Julho
de 2016. O segundo capítulo da série “A inutilidade das fontes” apresenta agora
um diálogo entre os brasileiros Valdir Rocha (1951) e Floriano Martins (1957),
onde artista e poeta conversam sobre criação e visão de mundo. Trata-se de
encontro relevante, registro de uma conversa franca entre dois criadores que
mesclam reflexões e informações sobre aspectos do mundo da criação artística.
FLORIANO MARTINS | Nós dois nos conhecemos relativamente há
muito pouco tempo, porém nos três ou quatro últimos anos nos afinamos de um
modo bastante peculiar, resultando em uma avalanche de parcerias, mesclando
nossas artes: poema, teatro, vídeo, pintura, desenho, fotografia, gravura,
escultura. Editamos livros, vídeos, gravamos entrevistas. Temos já uma
relevante bibliografia, o que certamente nos orgulha muito, pela conquista de
uma alteridade que nos é de grande essência. Sob muitos aspectos a nossa
experiência criativa em comum me levou a aprender muitas coisas sobre a minha
obra e sobre a minha pessoa. O mais curioso, no entanto, é que até o momento
não tivemos uma única dissensão.
Francis Bacon disse
certa vez que criadores são tão vaidosos de sua personalidade quanto de sua
obra, porém destacando que “se sentem menos obrigados para com a personalidade,
achando que podem trabalhá-la e mudá-la, enquanto com a obra, depois de vir a
público… bom, nada mais pode ser feito”. É uma firmação a ser ponderada, porque
personalidade e obra, uma vez vindas a público, podem sim, me parece, sofrer
alterações, para o bem ou para o mal. E caberia ainda indagar que tipo de
relação existiria, caso a caso, entre obra e personalidade. Começamos por aqui?
VALDIR ROCHA | Vamos nessa, amigo
Florins.
O tempo conta com variadas formas de contagem. Um pouquinho só pode ser
demasiado; muito, insuficiente. Questão de intensidade, não é mesmo?
Tenho poucos amigos, mas o que me basta. Aliás, um deles, dileto,
costuma lamentar só ter uns dezessete. Acho que dezessete é número muito grande
para se contar como amigos. Os amigos de verdade dão muito bom trabalho e
consomem tempo e energia – e isso não é um lamento e, sim, forma de afirmar que
amizade pede dedicação, atenção, acompanhamento. Claro que as pessoas muito
disponíveis podem acumular mais de tudo do que as pouco. E curioso: nem sempre
a amizade é via de duas mãos, porque é possível sentir-se muito amigo de fulano
e este não ter a mesma impressão. Não se encomenda um amigo, não adianta dizer
a alguém "quero ser seu amigo", para que isso se dê.
Tenho pena desgraçada de quem não tem amigo qualquer. Isso deve ser um
inferno. Amizade é coisa suprema.
Outra coisa: cada pessoa tem suas idiossincrasias, ritmo e medidas. Tudo
é circunstante. Por isso que grandes amigos podem ser levados de cá para lá e a
distância é atrapalhadora.
A palavra amigo é mutável em
sua significação como qualquer outra. Se pensarmos em algumas amizades célebres
(Apolo e Jacinto, Davi e Jônatas, por exemplo), passando pelos amigos das
cantigas medievais e os amigos de
Facebook, já dará para se ver que ela abriga muitos enganos.
Dispensável lembrar as categorias, que só menciono para constar: amigos,
colegas, parceiros, conhecidos etc.
Sabe, Florins, estamos geograficamente distantes para algumas coisas mas
para outras isso não atrapalha em nada. Claro que a Internet aproxima e
provavelmente determina a feitura de muitas coisas que temos feito, sem contar
algumas que eventualmente têm largada, mas sem linha de chegada, porque talvez
falte interação.
Nossa amizade é feita de afinidades, mesmo nas divergências. Por
exemplo, você é uma peça do surrealismo que eventualmente resvala no
expressionismo; eu sou o inverso. No entanto, quando se pensa que as divisões
são um tanto quanto arbitrárias, não será errado que isso tudo é farinha do
mesmo saco. Elejo sempre as confluências.
Também tenho aprendido muito com você. E tem mais: admiro sua
criatividade. Aliás, aprendo com tudo e todos, inclusive com os erros gerais,
ainda que com algumas pessoas eu venha aprendendo mais. Com você aprendo
bastante, inclusive em procurar evitar vulcanizar. Você é um vulcão criativo,
sim; isso é bom para a criação; não sei se para a saúde física e mental… Será
que dissenti, só para contrariá-lo?
Sei que você não vai mudar, porque sua obra é intrínseca à sua
personalidade.
Falei. Em outra ocasião, falarei mais de obra e personalidade.
Retruque, caro amigo, se puder e tiver ânimo para isso.
FLORIANO MARTINS | Creio que não temos o menor talento para a
dissensão (risos). Há uma tensão constante nas relações entre a criação
vulcânica e a saúde física e mental, não há dúvida. Por a vida, assim como a
arte, conta mais pela realização do que propriamente pela intenção. Creio que
deve ser ainda mais sofrível a vida daqueles criadores – e conheço muitos assim
– que padecem de certa dureza expressiva, a quem lhe custa muito criar, que
extrai suas obras a fórceps. Cria-se aí uma tensão que seguramente deve afetar
muito a estrutura orgânica do mesmo. Há também inúmeros artistas que creem que
seu testemunho acerca do tempo em que vive deve ser o espelho da realidade.
