não o fizer hoje à noite, amanhã estará pronto
para te enviar. Um beijo. DADALEILA.
FM | DADAFLOR está de acordo. Descansa bem. Estou revisando o material sobre
Breton. A edição está ficando muito bonita, toda ilustrada por ele: desenhos,
manuscritos, objetos, cadáveres, fotos…
LF | Emocionante esse texto “Dadaland” que fala do início da escrita
automática. Ao traduzi-lo senti toda a intimidade e afinidade que tenho com o
surrealismo.
FM | Eu devo citar uma passagem dele no meu livro sobre surrealismo. Como eu
te disse, vou ampliar um pouco mais, ali incluirei mais parágrafos nos
capítulos sobre Caribe francês, Brasil e América Hispânica. Quero também
incluir um breve capítulo sobre antecedentes, além de duas novas entrevistas e
umas tantas atualizações de dados. Assim que retornar da Costa Rica, me tranco
para finalizar este livro. Estou intuindo uma grana que deve chegar em junho e
quero editá-lo.
LF | Sabe Flor, atualmente sinto-me envolvida por completo com o
Surrealismo. Acredito e reafirmo que para sermos surrealistas precisamos
vivê-lo. Veja, através de suas mãos consegui resgatar em mim e no meu trabalho
um tempo que julgava distante. Não, porém… Ele estava dentro de mim. E se não
fosse despertado, caducaria. Essa tradução por menos que seja é uma fisgada em
muitos peixes. Peixes voadores.
FM | Eu sempre defendi isto. Não se trata de defender um programa, de assinar
manifestos, de confeccionar carteira de sócio, nada disto. A relação com o
Surrealismo contempla antes de tudo os nossos sinais vitais.
LF | O processo de clareamento das memórias distantes é um mergulho sem
necessidade de voltas ou revoltas. E sim de acreditar na permanência do espaço
no qual o tempo se cristaliza em arte. Viver esse momento em movimento
alternado é refazer mil vezes um caminho jamais trilhado. Neste momento me
chegam memórias possíveis de convivência preparatória para o início de um Grupo
Surrealista. Um Grupo que existiu e que se apaixonou, de início, pela geração
beat. As melhores cabeças estavam bem ali. Juntas. Acontecendo e modificando os
contextos das artes tidas como possíveis. Seguras. Bem comportadas. Tudo o que
fizesse abalar o campo magnético do establishment seria imediatamente relegado
à marginalidade. Ao pouco concreto. Ao impalpável. Ao distante. Àquilo que não
compactuasse e fosse compreendido pela elite intelectualoide, era sumariamente
descartado. Vivi alguns momentos desse conflito e entrei necessitando de uma
vestimenta que me identificasse. E aos meus desejos. Daí nasceu a roupagem A
anti cintura de castidade. Mais do que um objeto erótico do desejo, esse objeto
de funcionamento simbólico – como o próprio conceito explicita -era a expressão
máxima da minha introdução ao universo mágico. A realização em forma de
escultura mole, do meu desejo. A minha expressão manifesta, a conquista do meu
lugar no mundo. E de que forma? Melhor dizendo: qual a fórmula? A minha. Única
como um signo, um símbolo completo de minha identidade feminina e
relacionamento com o vigente. A partir desse momento, passei a aceitar e ser
aceita em um grupo de pessoas formidáveis e tão tateadoras quanto eu. Uns mais
outros menos. Cada um desenhando sua máscara para o Grande Baile da Cultural.
Um palco solene e contínuo. No qual se desenrolavam as mais dementes comédias e
arrebatadoras tragédias. O Grupo – esse conjunto agregado – saía pelas ruas de
São Paulo, mais propriamente na Rua Maria Antonia – aonde se fincavam a USP e o
Mackenzie, frente a frente em fatal oposição de poderes. Nós de braços dados e
punhos cerrados varávamos a noite aos gritos de viva o cu. Em total adesão e liderança de Roberto Piva! Lá estávamos:
Claudio Willer, Sergio Lima, Décio Bar, Roberto Bicelli, Hengastein Rocha,
Maninha, talvez e vez ou outra Raul Fiker e Paulo Paranaguá. Eu, empolgada,
deixava a cada grito e a cada passo o ranço de uma cultura ensebada em direção
a uma estrela ao alcance de minhas mãos. Sentimentos e vivências inéditas
brotavam desse grupo ensandecido pelas noites paulistas. De qualquer modo, é uma
longa história cheia de egos, melindres e diferentes escalas de poder e
liderança. Não éramos no decorrer da história um bando de insanos. E creio que
se alguns foram, foram momentos pontuais.
