terça-feira, 19 de julho de 2016

FLORIANO MARTINS & VALDIR ROCHA | A inutilidade das fontes


Julho de 2016. O segundo capítulo da série “A inutilidade das fontes” apresenta agora um diálogo entre os brasileiros Valdir Rocha (1951) e Floriano Martins (1957), onde artista e poeta conversam sobre criação e visão de mundo. Trata-se de encontro relevante, registro de uma conversa franca entre dois criadores que mesclam reflexões e informações sobre aspectos do mundo da criação artística.

FLORIANO MARTINS | Nós dois nos conhecemos relativamente há muito pouco tempo, porém nos três ou quatro últimos anos nos afinamos de um modo bastante peculiar, resultando em uma avalanche de parcerias, mesclando nossas artes: poema, teatro, vídeo, pintura, desenho, fotografia, gravura, escultura. Editamos livros, vídeos, gravamos entrevistas. Temos já uma relevante bibliografia, o que certamente nos orgulha muito, pela conquista de uma alteridade que nos é de grande essência. Sob muitos aspectos a nossa experiência criativa em comum me levou a aprender muitas coisas sobre a minha obra e sobre a minha pessoa. O mais curioso, no entanto, é que até o momento não tivemos uma única dissensão.
Francis Bacon disse certa vez que criadores são tão vaidosos de sua personalidade quanto de sua obra, porém destacando que “se sentem menos obrigados para com a personalidade, achando que podem trabalhá-la e mudá-la, enquanto com a obra, depois de vir a público… bom, nada mais pode ser feito”. É uma firmação a ser ponderada, porque personalidade e obra, uma vez vindas a público, podem sim, me parece, sofrer alterações, para o bem ou para o mal. E caberia ainda indagar que tipo de relação existiria, caso a caso, entre obra e personalidade. Começamos por aqui?

VALDIR ROCHA | Vamos nessa, amigo Florins.
O tempo conta com variadas formas de contagem. Um pouquinho só pode ser demasiado; muito, insuficiente. Questão de intensidade, não é mesmo?
Tenho poucos amigos, mas o que me basta. Aliás, um deles, dileto, costuma lamentar só ter uns dezessete. Acho que dezessete é número muito grande para se contar como amigos. Os amigos de verdade dão muito bom trabalho e consomem tempo e energia – e isso não é um lamento e, sim, forma de afirmar que amizade pede dedicação, atenção, acompanhamento. Claro que as pessoas muito disponíveis podem acumular mais de tudo do que as pouco. E curioso: nem sempre a amizade é via de duas mãos, porque é possível sentir-se muito amigo de fulano e este não ter a mesma impressão. Não se encomenda um amigo, não adianta dizer a alguém "quero ser seu amigo", para que isso se dê.
Tenho pena desgraçada de quem não tem amigo qualquer. Isso deve ser um inferno. Amizade é coisa suprema.
Outra coisa: cada pessoa tem suas idiossincrasias, ritmo e medidas. Tudo é circunstante. Por isso que grandes amigos podem ser levados de cá para lá e a distância é atrapalhadora.
A palavra amigo é mutável em sua significação como qualquer outra. Se pensarmos em algumas amizades célebres (Apolo e Jacinto, Davi e Jônatas, por exemplo), passando pelos amigos das cantigas medievais e os amigos de Facebook, já dará para se ver que ela abriga muitos enganos.
Dispensável lembrar as categorias, que só menciono para constar: amigos, colegas, parceiros, conhecidos etc.
Sabe, Florins, estamos geograficamente distantes para algumas coisas mas para outras isso não atrapalha em nada. Claro que a Internet aproxima e provavelmente determina a feitura de muitas coisas que temos feito, sem contar algumas que eventualmente têm largada, mas sem linha de chegada, porque talvez falte interação.
Nossa amizade é feita de afinidades, mesmo nas divergências. Por exemplo, você é uma peça do surrealismo que eventualmente resvala no expressionismo; eu sou o inverso. No entanto, quando se pensa que as divisões são um tanto quanto arbitrárias, não será errado que isso tudo é farinha do mesmo saco. Elejo sempre as confluências.
Também tenho aprendido muito com você. E tem mais: admiro sua criatividade. Aliás, aprendo com tudo e todos, inclusive com os erros gerais, ainda que com algumas pessoas eu venha aprendendo mais. Com você aprendo bastante, inclusive em procurar evitar vulcanizar. Você é um vulcão criativo, sim; isso é bom para a criação; não sei se para a saúde física e mental… Será que dissenti, só para contrariá-lo?
Sei que você não vai mudar, porque sua obra é intrínseca à sua personalidade.
Falei. Em outra ocasião, falarei mais de obra e personalidade.
Retruque, caro amigo, se puder e tiver ânimo para isso.