Isto pode até estar certo desde que se compreenda qual o verdadeiro truque de
um espelho. O espelho é um ilusionista, ou somos nós, ilusionistas natos, que
convertemos a areia em espelho, movidos pelo desejo de criar um personagem
outro que nos seja satisfatório. O Fellini iluminou o tema ao afirmar que
“ninguém é mais realista que o visionário; ele dá um testemunho de si mesmo
mais rico e complexo do que aquele que retém uma impressão sensorial da realidade
que está observando”.
Esta sempre foi,
digamos, a minha intuição acerca da criação. Com o tempo ela foi se
configurando, e hoje, uma inevitável, embora nem sempre garantida, maturidade, me
leva ao que já chamaste de “estado de criação”. O meu ponto de vista já está
completamente fundido com a realidade, seja em seu ambiente mais visível, seja
naqueles recantos em que ela adora ocultar-se. Com isto, eu dei mais densidade
e nitidez ao que crio, sem que a minha natureza vulcânica seja um obstáculo no
que diz respeito à qualidade estética de minha obra. Por isto não encontro
razão para crise na criação. Acho uma tolice imensa algum artista referir-se a
crise de criação. Há, sim, crise de produção, que já é outra coisa, e hoje tão
inevitável quanto impossível de erradicar a brutalidade vulgarizante do mercado
das artes.
Hoje nós vivemos o
reinado da indiferença, cenário de espetacularização fragmentada, que embota os
sentidos ao ponto de que até mesmo os criadores começam a perder seu ponto de
vista. É uma verdadeira catástrofe que liquida com a sociedade humana em sua
raiz fundamental: de percepção do outro. E sabemos que sem essa bússola da
alteridade desaparece justamente o que nos torna humanos: a solidariedade
genuína.
VALDIR ROCHA | Você está muito enganado
na sua crença, Florins. Por mim, sou muito talentoso para o dissenso. Adoro
dissentir. Sou uma pessoa das mais dialéticas que você poderá encontrar por aí.
E a dialética vive de confrontos, dissensos e divergências. Não me refiro ao
discordar só para ser do contra. Discordo para atiçar o co-dialogante a me
convencer de que aquilo que sustento – mesmo que por mero capricho – não é a
melhor posição sobre certa ideia, pensamento ou atitude. Entende?
Sim,
concordo, a realização vale muito mais do que a intenção. Conhecemos pessoas
que passam a vida a projetar mil coisas que não se realizam, até porque podem
mesmo ser irrealizáveis.
Entretanto,
a tensão criativa permanente pode quebrar a veia. Ora, sei que cada qual tem lá
seu ritmo. E ritmo bom é o do automático para alguns e o do amadurecido para
outros. Quer saber como faço em minhas atividades criativas? Mesclo bastante o
automático com o amadurecido. Talvez seja melhor que você não entenda como é
isso.
Toda
criação valiosa registra seu tempo, ainda que indiretamente. Aprecio mais
aquela que diz com o sempre, a perene. Você sabe que há anos cheguei a um
neologismo para isso: pantemporâneo.
Coisa
diversa é a obra datada, no sentido de que habilitada a dizer algo de apenas um
momento. É o caso dessas que podem até fazer furor em um instante e depois
podem ser descartadas sem deixar rastro nem saudade para ninguém.
Quer
ver uma coisa digna de nota: seus poemas testemunham nosso tempo, ainda que não
sejam noticiosos. Nem se atreva a desdizer isso.
Um
conforto? A minha obra plástica também, ainda que eu não mire certo dia, mês ou
ano, porque pretendo que ela diga com o sempre. É certo que entre a pretensão e
seu alcance sempre há distância grande. Não estou a afirmar que eu logre
encontrar o que pretendo.
Para
mim, a criação não pode ser ato dolorido. Ao criador, toda obra inclusive as
mais cruéis, dramáticas e terríveis deveriam resultar de certo prazer. Se, para
alguns, a criação é ato dolorido, será porque não terá descoberto esse segredo.
Há
autores de obra solitária e única que até pode ser magnífica. Tudo bem se se
dão por satisfeitos. Tudo mal se são apenas preguiçosos.
Espelho?
Florins, todas as obras criativas são espelho da realidade. Não tenha dúvida
disso. Sejam os espelhos planos, bisotados, côncavos, convexos, ondulados,
límpidos ou turvos, iluminados ou não. Espelho, espelho meu. Nem todos os
espelhos são sinceros. Nem as fotografias são.
Somos
antes de tudo personagens de nós mesmos, sempre. Se todos os homens são atores,
os criadores exacerbam isso.
Os
visionários são inventores de espelhos.
Crise
de criação existe, sim, e decorre de crise do autor. Sei de autores que só
escrevem em estado de perigo pessoal e até de quem, sem depressão, ficam à
deriva criativa. Se sararem, matam o autor.
A
alteridade, como você a refere, é solidariedade salvadora. Ato falho: convergi
– "errar é humano".
FLORIANO MARTINS | Teu talento para a dissensão permanece
oculto, pois estás a todo instante a concordar comigo, sobretudo quando fazes
questão de evocar alguma discórdia (risos). É que talvez sejamos um o espelho
sincero do outro. Não há dúvida de que aquilo que crio é testemunho de um
tempo, reflexo de uma existência, e não se vive no vazio. Porém não é
testemunho integrado à própria cena narrada. De um modo ou de outro – porque
afinal são inúmeros os caminhos – chegamos à raiz de teu neologismo: pantemporâneo, o que me recorda um belo
poema do Carlos Drummond de Andrade em que diz: “Aprendi novas palavras e
tornei outras mais belas”. E este é um dos grandes segredos da criação, ao que
faltaria referência à invenção de neologismos. Aprender, tornar, inventar. É
uma tríade fascinante. A poeta costarriquenha Eunice Odio se orgulhava de haver
inventado uma palavra: pluránimo. O
teu neologismo é uma evocação de todos os tempos, o dela é uma evocação de
todos os ânimos. Todos os tempos em uma mesma alma, todas as almas em um mesmo
tempo. Para além da invenção, em teu caso, pantemporâneo
também foi um espaço de reflexão e difusão, que criaste e dirigiste por algum
tempo. Seria bom que nos falasses aqui um pouco a este respeito, assim
começamos a adentrar outra matéria, o tema das nossas realizações que atuam de
modo paralelo ao de nossas criações. Em seguida falaremos da criação em si,
pois tem um particular interesse em saber como as formas de agrupam e assaltam
a visão de um artista plástico.