FM | Acho que a desintegração estética foi um fenômeno comum da época. Isto
se passou com a Beat (poeticamente é muito pouco expressiva), com os Nadaístas
colombianos, movimentos da contracultura no México, na Argentina, em outros
países hispano-americanos. Foram importantes, editaram revistas históricas,
foram essenciais neste sentido de se criar uma consciência social, mas
esteticamente é muito pouco o que fica. Este é todo um capítulo de meu livro,
entrevistei os diretores das principais revistas da época…
LF | Bom dia! Terminei a tradução do texto “DadaLand”. Agora leio tudo
para ver se há algo que possa ser melhorado. É uma forma de escrever muito
particular e tentei mantê-la. Veja se você está de acordo. Caso contrário, me
diga e, juntos, poderemos encontrar um forma nova para certos parágrafos.
FM | Acrescentei a nota final: [Estas são adoráveis páginas de uma rica
memória afetiva, escritas por Hans Arp (1887-1996), foram originalmente
inseridas em seu livro On my way, de
1941. Toda a sua obra se encontra reunida em Jours effeuillés, de 1966. A tradução aqui publicada é de Leila
Ferraz, realizada especialmente para a presente edição especial dedicada aos
100 anos de Dadá.] Não te esqueças que eu tenho toda a obra do Arp. De repente,
eu poderia fazer uma seleção de sua prosa poética (ou como ele mesmo diz, seus souvenirs), tu traduzirias, eu
prefaciaria, e publicaríamos.
FM | Este Picabia lembra mais o Cícero Dias ou o Ismael Nery?
LF | Ismael Nery. As cores é que me surpreendem. Porque Nery utilizava
cores bem delicadas ou traços finos… Não me lembro muito bem da força de Cícero
Dias. Esse trabalho é belíssimo!
FM | Tens razão, é mais o Nery, e são da mesma época, é um daqueles casos de
uma afinidade que estava no ar. Mas claro, Nery tinha um traço delicado, não
somente as cores.
LF | Sim. Época de as mulheres vivarem os olhos para cima!
FM | Há muitos desenhos assim do Modigliani, por exemplo. Não as telas. Agora,
o Cícero Dias é quem tinha essa alma curiosa como a do Picabia, que se
enveredava por várias trilhas, fases, experiências… Esta fase dos rostos é onde
ele melhor se revelava e onde afirmou uma voz própria. Na pintura mais cubista
ou naquele futurismo das máquinas ou nos cartazes dadá, em tudo era muito bom,
porém era muito o espírito da época, são trabalhos que se parecem com os de
vários.
FM | Queres me fotografar? Estou apaixonado pelas tuas imagens. 20. São 20
poemas. Eu também gostei muito do que fiz hoje. Vou rever amanhã. Depois da
macaxeira eu dormi como um bebê bem alimentado. Acordei para comer novamente,
vi um filme e agora estou pensando em dormir mais. Porém durmo feliz, com tudo
o que estamos conseguindo.
LF | Vou
dormir também. Achei uma linda foto de um torso nu masculino – de uma estátua
de Ramos de Azevedo, que fiz em 1972. Vou usá-la. E procurar mais corpos.
Senão, invento. Você tem modelos vivos? Eu sou capaz de sair, de repente, à
procura de estátuas. Queria fotografar homens, algumas posições eróticas. Também
tenho três livros do Muybridge, mas os homens nus são do começo do século
passado. Verei como resolver este desejo!
FM | Acho os livros do Muybridge um tanto quanto repetitivos. Talvez o
problema seja com o nu masculino, que é pouco inventivo. Tenho comigo uma
edição preciosa que gosto de percorrer: 1000
nudes, da Taschen. Há belíssimas fotos anônimas do século XIX.