FLORIANO MARTINS | Creio que não temos o menor talento para a dissensão (risos). Há uma tensão constante nas relações entre a criação vulcânica e a saúde física e mental, não há dúvida. Por a vida, assim como a arte, conta mais pela realização do que propriamente pela intenção. Creio que deve ser ainda mais sofrível a vida daqueles criadores – e conheço muitos assim – que padecem de certa dureza expressiva, a quem lhe custa muito criar, que extrai suas obras a fórceps. Cria-se aí uma tensão que seguramente deve afetar muito a estrutura orgânica do mesmo. Há também inúmeros artistas que creem que seu testemunho acerca do tempo em que vive deve ser o espelho da realidade. Isto pode até estar certo desde que se compreenda qual o verdadeiro truque de um espelho. O espelho é um ilusionista, ou somos nós, ilusionistas natos, que convertemos a areia em espelho, movidos pelo desejo de criar um personagem outro que nos seja satisfatório. O Fellini iluminou o tema ao afirmar que “ninguém é mais realista que o visionário; ele dá um testemunho de si mesmo mais rico e complexo do que aquele que retém uma impressão sensorial da realidade que está observando”.
Esta sempre foi, digamos, a minha intuição acerca da criação. Com o tempo ela foi se configurando, e hoje, uma inevitável, embora nem sempre garantida, maturidade, me leva ao que já chamaste de “estado de criação”. O meu ponto de vista já está completamente fundido com a realidade, seja em seu ambiente mais visível, seja naqueles recantos em que ela adora ocultar-se. Com isto, eu dei mais densidade e nitidez ao que crio, sem que a minha natureza vulcânica seja um obstáculo no que diz respeito à qualidade estética de minha obra. Por isto não encontro razão para crise na criação. Acho uma tolice imensa algum artista referir-se a crise de criação. Há, sim, crise de produção, que já é outra coisa, e hoje tão inevitável quanto impossível de erradicar a brutalidade vulgarizante do mercado das artes.
Hoje nós vivemos o reinado da indiferença, cenário de espetacularização fragmentada, que embota os sentidos ao ponto de que até mesmo os criadores começam a perder seu ponto de vista. É uma verdadeira catástrofe que liquida com a sociedade humana em sua raiz fundamental: de percepção do outro. E sabemos que sem essa bússola da alteridade desaparece justamente o que nos torna humanos: a solidariedade genuína.

VALDIR ROCHA | Você está muito enganado na sua crença, Florins. Por mim, sou muito talentoso para o dissenso. Adoro dissentir. Sou uma pessoa das mais dialéticas que você poderá encontrar por aí. E a dialética vive de confrontos, dissensos e divergências. Não me refiro ao discordar só para ser do contra. Discordo para atiçar o co-dialogante a me convencer de que aquilo que sustento – mesmo que por mero capricho – não é a melhor posição sobre certa ideia, pensamento ou atitude. Entende?
Sim, concordo, a realização vale muito mais do que a intenção. Conhecemos pessoas que passam a vida a projetar mil coisas que não se realizam, até porque podem mesmo ser irrealizáveis.
Entretanto, a tensão criativa permanente pode quebrar a veia. Ora, sei que cada qual tem lá seu ritmo. E ritmo bom é o do automático para alguns e o do amadurecido para outros. Quer saber como faço em minhas atividades criativas? Mesclo bastante o automático com o amadurecido. Talvez seja melhor que você não entenda como é isso.
Toda criação valiosa registra seu tempo, ainda que indiretamente. Aprecio mais aquela que diz com o sempre, a perene. Você sabe que há anos cheguei a um neologismo para isso: pantemporâneo.
Coisa diversa é a obra datada, no sentido de que habilitada a dizer algo de apenas um momento. É o caso dessas que podem até fazer furor em um instante e depois podem ser descartadas sem deixar rastro nem saudade para ninguém.
Quer ver uma coisa digna de nota: seus poemas testemunham nosso tempo, ainda que não sejam noticiosos. Nem se atreva a desdizer isso. 
Um conforto? A minha obra plástica também, ainda que eu não mire certo dia, mês ou ano, porque pretendo que ela diga com o sempre. É certo que entre a pretensão e seu alcance sempre há distância grande. Não estou a afirmar que eu logre encontrar o que pretendo.
Para mim, a criação não pode ser ato dolorido. Ao criador, toda obra inclusive as mais cruéis, dramáticas e terríveis deveriam resultar de certo prazer. Se, para alguns, a criação é ato dolorido, será porque não terá descoberto esse segredo.
Há autores de obra solitária e única que até pode ser magnífica. Tudo bem se se dão por satisfeitos. Tudo mal se são apenas preguiçosos.
Espelho? Florins, todas as obras criativas são espelho da realidade. Não tenha dúvida disso. Sejam os espelhos planos, bisotados, côncavos, convexos, ondulados, límpidos ou turvos, iluminados ou não. Espelho, espelho meu. Nem todos os espelhos são sinceros. Nem as fotografias são.
Somos antes de tudo personagens de nós mesmos, sempre. Se todos os homens são atores, os criadores exacerbam isso.
Os visionários são inventores de espelhos.
Crise de criação existe, sim, e decorre de crise do autor. Sei de autores que só escrevem em estado de perigo pessoal e até de quem, sem depressão, ficam à deriva criativa. Se sararem, matam o autor.
A alteridade, como você a refere, é solidariedade salvadora. Ato falho: convergi – "errar é humano".