VALDIR ROCHA | Meu talento e habilidade
para a dissensão estão justamente em fazê-lo acreditar que, divergindo, estou a
concordar com o interlocutor.
Sinceramente,
todos os indivíduos espelham-se entre si. Não sei por que você tem dúvida sobre
isso, como manifesta com o seu “talvez”.
Não
sou e você também não é, com a obra criativa de cada um, testemunha em cenas,
apenas se se entender isso como confessional. Ressalvo que desenganadamente eu
me aproveito da ficção para contar algum pequeno delito, como o fiz, por
exemplo, em… não vou contar.
Você
também não confessa disfarçadamente?
Os
poetas, sobretudo os brasileiros, em geral estão hoje muito voltados para
o EU. O culto do próprio umbigo não é um narcisismo? O narcisismo não é
literalmente confessional?
Uso a
palavra pantemporâneo para significar
aquilo que diz com o permanente, com o perene, aquilo que existe desde outrora
e possivelmente persistirá até mesmo na pós-história. Desse modo, mais do que
contemporâneo (aliás, esse termo parece cada vez mais bobo e desgastado, a
ponto de significar nada mais), quero, porque quero, ser pantemporâneo. O ambiente cultural é um caldeirão em que se acumula
tudo, pelas eras, não há como negar isso.
Vali-me
do neologismo referido para, com a Lídia, minha namorada de décadas, criar o
Lugar Pantemporâneo, com a intenção de que fosse um Lugar de Imagens, Livros e
Ideias (não por acaso as iniciais eram de LILI). Foi um espaço cultural em que,
no período de 2009 a 2012, efetivamente foi possível realizar mostras de vários
artistas, apresentar poetas e escritores, fazer circular informações e
pensamentos. Ali, além de exposições coletivas, aconteceram mostras de Wega
Nery, Nelson Screnci, Kenichi Kaneko, Baravelli, Gruber, Francisco Baratti, Alê
Prade, Paulo Cheida Sans e outros; encontros muito gostosos com poetas como
Álvaro Alves de Faria, Celso de Alencar, Claudio Willer, Eunice Arruda, Glauco
Mattoso, Helena Armond e Mirian de Carvalho. Os eventos geralmente eram
registrados em vídeos que pululam por aí. O fato é que, depois de pouco
tempo, cansei-me e passei a dedicar ao Lugar Pantemporâneo cada vez menos
atenção, deixando-o quase sempre sob o cuidado de outras pessoas, mesmo porque
o voltar-me ao trabalho de outros me tirava o tempo necessário a dedicar-me ao
meu. Foi bom e realizador enquanto durou; não lamentei quando terminou. Passou
e ficou.
Não
sou passadista, nem presentista, nem mesmo futurista. Talvez esteja mais para
pós-histórico. Tudo conta.
E você, meu velho, como vê
essa questão do tempo na poesia e nas artes?
FLORIANO MARTINS | Se observarmos com atenção a biografia de um
cineasta como Roman Polanski é fascinante descobrir que sua vida inteira se
encontra espalhada por seus filmes. Ele próprio é um personagem de sua criação.
O meu “talvez” é uma forma de manter a alma sempre inquieta. Logo terás que
confessar alguns de teus delitos, porque insistiremos neles.
O coma de minha avó
materna mudou a minha poesia e levou consigo a minha vida por novas paragens.
Princípio dos anos 1990, eu vinha fazendo experiências com uma linha narrativa
épica mesclando poema e imagens plásticas, colagens e recortes de quadrinhos.
Havia publicado um libreto, Contradições
terríveis () e tinha acabado de escrever outro, mais extenso e ousado em
suas imagens delirantes e no velho truque de aproximação de ambientes
contrários. No entanto, algo me faltava, algo me abastecia o celeiro
existencial de insatisfação. Ao voltar da casa de minha avó, certa manhã, de
repente me vejo a escrever de modo intenso, quase como se psicografasse algo,
no dia seguinte do mesmo modo e, em exatas três manhãs eu havia escrito a prosa
poética de Cinzas do sol (1991). Ali
sim, estava o germe de uma poética, onde o meu espírito encontrara finalmente
um ponto de fusão com o espírito humano como um todo. Ali estávamos todos, o
mundo e eu, mas principalmente ali eu estava pela primeira vez, como personagem
de minha criação. Logo vieram outros livros, em que se confirmava o alcance de
uma voz própria. Finalmente a minha poesia se deixava beneficiar por aqueles
aspectos que mais me marcaram a infância e a adolescência, como o teatro, a
tragédia, a narrativa, o epos, porém
não isoladamente, eu queria tudo ao mesmo tempo, dentro do poema. Ritmo,
enredo, personagens. Fusão de gêneros. Aspectos como a crônica de uma paisagem
isolada, certo hermetismo, essa intrigante forma de abstracionismo da escrita,
tudo havia desaparecido. Eu descobrira um novo ciclo de afluentes que me
levariam ao estado alquímico perfeito, a mescla de densidade e nitidez, o que
sempre considerei o ponto alto da criação. Graças ao coma de minha avó, a
perspectiva real da morte me atingindo como uma faca no peito, eu descobri o
que sempre havia faltado em mim.