LF | Eu tenho um antigo exemplar lindo do livro Des nuages et de la pluie, chinês. Com brincadeiras eróticas. É
lindo!
FM | Eu tenho. Vou fazer umas fotos das gravuras desse livro e trabalhar
sobre elas.
FM | Vamos fazer assim: Cap 1, poemas meus ilustrados por ti, Cap 2, poemas
teus ilustrados por mim, Cap 3, poemas nossos, a quatro mãos, ilustrados por
fotos nossas, 10 de cada, interferidas pelo outro, Cap 4, o diálogo, ilustrado
por colagens minhas (10) e o que quiseres teu, pensei nos cadáveres deliciosos,
mas podem ser desenhos (10). Que tal?
Comecei a parir um poema solo, te mostro? Deixei a letra do poema subir até o limite de tuas ancas. Uns versos ao
subir pelas pernas já intuíam o paradeiro. A tua pele rosna como uma salamandra
cheia de ideias. Espelhos cobram pedágio de uma nesga à outra do quanto que
percorremos sem saber aonde chegar, em teu corpo. Eu desacredito do mundo
quando estamos em silêncio. Sorvemos as nuvens ao alcance das mãos, dos lábios,
como flores de um ímã que revelamos entre orgasmos.
Brassaï, para mim, era um fotógrafo mais imenso e intenso que Muybridge.
No livro que compraste verás uma adorável sequência de Brassaï de 1932,
belíssima. Um atelier de esculturas de nus.
LF | Ó Deuses! Deve ser muito bonito. Nas escolas em que aprendi a desenhar
nus só havia modelos femininos. Até hoje não entendo o motivo. Se a mulher ê o
interdito, por que o profano não pode ser desnudado? Estava a reler a tua frase
que começa com Impenetrável e percebi que você tem comentários memoráveis… Jamais
banais, porém verdades capitulares. Como consegues tais proezas? É fascinante.
Como consegues? Parece que viveste 1000 anos sem parar para descansar no macio
repouso da terra!
Em minha opinião o que Muybridge fez de notável foi a decomposição do
movimento. E tudo começou por uma aposta feita entre nobres figuras. Resumindo:
o cavalo fica ou não fica, em determinado momento, com as quatro patas fora do
chão. Muybridge e amigos resolveram então criar um vasto picadeiro escalado. E
constataram, após verem as fotos: sim. Então Muy levou essa proeza avante e
passou muitos anos se dedicando a fotografar os movimentos de homens, mulheres,
crianças e animais!
Os movimentos de mulheres dançando entrelaçada por véus são em si alguns
bons poemas. Homens viris demonstrando força não chegam a me emudecer. Há
idosos em seus andares hesitantes e crianças em passos que não são. As danças
voadoras das imagens além de poéticas evidenciam a beleza feminina como em tudo
nesta cosmologia planetária do corpo humano. Às vezes me ponho a pensar na
beleza de Cesariny nos falando de sua infância, das brincadeiras na praia. De
sua juventude e amigos e da alegria libertária de que foi acometido quando
finalmente, desempregado, se viu poeta de corpo inteiro. Que belo homem! Tão
sensual e sedutor em seus 90 anos! Que belo! Brincando meio sem jeito, com um
sorriso de menino, quero dizer, ainda de menino… ao mexer em seus parcos
cabelos e boca ansiosa por tabaco. Que filme lindo! Como ele é me conhecido,
embora talvez jamais nos tenhamos visto. És um homem feliz, querido Floriano,
pela correspondência que trocam. De todos nós, os vetustos, és o que tens a
alma maus generosa e antiga. Por nos aconchegar em teus pensamentos e nos
corresponder com sua alegria plena. Como não querer-te bem? Amigo de meus
momentos mais precisos. Companheiro nesta jornada infinita.