FLORIANO MARTINS | Teu talento para a dissensão permanece oculto, pois estás a todo instante a concordar comigo, sobretudo quando fazes questão de evocar alguma discórdia (risos). É que talvez sejamos um o espelho sincero do outro. Não há dúvida de que aquilo que crio é testemunho de um tempo, reflexo de uma existência, e não se vive no vazio. Porém não é testemunho integrado à própria cena narrada. De um modo ou de outro – porque afinal são inúmeros os caminhos – chegamos à raiz de teu neologismo: pantemporâneo, o que me recorda um belo poema do Carlos Drummond de Andrade em que diz: “Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas”. E este é um dos grandes segredos da criação, ao que faltaria referência à invenção de neologismos. Aprender, tornar, inventar. É uma tríade fascinante. A poeta costarriquenha Eunice Odio se orgulhava de haver inventado uma palavra: pluránimo. O teu neologismo é uma evocação de todos os tempos, o dela é uma evocação de todos os ânimos. Todos os tempos em uma mesma alma, todas as almas em um mesmo tempo. Para além da invenção, em teu caso, pantemporâneo também foi um espaço de reflexão e difusão, que criaste e dirigiste por algum tempo. Seria bom que nos falasses aqui um pouco a este respeito, assim começamos a adentrar outra matéria, o tema das nossas realizações que atuam de modo paralelo ao de nossas criações. Em seguida falaremos da criação em si, pois tem um particular interesse em saber como as formas de agrupam e assaltam a visão de um artista plástico.

VALDIR ROCHA | Meu talento e habilidade para a dissensão estão justamente em fazê-lo acreditar que, divergindo, estou a concordar com o interlocutor.
Sinceramente, todos os indivíduos espelham-se entre si. Não sei por que você tem dúvida sobre isso, como manifesta com o seu “talvez”. 
Não sou e você também não é, com a obra criativa de cada um, testemunha em cenas, apenas se se entender isso como confessional. Ressalvo que desenganadamente eu me aproveito da ficção para contar algum pequeno delito, como o fiz, por exemplo, em… não vou contar.
Você também não confessa disfarçadamente?
Os poetas, sobretudo os brasileiros, em geral estão hoje muito voltados para o  EU. O culto do próprio umbigo não é um narcisismo? O narcisismo não é literalmente confessional?
Uso a palavra pantemporâneo para significar aquilo que diz com o permanente, com o perene, aquilo que existe desde outrora e possivelmente persistirá até mesmo na pós-história. Desse modo, mais do que contemporâneo (aliás, esse termo parece cada vez mais bobo e desgastado, a ponto de significar nada mais), quero, porque quero, ser pantemporâneo. O ambiente cultural é um caldeirão em que se acumula tudo, pelas eras, não há como negar isso. 
Vali-me do neologismo referido para, com a Lídia, minha namorada de décadas, criar o Lugar Pantemporâneo, com a intenção de que fosse um Lugar de Imagens, Livros e Ideias (não por acaso as iniciais eram de LILI). Foi um espaço cultural em que, no período de 2009 a 2012, efetivamente foi possível realizar mostras de vários artistas, apresentar poetas e escritores, fazer circular informações e pensamentos. Ali, além de exposições coletivas, aconteceram mostras de Wega Nery, Nelson Screnci, Kenichi Kaneko, Baravelli, Gruber, Francisco Baratti, Alê Prade, Paulo Cheida Sans e outros; encontros muito gostosos com poetas como Álvaro Alves de Faria, Celso de Alencar, Claudio Willer, Eunice Arruda, Glauco Mattoso, Helena Armond e Mirian de Carvalho. Os eventos geralmente eram registrados em vídeos que pululam por aí. O fato é que,  depois de pouco tempo, cansei-me e passei a dedicar ao Lugar Pantemporâneo cada vez menos atenção, deixando-o quase sempre sob o cuidado de outras pessoas, mesmo porque o voltar-me ao trabalho de outros me tirava o tempo necessário a dedicar-me ao meu. Foi bom e realizador enquanto durou; não lamentei quando terminou. Passou e ficou.
Não sou passadista, nem presentista, nem mesmo futurista. Talvez esteja mais para pós-histórico. Tudo conta. 
E você, meu velho, como vê essa questão do tempo na poesia e nas artes? 

FLORIANO MARTINS | Se observarmos com atenção a biografia de um cineasta como Roman Polanski é fascinante descobrir que sua vida inteira se encontra espalhada por seus filmes. Ele próprio é um personagem de sua criação. O meu “talvez” é uma forma de manter a alma sempre inquieta. Logo terás que confessar alguns de teus delitos, porque insistiremos neles.
O coma de minha avó materna mudou a minha poesia e levou consigo a minha vida por novas paragens. Princípio dos anos 1990, eu vinha fazendo experiências com uma linha narrativa épica mesclando poema e imagens plásticas, colagens e recortes de quadrinhos. Havia publicado um libreto, Contradições terríveis () e tinha acabado de escrever outro, mais extenso e ousado em suas imagens delirantes e no velho truque de aproximação de ambientes contrários. No entanto, algo me faltava, algo me abastecia o celeiro existencial de insatisfação. Ao voltar da casa de minha avó, certa manhã, de repente me vejo a escrever de modo intenso, quase como se psicografasse algo, no dia seguinte do mesmo modo e, em exatas três manhãs eu havia escrito a prosa poética de Cinzas do sol (1991). Ali sim, estava o germe de uma poética, onde o meu espírito encontrara finalmente um ponto de fusão com o espírito humano como um todo. Ali estávamos todos, o mundo e eu, mas principalmente ali eu estava pela primeira vez, como personagem de minha criação. Logo vieram outros livros, em que se confirmava o alcance de uma voz própria. Finalmente a minha poesia se deixava beneficiar por aqueles aspectos que mais me marcaram a infância e a adolescência, como o teatro, a tragédia, a narrativa, o epos, porém não isoladamente, eu queria tudo ao mesmo tempo, dentro do poema. Ritmo, enredo, personagens. Fusão de gêneros. Aspectos como a crônica de uma paisagem isolada, certo hermetismo, essa intrigante forma de abstracionismo da escrita, tudo havia desaparecido. Eu descobrira um novo ciclo de afluentes que me levariam ao estado alquímico perfeito, a mescla de densidade e nitidez, o que sempre considerei o ponto alto da criação. Graças ao coma de minha avó, a perspectiva real da morte me atingindo como uma faca no peito, eu descobri o que sempre havia faltado em mim.
Antes de vir aqui conversar contigo eu estava assistindo uma larga entrevista com Roman Polanski em que ele detalhava passagens fundamentais de sua vida e o documentário ia mostrando cenas de seus diversos filmes. Ali estava ele, por trás de cada fotograma, revelado por essa intensa magia que funde vida e obra.
Este é o tempo da poesia e das artes, Val. Estás completamente certo ao dizer que em mim o surrealismo resvala no expressionismo, mas não te esqueças, ali também se encontram barroco, simbolismo, teatro do absurdo, romantismo…
Em teu caso esse expressionismo figurativo obcecado por revelar a totalidade do mundo dentro de um rosto, de tal modo que mesmo quando nos deparamos com a figura inteira, humana ou não, o que vemos nela é antes de tudo a expressão de seu rosto. Como se algo em tua obra exigisse do espectador concentrar os seis sentidos em um só, o olhar. Mas disto falarás tu, agora.