Antes de vir aqui
conversar contigo eu estava assistindo uma larga entrevista com Roman Polanski
em que ele detalhava passagens fundamentais de sua vida e o documentário ia
mostrando cenas de seus diversos filmes. Ali estava ele, por trás de cada
fotograma, revelado por essa intensa magia que funde vida e obra.
Este é o tempo da poesia
e das artes, Val. Estás completamente certo ao dizer que em mim o surrealismo
resvala no expressionismo, mas não te esqueças, ali também se encontram
barroco, simbolismo, teatro do absurdo, romantismo…
Em teu caso esse
expressionismo figurativo obcecado por revelar a totalidade do mundo dentro de
um rosto, de tal modo que mesmo quando nos deparamos com a figura inteira,
humana ou não, o que vemos nela é antes de tudo a expressão de seu rosto. Como
se algo em tua obra exigisse do espectador concentrar os seis sentidos em um
só, o olhar. Mas disto falarás tu, agora.
VALDIR ROCHA | Toda obra autoral só o é
na medida em que diz com quem a cria. Michelângelo, ao tomar algum jovem como
modelo de seu Davi, terá escolhido alguém que encantara o seu olhar e,
possivelmente, o seu tato etc.; da mesma forma, a cabeça decepada do Golias, de
Caravaggio, é a do próprio pintor. As escolhas são recortes do eu.
É
possível que só em certas obras coletivas a autoria se esgarce um pouco. Ainda
assim, se considerarmos o cinema e o teatro, por exemplo, se tem muito da
presença do autor (roteirizado ou roteirista) e do diretor. Isso para não referir
o papel importante que atores e atrizes desempenham, sem contar que em certos
casos, como o de Chaplin, tudo se funde.
O
criador é sempre personagem, mais ou menos oculto, de sua criação. Quanto mais
oculto, melhor.
Essa
psicografia que você refere (e que eu preferiria grafar entre aspas) é uma
experiência pela qual também já passei muitas vezes. Quando me tomo em estado
de criação intensíssimo é como se eu saísse de mim para dar lugar a outro eu.
Nesses momentos (que felizmente são esparsos nos anos), sou péssimo
interlocutor até das pessoas mais próximas, porque nada mais me interessaria
(não ouço, não vejo o mais). Então, tenho que trabalhar intensa e furiosamente,
para que coloque fim, o mais rápido possível, naquilo que me absorve e arrasta.
Quando estava desenhando "SÓS", "Confidências" e
"Pós" isto se deu claramente. Idem, nas horas em que me pus a
escrever O Chapéu. Não é que me
tornei zumbi, alienado ou maluco, mas sei que foi quase isso, com essa entrega
pessoal. Daí, não se deve chegar ao ponto de se imaginar que tudo deva girar em
torno apenas e tão-só do próprio umbigo. Todos conhecem exemplos clássicos de
pessoas que, enredadas em sua criação, piraram de vez.
Isso
que você chama de voz própria (e que eu poderia tomar também como de mão própria)
pode estar em trabalho épico ou lírico. A desgraça está em que alguns tomam a
obra lírica que realizam ou pretendem realizar como obra egoísta, e não há
sinonímia possível nisso. A coisa egoísta é limitada ao extremo e desinteressa
até à mamãezinha de quem a faz.
Ainda
sobre essa intensidade na feitura, há coisas que, na hora do parto, surgem
prontas e outras que vêm como um aborto. Com certa frequência, preciso jogar
fora algumas coisas que fiz e não passaram pelo meu teste de acabamento.
Semanas atrás, modelei em cera o que deveria ser uma escultura a ser fundida e,
quando voltei a ela no último sábado, vi que não havia alternativa senão
destruí-la, porque faltava nela a minha personalidade.
"A
perspectiva real da morte", que você refere e remete a novos caminhos, é
dessas coisas mágicas. Nestes dias estive lendo um texto rico e delicioso de
Guillermo Solana, em catálogo da exposição "Lágrimas de Eros", que
aconteceu no Museu Thyssen, de Madri. O autor refere, partindo de Georges
Bataille, a íntima relação entre Eros e Tánatos, "entre a pulsão sexual e
o instinto de morte". Veja que alquimia.
Toda
grande obra criativa realiza alquimia.
Vida e
obra fundem-se – concordo. Por isso, é falsa a obra que imita, copia ou plagia.
Espera-se sinceridade do autor e da sua obra. Todos têm o óbvio direito de
desgostarem de minha obra, mas não o de duvidarem da sinceridade nela contida.
Quando
desenho, esculpo ou pinto uma cabeça de pessoa que não existia, na verdade
boto-me nela enquanto qualquer indivíduo desse universo que integramos. Curioso
que, ocasionalmente, outra dessas cabeças (corpos) vem a lembrar-me de alguma
pessoa. Acaso. Se você se puser na minha frente e eu disser que vou desenhá-lo,
saiba de antemão que isso é uma mentira porque não me interessam os olhos, as
bocas e os narizes de uma pessoa, se posso, em única imagem, representar
"n" pessoas, eu incluído. Diferente é o caso em que tomo uma
fotografia de um alguém qualquer e rabisco sobre ela, porque aí já será um
exercício de deformação (pode se dar de eu deformar só um pouco e será para não
ganhar um inimigo).