LF | Querido meu que de tão
encantado não me escuta Falo de dentro de minha caverna Origem e fim de todos
os mitos Meu teto se multiplica em abóbodas abertas para a luz do dia Símbolos
corrompidos desceram comigo até os confins dos infernos à procura do bem e da
verdade Em busca da luz e dos polos das esferas quando apenas uma gota de amor
transmigra do real ao inimaginável Estamos hoje em toda parte Cada toque meu
ressuscita o teu Ao cair o dia em seu vaso profundo misturado à minha doçura
por você Assisto minha mocidade espalhar-se pelo céu tranquilo Onde amante
sobre amante se declamam unidos em estrelas do mar.
● FEVEREIRO 02
FM | Que bonito que te recordes, sim, vamos manter em dia essa nossa outra
cumplicidade. Vou digitalizar “Questions et réponses”, entrevista que respondeu
Paul-Émile Borduas a Jeán-René Ostiguy, em 1956. Borduas foi o introdutor do
Surrealismo no Canadá, já deves ter ouvido falar do manifesto Refus global. É mais um documento
fundamental. E pequeno, é uma enquete com oito páginas em formato edição de
bolso. Mando ainda hoje.
[…]
A mestiçagem tem um encanto. Fico olhando quando caminho em Sidney,
cosmopolita, porém sem muito direito a mestiçagem, uma região de guetos
étnicos, poucos casos de mistura. Nunca fui atrás das minhas origens, mas
desconfio que era toda portuguesa. Jamais vi outro sinal na família.
LF | A mestiçagem é sim um marco importante em minha família. Foi hilário quando
a Fernanda, filha da Renata, precisou fazer a árvore genealógica da família. No
ramo feminino havia galhos que não acabavam mais. Não todos italianos com
negros. E sim com a mestiçagem brasileira típica.
FM | Talvez portugueses mesclados com índios, não sei, os índios aqui foram
erradicados muito cedo, embora tenha deixado fortes sinais na culinária e na
toponímia, embora neste segundo caso se verifiquem vastos exemplos por todo o
país.
LF | Querido! Não podemos colocar o teu nome no poema que fiz! Eu levei um
susto, porque ficou muito forte e real!
FM | Está bem! Eu intimamente sei que foi para mim, eu o tenho aqui comigo
sob o lençol.
LF | Ele é para você. Todos esses poemas foram criados por tudo o que você
acordou em mim! Ficou evidentemente forte! Ganhou um sentido descomunal.
Planetário!
FM | Acho que tudo isto é patente no livro, resultante de intensa afinidade,
cósmica, mística, sexual, emblemática. Confesso minha imensa felicidade por
este filho-livro-árvore que estamos plantando no meio do nada. Os meus poemas
que ali estão são distintos do que eu vinha escrevendo, e do que sigo
escrevendo. De igual modo os poemas que estamos parindo a quatro mãos são de
uma força impressionante.
LF | É gosto da árvore plantada no meio do nada. Mais pelo sentido
filosófico do termo. Os poemas que fazemos juntos tem esse poder somado
FM | Em face disto é que penso que o 3º capítulo deve ser ilustrado por
interferências mútuas, nossas, nas fotos de um e outro. O que achas? Creio que
assim o livro estaria mais ainda caracterizado como uma aventura amorosa. O
meio do Nada é um lugar mágico, equivale ao sumo do inesperado.
LF | São extremos. Um cântico raro. Talvez as cartas da madre portuguesa
tenham esse enlevo do êxtase…
FM | Árvores que bailam no centro das cartas. Às vezes um livro tem para nós
um presente que não é propriamente a sua leitura. Ou, visto de outro modo, em
agradecimento à nossa leitura, ele nos guarda um presente.
[…]
Eu sei que nós dois não vamos parar nunca de parir juntos. A propósito,
nós temos que seguir com nossos poemas a quatro mãos, ainda não estamos nem na
metade.
LF | Sim. Já sabemos. Porém quero atravessar esse grande rio com a alma
distanciada. Acho que eu me conheceria como outra. E isso me fascina ao
extremo.
FM | Claro, é uma experiência transbordante, de uma fluidez mágica e
irrepetível, tocar o outro, ir até a outra margem, conhecer-se em todos os
igarapés do espírito.
LF | Ser fluídica. Um pouco amorfa. Acomodar-me em fendas da existência.