VALDIR ROCHA | Toda obra autoral só o é na medida em que diz com quem a cria. Michelângelo, ao tomar algum jovem como modelo de seu Davi, terá escolhido alguém que encantara o seu olhar e, possivelmente, o seu tato etc.; da mesma forma, a cabeça decepada do Golias, de Caravaggio, é a do próprio pintor. As escolhas são recortes do eu.
É possível que só em certas obras coletivas a autoria se esgarce um pouco. Ainda assim, se considerarmos o cinema e o teatro, por exemplo, se tem muito da presença do autor (roteirizado ou roteirista) e do diretor. Isso para não referir o papel importante que atores e atrizes desempenham, sem contar que em certos casos, como o de Chaplin, tudo se funde.
O criador é sempre personagem, mais ou menos oculto, de sua criação. Quanto mais oculto, melhor.
Essa psicografia que você refere (e que eu preferiria grafar entre aspas) é uma experiência pela qual também já passei muitas vezes. Quando me tomo em estado de criação intensíssimo é como se eu saísse de mim para dar lugar a outro eu. Nesses momentos (que felizmente são esparsos nos anos), sou péssimo interlocutor até das pessoas mais próximas, porque nada mais me interessaria (não ouço, não vejo o mais). Então, tenho que trabalhar intensa e furiosamente, para que coloque fim, o mais rápido possível, naquilo que me absorve e arrasta. Quando estava desenhando "SÓS", "Confidências" e "Pós" isto se deu claramente. Idem, nas horas em que me pus a escrever O Chapéu. Não é que me tornei zumbi, alienado ou maluco, mas sei que foi quase isso, com essa entrega pessoal. Daí, não se deve chegar ao ponto de se imaginar que tudo deva girar em torno apenas e tão-só do próprio umbigo. Todos conhecem exemplos clássicos de pessoas que, enredadas em sua criação, piraram de vez.
Isso que você chama de voz própria (e que eu poderia tomar também como de mão própria) pode estar em trabalho épico ou lírico. A desgraça está em que alguns tomam a obra lírica que realizam ou pretendem realizar como obra egoísta, e não há sinonímia possível nisso. A coisa egoísta é limitada ao extremo e desinteressa até à mamãezinha de quem a faz.
Ainda sobre essa intensidade na feitura, há coisas que, na hora do parto, surgem prontas e outras que vêm como um aborto. Com certa frequência, preciso jogar fora algumas coisas que fiz e não passaram pelo meu teste de acabamento. Semanas atrás, modelei em cera o que deveria ser uma escultura a ser fundida e, quando voltei a ela no último sábado, vi que não havia alternativa senão destruí-la, porque faltava nela a minha personalidade.
"A perspectiva real da morte", que você refere e remete a novos caminhos, é dessas coisas mágicas. Nestes dias estive lendo um texto rico e delicioso de Guillermo Solana, em catálogo da exposição "Lágrimas de Eros", que aconteceu no Museu Thyssen, de Madri. O autor refere, partindo de Georges Bataille, a íntima relação entre Eros e Tánatos, "entre a pulsão sexual e o instinto de morte". Veja que alquimia.
Toda grande obra criativa realiza alquimia.
Vida e obra fundem-se – concordo. Por isso, é falsa a obra que imita, copia ou plagia. Espera-se sinceridade do autor e da sua obra. Todos têm o óbvio direito de desgostarem de minha obra, mas não o de duvidarem da sinceridade nela contida.
Quando desenho, esculpo ou pinto uma cabeça de pessoa que não existia, na verdade boto-me nela enquanto qualquer indivíduo desse universo que integramos. Curioso que, ocasionalmente, outra dessas cabeças (corpos) vem a lembrar-me de alguma pessoa. Acaso. Se você se puser na minha frente e eu disser que vou desenhá-lo, saiba de antemão que isso é uma mentira porque não me interessam os olhos, as bocas e os narizes de uma pessoa, se posso, em única imagem, representar "n" pessoas, eu incluído. Diferente é o caso em que tomo uma fotografia de um alguém qualquer e rabisco sobre ela, porque aí já será um exercício de deformação (pode se dar de eu deformar só um pouco e será para não ganhar um inimigo).