FLORIANO MARTINS | Claro, claro, comigo se passa o mesmo, porque
mesmo que estejamos diante de um modelo ou de uma intenção, o que brotará será
uma visão outra daquilo que vemos, será um vislumbre do que se encontra diante
de nós já em sintonia com outros tempos, outras dimensões, porque a criação não
se realiza somente em um tempo, somente em uma dimensão. Voltamos ao pantemporâneo, ao pluránimo, ao “tu somos eu” – para citar fala de personagem de um
poema meu. Naturalmente o que vemos é a soma de todos os mundos que interessam
à criação. Há certo transbordamento do invisível que somente o olhar da criação
consegue captar. Isto sem esquecer o sempre revelador acervo do imaginário. O
estado de quem se encontra tomado pela criação é mesmo indigesto para as
relações sociais, mesmo domésticas, porque adentramos uma espécie de portal
ardente onde observamos o mundo sob as mais variadas perspectivas, de tal modo
que é impossível saltar dessa estação verdadeiramente mágica. O que o passar do
tempo nos traz – pelo menos em meu caso – de imensa fortuna é que o processo se
torna mais íntimo, entramos e saímos nela já com certa naturalidade, ciente de
seus limites e consequências, o que não quer dizer que nos conformemos com um
modelo – como ocorre com muitos – e passemos a viver à sombra de seus efeitos.
A leitura de O chapéu foi algo reveladora para mim.
Confesso que eu observava certos truques de linguagem como algo que ao mesmo
tempo em que me fascinava me dava uma inexplicável certeza de que eu não
poderia operar com eles. Há uma fabulosa família que lida com o nonsense em uma esfera mais
acentuadamente satírica, como Hans Arp, Eugène Ionesco, Federico Fellini,
Vicente Huidobro, que eu sempre admirei, porém com uma distância quase
reverencial no que diz respeito a esse ambiente do nonsense em suas narrativas (teatro, roteiro de filme, prosa
poética). Ler O chapéu coincidiu com
a minha aproximação do Zuca Sardan, e os dois encontros me despertaram essa
inquietude que faz dar vazão a outro eu tomado por uma boa dose de paixão pela
estética de um teatro do absurdo. O que foi decisivo para que, de imediato,
passássemos a escrever uma série de três peças de teatro, a quatro mãos, Zuca
Sardan e eu.
Esta é uma experiência
muito curiosa, e que nos ajuda – ao menos observo esse efeito em mim – a limpar
a casa do ego. Refiro-me à criação compartilhada. Se nos sentimos tão bem aqui
neste nosso diálogo, por que seria diferente na hora de criarmos algo a quatro
mãos? Afinal, como tão bem lembraste, quanto mais adentramos o ninho da criação
mais se torna indispensável uma alta voltagem de sinceridade. Antes da
experiência com o Zuca Sardan eu já havia realizado outras aventuras
compartilhadas, no poema, o que resultou em livros com os poetas Manuel Iris
(México) e Viviane de Santana Paulo (Brasil). É algo que me fascina, não apenas
porque nos revela chaves até então insondáveis da alteridade, mas também porque
acaba com esse mito enfadonho do poeta como um deus. Contigo, já chegamos perto
disto, pois já escrevi sobre conjunto de desenhos, gravuras em metal e
esculturas de tua autoria. Crês que poderia inverter a polaridade e criar a
partir de poemas meus? A fortuna de uma escrita compartilhada nós ainda não
alcançamos, porém já trabalhamos com a fotografia e o desenho, com uma parceria
deliciosa de interferências de um no trabalho do outro, o que resultou em um
belo DVD intitulado justamente Interferências.
VALDIR ROCHA | Suas considerações abrem
espaço para algumas notas. Você tem facilidade em colocar claramente coisas
difíceis; por exemplo, isso que refere como transbordamento do invisível pelo
olhar da criação. De anos para cá, todas as pessoas somos solicitados a cada
instante para mais imagens do que conseguimos absorver. E isso é muito bom, mas
pode dar a falsa impressão de que tudo está sendo construído agora. Não se pode
perder a noção de que cada coisa nova resulta de inúmeros encontros anteriores
e que as de agora também somarão em prol das que virão. O mundo é e
sempre foi assim, tão pantemporâneo.
O
invisível é uma coisa engraçada porque, em princípio, estaria ao alcance de
qualquer pessoa, mas – ainda bem… – só algumas conseguem enxergá-lo. Tenho
fotografado muitas coisas que estão diante do nariz de qualquer um e passam não
notadas. O segredo é olhar para cima, para frente, para os lados e para o chão.
Todas as coisas se encontram numa dessas posições. Tenho feito recortes (sim,
fotografar é recortar) que me cativam. O problema é que muitas vezes preciso
driblar o trânsito de transeuntes e de automotores, dado que esses recortes
podem estar, por exemplo, no meio de uma calçada ou de uma rua. As pareidolias,
em particular, agradam-me sobremaneira. Preciso fotografar, rabiscar e pintar
sobre a coisa fotografada, para que outro "veja o que eu vi".
O amadurecimento
que o tempo traz é muito relativo, se pensarmos que a prontidão resulta de
intensidade de propósito criativa e esta vai e volta.