Buscar um…
FM | E este transbordamento, Leila, exige (como defendia Robert Graves) um
mínimo conhecimento de mitos e lendas, gostar de dicionários, estar sempre
apaixonado pela vida etc.
LF | Ser incompleto, sem raízes ou sombras…
FM | Exatamente. Não partir para a criação com uma forma preestabelecida. Abrir
a janela, deixar o mundo tanto entrar quanto sair.
LF | Tenho uma estante inteira só de dicionários – estão ao lado de minha
cama. São meus sábios do Sião e me levam e trazem para e do Tibet.
FM | Se eu tivesse que escolher dez livros eu jamais escolheria dez livros de
poemas, e sim um de cada coisa, não esquecendo um dicionário, um livro sobre
mediunidade ou satanismo, um gibi, etc. Não entendo como um escritor não pode
ser apaixonado pela descoberta constante de novas palavras.
LF | Eu também não.
FM | Há um verso do Drummond que sempre me arrepia a alma: "Aprendi
novas palavras e tornei outras mais belas". É tão inconcebível quanto um
pintor que não gosta de misturar cores…
LF | Amo as palavras As ditas ecas
não ditas As palavras sãs e as malditas Eu amo as palavras que se escondem e se
revelam Eu amo as palavras antônimas E as palavras jamais pronunciadas Amo as
palavras sussurradas e as mímicas Eu amo a palavra inventada e a palavra
debochada
Este poema eu o escrevi há uns 30 anos. E continua. Esqueci-me de parte
dele.
FM | Eu não recordo nada. Fico impressionado com essa minha falha de
memória.
LF | Não é falha de memória. É que se você escreve automaticamente, o que
conta para a memoria é o fio condutor das palavras. Frase a frase. Então surgem
varias imagens ou fechadas ou abertas.
FM | Tens razão. Vão surgindo inúmeros afluentes.
LF | Elas se interligam de forma complexa.
FM | Vez que outra (até rio) eu estou lendo um poema e no meio da leitura eu
o modifico…
LF | E assim você teria que recriar a imagem inteira. Como o Magritte, na
pintura!
● FEVEVEIRO 04
LF | Cheguei e não te encontrei! Abro A
Phala. E leio na contracapa os nomes – um a um – dos surrealistas que um
dia participaram de uma exposição em São Paulo. O gesto de abrir me traz
memórias afetivas, sim, muitas memórias que se montam e desmontam como um
cavalheiro azul. Que esforço enorme foi o de imaginar, pensar, organizar e
realizar essa Exposição! Um ato quase heroico, diria eu! Hoje, quando 50 anos
já se passaram. E leio os nomes gravados nesta contracapa, tenho a impressão de
ter nas mãos um obituário… Tantos são os surrealistas que dela participaram. De
uma forma ou de outra – todos – estiveram presentes. Quase todos foram
lembrados e de certa forma se envolveram como se envolveriam se a Exposição fosse
em Paris, Barcelona, Argentina, Espanha ou Portugal. A generosa mão mágica se
abriu e um grande painel saltou, nele estavam palavras escritas por André
Breton, espalhando pela sala do Museu, o seu Manifesto. Um trecho. Alguns
parágrafos de liberdade e adesão "em perspectiva para a atividade comum da
língua selvagem".
● FEVEVEIRO 05
LF | Comecei a ler tua entrevista com o Sergio Lima. Fiquei surpresa!
FM | Como esta entrevista já foi publicada na imprensa, podes comentar o que
quiseres.
LF | Ele faz apenas menção dos nomes que, junto com ele, argamassaram o
Grupo. Não nos credita absolutamente nada. Enfim… Apenas nomes consagrados pela
intelectualidade e mercado da arte são citados – por que correr riscos? Afinal
o grupo de 65 era ou não um grupo? Eu me vejo no direito de questionar tudo isto.
FM | Excelente. Olha, esta foi uma das primeiras razões por que resolvi
ampliar o livro, pois desde que te conheci que tenho entendido outra coisa
daquele momento. Assim como eu tenho sido muito duro, no livro, nas minhas
observações sobre o Surrealismo em países como Argentina e México, não quero,
justamente no Brasil, passar a ideia de alguma contemporização minha.