FLORIANO MARTINS | Claro, claro, comigo se passa o mesmo, porque mesmo que estejamos diante de um modelo ou de uma intenção, o que brotará será uma visão outra daquilo que vemos, será um vislumbre do que se encontra diante de nós já em sintonia com outros tempos, outras dimensões, porque a criação não se realiza somente em um tempo, somente em uma dimensão. Voltamos ao pantemporâneo, ao pluránimo, ao “tu somos eu” – para citar fala de personagem de um poema meu. Naturalmente o que vemos é a soma de todos os mundos que interessam à criação. Há certo transbordamento do invisível que somente o olhar da criação consegue captar. Isto sem esquecer o sempre revelador acervo do imaginário. O estado de quem se encontra tomado pela criação é mesmo indigesto para as relações sociais, mesmo domésticas, porque adentramos uma espécie de portal ardente onde observamos o mundo sob as mais variadas perspectivas, de tal modo que é impossível saltar dessa estação verdadeiramente mágica. O que o passar do tempo nos traz – pelo menos em meu caso – de imensa fortuna é que o processo se torna mais íntimo, entramos e saímos nela já com certa naturalidade, ciente de seus limites e consequências, o que não quer dizer que nos conformemos com um modelo – como ocorre com muitos – e passemos a viver à sombra de seus efeitos.
A leitura de O chapéu foi algo reveladora para mim. Confesso que eu observava certos truques de linguagem como algo que ao mesmo tempo em que me fascinava me dava uma inexplicável certeza de que eu não poderia operar com eles. Há uma fabulosa família que lida com o nonsense em uma esfera mais acentuadamente satírica, como Hans Arp, Eugène Ionesco, Federico Fellini, Vicente Huidobro, que eu sempre admirei, porém com uma distância quase reverencial no que diz respeito a esse ambiente do nonsense em suas narrativas (teatro, roteiro de filme, prosa poética). Ler O chapéu coincidiu com a minha aproximação do Zuca Sardan, e os dois encontros me despertaram essa inquietude que faz dar vazão a outro eu tomado por uma boa dose de paixão pela estética de um teatro do absurdo. O que foi decisivo para que, de imediato, passássemos a escrever uma série de três peças de teatro, a quatro mãos, Zuca Sardan e eu.
Esta é uma experiência muito curiosa, e que nos ajuda – ao menos observo esse efeito em mim – a limpar a casa do ego. Refiro-me à criação compartilhada. Se nos sentimos tão bem aqui neste nosso diálogo, por que seria diferente na hora de criarmos algo a quatro mãos? Afinal, como tão bem lembraste, quanto mais adentramos o ninho da criação mais se torna indispensável uma alta voltagem de sinceridade. Antes da experiência com o Zuca Sardan eu já havia realizado outras aventuras compartilhadas, no poema, o que resultou em livros com os poetas Manuel Iris (México) e Viviane de Santana Paulo (Brasil). É algo que me fascina, não apenas porque nos revela chaves até então insondáveis da alteridade, mas também porque acaba com esse mito enfadonho do poeta como um deus. Contigo, já chegamos perto disto, pois já escrevi sobre conjunto de desenhos, gravuras em metal e esculturas de tua autoria. Crês que poderia inverter a polaridade e criar a partir de poemas meus? A fortuna de uma escrita compartilhada nós ainda não alcançamos, porém já trabalhamos com a fotografia e o desenho, com uma parceria deliciosa de interferências de um no trabalho do outro, o que resultou em um belo DVD intitulado justamente Interferências.