Você
volta a O Chapéu. Pois bem, a
experiência pessoal que tive com esse texto me é muito rica. Acordei com toda a
sua estrutura pronta, em certo dia. Tive medo de esquecê-la. Pus-me a redigir
feito um louco (a exemplo desse tal Floriano Martins), ainda de pijama, sem
café da manhã, sem mais nada. Ainda bem que depois de certo lapso a Lidia
passou a cuidar de colocar na minha frente alguma coisa para eu mastigar e
ingerir. Parei depois de muitas horas, quando quase tudo estava gravado. Claro
que voltei ao texto nos dias seguintes, só para retocar aqui e ali. Curioso que
não sou muito de recordar sonhos tidos; da noite, lembro, sobretudo, ideias
visuais servíveis a serem copiadas. Afinal, essas lembranças advindas de sono
noturno, quando aproveitadas, hão de ser tidas como plágio ou cópia ou o quê?
Onde está Freud para me responder a isso?
Reconheço
que O Chapéu pode ter bastante de nonsense. Talvez tenha mais de
significados estranhos. Não se esqueça de que ele contém muito de jurídico,
meta-jurídico e não jurídico. Devo lembrar que tenho formação jurídica e atuei
muito com o Direito, especialmente enquanto editor, sendo como sou advogado de
carteirinha, inclusive com títulos de doutor e livre-docente, sem ter querido
deliberadamente fazer carreira acadêmica porque, certamente seria um professor
medíocre. Aliás, durante muito tempo, quando me perguntavam o que eu preferia
fazer – trabalhar com o Direito ou com as artes – sempre respondia que com os
dois. Entretanto, de certo tempo para cá, reconheço que estou me afastando –
talvez irreversivelmente – do Direito, a que muito devo, como você sabe.
As
coisas sempre acontecem na hora certa. Sua colaboração com Zuca enriquece aos
dois. Sou obrigado a concordar que a obra compartilhada, ou em colaboração,
pode mexer com o ego (para o bem e para o mal, a depender de como ela
efetivamente acontece). Se contar com efetiva dose de desapego de cada
partícipe, o que surge do conjunto, se for valioso, engrandece a todos.
Você,
como eu, conta com diversas iniciativas em colaboração, também para além de nós
mesmos. Crescemos.
Já
trabalhei com fotografias suas, piorando algumas e melhorando outras com
certeza. Com textos escritos que devesse ilustrar com imagens visuais, encontro
dificuldade por uma limitação pessoal – não sou bom ilustrador. Certa vez, fiz
ilustrações para livro do amigo Péricles Prade; foram publicadas juntamente com
seus contos. Queria fazê-las à altura, mas reconheço que resultaram
pobrezinhas. A ilustração constitui outra categoria; serve apenas de escada.
Por isso que nos casos em que tenho imagens visuais publicadas ao lado de
poemas, a força de cada um vem da individualidade de umas e de outros: nem as
imagens ilustram poemas nem estes aquelas. Geralmente, a temática é o ponto de
confluência.
Somos, eu e você, dois interferentes, talvez fosse melhor dizer xeretas. Digo, por mim: sou xereta em tudo.
Somos, eu e você, dois interferentes, talvez fosse melhor dizer xeretas. Digo, por mim: sou xereta em tudo.
FLORIANO MARTINS | Esta é uma ideia que sempre me fascina, eu
sempre digo que, exceto pelos poemas, em tudo o mais eu sou um intrometido, um
xereta, um menino curioso por desmontar o brinquedo para saber o que tem em seu
íntimo. E é fácil constatar, observando meu ensaio ou minha fotografia, que a
rigor eu sou um poeta, embora esta assertiva possa não passar de um truque.
Como eu suponho haver
deixado claro no posfácio de O chapéu,
o recurso estilístico do texto não é propriamente nonsense, mas antes trata, através do que chamei de dramatização da
ironia, do nonsense em que
transformamos nossas vidas. Que bonito saber agora que é também uma obra de
criação automática. A propósito de automatismo, recordo que me foi muito rica a
experiência provocada por ti de criação automática de poemas diante de uma
câmara. Resultou algo revelador o vídeo dirigido pelo Pipol: Abismo minucioso (2014). A câmara tem um
intrigante componente inibidor que pode tanto estancar a veia da criação quanto
mascarar a sinceridade. Creio que passei bem no teste e tenho vontade de
repetir a experiência.
Outro ponto aqui evocado
diz respeito à ilustração. Não creio que tenha sido isto o que fiz ao criar
poemas sob a sugestão imagética de teus desenhos, gravuras e esculturas. Jamais
me interessaria utilizar a criação de um como explicação ou decoração em
relação à criação do outro. O que fiz foi tratar de dialogar com as tuas
imagens, com o fraseado invisível de sua rede de sugestões, o que por vezes me
levou a compor um poema que para muitos pode estar por completo dissociado da
imagem a seu lado. Este então seria o resultado mais feliz, o instante em que o
confronto entre dois opostos não age no sentido de um eliminar o outro, mas sim
de criar um terceiro elemento. Isto recorda o clássico conflito entre o
masculino e o feminino que, quando incorre em mera disputa de espaço e uma
força elimina a outra, acaba resultando, do ponto de vista social, em
matriarcado ou patriarcado. A política se tornou uma excrescência justamente
por se utilizar desse mecanismo de eliminação do outro. Na religião, a evocação
da Grande Mãe, ou princípio feminino, não eliminava o oposto, como o faz a
tríade cristã (Pai, Filho, Espírito Santo), ao eleger o princípio masculino,
contrário a uma tradição mitológica. Enfim, de contradições o mundo é mesmo um
poço sem fundo.
O teatro que ando
criando com o Zuca Sardan – já estamos com bom caminho andado na escritura da
terceira peça que compõe uma trilogia – se utiliza de mecanismos do teatro do
absurdo, da patafísica, do surrealismo, da performance, do mundo pop, o que lhe
dá intensa agilidade e uma variação frenética de modos de tratar cada tema. E,
a exemplo do que consegui na escritura a quatro mãos de poemas, também aqui
vemos desaparecer o ego, no sentido de uma contenda de identidades, e surgir um
elemento comum, outro, que funde as duas partes, sem que uma elimine a outra.