LF | Veja bem Floriano, todo o evento é mencionado e não relacionado em
sua importância e propósitos – que existiam. Às vezes me cansa ver que todos
fazem as mesmas referências e se regozijam com elas…
FM | Leila, esta é a tônica do comportamento de artistas e intelectuais neste
país. Tenho me batido contra isto há décadas. Fui inclusive alijado de alguns
ambientes por conta de minhas opiniões. Aproveito para dizer que intuo que o
Paulo Paranaguá não me respondeu por que não quer mais se envolver com esse
parágrafo de sua biografia.
LF | Essas mesmices são repetidas o tempo todo, por todos. Nesse sentido,
fica difícil para um artista se identificar com regras e princípios que
necessitam de uma enciclopédia para conceituá-los. Não basta uma adesão por
identificação. É preciso a adesão e todas as referências. Um entourage de cultura sem a qual não se
justifica a sua permanência… Ora, essa postura dita regras. Não acredito que
tais autores, sempre mencionados, consentissem em participar de conclusões das
quais elas sequer sabiam da existência!
Eu também poderia mencionar Blake, Blanchot e Bachelard, além de Barthes
até a exaustão. Isto só levando em conta que a inicial de seus nomes é a mesma.
Porém, se para sustentarmos nossas ideias e trabalhos de arte é preciso
justificá-los e fundamentá-los a cada postulado, não me sinto confortável.
Porque estaria justificando cada poema ou fotografia criada, o tempo todo. Isso
haveria de gerar um ponto crítico. Uma ansiedade desnecessária. Uma insegurança
que só seria superada quando arquitetada sobre uma base quadrangular. Isso é
uma pièce de resistance. E o faço
expresso com toda a liberdade que eu me concedo. Quanto ao Paulo, acredito que
esteja mais interessado em um aspecto mais abrangente da Arte Moderna. Sei que
escreve um livro sobre o assunto. Mas sua participação na 1a Exposição do
Surrealismo no Brasil foi essencial!
FM | Uma das coisas de que mais estou gostando, além da luz imensa que está
vindo à tona, é o tom de tuas palavras, que não se perde nos excessos
emocionais e nem nas afetações intelectuais. Sob este aspecto, este tem sido o
tom maior do livro, tanto nas minhas próprias abordagens, quanto nos diálogos,
porque o livro tem um capítulo na forma de enquete e outro na forma de
entrevistas, além de um terceiro que são depoimentos que surrealistas vivos me
deram sobre surrealistas mortos.
LF | Eu não tenho a intenção de criticar o Sergio Lima. Por razões
pessoais e históricas. Acredito em seu imenso valor intelectual, conhecimento e
contribuição para a cultura. Ele dedicou sua vida para se colocar sob essa
ótica. Nem todos tiveram ou têm o privilégio de ter acesso tão precocemente
como ele a tanto conhecimento. Jamais tiraria seu mérito… Embora o questione,
quando procuro apenas o poeta e o artista que é. Ele poderia, também, se bastar
por sua obra. Há correntes que não dissociam o artista da obra. Todos nós temos,
vez ou outra, essas recaídas. Contudo elas são a própria essência do ser
artista.
FM | O surrealismo, ao evocar um acasalamento entre vida e obra, é também uma
fonte de evocação de vida. É isto, portanto, o que se espera do surrealismo, e,
por consequência, de um surrealista. Por isto que uma das maiores contradições
do surrealismo é o momento em que Breton expulsa Artaud.
LF | Que absurdo! Que ataque extremo do ego. Que dor sem fim para ambos.
Uma lástima para quem apregoava a liberdade… Não uma liberdade convencional, mas
repleta de seus significados. Seus pares e sinônimos!
FM | Para mim são os dois casos gritantes do surrealismo (mas lamentavelmente
não os dois únicos): a expulsão de Artaud e o ingresso no Partido Comunista.