VALDIR ROCHA | Suas considerações abrem espaço para algumas notas. Você tem facilidade em colocar claramente coisas difíceis; por exemplo, isso que refere como transbordamento do invisível pelo olhar da criação. De anos para cá, todas as pessoas somos solicitados a cada instante para mais imagens do que conseguimos absorver. E isso é muito bom, mas pode dar a falsa impressão de que tudo está sendo construído agora. Não se pode perder a noção de que cada coisa nova resulta de inúmeros encontros anteriores e que as de agora também somarão em prol das que virão. O mundo é  e sempre foi assim, tão pantemporâneo.
O invisível é uma coisa engraçada porque, em princípio, estaria ao alcance de qualquer pessoa, mas – ainda bem… – só algumas conseguem enxergá-lo. Tenho fotografado muitas coisas que estão diante do nariz de qualquer um e passam não notadas. O segredo é olhar para cima, para frente, para os lados e para o chão. Todas as coisas se encontram numa dessas posições. Tenho feito recortes (sim, fotografar é recortar) que me cativam. O problema é que muitas vezes preciso driblar o trânsito de transeuntes e de automotores, dado que esses recortes podem estar, por exemplo, no meio de uma calçada ou de uma rua. As pareidolias, em particular, agradam-me sobremaneira. Preciso fotografar, rabiscar e pintar sobre a coisa fotografada, para que outro "veja o que eu vi".
O amadurecimento que o tempo traz é muito relativo, se pensarmos que a prontidão resulta de intensidade de propósito criativa e esta vai e volta.
Você volta a O Chapéu. Pois bem, a experiência pessoal que tive com esse texto me é muito rica. Acordei com toda a sua estrutura pronta, em certo dia. Tive medo de esquecê-la. Pus-me a redigir feito um louco (a exemplo desse tal Floriano Martins), ainda de pijama, sem café da manhã, sem mais nada. Ainda bem que depois de certo lapso a Lidia passou a cuidar de colocar na minha frente alguma coisa para eu mastigar e ingerir. Parei depois de muitas horas, quando quase tudo estava gravado. Claro que voltei ao texto nos dias seguintes, só para retocar aqui e ali. Curioso que não sou muito de recordar sonhos tidos; da noite, lembro, sobretudo, ideias visuais servíveis a serem copiadas. Afinal, essas lembranças advindas de sono noturno, quando aproveitadas, hão de ser tidas como plágio ou cópia ou o quê? Onde está Freud para me responder a isso?
Reconheço que O Chapéu pode ter bastante de nonsense. Talvez tenha mais de significados estranhos. Não se esqueça de que ele contém muito de jurídico, meta-jurídico e não jurídico. Devo lembrar que tenho formação jurídica e atuei muito com o Direito, especialmente enquanto editor, sendo como sou advogado de carteirinha, inclusive com títulos de doutor e livre-docente, sem ter querido deliberadamente fazer carreira acadêmica porque, certamente seria um professor medíocre. Aliás, durante muito tempo, quando me perguntavam o que eu preferia fazer – trabalhar com o Direito ou com as artes – sempre respondia que com os dois. Entretanto, de certo tempo para cá, reconheço que estou me afastando – talvez irreversivelmente – do Direito, a que muito devo, como você sabe.
As coisas sempre acontecem na hora certa. Sua colaboração com Zuca enriquece aos dois. Sou obrigado a concordar que a obra compartilhada, ou em colaboração, pode mexer com o ego (para o bem e para o mal, a depender de como ela efetivamente acontece). Se contar com efetiva dose de desapego de cada partícipe, o que surge do conjunto, se for valioso, engrandece a todos.
Você, como eu, conta com diversas iniciativas em colaboração, também para além de nós mesmos. Crescemos. 
Já trabalhei com fotografias suas, piorando algumas e melhorando outras com certeza. Com textos escritos que devesse ilustrar com imagens visuais, encontro dificuldade por uma limitação pessoal – não sou bom ilustrador. Certa vez, fiz ilustrações para livro do amigo Péricles Prade; foram publicadas juntamente com seus contos. Queria fazê-las à altura, mas reconheço que resultaram pobrezinhas. A ilustração constitui outra categoria; serve apenas de escada. Por isso que nos casos em que tenho imagens visuais publicadas ao lado de poemas, a força de cada um vem da individualidade de umas e de outros: nem as imagens ilustram poemas nem estes aquelas. Geralmente, a temática é o ponto de confluência.
Somos, eu e você, dois interferentes, talvez fosse melhor dizer xeretas. Digo, por mim: sou xereta em tudo.

FLORIANO MARTINS | Esta é uma ideia que sempre me fascina, eu sempre digo que, exceto pelos poemas, em tudo o mais eu sou um intrometido, um xereta, um menino curioso por desmontar o brinquedo para saber o que tem em seu íntimo. E é fácil constatar, observando meu ensaio ou minha fotografia, que a rigor eu sou um poeta, embora esta assertiva possa não passar de um truque.
Como eu suponho haver deixado claro no posfácio de O chapéu, o recurso estilístico do texto não é propriamente nonsense, mas antes trata, através do que chamei de dramatização da ironia, do nonsense em que transformamos nossas vidas. Que bonito saber agora que é também uma obra de criação automática. A propósito de automatismo, recordo que me foi muito rica a experiência provocada por ti de criação automática de poemas diante de uma câmara. Resultou algo revelador o vídeo dirigido pelo Pipol: Abismo minucioso (2014). A câmara tem um intrigante componente inibidor que pode tanto estancar a veia da criação quanto mascarar a sinceridade. Creio que passei bem no teste e tenho vontade de repetir a experiência.
Outro ponto aqui evocado diz respeito à ilustração. Não creio que tenha sido isto o que fiz ao criar poemas sob a sugestão imagética de teus desenhos, gravuras e esculturas. Jamais me interessaria utilizar a criação de um como explicação ou decoração em relação à criação do outro. O que fiz foi tratar de dialogar com as tuas imagens, com o fraseado invisível de sua rede de sugestões, o que por vezes me levou a compor um poema que para muitos pode estar por completo dissociado da imagem a seu lado. Este então seria o resultado mais feliz, o instante em que o confronto entre dois opostos não age no sentido de um eliminar o outro, mas sim de criar um terceiro elemento. Isto recorda o clássico conflito entre o masculino e o feminino que, quando incorre em mera disputa de espaço e uma força elimina a outra, acaba resultando, do ponto de vista social, em matriarcado ou patriarcado. A política se tornou uma excrescência justamente por se utilizar desse mecanismo de eliminação do outro. Na religião, a evocação da Grande Mãe, ou princípio feminino, não eliminava o oposto, como o faz a tríade cristã (Pai, Filho, Espírito Santo), ao eleger o princípio masculino, contrário a uma tradição mitológica. Enfim, de contradições o mundo é mesmo um poço sem fundo.
O teatro que ando criando com o Zuca Sardan – já estamos com bom caminho andado na escritura da terceira peça que compõe uma trilogia – se utiliza de mecanismos do teatro do absurdo, da patafísica, do surrealismo, da performance, do mundo pop, o que lhe dá intensa agilidade e uma variação frenética de modos de tratar cada tema. E, a exemplo do que consegui na escritura a quatro mãos de poemas, também aqui vemos desaparecer o ego, no sentido de uma contenda de identidades, e surgir um elemento comum, outro, que funde as duas partes, sem que uma elimine a outra. Somente neste sentido me interessa compartilhar mundos.
Temos conversado sobre muitos aspectos de nossas criações, mas há um em particular que eu gostaria de referir. Como eu disse certa vez, és um exímio embaralhador de feições, cuja magia maior é justamente a da sugestão de um amplo espectro de leitura, de percepção, por parte do observador de tua obra. De que forma são eleitos temas e gêneros?