Somente neste sentido me interessa compartilhar mundos.
Temos conversado sobre
muitos aspectos de nossas criações, mas há um em particular que eu gostaria de
referir. Como eu disse certa vez, és um exímio embaralhador de feições, cuja
magia maior é justamente a da sugestão de um amplo espectro de leitura, de
percepção, por parte do observador de tua obra. De que forma são eleitos temas
e gêneros?
VALDIR ROCHA | Você diz que
"a rigor eu sou um poeta, embora esta assertiva possa não passar de um truque".
Ora, então eu também sou um poeta. Uma das acepções mais correntes que essa
palavra tem é a de lunático, nefelibata, alienado. Com certeza, não é por aí
que nos encaixamos nessa palavra, tão lúcidos somos.
Sou um poeta pelo menos na tentativa de praticar poesia. A poesia é um
gênero grandão que engloba tanta coisa. Minha poesia é plástica; a sua,
sobretudo verbal. Por que só os poetas verbais, cultivadores do verso, se
diriam poetas?
Não caio em sua armadilha, quando me joga às feras com a afirmação de
que achou "bonito saber agora que [O
Chapéu] é também uma obra de criação automática". Não é, não. O Chapéu foi muito bem pensado durante
toda uma noite de sono bem dormido. Vou além, a experiência poética, gravada e
editada em vídeo pelo saudoso amigo Pipol, em seu Abismo Minucioso também nada
contém de escrita automática. Dela, poder-se-ia dizer rápida, instantânea ou
ligeira, mas, ora, tudo aquilo já estava em sua cabeça de poeta praticante.
Toda a sua produção poética anterior terá servido de treino ou rascunho para
aqueloutra. Os poemas ali criados são de um cara bem desinibidinho, por
natureza e por conta de cervejinhas relaxadoras. Por conta de uma e outra
coisa você se saiu muito bem. Não são muitas as pessoas com quem se poderia
fazer tal jogo. Com você, as cervejinhas funcionaram muito bem.
Nas aventuras conjuntas que realizamos ninguém ilustra ninguém,
obviamente. A beleza está em que seus textos correm soltos dos meus desenhos,
gravuras e esculturas. Há diálogo pleno que – você tem razão – cria um terceiro
elemento. Mal comparando, é como se você fosse uma mulher fertilizada com minha
semente para criar outra coisa.
Os homens somos muito egoístas. Precisamos dar mais espaço para a
alteridade. Você tem dado muitos passos nessa direção, seja comigo, seja com
Zuca, com tantos. Sinceramente, envaidecem-me as realizações conjuntas que
empreendi com você, com Álvaro Alves de Faria, com Celso de Alencar, com Eunice
Arruda, com Raquel Naveira e tantas outras pessoas criativas. Acho que essa
vaidade tem um quê de altruísta também, porque até onde sei, essas pessoas
também gostaram de caminhar comigo. Os criadores nunca perdem em outrar. Gosto tanto disso que, com
frequência, valho-me de pseudônimos que… não vou contar.
Sobre as feições de meus personagens, pretendo que elas se apresentem,
tanto quanto possível, reflexivas ou ajudem a refletir; que sejam
"alguém" com quem se possa trocar uma ideia, conversar
silenciosamente. Sei que raramente obtenho isso, mas preciso tentar. Os temas
são todos aqueles que passam pelo meu universo de interesses, a exemplo das
figuras mitológicas, das pessoas observadas nas ruas e no metrô, nas mesas de
qualquer lugar, mas, sobretudo, aquelas que nunca existiriam. Não devo esquecer
as minhas naturezas mortas, geografias e horizontes, quase sempre memórias do
que nunca vi. Quanto aos gêneros – desenho, escultura, fotografia, gravura e
pintura –, cada um pode dizer mais e melhor conforme o que se queira alcançar.
Há gravadores que usam o metal para desenhar, pintores que buscam alcançar o
tridimensional típico da escultura, fotógrafos que querem pintar, e assim vai,
com meros exercícios de habilidade técnica, sempre limitados. De minha parte,
cada técnica tem seus sabores e dissabores, limites e vicissitudes; procuro
acertar na escolha da técnica adequada ao tema. Mas quero que as minhas
digitais, isto é, as características de meu trabalho, estejam presentes
independentemente da técnica eleita.
Isso de transitar de uma técnica para outra talvez seja vício ou
defeito diletos.
FLORIANO MARTINS | Lastimo que a confusão entre poesia e poema
seja perene e irretocável. Mesmo alguns poetas costumam dizer que escrevem
poesias, quando a poesia é singular, ela é o gênero do qual o poema é seu
principal objeto. Claro está que ao dizer que a poesia deve ser feita por todos
Lautréamont não se referia ao poema. Sempre acho quando menos curiosa essa
entronização do erro na pele de um acerto. Veja o caso do feminino inexistente
“presidenta”, que contraria a gramática, e, no entanto, se insiste em usá-lo no
Brasil. Não à toa, um de meus primeiros livros se chamava O amor pelas palavras. Gosto delas e as respeito o suficiente para
não me envolver com preconceitos e deformações banais.