● FEVEVEIRO 09
FM | É curioso confrontar as exposições internacionais do surrealismo que
foram organizadas por representantes do movimento com aquelas que são registros
históricos do mesmo, em geral curadas por galeristas ou estudiosos. O ponto de
dissidência não surpreende e se encontra na casa de uma dissociação esperada de
visão sobre o tema. De um lado a previsão de um tempo que se converterá em
história; de outro uma reflexão sobre o fato ocorrido. O primeiro insight é o
da paixão vibrante, sendo o outro o da aclimatação crítica ao ambiente registrado.
Assim como é distinta a natureza de sua montagem, deve igualmente ser distinta
a leitura crítica que se faça a respeito. A primeira exposição internacional do
Surrealismo se deu em 1938, em Paris, uma afirmação conjunta de uma entranhável
multiplicidade de pensamento e ação, o que sempre caracterizou o movimento.
Como a ideia central era a máxima exploração do inconsciente, ao reunir
inúmeras inquietudes do espírito de cada um de seus participantes tal exposição
caracterizou-se, antes de tudo, pela surpreendente vertigem que a arte poderia
aclimatar em seu ambiente estético, com o detalhe de que tal vertigem deveria
vir de mãos dadas com a própria existência de seus criadores. Aquela fatia do
público que não se sentiu, como era plenamente previsível, ultrajada pelo que
ali se expunha, deixou-se fisgar por essa intensidade de uma descoberta de
novos mundos, dentro e fora de si. Este é o momento em que o Surrealismo se
mostra em sua mais plena zona de germinação. O outro momento diz respeito a uma
busca de afinidade ou compreensão do que a memória acumulou como sendo a
expressão de um vetor do tempo. A distinção radica basicamente entre buscar uma
cumplicidade e uma aceitação. O cuidado que se possa fazer em relação a ambas as
prescrições é marcado pelo discernimento de que a história jamais pensa em si
mesma no instante em que ocorre. Consequentemente não se pode recriminar o fato
em si, mas sim a sua incorporação a um presente contínuo. Esta é uma delicada
película, porque o fato em si pode ser de extrema violência, mesmo que
provando, no decorrer de uma cristalização como parte da história, sua condição
indispensável, inadiável. Pensemos na decisão de uma mãe abortar ou na
aparentemente intempestiva decisão de um tratado de guerra entre nações, nem
sempre o que consideramos história se afirma de modo negativo por tais
determinações. Ao ato em si, qualquer que seja ele, não cabe um julgamento de
valor? A história estaria montada então a partir da leitura dos interesses de
quem a guarda. Uma vez firmada pelo homem, também a história é o registro do
fato em si e sua circunstância. O que isto tem a ver com o Surrealismo? A
dissensão registrada entre exposições internacionais realizadas segundo a ótica
dos dois tipos de curadoria aqui referidos, de que forma são, cada uma à luz de
suas pretensões, a luz real, ao longo de quase um século, de um movimento tão
expansivo e contraditório como o Surrealismo? Também no continente americano
proliferaram os dois modelos de exposição, recriações de um ambiente
fervilhante e incessante da aclimatação entre sonho e vigília, ao lado de
homenagens ao passado, reconhecimento de um dos mais expressivos marcos das
artes em toda a história da humanidade. Desde a exposição realizada no México
em 1940 até um registro mais recente, na Costa Rica, em 2016.
LF | Este texto traz um novo olhar para a história do Surrealismo. É
absolutamente real e mostra o quanto o movimento é contraditório. Quando você
menciona o vetor memória, me mostra um clima próximo do Quarteto de Alexandria, onde o cubo tem mais facetas que podem
facilmente ampliar seus polígonos numa geometria com óticas que perdem sua
linha mestra. Embora os fios condutores sejam os mesmos. Se esse é ou não um
processo violento, não sei. Contudo é um processo de sucessivas rupturas e
retomadas. Talvez o Surrealismo seja o único movimento na história da arte no
qual isso seja possível. Mesmo que contraditório.
*****
Leila Ferraz (Brasil,
1944). Poeta, artista plástica, ensaísta. Contato: leilaferraz2006@gmail.com.
Página ilustrada com obras de Leila Ferraz (Brasil), artista convidada desta
edição de ARC.
*****
Agulha Revista de
Cultura
Fase II | Número 19 | Agosto
de 2016
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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