VALDIR ROCHA | Você diz que "a rigor eu sou um poeta, embora esta assertiva possa não passar de um truque". Ora, então eu também sou um poeta. Uma das acepções mais correntes que essa palavra tem é a de lunático, nefelibata, alienado. Com certeza, não é por aí que nos encaixamos nessa palavra, tão lúcidos somos.
Sou um poeta pelo menos na tentativa de praticar poesia. A poesia é um gênero grandão que engloba tanta coisa. Minha poesia é plástica; a sua, sobretudo verbal. Por que só os poetas verbais, cultivadores do verso, se diriam poetas?
Não caio em sua armadilha, quando me joga às feras com a afirmação de que achou "bonito saber agora que [O Chapéu] é também uma obra de criação automática". Não é, não. O Chapéu foi muito bem pensado durante toda uma noite de sono bem dormido. Vou além, a experiência poética, gravada e editada em vídeo pelo saudoso amigo Pipol, em seu Abismo Minucioso também nada contém de escrita automática. Dela, poder-se-ia dizer rápida, instantânea ou ligeira, mas, ora, tudo aquilo já estava em sua cabeça de poeta praticante. Toda a sua produção poética anterior terá servido de treino ou rascunho para aqueloutra. Os poemas ali criados são de um cara bem desinibidinho, por natureza  e por conta de cervejinhas relaxadoras. Por conta de uma e outra coisa você se saiu muito bem. Não são muitas as pessoas com quem se poderia fazer tal jogo. Com você, as cervejinhas funcionaram muito bem. 
Nas aventuras conjuntas que realizamos ninguém ilustra ninguém, obviamente. A beleza está em que seus textos correm soltos dos meus desenhos, gravuras e esculturas. Há diálogo pleno que – você tem razão – cria um terceiro elemento. Mal comparando, é como se você fosse uma mulher fertilizada com minha semente para criar outra coisa.
Os homens somos muito egoístas. Precisamos dar mais espaço para a alteridade. Você tem dado muitos passos nessa direção, seja comigo, seja com Zuca, com tantos. Sinceramente, envaidecem-me as realizações conjuntas que empreendi com você, com Álvaro Alves de Faria, com Celso de Alencar, com Eunice Arruda, com Raquel Naveira e tantas outras pessoas criativas. Acho que essa vaidade tem um quê de altruísta também, porque até onde sei, essas pessoas também gostaram de caminhar comigo. Os criadores nunca perdem em outrar. Gosto tanto disso que, com frequência, valho-me de pseudônimos que… não vou contar.
Sobre as feições de meus personagens, pretendo que elas se apresentem, tanto quanto possível, reflexivas ou ajudem a refletir; que sejam "alguém" com quem se possa trocar uma ideia, conversar silenciosamente. Sei que raramente obtenho isso, mas preciso tentar. Os temas são todos aqueles que passam pelo meu universo de interesses, a exemplo das figuras mitológicas, das pessoas observadas nas ruas e no metrô, nas mesas de qualquer lugar, mas, sobretudo, aquelas que nunca existiriam. Não devo esquecer as minhas naturezas mortas, geografias e horizontes, quase sempre memórias do que nunca vi. Quanto aos gêneros – desenho, escultura, fotografia, gravura e pintura –, cada um pode dizer mais e melhor conforme o que se queira alcançar. Há gravadores que usam o metal para desenhar, pintores que buscam alcançar o tridimensional típico da escultura, fotógrafos que querem pintar, e assim vai, com meros exercícios de habilidade técnica, sempre limitados. De minha parte, cada técnica tem seus sabores e dissabores, limites e vicissitudes; procuro acertar na escolha da técnica adequada ao tema. Mas quero que as minhas digitais, isto é, as características de meu trabalho, estejam presentes independentemente da técnica eleita.
 Isso de transitar de uma técnica para outra talvez seja vício ou defeito diletos.