Um tema que quase sempre
é tocado de forma preconceituosa é o do automatismo. Rio desse aparente temor
que muitos criadores têm de perder o controle sobre a criação, essa obsessão de
firmar-lhes um domínio, o que por vezes me parece tão-somente mais um dos ardis
do ego. Man Ray tem sobre o automatismo uma deliciosa definição. Diz ele:
“Assim como o sábio que, como um simples prestidigitador, manipular fenômenos
da natureza e tira proveito dos chamados acasos e leis, o criador ocupado em
valores humanos deixa passar as forças inconscientes coloridas por sua própria
personalidade, que não é outra coisa que o desejo universal do homem iluminando
as causas durante muito tempo reprimidas que são, em resumo, a base da
fraternidade e da confiança”. É esse “deixar passar” que me interessa, e não
uma simples carta de posse em favor da razão.
A cerveja é uma fonte de
estímulo, como poderia ser a maconha ou o ópio. É uma espécie de truque de
cena. Em meu caso ela foi, durante algum tempo, um componente funcional para a
concentração. Como bem sabes, um dos grandes inimigos da criação é a dispersão.
Esta me visitava com mais frequência do que a desejada, de modo que quaisquer
recursos para contê-la sempre foram bem vindos.
O livre trânsito entre
técnicas, gêneros, temas é uma dádiva, para o meu paladar ainda melhor
aventurada quanto mais do que trânsito o que se ousa é a busca de um elemento
outro, um híbrido que nos permita confeccionar mais chaves de acesso ao eterno
conflito entre o sonho e a vigília, entre os mundos visível e invisível. Criar
não é senão uma forma de desentranhar-se e não devemos isolar tal gesto de sua
plena identificação com os infinitos modos de ser. Se se trata de vício ou
defeito, que seja um vício maior e um defeito especial.
Antes de uma inevitável
despedida, gostaria que me dissesses se acaso esquecemos algo essencial, e
insisto no adjetivo porque há uma forma de esquecimento trivial que é
inevitável e, em muitos casos, bastante oportuna. Enfim, tens a palavra final
nesta relevante aventura que nós aqui alcançamos.
VALDIR ROCHA | Afinamos mais uma vez:
poesia é gênero. Basta.
A
questão do "automatismo" é mais presente na "poesia"
verbal. Atrevo-me a grafar entre aspas porque o que é meramente automático
talvez seja de pouco valor mesmo. Faço questão de distinguir o automático do
imediato. Imagine-se a recortar "n" palavras de publicações impressas
(ou melhor, peça que alguém o faça por você). Depois, ponha-se a sorteá-las e
passe a escrevê-las na ordem sequencial, distribuindo-as em diferentes linhas
para imitar versos. Bum. Isso é uma bomba. Parece-me algo como um jogo de
bingo, em que os números sorteados vão preenchendo uma cartela. Isso é
automático.
Por
outro lado, se se pratica o poema ou o desenho diariamente, com prazer, quando
se faz um novo tudo aquilo que veio antes opera como uma espécie de estudo ou
de rascunho para o que surge. E isso pode se dar imediatamente. Não é de
surpreender.
Desconfio
do inconsciente. Classifico: há camadas de consciente, de subconsciente e de
inconsciente. Toda criação verdadeira resulta de operação consciente, mesmo que
colha substratos de outras camadas. Mesmo os loucos de todo gênero só criam se
momentaneamente dão chance ao consciente e, se não fosse assim, fariam só uma
macacada. Essa consciência é sempre irracional no criador. Tenho convicção de
que o homem não é um ser racional! Melhor será dizer que o homem é um ser
racional e irracional. Fosse apenas racional, não se ocuparia das artes, seja
como criador, seja como espectador. O que humaniza é a arte. Falo em arte sem
graduar, porque isso serve tanto para aquilo que possamos considerar grande
como para a diminuta. Sob este aspecto, muitos dos outros animais, tão
objetivos que são, têm mais de racionais. Os artistas são mais irracionais do
que as outras pessoas. Toda criação artística é poética e eu já afirmei em
várias ocasiões que "a poesia é espécie singular de lógica do
irracional." O grande defeito da lógica como exposta pelos tidos como
sabidos é estudá-la apenas racionalmente, esquecendo esse outro ângulo tão
importante.
Há
bebidas e drogas liberalizantes, como há outras deformantes. Não me canso de
recordar e recontar episódio que vivi em 2002, com a morfina que me foi
aplicada em situação pós-cirúrgica. Quando tive alta e já em casa, estava no
banheiro e, olhando para a parede, via figuras. Pedi que a Lidia me trouxesse
uma prancha, papel e lápis. Pus-me a copiá-las. Depois de alguns dias, era
impossível revê-las na mesma parede. O inconsciente viu o que certo consciente
copiou. Nada criei, ainda que, depois, tenha me valido, derivando, daquilo que
antes apenas copiei.
Esse
desentranhamento criativo que você refere é defeito de verdade. Não tenha
dúvida. Pessoas certinhas (ou mais racionais do que irracionais) não criam; no
máximo fazem-se espectadoras da criação.
Não
sei se pensadamente, pede-me que diga se "acaso esquecemos algo
essencial". Sim, essencial é o ACASO. O acaso põe tudo à nossa
frente, mas gosta de receber atenção. Sou grande devedor dele. Conto um
episódio: ontem fui a uma igreja, em que nunca estivera antes, para a
celebração de uma cerimônia religiosa em memória de um amigo que faleceu uma
semana atrás. No chão de pedra, vi duas figuras magníficas, pareidolíticas,
formando grande cena. Preciso voltar lá para fotografá-las um dia.
Fim
provisório do que nunca acaba.
*****
Página ilustrada com
obras de Leila Ferraz (Brasil), artista convidada desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de
Cultura
Fase II | Número 19 | Agosto
de 2016
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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MARTINS
revisão de textos &
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