FLORIANO MARTINS | Lastimo que a confusão entre poesia e poema seja perene e irretocável. Mesmo alguns poetas costumam dizer que escrevem poesias, quando a poesia é singular, ela é o gênero do qual o poema é seu principal objeto. Claro está que ao dizer que a poesia deve ser feita por todos Lautréamont não se referia ao poema. Sempre acho quando menos curiosa essa entronização do erro na pele de um acerto. Veja o caso do feminino inexistente “presidenta”, que contraria a gramática, e, no entanto, se insiste em usá-lo no Brasil. Não à toa, um de meus primeiros livros se chamava O amor pelas palavras. Gosto delas e as respeito o suficiente para não me envolver com preconceitos e deformações banais.
Um tema que quase sempre é tocado de forma preconceituosa é o do automatismo. Rio desse aparente temor que muitos criadores têm de perder o controle sobre a criação, essa obsessão de firmar-lhes um domínio, o que por vezes me parece tão-somente mais um dos ardis do ego. Man Ray tem sobre o automatismo uma deliciosa definição. Diz ele: “Assim como o sábio que, como um simples prestidigitador, manipular fenômenos da natureza e tira proveito dos chamados acasos e leis, o criador ocupado em valores humanos deixa passar as forças inconscientes coloridas por sua própria personalidade, que não é outra coisa que o desejo universal do homem iluminando as causas durante muito tempo reprimidas que são, em resumo, a base da fraternidade e da confiança”. É esse “deixar passar” que me interessa, e não uma simples carta de posse em favor da razão.
A cerveja é uma fonte de estímulo, como poderia ser a maconha ou o ópio. É uma espécie de truque de cena. Em meu caso ela foi, durante algum tempo, um componente funcional para a concentração. Como bem sabes, um dos grandes inimigos da criação é a dispersão. Esta me visitava com mais frequência do que a desejada, de modo que quaisquer recursos para contê-la sempre foram bem vindos.
O livre trânsito entre técnicas, gêneros, temas é uma dádiva, para o meu paladar ainda melhor aventurada quanto mais do que trânsito o que se ousa é a busca de um elemento outro, um híbrido que nos permita confeccionar mais chaves de acesso ao eterno conflito entre o sonho e a vigília, entre os mundos visível e invisível. Criar não é senão uma forma de desentranhar-se e não devemos isolar tal gesto de sua plena identificação com os infinitos modos de ser. Se se trata de vício ou defeito, que seja um vício maior e um defeito especial.
Antes de uma inevitável despedida, gostaria que me dissesses se acaso esquecemos algo essencial, e insisto no adjetivo porque há uma forma de esquecimento trivial que é inevitável e, em muitos casos, bastante oportuna. Enfim, tens a palavra final nesta relevante aventura que nós aqui alcançamos.

VALDIR ROCHA | Afinamos mais uma vez: poesia é gênero. Basta.
A questão do "automatismo" é mais presente na "poesia" verbal. Atrevo-me a grafar entre aspas porque o que é meramente automático talvez seja de pouco valor mesmo. Faço questão de distinguir o automático do imediato. Imagine-se a recortar "n" palavras de publicações impressas (ou melhor, peça que alguém o faça por você). Depois, ponha-se a sorteá-las e passe a escrevê-las na ordem sequencial, distribuindo-as em diferentes linhas para imitar versos. Bum. Isso é uma bomba. Parece-me algo como um jogo de bingo, em que os números sorteados vão preenchendo uma cartela. Isso é automático.
Por outro lado, se se pratica o poema ou o desenho diariamente, com prazer, quando se faz um novo tudo aquilo que veio antes opera como uma espécie de estudo ou de rascunho para o que surge. E isso pode se dar imediatamente. Não é de surpreender.
Desconfio do inconsciente. Classifico: há camadas de consciente, de subconsciente e de inconsciente. Toda criação verdadeira resulta de operação consciente, mesmo que colha substratos de outras camadas. Mesmo os loucos de todo gênero só criam se momentaneamente dão chance ao consciente e, se não fosse assim, fariam só uma macacada. Essa consciência é sempre irracional no criador. Tenho convicção de que o homem não é um ser racional! Melhor será dizer que o homem é um ser racional e irracional. Fosse apenas racional, não se ocuparia das artes, seja como criador, seja como espectador. O que humaniza é a arte. Falo em arte sem graduar, porque isso serve tanto para aquilo que possamos considerar grande como para a diminuta. Sob este aspecto, muitos dos outros animais, tão objetivos que são, têm mais de racionais. Os artistas são mais irracionais do que as outras pessoas. Toda criação artística é poética e eu já afirmei em várias ocasiões que "a poesia é espécie singular de lógica do irracional." O grande defeito da lógica como exposta pelos tidos como sabidos é estudá-la apenas racionalmente, esquecendo esse outro ângulo tão importante.
Há bebidas e drogas liberalizantes, como há outras deformantes. Não me canso de recordar e recontar episódio que vivi em 2002, com a morfina que me foi aplicada em situação pós-cirúrgica. Quando tive alta e já em casa, estava no banheiro e, olhando para a parede, via figuras. Pedi que a Lidia me trouxesse uma prancha, papel e lápis. Pus-me a copiá-las. Depois de alguns dias, era impossível revê-las na mesma parede. O inconsciente viu o que certo consciente copiou. Nada criei, ainda que, depois, tenha me valido, derivando, daquilo que antes apenas copiei.
Esse desentranhamento criativo que você refere é defeito de verdade. Não tenha dúvida. Pessoas certinhas (ou mais racionais do que irracionais) não criam; no máximo fazem-se espectadoras da criação.
Não sei se pensadamente, pede-me que diga se "acaso esquecemos algo essencial". Sim, essencial é o  ACASO. O acaso põe tudo à nossa frente, mas gosta de receber atenção. Sou grande devedor dele. Conto um episódio: ontem fui a uma igreja, em que nunca estivera antes, para a celebração de uma cerimônia religiosa em memória de um amigo que faleceu uma semana atrás. No chão de pedra, vi duas figuras magníficas, pareidolíticas, formando grande cena. Preciso voltar lá para fotografá-las um dia.
Fim provisório do que nunca acaba.



*****
Página ilustrada com obras de Leila Ferraz (Brasil), artista convidada desta edição de ARC.

*****

Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 19 | Agosto de 2016
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80








Nenhum comentário:

Postar um comentário